• Nenhum resultado encontrado

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Daniela Jorge Milani

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Daniela Jorge Milani"

Copied!
240
0
0

Texto

(1)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Daniela Jorge Milani

Relações entre Igreja e Estado:

Secularização, laicidade e

o lugar da religião no espaço público

MESTRADO EM DIREITO

(2)

Daniela Jorge Milani

Relações entre Igreja e Estado:

Secularização, laicidade e

o lugar da religião no espaço público

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –

PUC-SP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, na área de concentração Filosofia do Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Gabriel Benedito Issaac Chalita

(3)

Banca Examinadora:

_______________________________________

_______________________________________

(4)
(5)

Em primeiro lugar agradeço a Deus que nunca me abandonou e cuja presença pude sentir em toda a minha vida, especialmente neste momento tão importante.

À querida professora Márcia Cristina Alvim sempre muito solícita e afetuosa. Ao caríssimo professor Gabriel Chalita pelo incentivo e orientações.

Aos queridos professores de todas as matérias que cursei por terem direcionado suas lições ao debate dos mais instigantes temas.

Ainda, aos meus caríssimos colegas dessas mesmas turmas por sua excelente companhia e pela ótima troca de experiências.

Não poderia deixar de registrar também o meu agradecimento ao Rui, da coordenação da pós-graduação strictu sensu em Direito, que com toda a paciência me auxiliou na direção do cumprimento de meus compromissos do mestrado, tendo me tranquilizado em momentos de desespero.

Agradeço também ao estimado amigo Claudio Langroiva Pereira por todo apoio, auxílio e força, porque foi quem primeiro me encorajou para seguir esta jornada, dando-me apoio até o final.

À minha querida mãe que me socorreu nas horas mais críticas, estando onde eu não podia estar.

(6)

“O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é a tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, não se ouve a voz de Deus, não se goza da doce alegria do seu amor nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem.”

(7)
(8)
(9)
(10)
(11)

INTRODUÇÃO ... 14

1 RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E ESTADO: ESCORÇO HISTÓRICO ... 19

1.1 Considerações Preliminares ... 19

1.2 Os Povos Primitivos: Leis e Autoridade na Família ... 21

1.3 O Surgimento da Cidade: Autoridade Política e Religiosa se ... Confundem ... 27

1.3.1 A Transformação da Cidade: a Força Popular e o Advento da ... Filosofia ... 34

1.3.2 O Advento da Filosofia ... 40

1.4 O Aparecimento do Cristianismo e a Mudança de Paradigma da ... Religião ... 48

1.4.1 A Grande Novidade do Cristianismo ... 50

1.5 Igreja e Estado na Idade Média ... 53

1.5.1 A “Cristianização” dos Bárbaros ... 57

1.5.2 Os Sacro-Impérios Romanos: Franco e Germânico ... 60

1.5.3 O feudalismo, a Igreja e o Imperador: Sistemas de Domínio ... 62

2 SECULARIZAÇÃO: SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA ... 72

2.1 Os Tempos Modernos e o Advento do Humanismo Antropocêntrico ... 73

2.1.1 Reforma e Contrarreforma ... 75

2.1.2 A Era das Revoluções Francesa e Inglesa ... 78

2.1.3 O Liberalismo: a Razão Autônoma ... 82

2.2 O Fenômeno da Secularização ... 84

2.2.1 A Secularização e o Desencantamento do Mundo ... 87

2.3 Secularização e Laicidade ... 89

2.3.1 Os Significados Contidos na Palavra Laicidade... 91

2.3.2 Laicidade e Laicismo ... 96

2.4 Dois Modelos de Estado Laico ... 100

2.5 Laicidade nas Relações entre Igreja e Estado ... 104

2.5.1 O Ordenamento do Estado e o Ordenamento da Igreja Católica .... ... 106

(12)

ESPAÇO PÚBLICO ... 113

3.1 Pós-Secularização ... 113

3.2 Democracia e Pluralismo ... 116

3.2.1 O Estado e as Instituições Parciais ou Intermediárias da ... Sociedade ... 119

3.2.2 Finalidade do Estado: O Bem Comum ... 123

3.3 Liberdade Religiosa ... 125

3.3.1 A Importância da Religião ... 129

3.3.2 Tolerância Religiosa ... 133

3.4. Lugar da Religião no Espaço Público ... 141

3.4.1 O Reconhecimento da Existência das Bases Pré-Políticas e o ... Problema da Legitimação do Direito ... 142

3.5 Habermas e a dialética da razão comunicativa ... 145

3.5.1 Habermas e a Indispensável Participação Política da Religião ... para a Legitimação do Direito ... 148

3.6 O Contributo das Três Grandes Religiões Monoteístas para a Construção de uma Sociedade mais Justa e Fraterna ... 151

3.7 O Uso Público da Razão Segundo John Rawls e Jürgen Habermas ... 159

3.7.1 O Liberalismo Político de John Rawls ... 160

3.7.2 Habermas e o Liberalismo Político de Rawls ... 164

3.7.3 Habermas e a Necessidade de Colaboração para a “Tradução” ... de Argumentos Religiosos na Esfera Pública ... 168

3.7.3.1 O Diálogo entre Habermas e Ratzinger: razão e fé em ... debate... 171

4 A LAICIDADE NO BRASIL: QUESTÕES POLEMICAS ... 175

4.1. Panorama Histórico Geral das Relações Estado-Igreja no Brasil ... 175

4.2 O Brasil e o Espaço para Deus: Breve Estudo Comparativo das ... Constituições Brasileiras Pretéritas e Atual ... 183

4.2.1 A Polêmica em Relação ao Preâmbulo da Constituição Federal .. de 1988 ... 186

4.3 No Brasil Há e Deve Haver Laicidade ou Laicismo? ... 188

4.3.1 Igualdade ou Igualitarismo Religioso no Brasil? ... 193

(13)

4.5 O Ensino Religioso no Estado Laico ... 208

4.6 A Retirada da Menção a Deus na Nota da Moeda Nacional ... 211

4.7 Concursos em Dia de Sábado ... 214

CONCLUSÃO ... 217

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 220

ANEXO A ... 228

ANEXO B ... 233

(14)

INTRODUÇÃO

No campo da filosofia há de se notar que todos enfrentam a questão sobre Deus. Seja para se declarar ateu, agnóstico ou crente o pensador tem que enfrentar essa problemática.

Significa dizer que a filosofia passa inexoravelmente pela transcendência e religiosidade do homem. Seja para aceitar, seja para negar, seja até mesmo para se declarar indiferente ou agnóstico, o filósofo ou estudioso da filosofia tem que enfrentar questões sobre Deus, tais como: Deus existe? Quem ou o que deu origem ao universo? De onde surgiu o homem? Para onde vai após a morte? Há sentido na vida humana?

À filosofia do direito, portanto, interessa a questão das relações entre Estado e Religião, entre o poder temporal e o espiritual. Nesse âmbito se enfrentam questões sobre a legitimidade do poder estatal e do Direito além de que, a liberdade religiosa, hoje internacionalmente reconhecida como um direito humano, tem diversas abordagens e consequências.

Igualmente, sendo o direito uma ciência social aplicada e a religião um fato social é necessário que a filosofia do direito se aventure a desvendar e até auxiliar a construir as relações entre esses dois campos de interesse social. O estudioso do tema não pode se furtar a enfrentar estas questões.

