PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP
Virgínia Luna Smith
Plágio, Pirataria, Fair Use e a (Des)criminalização da Violação de Direito
Autoral
DOUTORADO EM DIREITO
SÃO PAULO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP
Virgínia Luna Smith
Plágio, Pirataria, Fair Use e a (Des)criminalização da Violação de Direito
Autoral
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito sob a orientação do Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
SÃO PAULO
Banca Examinadora:
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Após a aprovação na defesa da tese, este trabalho se encontrará
disponível na modalidade de licença
Creative Commons
, nos
seguintes termos: a autora permite a reprodução e divulgação total
ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Não há autorização para reprodução ou divulgação com fins
comerciais. O compartilhamento deverá respeitar as mesmas
condições da licença
Creative Commons
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Agradecimentos
Minha gratidão e reconhecimento ao meu orientador, Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira, por sua generosidade em me atender, e por aceitar o desafio de não apenas orientar na produção da tese, mas, principalmente, de acreditar e apoiar o desenvolvimento de um tema controverso que lhe exigiu a elaboração das necessárias críticas na justa medida do aprimoramento do trabalho, sem jamais me desestimular em meu propósito.
À minha família e aos meus amigos, de quem dependo “para ser feliz, e para suportar não sê-lo, quando a felicidade falta”.
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo instigar o debate acerca da criminalização das mais usuais formas de violação ao direito autoral, considerando o impasse que se verifica entre os defensores de uma legislação de combate mais rígida ao plágio e à pirataria, e os liberais que sustentam o uso justo das criações intelectuais. Os impactos promovidos pelos avanços tecnológicos no mercado, na sociedade, na comunicação e no ordenamento jurídico serão examinados utilizando como matriz teórica a Teoria Tridimensional do Direito, desenvolvida por Miguel Reale, para avaliar em que medida se implicam mutuamente os fatos atuais que consistiriam em violação aos direitos de autor, as normas penais que impõem sanções para as condutas violadoras, e os valores presentes em uma sociedade a cada dia mais globalizada, conectada e informatizada.
ABSTRACT
The aim of this doctoral thesis is to instigate the debate on the criminalization of the most usual forms of copyright violation, considering the standoff between the defenders of a stricter legislation to fight piracy and plagiarism and the liberals who believe in the legitimate use of intellectual creations. The impacts of technological improvements on the market, society, communication and on the body of laws will be examined using the Tridimensional Theory of Law, developed by Miguel Reale, to assess to which extent the current facts that would consist in violation of intellectual property are mutually entangled with the penal norms that impose sanctions against violating behaviors and the values present in a society that is becoming more global, connected and computerized every day.
LISTA DE SIGLAS
OMPI Organização Mundial da Propriedade Intelectual
TRIPS Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights OMC Organização Mundial do Comércio
LDA Lei de Direitos Autorais
LPI proteção da propriedade industrial ONU Organização das Nações Unidas
IFPI International Federation of the Phonographic Industry (Federação Internacional da Indústria Fonográfica)
ABPD Associação Brasileira de Produtores de Discos
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization CNDA Conselho Nacional de Direito Autoral
TJRJ Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro TJMG Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais TJSP Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo STJ Superior Tribunal de Justiça
PIB Produto Interno Bruto CUB Convenção de Berna
ONG Organização Não Governamental
ECAD Escritório Central de Arrecadação e Distribuição SBAT Sociedade Brasileira de Atores Teatrais
MLK Jr. Martin Luther King Jr. CP Código Penal
CNCP Conselho Nacional de Combate à Pirataria FNCP Fórum Nacional de Combate à Pirataria
FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ICI Instituto do Capital Intelectual
IBL Instituto Brasil Legal
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária USTR Escritório do Representante de Comércio dos EUA PL Projeto de Lei
CPP Código de Processo Penal
ABPD Associação Brasileira de Produtores de Discos UFES Universidade Federal do Espírito Santo USP Universidade de São Paulo
ABDR Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos IP Internet Protocol
