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Estud. Lit. Bras. Contemp. número43

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Academic year: 2018

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Apresentação

Roberto Vecchi e Regina Dalcastagnè

Um dossiê sobre como a literatura e a cultura elaboraram imagens da ditadura militar brasileira (1964-1985) não representa só uma rememoração – que assume o lado das vítimas – da violência de Estado que se abateu sobre uma sociedade em movimento a partir do golpe militar, há 50 anos. É muito mais um ato político, que procura não só mostrar como a literatura tem sido e continuará sendo um arquivo surpreendente que guarda, de maneira mais incisiva do que a historiografia, a memória ainda dolorida de um tempo áspero e impróprio. Um tempo em que uma barbárie antiga mostrou seu rosto dramaticamente moderno e capaz de impor o regime do horror.

Há clássicos desta literatura – de Euclides da Cunha a Guimarães Rosa, de Lima Barreto a Graciliano Ramos – que já exibiram repertórios de imagens extraordinariamente eficazes de como as práticas de uma violência de raiz colonial não se extinguiram com o fim da colônia, mas reemergiram, cíclicas e inesperadas, inclusive no entremeio das narrativas mais aparentemente ilustradas.

O que emerge dos artigos aqui reunidos não é uma anatomia do passado – que sempre conjugará de modo imperfeito as memórias pessoais dentro do simulacro indispensável, mas artificial, da memória pública. É muito mais – em toda a ressonância ambivalente do termo – uma espectrografia do passado.

Nestas páginas talvez se perceba porque a literatura constitui um campo privilegiado para repensar certo tipo de memória em risco. O caso da ditadura militar brasileira é emblemático, porque, pela dinâmica que caracterizou a redemocratização do país, em particular os efeitos perversos da lúcida racionalidade que elaborou a Lei de Anistia, não houve a possibilidade de pôr um limite nítido entre vítimas e perpetradores como ocorreu em outros contextos do continente. Esta indecidibilidade criou não só uma disputa da memória, que ainda continua controversa e não compartilhada; criou também um conflito de linguagem, uma cisão entre as palavras e as coisas às quais remetem para interpretações conflitantes sobre um tempo ainda pouco possuído.

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–––––––––––– Apresentação

estudos de literatura brasileiracontemporânea, n. 43, p. 11-12, jan./jun. 2014. 12

muito bem os dispositivos simbólicos que a linguagem implica e que fazem com que a sombra da Revolução de 30 se reflita sobre a superfície do nome, ou significa conhecer bem a história do conceito de revolução que, antes da época moderna, significava justa e etimologicamente retorno ou restauração.

Não é inocente deixar aflorar a mitologia da dita-branda, que parece fundar uma taxonomia específica da ditadura brasileira, porque significa exumar os espectros de uma cordialidade brasileira, faca de dois gumes, mas cortante, que sempre serviu como véu da violência mais pervasiva de uma sociabilidade marcada pela permanência de dominações.

Há uma guerra de nomes ainda não resolvida – e de resultado ainda imprevisível – que elege a literatura como um campo por excelência em que é possível, fora ou às margens das hegemonias mediáticas, praticar uma política do nome próprio em relação ao passado, e em que a violência não se eufemiza nos disfarces linguísticos e pode declinar-se em todas as forças que a constituem.

A literatura e a cultura podem configurar-se, assim, como um espaço cultual de enorme potência em relação aos restos, aos despojos, às ruínas e às destruições do passado, proporcionando uma monumentalidade alternativa que, em tempos de comemorações declamatórias ou de embates ideológicos, torna-se indispensável resgatar. Pertence àquele círculo dos assim chamados monumentos “por defeito”, objetos de memórias alternativas e inesperadas que carecem, justamente, de monumentalidade, ou seja, daquela retórica áulica e triunfante que conota alguns monumentos e que, na aparência, representa a força simbólica que lhes permite ultrapassar os limites do tempo.

Os monumentos defeituosos ou silenciosos que se espalham pela literatura possuem, pelo contrário, uma força singular, uma força débil: aquela de fundar uma semântica própria das experiências aparentemente mais longínquas da perspectiva monumental, mas onde as memórias, inclusive as mais traumáticas, encontram uma forma sustentável, uma inscrição permanente, que resiste à erosão do tempo e dos reusos revisionistas do passado.

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