O interesse em elaborar a presente pesquisa surgiu pelo desejo de descortinar o real sentido de laicidade do Estado, o que se justifica diante do crescente polêmica em torno da questão: Seria o Estado laico um Estado sem Deus, ateu, que isola as religiões, ou um Estado não confessional, independente, mas inclusivo, que garante a existência das diversas crenças, sejam da maioria quanto das minorias? Implicaria a laicidade em absoluta separação entre as esferas? Seria isto possível? Ou ela existe para conferir neutralidade, independência e autonomia a cada uma?

(15)

Neste sentido, pergunta-se: Há lugar no espaço público para as religiões e religiosos? É possível que um argumento religioso seja sustentado para defender alguma posição perante o Estado laico? É justo que o cidadão religioso seja obrigado a encontrar argumentos laicos, que não condizem com sua real motivação interior, a fim de poder participar do debate político e do processo democrático? É justo excluir posições defendidas por entidades religiosas apenas e tão somente porque num Estado laico religião não tem voz? Ou o Estado, reconhecendo a importância da religião na sociedade, deve estar aberto ao diálogo com diferentes visões de mundo existentes na sociedade para em seguida chegar a um consenso sobre as questões de interesse geral, legitimando, assim, o processo democrático, como defende Jürgen Habermas?

Todas estas questões são enfrentadas neste trabalho.

Em relação ao Brasil se abordará, ao final, quais as consequências práticas destas conclusões sobre a laicidade do Estado: Devem ser abolidos os símbolos religiosos dos espaços públicos? É possível o ensino religioso em escolas públicas? E a alteração de datas de concursos para que não ocorram em dias de sábado? A concordata entre o Brasil e a Santa Sé firmada em 2010 fere a laicidade? Com efeito, buscou-se a história das relações entre Estado e Igreja desde os tempos mais remotos, notando que, primitivamente, não havia qualquer distinção entre um e outro, já que autoridade pública e autoridade religiosa estavam fundidas na mesma figura e não se vislumbrava uma sem a outra.

Interessante notar que foi o advento do cristianismo que trouxe uma nova mentalidade sobre as relações entre o temporal e o espiritual, de outro, tendo em vista o ensinamento bíblico de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, concluindo daí que a autoridade religiosa e a temporal não se confundem e cada qual tem seu campo de atuação.

Tal novidade trazida pelo cristianismo, no entanto, se enfraqueceu alguns séculos após a instituição do cristianismo como a religião do ocidente. É que a Igreja, como legitimadora da autoridade dos reis acabou servindo de instrumento de mandos e desmandos daqueles a quem interessava a submissão do povo.

As relações entre Estado e Igreja se tornaram doentias e foram denominadas posteriormente de cesaropapismo, regalismo e hierocracia.

(16)

sistema por meio da Reforma Protestante, do Renascimento, do Iluminismo e das Revoluções Francesa e Inglesa contra os poderes absolutistas, fundamentados da vontade divina.

Tudo isto se entrelaça e tem consequências para as relações entre a Igreja e o Estado.

O humanismo antropocêntrico do Renascimento preparou o campo para a ruptura formal com a Igreja, contribuindo com a Reforma Protestante, que se

mostrou apenas a “gota d´água” de um crescente movimento contrário à tradição

medieval católica.

As reações foram bastante violentas contra o domínio da Igreja Católica. Defendia-se o direito à liberdade religiosa, bem como o direito natural do homem, emancipando-se a razão. Inicia-se uma nova visão de mundo, desta feita não mais teocêntrica, mas antropocêntrica, onde a razão humana é exaltada acima de todas as outras potências.

O Iluminismo, movimento identificado em final do século XVII e início do XVIII, reforça os ideais de separação entre o Estado e a Igreja, levando a uma nova concepção da ideia de liberdade, que deve ser guiada não mais por um critério objetivo de moralidade ou verdade e sim na própria vontade do indivíduo, que se torna autossuficiente.

A Igreja Cristã se parte e perde o papel centralizador do poder e da sociedade. A sociedade se torna plural e liberal, surgindo a democracia como resposta à necessidade de lidar com as diferentes concepções de mundo.

Em decorrência, muitos Estados passaram a ser laicos, isto é, independentes e autônomos perante a Igreja, defendendo a liberdade religiosa de seus cidadãos, que não poderiam mais ser discriminados em virtude de seu credo.

Igualmente, no intuito de tratar de maneira mais concreta o assunto, abordar-se-á de que forma a laicidade foi e ainda é empregada em dois diferentes países, quais sejam, a França e os Estados Unidos, demonstrando como cada um deles trata de forma diferente a separação entre Deus e o Estado.

A partir daí abordar-se-á outro ponto. A implicação do conceito de liberdade religiosa não somente como liberdade de culto, mas como a necessária e constitucional tolerância entre as diversas religiões e a não religiosidade.

(17)

restringe direitos por motivos de opção religiosa, não discrimina o credo religioso de qualquer cidadão. Ao contrário, reconhece e acolhe as manifestações religiosas de seu povo.

Demonstrar-se-á que a religião não é mero sentimento íntimo, mas uma realidade social, organizada em estruturas visíveis que necessita ser reconhecida como presença comunitária pública, como um aspecto sociológico do próprio Estado.

Consequentemente, se o poder do Estado vem do povo e o povo é religioso como se poderá conceber um Estado sem traços religiosos?

Por este motivo, ser laico não significa para o Estado apenas “aturar” as

religiões como um “mal necessário”, mas reconhecê-las como um aspecto

extremamente importante do desenvolvimento integral da pessoa humana, que, ademais, integra a cultura e identidade de seu povo.

Em razão disto, a laicidade interessa não somente ao Estado e ao povo, mas também às igrejas que tem a garantia de não sofrer ingerências do poder público em assuntos internos.

Aborda-se, em continuidade, o fenômeno da pós-secularização, reconhecendo a persistência da religiosidade mesmo após séculos das promessas racionalistas de que a ciência e a razão seriam os instrumentos de emancipação do homem que, com o passar do tempo, deixaria de lado a visão supersticiosa da fé.

Por conseguinte, uma das grandes questões a que se dedica este trabalho é saber se há espaço ainda hoje em tais sociedades a uma participação pública da religião, seja por intermédio da argumentação levada ao debate político, seja pela valorização dos princípios éticos e morais defendidos pelas religiões.

Neste ponto, buscou-se no filósofo e cientista político alemão Jürgen Habermas, agnóstico confesso, a visão flexível em relação à participação democrática da religião no processo de elaboração das normas.

Busca-se, por outro lado, ao ajustar a ideia de Estado Laico ao direito de liberdade religiosa, demonstrar que laicidade do Estado não se presta a impedir a participação das posições religiosas nos debates públicos e assuntos de interesse de toda a população, por meio de uma ação hostil para encerrá-las unicamente em sua esfera privada.

(18)

participar do processo democrático de maneira autêntica e isonômica, assim como ostentar publicamente símbolos e sinais de sua religiosidade.

No capítulo final abordar-se-á a concepção de laicidade no Brasil, enfrentando-se algumas questões controversas específicas como a menção a Deus no preâmbulo da Constituição Federal, a retirada dos símbolos religiosos das repartições públicas, o ensino religioso, concursos em dia de preceito e a retirada da menção a Deus na nota da moeda nacional.

(19)

1 RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E ESTADO: ESCORÇO HISTÓRICO

1.1 Considerações Preliminares

A religião é a mais antiga e importante instituição social do mundo. Só posteriormente surge o Estado.1

Mas o que é religião?