FBI Federal Bureau of Investigation SOPA Stop Online Piracy Act
CEO Chief of Executive Officer PIPA Protect Intellectual Property Act ACTA Anti-Counterfeiting Trade Agreement UE União Européia
ESPM Escola Superior de Propaganda e Marketing ITI Instituto da Tecnologia da Informação
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
LISTA DE ABREVIATURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 15
1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL ... 19
1.1 Coisas Corpóreas e Coisas Incorpóreas ... 20
1.2 A Conquista da Propriedade Intelectual ... 22
1.3 Críticas à natureza jurídica da “Propriedade Intelectual” ... 25
1.4 A questão da escassez ... 28
1.5 A Cauda Longa (The Long Tail) ... 31
1.6 A Função Social da Propriedade Intelectual ... 33
2 O DIREITO AUTORAL ... 38
2.1 Histórico dos Direitos Autorais ... 41
2.2 Natureza jurídica do Direito de Autor ... 48
2.3 Escopo dos Direitos Autorais ... 50
2.4 A Proteção Internacional dos Direitos Autorais ... 53
2.5 Sistemas Legislativos sobre os Direitos Autorais ... 56
2.5.1 O Sistema Individual: Droit D’Auteur ... 56
2.5.2 O Sistema Comercial: Copyright ... 57
2.5.3 O Sistema Coletivo ... 60
2.6 Direito Autoral e Direito de Autor ... 60
2.7 O Direito Autoral no Brasil ... 61
2.8 A Lei de Direitos Autorais - LDA ... 64
2.8.1 Os direitos morais do autor ... 68
2.8.2 Os direitos patrimoniais ... 74
2.8.3 O Domínio Público ... 76
2.8.4 Os direitos conexos ... 80
2.8.5 Estrutura administrativa do sistema autoral ... 85
3 A TUTELA PENAL DOS DIREITOS AUTORAIS ... 91
3.1 Evolução histórico-normativa do crime de violação de direito autoral no direito penal brasileiro ... 92
3.2 O crime de violação de Direito Autoral ... 94
3.2.2 Objeto material ... 99
3.2.3 Sujeitos do delito ... 100
3.2.4 Elementos objetivos do tipo ... 112
3.2.5 Elemento normativo do tipo: sem autorização ... 116
3.2.6 Elemento subjetivo do tipo ... 117
3.2.7 Consumação e tentativa ... 117
3.2.8 Figuras qualificadas ... 118
3.2.9 Não constituem ofensa aos direitos autorais ... 127
3.2.10 Ação Penal ... 127
4 O TRIDIMENSIONALISMO JURÍDICO E OS DIREITOS AUTORAIS ... 128
4.1 Vigência, Eficácia e Fundamento ... 129
4.2 Tridimensionalidade e Integração Normativa ... 131
4.3 Estrutura Tridimensional do Direito ... 132
4.3.1 Tridimensionalidade funcional do saber jurídico ... 133
4.3.2 Normativismo jurídico concreto ou integrante ... 134
4.3.3 Institucionalização ou jurisfação do poder na nomogênese jurídica: ... 134
4.3.4 Elasticidade normativa e semântica jurídica ... 135
5 PLÁGIO, PIRATARIA E “FAIR USE” ... 136
5.1 O Plágio ... 136
5.1.1 Conceito ... 138
5.1.2 Elementos caracterizadores do plágio ... 140
5.1.3 A verificação do plágio ... 141
5.2 A Pirataria ... 148
5.2.1 O Conselho Nacional de Combate à Pirataria - CNCP ... 154
5.2.2 A pirataria e o mercado ... 157
5.2.3 Pirataria de softwares ... 159
5.2.4 O compartilhamento de arquivos ... 160
5.3 O Fair Use ou Uso Justo ... 169
5.3.1 Noções preliminares sobre o “Fair Use” ... 169
5.3.2 A origem histórica do “Fair Use” ... 170
5.3.3 Fundamento do “Fair Use” ... 173
6 A CRIMINALIZAÇÃO E A REPRESSÃO À PIRATARIA: ENTRE A
LIBERDADE E A CENSURA ... 182
6.1 Os projetos de lei S.O.P.A. e P.I.P.A. nos Estados Unidos da América .... 186
6.2 A lei “Sinde-Wert” na Espanha ... 188
6.3 A Iei “Hadopi” na França ... 189
6.4 Os Tratados Internacionais: O Acordo TRIPS e o ACTA ... 190
6.5 Os Projetos de Lei nº 89/2003 do Senado Federal e nº 5361/2009 da Câmara dos Deputados no Brasil ... 191
7 FUNDAMENTOS PARA A DESCRIMINALIZAÇÃO DA VIOLAÇÃO AO DIREITO AUTORAL ... 194
7.1 Princípios Constitucionais de natureza penal ... 195
7.1.1 Princípio da Legalidade ... 196
7.1.2 Princípio da Culpabilidade ou da responsabilidade subjetiva ... 211
7.1.3 Princípio da Intranscendência ou da personalidade da pena ... 213
7.2 Princípios deduzidos do sistema penal ... 213
7.2.1 Princípio da Intervenção Mínima, Princípio da ultima ratio ou Princípio da Subsidiariedade ... 214
7.2.2 Princípio da Ofensividade ... 217
7.2.3 Princípio da Fragmentariedade... 219
7.2.4 Princípio da Insignificância ... 220
7.2.5 Princípio da Adequação social... 221
7.2.6 Interpretação restritiva ou princípio do in dubio pro reo ... 225
8 POSSIBILIDADES DIANTE DA REALIDADE COMPARTILHADA ... 227
8.1 Creative Commons: os modelos colaborativos ... 234
8.2 Tipos de licenças do Creative Commons e modo de utilização ... 239
8.2.1 Atribuição (BY)... 240
8.2.2 Não a obras derivativas (ND) ... 240
8.2.3 Vedados usos comerciais (NC) ... 240
8.2.4 Compartilhamento pela mesma licença (SA) ... 240
8.2.5 Recombinação (Sampling): ... 241
8.2.6 CC-GPL e CC-LGPL ... 243
8.2.7 Efeitos práticos ... 243
CONCLUSÃO ... 247
1
INTRODUÇÃO
“O homem é, também, a história por fazer-se1”.