Impossível determinar um conceito fechado e definitivo. Alguns sustentam que a religião dá sentido à existência, outros que a religião é o entorpecimento moral do homem. Entretanto, é possível afirmar que:

a palavra “religião” pode ser conceituada como o conjunto de crenças

que a humanidade cultua ao sobrenatural, divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de códigos ético-morais, de símbolos e de rituais derivados dessas crenças. 2

Definir religião, conforme já dito, é uma tarefa praticamente impossível, tendo em vista não se encontrar uma característica que autorize uma definição ampla do termo. Não obstante, Nicola Abbagnano, recolhendo diversas

interpretações, descreve a religião como a: “Crença na garantia sobrenatural de salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia”.3

Mas ele ressalta que a “determinação da relação do homem com a

divindade, ou seja, a função de demonstrar a existência desta e de esclarecer suas características e funções em relação ao homem e ao mundo, sempre foi atribuída

mais à filosofia que à R.” E que o cumprimento desta tarefa pode até ter cunho

antirreligioso. Para alguns teólogos, continua ele, a relação entre o homem e Deus é artigo de fé e não de religião, porque independe do mito, mas é constitutiva da existência humana no mundo.

Por técnicas, Abbagnano afirma que seriam os atos ou práticas de culto como as orações, sacrifícios, rituais e serviços divinos ou sociais, e teriam, assim,

1 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional? Tese de doutorado em Direitoapresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 34.

2 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional? Tese de doutorado em Direitoapresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 34.

(20)

caráter objetivo e institucional. Mas a crença é a atitude religiosa por excelência, e tem caráter subjetivo.

Desde modo, uma religião natural seria constituída apenas desse elemento subjetivo e uma religião positiva seria constituída pelas mencionadas técnicas.

Importa dizer que, para este trabalho ambos os elementos, unidos ou separadamente, são considerados religião, já que tem o potencial de comunicar-se, dialogar, e, assim, ingressar no debate político, conforme mais a frente se afirmará.

Acrescente-se que, não houve a preocupação neste trabalho de diferenciar o que seja religião, seita, fé, crença, pois seria um desvio desnecessário ao que se pretende abordar. Igualmente, a palavra Igreja é utilizada quando se trata da época medieval, para designar a Igreja Cristã, porém no restante do trabalho é utilizada como sinônimo de religião e, assim, quando se pretender tratar de alguma religião específica, indicar-se-á seu nome.

De outro lado, faz-se necessário tecer também algumas considerações preliminares em relação ao termo Estado.

É consenso entre os autores que tratam do tema, que o termo “Estado” só

tomou corpo com O Príncipe, de Maquiavel, embora pesquisadores mostrassem que a passagem do significado corrente do termo status, (de “situação”), para “Estado”, no sentido moderno da palavra, teria ocorrido anteriormente a partir da expressão clássica status rei publicae4.

Alguns autores (Karl Schimdt, Balladore Pallieri e Ataliba Nogueira no Brasil) não admitem sua existência antes do século XVII, baseados no fato de que a nomenclatura Estado indicando uma sociedade política só aparece no século XVI. Contudo, a maioria admite que seja Estado toda a sociedade política que, com autoridade superior, fixa as regras de convivência de seus membros. Sendo assim, admitem a existência do Estado anteriormente ao século XVII, embora com outras designações5.

Por esta razão, adotar-se-á neste primeiro momento tal concepção latu sensu de Estado.

4 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,

(21)

1.2 Os Povos Primitivos: Leis e Autoridade na Família

No Estado Antigo6 a família, a religião, o Estado e a organização econômica eram fundidos. Não se concebia a divisão que hoje se consegue vislumbrar. As marcas fundamentais desse período eram a natureza unitária e a religiosidade.7

Segundo os estudos de Fustel de Coulanges8, que compilou inúmeros escritores e filósofos gregos e romanos da antiguidade clássica, tais como Xenofonte, Cícero, Tito Lívio, Plutarco, Platão e Aristóteles, a religião construída pelos antigos determinou de modo absoluto sua organização, suas instituições e leis.

As famílias da Grécia e Roma antigas foram constituídas a partir da religião, donde emanavam as regras de casamento, parentesco, propriedade e sucessão.

Posteriormente, estas instituições formaram a base da cidade antiga, que, portanto, foi influenciada de forma determinante pela crença religiosa dos antigos.

É possível afirmar que as mais remotas gerações descendentes do povo indo-europeu, dentre os quais: gregos, romanos e vedas, acreditavam que havia vida após a morte. De acordo com Fustel de Coulanges, o homem acreditava na transformação da vida e não em sua extinção com a morte.

E mais: a morte não era entendida como a separação entre corpo e alma, indo o corpo para ser consumido na terra e a alma para outra dimensão, e sim que corpo e alma passavam a viver sob a terra, encerrados no túmulo. Permaneciam os mortos, portanto, bem junto aos seus.

O que testemunha esta consideração são os ritos fúnebres que sobreviveram a esta época primitiva.

Os ritos fúnebres mostram-nos claramente como, quando se colocava um corpo na sepultura, se acreditava que, ao mesmo tempo, se metia lá alguma coisa com vida. Virgílio, que sempre

6 Sobre a divisão da evolução do Estado em Antigo, Grego, Romano e Medieval, v. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva, 1989, p. 51 e segs.. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva, 1989, p. 53.

(22)

descreveu com muita precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas, termina a sua narrativa dos funerais de Polidoro com estas palavras:

“Encerramos a alma na sepultura”. Idêntica expressão encontramos

em Ovídio e em Plínio, o Moço [...] atestando deste modo crenças antigas e populares.9

Acreditavam esses homens, ainda, que o corpo necessitava de sepultamento para que a alma não lhe abandonasse e se tornasse errante, vagando sem descanso, atormentando os vivos, provocando-lhes doenças, infortúnios, e assustando-lhes com aparições tenebrosas.

De outro lado, não bastava repousar o cadáver sob a terra. Era necessário que fossem proferidas as fórmulas prescritas por ritos tradicionais, realizando funeral corretamente segundo as regras da religião. Disso dependia a felicidade eterna do morto.

Por sua vez, acreditava-se que o corpo debaixo da terra continuava necessitando de alimento, o que era providenciado anualmente através de uma cerimônia religiosa:

Ovídio e Virgílio apresentam-nos descrição desta cerimônia, cujo uso permanecera intacto até à sua época, embora as crenças já então se houvessem alterado. Descrevem-nos o costume de se rodear o túmulo com grandes grinaldas de plantas e de flores e de sobre o mesmo se oferecerem doces, frutas, sal e ainda ali se verterem o leite, o vinho e algumas vezes o sangue de uma vítima.10

Os antepassados falecidos eram considerados sagrados, verdadeiros deuses. Os gregos os denominavam de deuses subterrâneos e os romanos de deuses manes. Os hindus, do mesmo modo, consideravam os mortos como deuses que necessitavam das libações e sacrifícios para viver uma vida bem-aventurada. Essas oferendas trariam a paz entre mortos e vivos.

Por outro lado, acreditavam os homens de então, que os mortos se alegrariam com o culto e lhes seriam favoráveis, atendendo-lhes as súplicas e pedidos de prosperidade.

9 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 12.

(23)

Percebe-se, portanto, o valor ímpar atribuído a este ritual fúnebre. Cultuar os mortos era dever dos vivos. Esta era a religião primitiva, o enigma da morte fundamentava esta crença:

[...] Foi talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a idéia do sobrenatural e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão de seus olhos. A morte teria sido o primeiro mistério, colocando o homem no caminho de outros mistérios. Elevou o seu pensamento do visível ao invisível, do passageiro ao eterno, do humano ao divino.11

Um fator importante a ser destacado em relação a este culto dos mortos é que somente poderia se dar dentro da família. Era o parente mais próximo do morto que deveria presidir o ritual. Nenhum homem de outra família, considerado estrangeiro, poderia estar nem mesmo nas proximidades quando eram realizados os cultos, pois isto perturbava o repouso dos deuses.

As ofertas somente poderiam ser feitas aos próprios antepassados, sendo um dever primário e fundamental:

Por esta razão na Grécia e em Roma, assim como na Índia, o filho tinha o dever de fazer libações e sacrifícios aos manes de seu pai e aos de todos os seus ancestrais. Faltar a este dever era a mais grave impiedade de quantas poderiam cometer-se, porque a interrupção do culto provocava uma série de mortes e destruía a felicidade.12

Como se vê, aquele que não deixava filhos não recebia culto e estava

condenado à “fome perpétua”, daí a importância do casamento e a proibição ao celibato.

A religião, assim, não existia em templos, mas na própria casa. Cada família instituía suas regras sobre o culto, as cerimônias, festas religiosas, orações, cânticos, tudo isto era próprio de cada uma delas.

O culto dos antepassados era de tal forma importante para o homem primitivo, que foi o que determinou a constituição da família. Não era o sangue precipuamente que determinava o aspecto fundamental do laço familiar e sim o

11 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 20.

(24)

poder da religião. Esta unia os homens em vida e assim os mantinha após a morte, formando um corpo único.

A família antiga seria, então, uma associação religiosa muito mais que uma associação natural.

Esta afirmação, de pronto, não parece plausível, contudo, analisando o modo como a religião determinava as relações de parentesco, acaba-se por concordar com ela. Vejamos:

A primeira instituição estabelecida pela religião foi o casamento.

O casamento era muito mais do que apenas a união afetiva ou conjugal, era, na verdade, um ritual sagrado que permitia que a mulher deixasse a religião de seu pai e criasse um novo vínculo religioso, adotando e sendo adotada pela religião e família de seu marido.

Viu-se anteriormente que o celibato era proibido, pois da descendência dependia o culto aos mortos. O homem não tinha o direito de fazer esta escolha, a

família era que assim o determinava: “[...] o homem não pertencia a si mesmo;

pertencia à família”.13

Já desde o nascimento a criança deveria ser apresentada para uma espécie de iniciação religiosa, junto ao fogo doméstico, cultuado também como deus daquela família. Somente após passar por esta cerimônia é que a criança era admitida na família e estava apta a praticar ritos, recitar orações e honrar seus antepassados.

O parentesco era compreendido como comunhão de culto, isto é, aqueles que adoravam os mesmos deuses, o mesmo fogo sagrado e o mesmo banquete

fúnebre, eram parentes: “O vínculo de sangue não basta para estabelecer este parentesco; é indispensável haver o vínculo do culto”.14

Em outras palavras, somente o filho gerado do casamento religioso poderia prosseguir com o culto dos antepassados, pois ainda que do mesmo sangue, não tendo sido aceito pelos ritos religiosos, não pertencia à religião doméstica, e, consequentemente, não pertencia à família.

Perceba-se o enorme peso do vínculo religioso na formação das famílias.

13 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 41.

(25)

Para os casais estéreis a religião autorizava que a mulher fosse dada a um parente próximo de seu marido e a criança gerada seria considerada filha do casal.

Um último recurso à família que não era capaz de gerar filhos era a adoção. O único intuito da adoção era a continuidade da religião doméstica, com a conservação do fogo sagrado e culto dos ancestrais. Desta maneira, só era autorizada a casais sem filhos.

Do mesmo modo como o casamento e o nascimento, o adotando era introduzido na família através de rituais específicos da religião do lar.

Outro instituto determinado na antiguidade pela religião foi a propriedade:

“[...] as populações da Grécia e Itália, desde a mais longínqua antiguidade, sempre

reconheceram e praticaram a propriedade privada”.15

Como os deuses eram considerados propriedade exclusiva de cada família, ou seja, somente aquela família poderia adorar aqueles deuses e estes, por sua vez, só poderiam proteger àquela família; e, dado que se considerava que os deuses eram sepultados na terra de sua família para dali não serem jamais removidos, o solo se tornava também um lugar sagrado, era o altar onde se realizava o banquete fúnebre.

Surge daí a ideia de domicílio. A família deveria permanecer reunida em torno daquele altar para protegê-lo, pois o estrangeiro não pode se aproximar dali:

“Este limite, traçado pela religião e por ela protegido, afirma-se como o tributo mais verdadeiro, o sinal irrecusável do direito de propriedade”16 (COULANGES, 1975).

A casa e o campo estavam como que vinculados à família, que deles não poderia desfazer-se. Nestas sociedades primitivas foi a religião, portanto, que estabeleceu o direito de propriedade.

Posteriormente, na época da Lei das Doze Tábuas na sociedade romana, foi autorizada a divisão do campo entre os irmãos, porém deveria ser conservado o local do túmulo. Por fim, permitiu-se a venda das terras, mas permanecia a obrigatoriedade de realizar o culto mediante os rituais prescritos pela religião daquela família.

15 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 49.

(26)

Antes de começarem a vigorar as leis da cidade, eram as famílias que prescreviam suas próprias leis. A religião determinava que o pai era o primeiro diante do deus fogo, aquele a quem cabe a função primordial no culto. Era sacerdote e rei.

A mulher era considerada apenas como parte integrante de seu esposo, de quem recebera o culto, que não é de seus próprios antepassados.

Tanto gregos, como romanos e hindus, consideravam a mulher como inferior, ela jamais poderia ter um culto para si ou presidir um culto, portanto, não era senhora de si própria.

A lei de manu diz: “A mulher, durante sua infância, depende de seu

pai; durante a juventude, de seu marido; por morte do marido, de seus filhos; se não tem filhos, dos parentes próximos de seu marido; porque a mulher jamais deve governar-se à sua vontade”. As leis

Greco-romanas dizem o mesmo.17

Melhor sorte não assiste aos filhos, que “enquanto o pai viver serão considerados sempre menores”.18 O pai tinha total poder sobre o filhos, tinha até mesmo o direito de dispor de sua vida e liberdade.

Mas o pai não é somente esta autoridade familiar, ele é o sinal vivo de seus antepassados, o que tem conhecimento das fórmulas secretas da oração, enfim, o sacerdote da religião do lar.

Daí se origina a palavra pater, que não significava apenas pai, mas sim aquele que não dependia de outro, o que tinha autoridade para se autodeterminar e determinar a vida dos demais.

Investido deste poder, o pai, na família antiga, tinha o direito de reconhecer ou rejeitar o filho ao nascer, de repudiar a mulher em caso de esterilidade, de casar a filha e o filho, de excluir um filho da família (o que se denominava emancipação), de adotar.

A família antiga foi assim: era a crença nos antepassados mortos que regulava aquela pequena sociedade, seu governo, sua justiça, sua moral, suas

17 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 69.

(27)

instituições, sem necessidade de se recorrer ao direito ou força de qualquer poder social, para tanto.

No tempo em que o homem só acreditava em seus deuses domésticos era o tempo em que nada mais existia do que as famílias, independentes, isoladas e autossuficientes, que constituíram seu próprio direito privado.

1.3 O Surgimento da Cidade: Autoridade Política e Religiosa se Confundem

Pode-se afirmar, de acordo com o que foi dito até agora, que a família da antiguidade era, ao mesmo tempo, pequeno Estado e pequena Igreja.