Ao longo dos tempos, o ser humano conserva e transmite mais informações sobre
experiências vividas por outras pessoas, do que as próprias experimentadas
diretamente. Grande parte dos valores sociais caros à humanidade são fruto de
contínua articulação, construção, transformação e destruição, por influência da
habilidade na transmissão destas informações, e do modo como são difundidas.
O mesmo se verifica por meio das manifestações culturais, em seus diversos
aspectos, sejam artísticos, literários ou científicos, que necessitam de divulgação
para cumprirem sua função de influenciar pessoas e delimitar o contexto histórico no
qual estão inseridas.
E dentre todas as atividades humanas, a criação, materializada em uma obra, é o
produto mais importante, pois a um só tempo alimenta o processo contínuo de
reconstrução do passado que a sociedade contemporânea não viveu, interpreta e
exterioriza o pensamento atual e influencia nas projeções do futuro.
Nesse aspecto, os direitos autorais constituem um dos temas que atualmente
provocam, e certamente ainda serão fonte de apaixonados debates entre juristas,
empresários, criadores, artistas e a sociedade informatizada, ao menos nos
próximos vinte anos.
Este trabalho busca justamente fomentar a discussão em torno do controvertido
tema da violação de direito autoral, notadamente no que se refere ao aspecto penal,
considerando as formas mais comuns de sua ocorrência, o plágio e a pirataria.
Para tanto, a propriedade intelectual será tangenciada, a partir da qual serão
apresentados os principais aspectos que envolvem os direitos autorais,
2 considerando a estruturação da Lei nº 9.610/1998, a Lei de Direitos Autorais, ou
simplesmente, LDA.
Em seguida, será estudada a tutela penal dos direitos autorais, avaliando como se
caracterizam, em uma norma penal em branco, os sujeitos, as elementares, as
qualificadoras e os permissivos legais contidos no tipo descrito no artigo 184 do
Código Penal, examinado conjuntamente com a sobredita LDA, que lhe dá
conteúdo.
Na sequência, serão apresentados os principais contornos da matriz teórica deste
trabalho: a estrutura tridimensional do Direito, sistematizada por Miguel Reale, na
qual a uma dada situação de fato, interagem o elemento normativo, que disciplina os
comportamentos individuais e coletivos, e os valores determinados pelo ideal de
Justiça, em uma relação de mútua implicação, em que, valoradas, as normas se
relacionam e conferem significação ao fato, inclinando os homens no sentido de
atingir certa finalidade ou objetivo.
O tridimensionalismo jurídico adaptado ao tema autoral será objeto de investigação
na medida em que viabilize o estudo da legitimidade da intervenção penal diante da
violação aos direitos de autor e conexos, considerando que a norma de natureza
criminal se destaca no meio jurídico por ser o resultado mais extremado da tensão
entre fato e valor, não se justificando quando se abstrai da análise os elementos que
determinaram a sua própria gênese.
E diante da transformação da realidade, em que pese o direito se mantenha
formalmente o mesmo, cumpre demonstrar que o direito não permanecerá o mesmo,
porquanto o desenvolvimento cultural e tecnológico impõe seus efeitos nas relações
interpessoais e de produção, as quais por sua vez se refletem nas normas que
regem o grupamento social. Nesse aspecto, serão examinadas as principais
manifestações de violação autoral favorecidas pelas constantes inovações
tecnológicas, quais sejam, o plágio e a pirataria, e em contrapartida, também se
observará o impacto dos movimentos para ampliar as limitações aos direitos
3
Especialmente em razão do fenômeno da globalização, o valor que se confere à
propriedade intelectual vem sofrendo mutações que abalaram os paradigmas
construídos ao longo dos anos, fragilizando a estrutura normativa ordinária,
sobretudo o crime de violação de direito autoral, demandando rigorosa observância
ao conjunto de princípios que constituem o Estado Democrático de Direito Penal,
não apenas os explicitamente descritos, como também os implícitos na Constituição
de 1988.
Os princípios de natureza penal, portanto, serão avaliados como fundamentos para
a manutenção ou descriminalização do artigo 184 do Código Penal, eis que as
figuras típicas nele descritas, não obstante a pretensão de tutelar ameaças ou
lesões aos direitos do autor e seus conexos, para sua legitimidade no sistema,
devem guardar coerência com o arcabouço valorativo contido nos princípios, além
de considerar as implicações do “mundo plano”, no qual o avanço tecnológico
continuamente impõe consequências previstas e imprevistas, desejadas ou
indesejadas, das quais não se pode abstrair, escapar ou reverter.
E, diante de um cenário no qual enfrentam-se, de um lado, as indústrias fonográfica
e audiovisual alegando vultosos prejuízos em decorrência do desenfreado
crescimento da pirataria, demandando ainda maior severidade na intervenção penal
como forma de reprimir as condutas violadoras e desestimular novas investidas, em
sentido contrário, um movimento que conta com a adesão de artistas, da sociedade
e de pensadores do Direito, se fortalece em favor de avaliar as possibilidades de
uma nova realidade compartilhada, na qual se reduzem as hipóteses de violação de
direito autoral para prestigiar o uso justo da criação intelectual.