Posteriormente, as famílias, já expandidas passaram a se unir, formando frátrias (gregos) ou cúrias (romanos). Esta união, contudo, dependia de uma divindade superior a que todas as famílias deveriam prestar culto sem abrir mão de seus próprios cultos domésticos. Edificavam-lhe o altar, acendiam o fogo sagrado e instituíam o novo culto.

As frátrias ou cúrias foram crescendo e acabaram realizando novas reuniões formando tribos, cujas divindades eram denominadas de heróis e davam nome à respectiva tribo. Tinha sua festa anual, para a qual deviam reunir-se todos os seus membros.

Num outro momento, diferente religião se manifestava também na antiguidade, era a religião da natureza “cujas principais figuras foram Zeus, Hera, Atena, Juno, a do Olimpo helênico e a do Capitólio romano”.19

A natureza e seus fenômenos físicos provocavam no homem sentimentos

arrebatadores: “um misto de veneração, de amor, de terror” e o levaram a

personificar esses eventos, divinizando-os e cultuando-os.

Interessante que estes cultos surgiram de mentes diversas, provenientes de diferentes lugares, em famílias isoladas, cada qual moldando seu deus a seu modo. Contudo, nota-se a semelhança entre eles, pois todos dizem respeito aos elementos da natureza. Dessa maneira, o Sol era adorado com vários nomes em vários lugares.

(28)

Ambas as religiões conviviam: o culto doméstico dos antepassados e o culto dos deuses da natureza. Contudo, esse novo culto mostrava a necessidade do homem de buscar um culto genérico não encerrado entre as fronteiras do território familiar.

Então, essas divindades saíram dos limites da família e para elas foram construídos templos, onde se acendia o fogo sagrado à entrada, fogo este que, de protagonista, passou a ser apenas um acessório.

O historiador francês está convencido de que a propagação desta nova religião foi responsável pelo desenvolvimento da sociedade na época.

A tribo, como as fratrias ou cúrias, era um corpo independente, tinham uma assembleia que baixava os decretos a que os membros estavam submetidos, tinha, ainda, tribunal com jurisdição sobre todos e, ademais, um chefe ou tribuno.

Chegou o tempo em que a tribos começaram a se unir, fosse pela força ou aliança. No início a união entre as tribos era um tabu, dado que cada qual tinha seus próprios deuses, contudo, ficou mantida a condição de manterem intocados os cultos particulares. E nesse momento nasceu a cidade.

No nascimento da cidade, uma vez mais, as tribos instituíram um culto comum e acenderam o fogo sagrado: “A fundação da urbe foi sempre um ato religioso”.20

Como se vê, os homens passaram a se reunir em sociedade a partir da união de pequenos grupos, cada qual mantendo suas próprias tradições religiosas, mas criando nova divindade para culto comum.

Percebe-se que estas reuniões de grupos eram verdadeiras federações, pois havia uma unidade, porém cada grupo menor mantinha suas leis, religião, jurisdição, governo e assim por diante.

Se não houvesse a instituição de um novo culto, não seria possível a existência destas novas associações, era algo inimaginável para a época.

Isto porque, como dito, era a criação de uma nova religião, comum a todos, que atribuía àquelas reuniões de famílias e tribos o elemento de conexão entre si, o que veio a resultar, ao final, na existência da cidade.

(29)

Assim, permaneciam os cultos tribais e familiares e, frise-se, não acima destes, se estabelecia o culto comum, ou seja, adoravam-se os deuses da cidade.

Na lição de Claudio de De Cicco21:

[...] na Antiguidade a formação das cidades, polis na Grécia, civitas

em Roma, não se fez com diminuição da esfera de poder dos chefes

de família, mas através de uma verdadeira “confederação” de

famílias com antepassado comum, de modo que a cidade não era, como em nossa época se pretende, uma reunião de indivíduos, mas sim uma reunião de famílias.

Não se concebe com essa perspectiva, a possibilidade de entender o poder do soberano da cidade, o rei ou basileus, como absoluto, mas simplesmente como o de alguém que é o líder, o primus inter pares, na assembleia dos chefes de família (grifo do autor).

Na concepção dos antigos, a urbe era um território que se estendia do altar até seus limites sagrados, era o domicílio religioso que agasalhava os deuses e acolhia os homens.

O fundador da cidade era o homem que realizava o ato religioso sem o qual a cidade não poderia estabelecer-se. Esta data (da fundação) era sagrada e, assim, o aniversário da cidade era comemorado todos os anos com rituais e banquetes sagrados.

E, na cidade, como nas famílias e tribos, a liderança política e religiosa se confundia na mesma pessoa ou pelo menos, na mesma instituição:

O local da reunião do senado de Roma foi sempre um templo. [...] Tanto em Roma como em Atenas, só funcionava a justiça da cidade em dias determinados pela religião como favoráveis. Em Atenas, a sessão do tribunal tinha lugar junto a um altar e começava pelo sacrifício [...].22

Entretanto, não se pode dizer que havia autoridade, assim como é compreendida em nosso tempo, deste rei ou basileus sobre os assuntos de interesse da família, pois esta era gerida de maneira ditatorial pelo pater, como já mencionado.

21 DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 75.

(30)

Neste sentido, o Senado romano foi uma instituição criada para o fim de verificar se o direito privado (jus privatum) estava sendo respeitado pelo direito público (jus publicum): “Para impedir atitudes do rei que viessem a resultar em

menoscabo do jus privatum é que existia o Senado, assembleia composta pelos grandes chefes de famílias romanas ou patrícios (de pater)”.23

Eram o sumos-sacerdotes da cidade também seus reis:

A principal função do rei consistia, pois, em realizar as cerimônias religiosas. Um antigo rei de Sícion foi deposto porque as suas mãos se mancharam com um assassino e daí jamais ficaram em estado de poder sacrificar. E, não podendo mais ser sacerdote, não podia continuar rei.24

Mas não foi somente na época dos reis que se fundiam a figura da autoridade política e do sacerdote. O Magistrado, que substituiu o rei após a revolução que implantou o regime republicano mantinha as duas funções.

A autoridade da cidade era extremamente auferida pela tradição, como foi constatado por Hannah Arendt, especificamente no que tange aos romanos:

Ao contrário de nosso conceito de crescimento, em que se cresce para o futuro, para os romanos o crescimento dirigia-se no sentido do passado. Se se quiser relacionar essa atitude com a ordem hierárquica estabelecida pela autoridade, visualizando essa hierarquia na familiar imagem da pirâmide, é como se o cimo da pirâmide não se estendesse até as alturas de um céu acima (ou, como no Cristianismo, além) da terra, mas nas profundezas de um passado terreno.25

E, ainda:

Nesse contexto basicamente político é que o passado era santificado através da tradição. A tradição preservava o passado legando de uma geração a outra o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundação e, depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos séculos. Enquanto essa tradição fosse ininterrupta, a autoridade estaria intata; e agir sem autoridade e tradição, sem padrões e modelos aceitos e

23 DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 54.

24 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 140.

25 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo:

(31)

consagrados pelo tempo, sem o préstimo da sabedoria dos fundadores era inconcebível.26

Ela nota que a noção de autoridade entre os gregos repousava na função do pater familiae, e foi aí que Platão teria ido buscar a referência de autoridade para aplicar em sua cidade ideal.

Já os romanos tinham essa referência de autoridade na tradição dos pais fundadores da cidade e, segundo Hannah Arendt, teria sido essa a razão da força que Roma adquiriu, tendo alargado seus domínios por todo o ocidente e mantido seu poder por séculos.

Assim como o rei era o sacerdote da cidade, as leis derivavam da religião para gregos, romanos e hindus.

Os códigos das cidades eram um misto de prescrições religiosas e

disposições legislativas: “As normas de direito de propriedade e do direito de sucessão achavam-se dispersas entre as regras relativas aos sacrifícios, à sepultura

e ao culto dos mortos”.27

Mesmo posteriormente, com o advento da lei escrita, o Código das Doze Tábuas, no século 451 a.C., que igualou os direitos civis de nobres e ainda haviam prescrições religiosas em meio às leis civis.

É fácil perceber o porquê da reunião dos homens nas cidades não ter sido algo simples. O costume era cada qual seguir suas próprias regras, determinar seus próprios cultos e instituições. Como fazer o instinto ceder à razão e a razão particular à razão pública?

De fato, observou Hannah Arendt:

As grandiosas tentativas da Filosofia grega para encontrar um conceito de autoridade que obstasse a deterioração da polis e salvaguardasse a vida do filósofo soçobraram devido ao fato de não existir, no âmbito da vida política grega, nenhuma consciência de autoridade que se baseasse em experiências políticas imediatas. 28

26 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 166.

27 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 150.

28 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo:

(32)

A força da crença no sobrenatural foi capaz de fazer o homem cultuar seus antepassados, agrupar famílias, fazer a primeira religião. Desta antiga religião surgem as primeiras concepções de moral, de dever. Surge também a ideia de propriedade, de sucessão de bens, enfim diversas instituições de direito privado surgem a partir da religião.

Como se não bastasse, os homens, à medida que sentem necessidade de se unir, o fazem por meio da eleição de divindades comuns, para que essa reunião se dê efetivamente através do culto religioso.

Assim se formam as primeiras cidades:

A concepção religiosa foi, entre os antigos, o sopro inspirador e organizador da sociedade. As tradições dos hindus, dos gregos e dos etruscos, recordavam aos homens terem sido os deuses quem lhes revelaram as leis sociais. Essa forma lendária oculta meia-verdade. As leis sociais foram obra dos deuses, mas esses deuses, tão poderosos e tão benfazejos, derivaram das crenças dos homens. Essa foi a forma de criação do Estado entre os antigos; seu estudo tornava-se indispensável para nos elucidar sobre a natureza e instituições da cidade.29

É importante esclarecer que estas leis eram destinadas somente aos cidadãos, isto é, àqueles aos quais pertencia o culto daquela cidade, que eram admitidos a ele, estando excluídos todos os demais.

O culto religioso nas cidades gregas e em Roma tinha como cerimônia principal um banquete, ao qual se dava o nome de sacrifício:

Comer a refeição preparada sobre o altar, tal foi, segundo todas as aparências, a primeira forma que o homem deu ao ato religioso. A necessidade de o homem se colocar em comunhão com a Divindade satisfazia-se com esse banquete, para o qual a convidavam e a quem faziam participar.30

O calendário das cidades era feito por sacerdotes, já que nada mais registravam do que as festas religiosas e cada cidade tinha um calendário diferente da outra, pois suas divindades também eram diferentes.

29 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 105.

(33)

As leis da cidade eram consideradas sagradas, isto é, provenientes dos deuses, não eram consideradas como obra humana.

Platão nos faz ter noção da importância da lei para o cidadão quando descreve o discurso de Sócrates. O filósofo, condenado à morte, se entrega e afirma que tudo deve ocorrer segundo desejo do deus e que deve obedecer à lei e fazer sua defesa.31

São essas as palavras que Platão coloca na boca de Sócrates:

Mas, onde de lado a reputação, ó homens, não me parece certo que alguém suplique aos juízes para tentar fugir à condenação, em vez de informá-los e persuadi-los. Porque os juízes não estão aqui para ceder diante de tais atitudes, mas para fazer valer a justiça. O juramento que fizeram não foi para beneficiar a quem bem lhes parece, mas para julgar segundo as leis [...]

E é por isso que, se pela persuasão ou pela súplica eu os condenasse a quebrar seus juramentos, pela persuasão ou pela súplica, estaria ensinando o desrespeito aos deuses e, ao me defender, estaria acusando a mim mesmo de não crer nos deuses, algo que está muito longe de ser verdade. Pois eu creio, ó homens de Atenas, mais que qualquer um de meus acusadores crê. E agora me coloco diante de vocês, e também do deus, esperando que possam decidir pelo que for melhor, tanto para mim quanto para vocês.32

As cidades exerciam poder de origem religiosa sobre seus integrantes. O homem era obrigado ao serviço militar até os 46 anos em Roma e em Atenas e Esparta por toda a vida. Seu dinheiro devia ficar à disposição da cidade, incluindo as joias das mulheres e os frutos da terra. Algumas cidades proibiam o celibato ao homem, em Esparta se regulamentava até o penteado das mulheres, e, em Atenas, elas eram proibidas de levar mais de três vestidos em viagem. Em Rodes o homem era proibido de fazer a barba e em Bizâncio era punido com multa quem ao menos possuísse uma navalha, já Esparta exigia que se raspasse o bigode.

Lei terrível das cidades era a que exigia dos pais que aniquilassem o filho que tivesse nascido com alguma deformidade.

Não era permitido que o cidadão escolhesse particularmente suas crenças, mas sim devia se subjugar à religião da cidade:

31 PLATÃO. Apologia de Sócrates, trad. Sueli Maria de Regino, São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 26.

32 PLATÃO. Apologia de Sócrates, trad. Sueli Maria de Regino, São Paulo: Martin Claret, 2009, p.

(34)

Podia-se odiar ou desprezar os deuses da cidade vizinha e, quanto às divindades de caráter geral e universal, como Júpiter Celeste, Cibele ou Juno, havia a liberdade de neles ter ou não ter fé. Mas que ninguém ousasse duvidar de Atena Políada, de Erecteu ou de Cécrope. Seria grande impiedade contra a religião e o Estado, que este devia punir com toda a severidade. Sócrates foi condenado á morte por esse crime. A liberdade de pensamento, em matéria de religião, era absolutamente desconhecida entre os antigos.33

A personalidade e atitudes dos aristocratas romanos e gregos eram totalmente moldadas pela religião, que ocupava o lugar central em suas vidas, sua casa era um templo, seus antepassados os seus deuses, os túmulos e os limites de sua terra, sagrados.

Nascimento, casamento, iniciação eram sempre atos religiosos solenes. Ofereciam sacrifícios todos os dias em sua casa, todos os meses em sua cúria, anualmente em sua tribo.

Como se vê, no pensamento antigo não se concebia a separação de poder terreno e religião, ou seja, a prática da cidadania era a prática da religião. Neste sentido, constatou Hannah Arendt ao tratar especificamente do povo romano:

A religião e a atividade política podiam assim ser consideradas como praticamente idênticas [...] O poder coercivo da fundação [da cidade] era ele mesmo religioso, pois a cidade oferecia também aos deuses do povo um lar permanente.34

1.3.1 A Transformação da Cidade: a Força Popular e o Advento da Filosofia

Em que pese a força enorme exercida pela tradição sobre os antigos, a partir do século VII a.C., aos poucos, este tipo de Estado primitivo poderoso foi sendo transformado e desapareceu totalmente através de uma série de revoluções que tiveram, segundo Coulanges, duas causas básicas: a reação da classe oprimida e o desenvolvimento da racionalidade humana.