O capítulo anteriormente mencionado, que trata do compartilhamento e das novas
formas de licença veiculadas pelo modelo denominado Creative Commons, parte de
uma premissa fundamental: não há como retroceder neste processo de
democratização do acesso à cultura e os atuais mecanismos de repressão penal
4
Percorridos os capítulos que compõem esta tese, restará avaliar em que medida
velhos temas, como por exemplo, a liberdade de expressão, a livre concorrência, a
propriedade e sua função social, o acesso à cultura e ao conhecimento, se avaliados
a partir de circunstâncias de fato completamente novas representadas pela profusão
de informações na internet e pelos incrementos tecnológicos repercutirão no
5
1
BREVES APONTAMENTOS SOBRE A PROPRIEDADE
INTELECTUAL
“Nobody else should market the author’s book, but we refuse to say nobody else should use it. The world goes ahead because each of us builds on the work of our predecessors. ‘A dwarf standing on the shoulders of a giant can see farther than the giant himself’. [...]2”.
Ao consultar o vocábulo “propriedade” no texto da Constituição da República, será
possível encontrar disciplina legal distinta aos diversos tipos de situações
proprietárias, de forma que tais peculiaridades não parecem autorizar a formulação
de um conceito único de propriedade, ou, nos termos da doutrina de Orlando
Gomes:
“a propriedade é o mais amplo direito de utilização econômica das coisas, direta ou indiretamente. O proprietário tem a faculdade de se servir da coisa, de lhe perceber os frutos e produtos, e lhe dar a destinação que lhe aprouver. Exerce poderes jurídicos tão extensos que a sua enumeração seria impossível3”.
Em razão deste regramento próprio, serão analisadas somente as especificidades
relativas ao estudo da propriedade intelectual, com vistas a manter o foco no tema
do presente trabalho.
A propriedade intelectual, em seu aspecto autoral e industrial, é responsável “pela
movimentação de elevadas parcelas do Produto Interno Bruto dos países, e
representam muitas vezes ativos valiosos do patrimônio das empresas4”. Afirma-se
2 Tradução livre: “Ninguém deve comercializar o livro do autor, mas nós nos recusamos a dizer que ninguém deve usá-lo. O mundo caminha adiante porque cada um de nós constrói no trabalho dos nossos predecessores. ‘O anão nos ombros do gigante pode enxergar mais longe do que o próprio gigante’ [...]”. CHAFEE, Jr. Zechariah. Reflections on the Law of Copyright: I. 45 Colum. L. Rev. 503, 511 (1945), apud LEITE, Eduardo Lycurgo. Plágio e Outros Estudos em Direito de Autor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 50.
3
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 86.
6
que o futuro dos direitos de propriedade intelectual será o tema jurídico mais
relevante dos próximos 25 (vinte e cinco) anos5.
Dentre os aspectos mais discutidos encontra-se a própria noção de propriedade, eis
que a criação, como manifestação intelectual ou cultural vinculada de forma
perpétua ao seu autor, necessita de visibilidade para alcançar sua função primordial
de inspirar e conquistar a admiração, e enfim, tornar-se um produto capaz de
reverter em proveito econômico, questionado como medida de proteção autoral.
O momento é apropriado para ampliar e aprofundar os debates, porquanto o
Ministério da Cultura, em processo francamente democrático, vem realizado
consultas públicas visando retomar o debate em torno da legislação brasileira sobre
Propriedade Intelectual, tema que vem ganhando merecido um destaque, ainda não
experimentado em sua história.
1.1 Coisas Corpóreas e Coisas Incorpóreas
O filósofo grego Aristóteles distinguia as coisas em existentes concretamente
percebidas pelos sentidos humanos, e intelectuais situadas no plano do abstrato
como concepções do espírito. Cícero, talvez o principal responsável por familiarizar
entre os romanos as escolas da filosofia grega, influenciou na construção da
concepção bipartite das coisas ou bens do Direito Romano, em corpóreos (quae
tangit possunt) e incorpóreos (quae tangi non possunt). É possível encontrar esta classificação nas Institutas, de Gaio e de Justiniano, bem como no Digesto6.
O critério básico distintivo das coisas em corpóreas e incorpóreas era sua
tangibilidade, ou a possibilidade de serem tocadas, como se pode observar em Gaio:
5
GREENSPAN, Allan. A era da turbulência: aventuras em um novo mundo. Trad. Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 483.
7
“corporales hae quae tangi possunt, velut fundus, homo, vestis, aurum, argentum et deniquaelae res innumerabiles. Incorporales quae tangi non possunt, qualia sunt ea quae iure consistunt, sicut hereditas, usus fructus, obligationes quoquo modo contractae”7.