33 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p.184.

34 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W.Barbosa; 7ª. Ed.; São Paulo,

(35)

Os plebeus, que teriam sido provenientes de antigas populações conquistadas e subjugadas, eram a maioria da população em Roma, apesar de não serem concebidos como parte dela.35

Compunham essa classe, igualmente, famílias que não conseguiam instituir seus cultos domésticos, empregados expulsos das famílias, filhos bastardos ou que tivessem renegado a religião da família.

Como se vê, a plebe era resultante do caráter excludente do culto doméstico, ou seja, era a parcela da população que não estava abrigada em nenhuma família. E, fisicamente, estavam separados da cidade por um marco.

De outro lado, havia as famílias, cada uma com seu rei ou pater. Abaixo das famílias, se formaram as cúrias ou fratrias, depois as tribos, cada qual com seu chefe próprio. Era uma hierarquia de chefes. Posteriormente, estes chefes escolhiam o rei da cidade, mas este não exercia poder total sobre a população. Cada família escapava a sua ação e continuava submetida ao seu pater.

Por conseguinte, estes reis locais, os aristocratas, mantinham seu poder e reunidos formavam uma força tão poderosa quanto à do rei da cidade. Quando percebiam que o rei da cidade queria se tornar mais poderoso uniam-se contra ele. Por toda a parte se travaram guerras entre a aristocracia e a realeza, que no final, acabava sempre derrotada.

Isto até que o rei percebeu (e usou) a força da plebe e das leis da cidade. Os reis, então, se uniram ao povo numeroso (e excluído) das cidades para lutar contra os aristocratas das famílias sagradas, e os patres viram erguerem-se contra si as claserguerem-ses que anteriormente desprezara. Essas lutas passaram a ter um caráter social.

Paulatinamente foi-se operando uma transformação das cidades. Os plebeus acabaram por derrubar as barreiras que lhes eram impostas e adentraram a cidade onde se apoderaram do governo.

Em Atenas, Sólon, aristocrata que se tornou rei no Sec. VI a.C. libertou os escravos, perdoou dívidas, mudou completamente a constituição política da cidade, mas deixou intacta a organização religiosa, que somente com Clístenes foi modificada para incluir todos os homens livres de Atenas:

(36)

Sólon, ao mudar a constituição política, deixara subsistir toda a antiga organização religiosa da sociedade ateniense. [... ] havia duas espécies de homens: de um lado, os eupátridas, possuindo hereditariamente o sacerdócio e a autoridade; do outro, os homens de condição inferior que não eram mais nem servos nem clientes, mas que ainda se achavam ligados pela religião, à autoridade do eupátrida. Em vão a lei de Sólon declarava livres todos os atenienses. A antiga religião apoderava-se do homem à saída da assembleia onde livremente votara [...].36

Com a lei de Clístenes, veio a reforma religiosa e as quatro tradicionais tribos foram substituídas por dez novas tribos divididas em certo número de demos, cada qual com suas divindades, cultos, sacerdotes, juiz e assembleia para deliberar sobre os interesses comuns.

Este culto, todavia, já não era o da religião hereditária, os heróis eram escolhidos entre personagens antigos admirados. Os demos adoraram de maneira geral a Zeus, protetor do domicílio e a Apolo paternal.37

E foi essa reforma de âmbito religioso que consolidou a queda da aristocracia, dos eupátridas, que não sustentavam mais privilégios de casta ou nascimento nem em âmbito político, nem em âmbito religioso.

Essas transformações ocorreram em todas as cidades gregas e também em Roma, que começou a caminhar neste sentido sob o reinado de Sérvio, com quem o plebeu conseguiu uma religião, e a quem os aristocratas tributaram profundo ódio.

Sérvio introduziu um princípio novo na sociedade romana, qual seja: a riqueza. As classes estratificadas o eram a partir de então em razão de suas posses e não mais pela religião. Esta mesma divisão se deu igualmente em termos militares. A cidade romana foi, destarte, totalmente alterada. Os patrícios mantiveram seus cultos e organizações em cúrias, além do Senado, mas perderam privilégios e os plebeus foram ganhando força e espaço na cidade.

Ao final, plebe e patriciado acabaram concluindo que um era necessário ao outro e firmaram aliança de um modo ou de outro, conforme cada povo, e que

36 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p.228.

(37)

acarretou a possibilidade da plebe se organizar, podendo escolher entre os seus um chefe. Essa é a origem do tribunado da plebe.38

O tribuno era inviolável e se apoderou do poder de julgar. Contudo, seu poder era exercido somente perante a plebe, continuando a coexistir duas sociedades: a cidade e a plebe, esta ainda sem direitos e sem lei, apesar de já contar com seu protetor e juiz.39

A plebe passou a reunir-se em assembleia para deliberar acerca de seus interesses, nomear chefes e formular plebiscitos. Contudo, ao contrário do que ocorria nas assembleias patrícias, essas reuniões não eram precedidas de sacrifícios e nem se consultavam oráculos para a tomada de decisões.

Em Roma por muito tempo se conheceram duas espécies de decretos: o senatus-consulto para os patrícios, e os plebiscitos para a plebe. Nem a plebe obedecia aos senatus-consulto, nem os patrícios aos plebiscitos. Havia dois povos em Roma.

Eram unidos apenas por necessidade de guerra, pois a nenhum interessava a queda de Roma.

Ocorre que alguns plebeus conquistaram riquezas ou já provinham de alguma família rica originária de outra cidade, mas que em Roma não tinham qualquer valor.

Na divisão de castas pela riqueza, operada por Sérvio, alguns desses plebeus acabaram ocupando a primeira delas, juntamente com muitos patrícios com quem passaram a conviver e desejar a união dos dois povos.

Para isto, a plebe passou a pleitear uma lei para si, pois as leis existentes eram sagradas, secretas e aplicadas somente aos patrícios. Esse caráter religioso era, como já mencionado, excludente também em relação à lei. Por esta razão, a

plebe desejava colocar fim a esta característica da lei: “A plebe pediu não somente

38 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 236.

(38)

que as leis fossem escritas e tornadas públicas, mas ainda que fossem igualmente

aplicáveis a patrícios e a plebeus.”40

Como já se viu, isso era sacrilégio para os patrícios e somente após muita negociação se decidiram mudanças: os legisladores permaneceriam todos patrícios, mas seu código, antes de ser promulgado e posto em vigor, devia ser exposto ao público e submetido à aprovação prévia de todas as classes41, a quem passaria a ser aplicado. Assim, nasce a Lei das Doze Tábuas, que Sólon promulgou.

Por conseguinte, a lei já não era mais resultado dos oráculos e sim da vontade do povo, que, se preferir, posteriormente, poderá também modificá-la.

Neste momento, é alterada a natureza do Direito.

Esta foi uma extraordinária inovação, pois a partir daí os plebeus passam a agir do mesmo modo que os patrícios, a conviver no mesmo tribunal, a estar submetidos sob as mesmas leis, que agora deixaram de ser privadas e se tornaram públicas e conhecidas de todos.

Os costumes e valores foram se mesclando e adaptando através da união entre plebe e aristocracia pelo casamento. Aqueles conquistaram também o direito de ser legisladores. E como tal, não se importavam com aspectos cultuais e sagrados observados pelos aristocratas, que lhes soava como “sutilezas sem valor”.42

Conquistada a igualdade civil desejava a plebe a igualdade política, isto é, ter direito ao consulado43.

Contudo, o caráter sacro era inerente à função, o que levou os patrícios a se oporem fortemente ao apelo, pois os deuses só aceitavam os sacrifícios dos patrícios, que tinham nas mãos a tradição familiar do culto.

40 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p.241.

41 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 241.

42 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 242.

(39)

A saída encontrada foi a separação entre a função religiosa, de muito maior importância, da função administrativa. Esta permanecia com o magistrado ou cônsul, mas para aquela foram instituídos os censores.

Aí a origem da separação entre Estado e religião primitivos. Houve a separação entre o poder terreno e o poder sagrado, mas o intuito era não macular a religião, não ofender os deuses. Até então, não se imaginava excluir a religião da política. Isso era inconcebível.

Enfim: “O plebeu passou a usar o vestido púrpura [...]: administrou a justiça, foi senador, governou a cidade e comandou as legiões44”.45

Nesta época, a única função da qual o plebeu ainda estava excluído era o sacerdócio, pois conhecer o ritual, ter a posse dos deuses era um patrimônio hereditário que nenhum estranho poderia usurpar. O culto da cidade pertencia exclusivamente às famílias que a haviam fundado.

Por esta razão, ainda que os plebeus tivessem fundado sua própria religião, ela não tinha valor nenhum aos olhos dos patrícios. Ocorre que, a plebe foi se dando conta de que sem a igualdade religiosa não havia efetiva igualdade civil e política, que eram ainda entrelaçadas.

E passou a exigir participação também no sacerdócio.

Foi essa a última conquista da classe inferior [...]. Os velhos princípios sobre os quais a cidade romana, como todas as cidades antigas se fundara, tinha desaparecido. Da antiga religião hereditária, que durante muito tempo governara os homens e estabelecera classes entre estes, nada mais restava do que meras formas externas. O homem do povo lutara contra a religião durante quatro séculos, na República e no tempo dos reis, mas saíra, finalmente, vitorioso.46

1.3.2 O Advento da Filosofia

Deve-se reconhecer que, conforme mostra a história, o homem foi se desenvolvendo em vários aspectos, e, de modo especial, no que diz respeito a sua razão.

44 As legiões eram o modo de divisão do exército romano.

45 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 244.

(40)

A partir do ano 600 a.C. surgiram alguns pensadores que, não se conformando com a explicação do mundo baseada nos mitos religiosos, ousaram investigar a natureza e chegaram a conclusões nunca dantes imaginadas, mas que hoje, milênios depois, se mostraram muito razoáveis, o que é bastante surpreendente, considerando o conhecimento do mundo na época.

Pois bem, o marco do surgimento da filosofia é a passagem da explicação mítica da origem do mundo, para uma tentativa de explicação racional, onde os deuses do Capitólio ou do Olimpo cediam lugar à investigação da natureza.

Como seria de se esperar, a religião aos poucos vai sendo atingida por este novo modo de pensar que já não admitia a existência de deuses particulares, mas passava à concepção de um Deus único e universal.

Até o advento da filosofia na era antiga, os homens não concebiam a divindade como poder supremo, mas como um protetor particular:

Cada família teve a sua religião doméstica, e cada cidade a sua religião nacional. Uma cidade era como que uma perfeita pequena Igreja, com seus deuses, seus dogmas e seu culto. Estas crenças parecem-nos muito grosseiras, mas foram crenças do povo mais espiritualista daqueles tempos, exercendo sobre esse povo e sobre o povo romano ação tão forte que desta religião teve origem a maior parte de suas leis, de suas instituições e de sua história.47

O refinamento da crença veio com o tempo, inicialmente pela revolução feita pela plebe que acabou por dessacralizar o caráter hereditário e excludente do culto religioso primitivo e, em seguida, pela reflexão filosófica que iniciou a ideia da alma imaterial e de um Deus único do gênero humano e não mais deuses privados:

“[...] lenta e obscuramente foi operando uma revolução intelectual.”48

Os filósofos da antiguidade eram aristocratas, cidadãos, participavam ativamente da vida política e jurídica de seu tempo. O esforço intelectual a que se dedicavam visava o conhecimento de modo global: matemática, astronomia, medicina e filosofia. Buscavam explicar a natureza de modo racional.

47 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p.123.

(41)

Nos seus estudos sobre a Metafísica Aristóteles faz uma introdução com uma breve história da filosofia, iniciando com os pensadores pré-socráticos até Platão.49

Em Mileto, na Ásia Menor (Grécia) nascem os primeiros filósofos: Tales (624 a.C a 545 a.C.), Anaximandro (610 a.C. a 547 a.C.) e Anaxímenes (585 a.C. 525 a.C.). 50

O primeiro, segundo Aristóteles seria o fundador da filosofia da natureza e acreditava ser a água o elemento primordial, o princípio de tudo. Anaximandro introduziu o conceito de necessidade na natureza, onde o elemento fundamental seria apeiron, o ilimitado, o indeterminado, aquele que seria imutável. Anaxímenes acreditava que a origem de todas as coisas seria o ar. E seria também apeiron, ilimitado, indeterminado.

Em seguida vêm outros.

Pitágoras é da ilha de Samos, nascido em 570 a.C. e fundou a escola filosófica que reunia a atividade matemático-investigativa e a místico-religiosa. Acreditava na reencarnação da alma e pregava preceitos de purificação, influenciou o pensamento platônico. Para os pitagóricos os números eram o princípio da natureza através do qual seria possível explicar todos os fenômenos naturais.

Paralelamente à investigação da natureza começam a surgir na cultura grega as primeiras tentativas de se pensar a origem do próprio pensamento sobre o cosmos. Partiram dos filósofos chamados “eleatas”: Xenofontes, Heráclito e

Parmênides. A partir deles, o interesse se volta para a origem do próprio pensamento, desloca-se o eixo da investigação, da natureza para o pensamento ou logos.

Cassires constata isto. Ele nota que, nos seus primórdios, a filosofia grega se ocupou apenas do universo físico, entretanto, com a evolução do pensamento grego, vão além e iniciam o caminho da introspecção:

Heráclito posta-se na fronteira entre o pensamento cosmológico e o antropológico. Embora fale ainda como filósofo natural e faça parte

dos “antigos fisiologistas”, está convencido de que é impossível

49 ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Marcelo Perine, São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 17-41.

Referências

Documentos relacionados

Entendemos que o estudo dos conhecimentos mobilizados pelos alunos relacionados ao valor posicional e, em particular, ao número zero no SND seja de fundamental importância para

A pesquisa apresenta a comparação entre as diferentes regulamentações existentes relacionadas a auditoria contábil no mercado de capitais, na abertura de capital, emissão

Avraham (Abraão), que na época ainda se chamava Avram (Abrão), sobe à guerra contra os reis estrangeiros, livrando não apenas seu sobrinho Lot, mas também os reis

• a família como aporte simbólico, responsável pela transmissão dos significantes da cultura boliviana, que marca o lugar desejante de cada imigrante nos laços sociais. Na

PUC-Campinas - Pontifícia Universidade Católica de Campinas PUC-SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Camilo - SP - Centro Universitário São Camilo São Judas

O imperativo presente da voz ativa, apenas na segunda pessoa do singular e do plural, é formado tomando-se para a segunda pessoa do singular o tema puro do verbo,

Opcional de quarto ampliado, aqui representado, deve ser escolhido no ato da assinatura do Contrato de Promessa de Compra e Venda, e a disponibilidade de execução do mesmo

O art. 87, da OIT como bem se há de recordar, estatui que os trabalhadores têm o direito de constituir organizações que julgarem convenientes, o que implica na possibilidade