O interesse prático da distinção entre coisas corpóreas e incorpóreas no Direito
Romano consistia na forma de sua transmissão, pois que as corpóreas se
transferiam pela compra e venda ou pela doação, enquanto as incorpóreas eram
objeto de cessão. Modernamente, a divisão tradicional dos bens jurídicos em coisas
corpóreas e incorpóreas ainda sobrevive, a despeito de sua parca utilidade prática,
pois estas categorias não são normatizadas separadamente8.
Todas as coisas corpóreas pertencem ou são passíveis de pertencer a alguém, uma
ou mais pessoas, seja particular ou o próprio Estado. Mesmo a res nullius, coisa sem
dono, ou a res derelicta, coisa abandonada, podem vir a pertencer a alguém. Tal
importa em afirmar que quanto a todos os bens corpóreos existe uma potencialidade
em sua apropriação. Todavia, quanto aos bens intelectuais, e especificamente os
direitos autorais, objeto deste trabalho, o domínio público é o fim a que se destinam
de maneira inevitável, sendo a exclusividade que o autor, ou titular de direito detém,
uma circunstância temporária9.
Não obstante a propriedade seja mais facilmente identificada com bens
corporificados, é certo que nas últimas décadas viu-se verdadeiro processo de
“desmaterialização” da propriedade, porquanto bens intangíveis ou imateriais podem
ser muito mais expressivos economicamente do que todo o acervo material, ou
tangível da empresa10.
7 GAIUS, Institutiones, II, nºs 13 e 14.
8 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I, 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 256-258.
9 BRANCO, Sérgio. ODomínio Público no direito autoral brasileiro: uma obra em domínio público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 23-24.
8
1.2 A Conquista da Propriedade Intelectual
A rigor qualquer bem imaterial pode ser objeto de propriedade, desde que possam
ser identificáveis e possam adquirir valor econômico.
Em retrospecto histórico, a ascensão da burguesia ao poder europeu no final do
século XVIII impôs a organização jurídica das conquistas, razão pela qual no século
XIX, a exemplo do Código francês, ou Código Napoleônico de 1804, o mundo viu
surgir diversos estatutos regulando a propriedade, que assume relevo legislativo11.
A consolidação da “propriedade intelectual” é recente, e remonta às origens do
sistema capitalista, datando de aproximadamente 300 anos no caso dos direitos
autorais, e de cerca de 400 anos no caso dos direitos industriais12.
No século XX, a propriedade passou a ser compreendida por meio de parâmetros
diversos, não mais concebidos a partir da propriedade absoluta, e sim como uma
realidade funcionalizada, que impede a construção de um conceito único13. Ademais,
“recentemente, o que se viu foi a desmaterialização da propriedade, uma vez que os
ativos intangíveis são, não raras vezes, o aspecto patrimonial mais rentável de
diversas sociedades empresárias14”.
O reconhecimento da propriedade intelectual é assinalado por Pontes de Miranda,
de acordo com o qual:
“Os chamados bens imateriais passaram a ser suscetíveis de direitos dominais e de outros direitos reais. Elaborações de conceitos, de sentimentos e de vontade, de prevalecente valor intelectual ou prático, foram postas ao lado dos objetos triviais, como as pedras, os metais e os seres vivos apropriáveis. Note-se que se saiu do espaço das três dimensões geográficas e, depois de se admitirem como coisa as energias
11 BRANCO, Sérgio. O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro: uma obra em domínio público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 13.
12 TRIDENTE, Alessandra. Direito Autoral: paradoxos e contribuições para a revisão da tecnologia jurídica no século XXI. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 1.
13 BRANCO, Sérgio. O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro: uma obra em domínio público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 16.
14 BRITO, Miguel Nogueira de. A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia
9 utilizáveis, se reconheceu a objetividade jurídica a fatos de dimensões sociais – da arte, da ciência e da economia. Não só o que tem valor resultante da composição da matéria, como as partes integrantes e os produtos do solo e os animais, ou as obras manuais e fabricadas, há de ser possível objeto de direito real15”.
A propriedade intelectual é assegurada pela Constituição de 1988 como direito
fundamental, garantia pétrea de nosso Estado Democrático de Direito.
A definição de propriedade intelectual estabelecida no glossário oficial da
Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI16 erige-se nos seguintes
termos:
PROPRIÉTÉ INTELLECTUELLE
Dans la Convention instituant l’OMPI il faut entendre par “propriété intellectuelle”, les droits relatifs: aux oeuvres littéraires, artistiques et scientifiques, aux interprétations des artistes interprètes et aux exécutions des artistes exécutants, aux phonogrammes et aux émissions de radiodiffusion, aux inventions dans tous les domaines de l’activité humaine, aux découvertes scientifiques, aux dessins et modèles industriels, aux marques de fabrique, de commerce et de service, ainsi qu'aux noms commerciaux et dénominations commerciales, à la protection contre la concurrence déloyale; et tous les autres droits afférents à l’activité intellectuelle dans les domaines industriel, scientifique, littéraire et artistique17.
Para o acordo TRIPS18, o termo propriedade intelectual abrange o direito de autor e
direitos conexos, as marcas, as indicações geográficas, os desenhos industriais, as
patentes, as topografias de circuitos integrados e a proteção de informação
confidencial19.
15
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
16 O OMPI foi instituído na Convenção de Genebra, Suíça, em 1967, onde se encontra sua sede, e representa um dos 14 órgãos especializados da Organização das Nações Unidas.
17 “A Convenção que instituiu o OMPI faz entender por “propriedade intelectual”, os direitos relativos: às obras literárias, artísticas e científicas, as interpretações dos artistas intérpretes e as execuções dos artistas executantes, dos fonogramas e as emissões de radiodifusão, as invenções em todos os campos da atividade humana, as descobertas científicas, os desenhos e modelos industriais, as marcas de fábrica, de comércio e de serviço, assim como aos nomes e denominações comerciais, a proteção contra a concorrência desleal, e a todos os demais direitos relativos a atividade intelectual nos terrenos industrial, científico, literário e artístico”.
18 TRIPS significa Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights. Acordo internacional celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio – OMC, que dispõe sobre propriedade intelectual, e foi incorporado ao nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994.
10
As múltiplas produções da inteligência e do engenho humano dividem-se em dois
principais grupos, conforme se manifestem no domínio das artes e das ciências, ou
no campo das indústrias.
“Os bens sujeitos à tutela jurídica sob a noção de ‘propriedade industrial’ (isto é, as patentes de invenção, as marcas de produtos ou serviços, o nome empresarial etc.) integram o estabelecimento empresarial. Há, porém, outros bens da mesma natureza, cuja tutela segue disciplina diversa, a do direito autoral. O conjunto destas duas categorias de bens é normalmente denominado ‘propriedade intelectual’, numa referencia à sua imaterialidade e à origem comum, localizada no exercício de aptidões de criatividade pelos titulares dos respectivos direitos. A propriedade intelectual, portanto, compreende tanto as invenções e sinais distintivos da empresa, como as obras científicas, artísticas, literárias e outras. O direito intelectual, deste modo, é o gênero, do qual são espécies o industrial e o autoral20”.
Sob a rubrica “propriedade intelectual” albergam-se os direitos autorais,
concernentes às obras literárias, artísticas e científicas, e no âmbito das disciplinas
jurídicas, aloca-se no direito civil, bem como a propriedade industrial, relativa às
invenções patenteáveis, aos modelos de utilidade, desenhos ou modelos industriais,
variedades novas de plantas e animais, marcas de indústria e de comércio, proveitos
dos nomes comerciais, títulos de estabelecimentos, insígnias comerciais ou
profissionais, expressões ou sinais de propaganda e recompensas industriais, que
têm seu estudo sistematizado principalmente no âmbito do direito empresarial.
A propriedade intelectual é tratada no âmbito de diversas leis, destacando-se, dentre
elas, as mais relevantes, a Lei nº 9.610/98, destinada à proteção dos direitos
autorais (LDA), e a Lei nº 9.279/96, para a proteção da propriedade industrial (LPI),
em clara demonstração de que os bens intelectuais são tutelados por institutos
diversos, com peculiaridades, natureza jurídica e justificações distintas.
Para Cláudio Barbosa, não houve preocupação em identificar princípios comuns
capazes de justificar a unificação científica e conceitual dos bens intelectuais, lacuna
que o autor busca preencher com critérios que vão além da natureza imaterial
destes bens, e serviriam como balizamento para a sua proteção.
O sobredito autor menciona, em apertada síntese: (i) a exigência de novidade
absoluta ou relativa da criação; (ii) a corporificação da criação, a fim de que
11
nenhuma proteção à propriedade intelectual possa ser concedida em abstrato, mas
sempre em decorrência da Incorporação em algum substrato concreto; (iii) limites à
exclusividade conferida pela proteção, de modo a permitir e incentivar novas
criações; (iv) duração limitada a um período definido21.
As exceções, contudo, são notáveis, conforme se verifica no magistério de Sérgio
Branco. As marcas podem gozar de proteção perpétua no caso de seus registros
serem prorrogados indefinidamente; as informações confidenciais não ingressam em
domínio público a menos que percam seu caráter de confidencialidade; o direito
autoral no direito brasileiro não depende de fixação da obra em qualquer suporte,
bastando sua exteriorização22.
Por iniciativa da ONU (Organização das Nações Unidas) e da OMPI (Organização
Mundial da Propriedade Intelectual), no ano 2000 foi criado o Dia Internacional da
Propriedade Intelectual, celebrado em 26 de abril.
1.3 Críticas à natureza jurídica da “Propriedade Intelectual”
A diversidade de propriedades, cada uma com sua função, requer o conhecimento,
senão pormenorizado, ao menos sistematizado acerca de suas variáveis, com a
finalidade de analisar se, e em que medida, os direitos autorais, objeto desta tese,
se subsumem a algum aspecto destas propriedades.
A natureza jurídica da propriedade intelectual é peculiar como os institutos que a
representam. Em conformidade com o advogado norte-americano Thorne D. Harris
III:
“a propriedade intelectual apresenta alguma dificuldade em ser conceituada com precisão. Este tipo de propriedade é intangível e incorpórea. Como tal, é diferente de um automóvel, uma mesa, uma cadeira ou um livro, todos considerados propriedade pessoal. Da mesma forma a propriedade intelectual não é uma propriedade real, como um bem de família ou posse
21
BARBOSA, Cláudio R. Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Elsiever, 2009, p. 42.
12 de terras. Ela diz respeito a segredos, nomes, idéias, ou, pelo menos a expressão de idéias e conceitos similares23”.
Diante da pressão dos autores intelectuais de obras, o sistema normatizou uma
contradição em seus termos, pois tomou-se um ente incorpóreo, em rigor, o
“trabalho intelectual”, por propriedade, instituto jurídico caracterizado
fundamentalmente pelo direito de usar, gozar e dispor com exclusividade da coisa,
como ilustra Túlio Lima Vianna:
Um proprietário de um apartamento, por exemplo, tem interesse no uso exclusivo do imóvel, pois é evidente que não se sentiria confortável com a presença de pessoas estranhas em sua sala, cozinha ou banheiro. Já o autor de um livro ou o compositor de uma música tem justamente o interesse oposto, pois ninguém produz uma obra artística para o seu deleite egoístico. Quanto mais pessoas lerem e ouvirem uma criação, tanto maior prazer trará a seu autor, que terá seu talento reconhecido. Um proprietário de uma fazenda tem interesse em fruir com exclusividade dos frutos de sua terra e é natural que não deseje dividir sua colheita com ninguém. O escritor de uma obra de caráter técnico-científico, por outro lado, tem interesse em ser citado em obras de outros autores e, longe de desejar impedir que outros fruam de suas idéias, sente-se honrado com a menção que fazem a seu trabalho. Por fim, somente ao proprietário cabe o direito de alienar (doar, permutar ou vender) a coisa, pelo óbvio motivo de que ao fazê-lo perderá os direitos de dela usar e fruir. O autor, porém, nada perde com a cópia da sua obra. Pelo contrário, quanto mais pessoas lerem seus textos, ouvirem sua música e apreciarem a sua arte, tanto mais reputação ganhará na sociedade24.
Em que pese a utilização da terminologia “Propriedade Intelectual” por expressiva
doutrina, há que se mencionar a classificação de Edmond Picard, datada de 1877,
portanto antes da Convenção de Berna, que a propôs em conclusão aos seus
estudos das patentes de invenção.
O termo “direitos intelectuais” foi concebido por Picard como uma alternativa à
tripartição clássica do Direito Romano, segundo afirma: “la division tripartite romaine:
23 HARRIS III, Thorne D. The Legal Guide to Computer Software Protection. Cap. II. “Defining Intellectual Property and the Rights to It”. New York: Prentice Hall, Inc.,1985. “Intellectual property can be a somewhat difficult concept to pin down precisely. This type of property is intangible and incorporeal. As such, it differs from a car, a table, a chair, or a book, all of which are personal property. Likewise, intellectual property does not refer to the family homestead, land investments, or other so-called real property. It does relate to secrets, names, ideas, or at least the expression of those ideas, and a number of other similar concepts”.
24
VIANNA, Túlio Lima. A Ideologia da Propriedade Intelectual: a inconstitucionalidade da tutela penal
13
Droits personnels, Réels, Obligationnels. Les droits intellectuels ajoutés comme 4ª terme25”.
A opção pela nomenclatura “direitos intelectuais” em detrimento de “propriedade
intelectual”, é justificada pelo autor, nos seguintes termos:
“Aussi s’accoutuma-t on à dire Propriété artistique, Propriété littéraire, Propriété industrielle, comme on disait propriété d’un immeuble ou d’un meuble matériel. On s’y est même appliqué à éviter le mot “propriété” pour désigner la plénitude du droit sur une production de l’intelligence26”.
José de Oliveira Ascensão afasta expressamente a classificação de propriedade aos
direitos intelectuais, entendendo que estes seriam direitos de exclusivo, ou de
monopólio, os quais conferem ao titular a exclusividade da na exploração, ao abrigo
da concorrência. Para o professor lusitano, “nenhum dos preceitos aplicáveis à
propriedade, que não sejam resultantes de características comuns a todos os
direitos absolutos, se aplica aos direitos intelectuais27”.
Esposando o mesmo entendimento, Denis Borges Barbosa afirma que não obstante
a expressão ‘propriedade’ seja utilizada para designar os bens intelectuais,
pessoalmente ele prefere utilizar as expressões descritivas “monopólio instrumental”
ou “direitos de exclusiva”, por tratar-se tão somente de uma exclusividade legal de
uma oportunidade de mercado, não significando a exclusividade de mercado
característica do monopólio em sentido estrito28.
Na construção de uma perspectiva crítica da terminologia “propriedade intelectual”, o
professor Sérgio Branco observa, basicamente, a impossibilidade de tratar a
propriedade a partir de um paradigma único, porquanto tal instituto é múltiplo, e
tormentosa sua definição.
25“A divisão romana em três partes: Direitos Pessoais, Reais e Obrigacionais. Os direitos intelectuais
se acrescentam como um 4º termo”. PICARD, Edmond. Le droit pur. Bruxelles: Veuve Ferdnand Larcier, 1899. p. 119.
26 “Também se costuma dizer Propriedade artística, Propriedade literária, Propriedade industrial,
como se diz propriedade de um imóvel ou um móvel material. Foi aplicável mesmo evitar a palavra ‘propriedade’ para designar a plenitude do direito sobre uma produção da inteligência”. PICARD, Edmond. Le droit pur. Bruxelles: Veuve Ferdnand Larcier, 1899, p. 120-121.
27
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil – Reais. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 39.
14
Em seu trabalho, Sérgio Branco29 apresenta as interseções entre as variadas
propriedades, iniciando pelo direito absoluto, exercido erga omnes pelo titular, e
pelas faculdades de usar, gozar, dispor da coisa e reavê-la do poder de quem quer
que injustamente a possua ou detenha, conferidas ao proprietário, que se também
se verificam nos bens tutelados pela propriedade intelectual. As principais
dissonâncias surgem a partir da imaterialidade da propriedade intelectual, ainda que
este não seja critério suficiente para constituir categoria autônoma e independente.
1.4 A questão da escassez
A sociedade de consumo impõe que os desejos materiais sejam progressivos e
insaciáveis. Em contrapartida, os recursos econômicos são limitados ou escassos.
Da associação destes dois fatores decorre que não é possível ter tudo o que se
deseja, razão pela qual é necessário fazer escolhas.
Da sobredita premissa decorre que a disponibilidade de determinado bem na
sociedade é inversamente proporcional ao seu “valor de troca”, e, no que se refere
às obras intelectuais, por muito tempo o problema da escassez limitou a quantidade
de cópias e definiu o alto custo da produção do trabalho intelectual consubstanciado
em meio físico 30.
No mundo físico, palpável, observa-se uma escassez de bens, o que equivale a
dizer que a utilização de um bem por alguém normalmente impede a utilização
simultânea desse mesmo bem por outrem.
Dessa forma, se alguém tiver seu carro furtado, descobrirá rapidamente a subtração,
porque o furto o impede de usar o próprio carro, o que o fará provavelmente reportar
29 BRANCO, Sérgio. O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro: uma obra em domínio público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 20-21.
30
15
o fato para tomar as medidas necessárias a recuperá-lo. Contudo, o mesmo não
ocorre com a propriedade intelectual. Se alguém reproduzir o trabalho intelectual do
autor, este pode não vir a descobrir essa reprodução desautorizada por longo tempo
(ou talvez nunca), porque a reprodução não impede a utilização do trabalho, seja
pelo criador, seja por terceiros.
Além disso, a reprodução pode ocorrer em outro estado ou país. Na internet, os
conflitos são ainda mais graves. No mundo digital, não apenas o trabalho intelectual
pode ser copiado sem que seu titular se dê conta do fato, tornando ainda mais
evidente a “falha do mercado”, como muitas vezes não é possível distinguir o original
da cópia, com um dado particularmente preocupante: as cópias podem, a rigor, ser
feitas às centenas, em pouco tempo e a custo reduzido31.
Túlio Lima Vianna observa que a invenção da imprensa provocou um inesperado
efeito sobre a criação intelectual, na medida em que obrigou os autores a
concederem o monopólio da distribuição das obras aos detentores dos meios de
produção:
A invenção da imprensa reduziu drasticamente os custos do serviço de cópia, possibilitada pela reprodução em série, obrigando os autores a alienarem seu “trabalho intelectual” aos detentores dos meios de produção que, em contrapartida, exigiram-lhes a concessão do monopólio da distribuição das obras.
A natureza do trabalho intelectual, que poderia ser replicado ad infinitum, acabou por ser tomada como “propriedade intelectual”, mesmo contra todas as evidências de que, uma vez alienada, a propriedade não pode mais ser utilizada por quem um dia a possuiu. Firmou-se então a ideologia da “propriedade intelectual”, ocultando a venda do trabalho intelectual dos autores aos detentores dos meios de produção32.
A revolução tecnológica iniciada no século XX e, sobretudo, com a democratização
da internet, a divulgação e distribuição das obras intelectuais, que tradicionalmente
eram realizadas pelas editoras, gravadoras e produtoras, passaram a ser realizadas
31 PARANAGUÁ, Pedro, BRANCO, Sérgio. Direitos Autorais. Série FGV Jurídica. Rio de Janeiro: Editora FGV Direito, 2009, p. 69.
32
16
diretamente pelo próprio autor através de páginas pessoais, ou pelos usuários da
rede.
Este novo sistema de distribuição do trabalho intelectual suprimiu o problema da
escassez, reduzindo, por conseguinte, o “valor de troca” do trabalho intelectual. O
sistema capitalista se deparou com uma realidade até então ocultada pela ideologia
da “propriedade intelectual”: no “livre mercado” o “valor de troca” do trabalho
intelectual é zero, pois pode ser reproduzido ad infinitum e não está limitado pela
escassez33.
Os bens intelectuais têm por característica serem “não rivais”, ou seja, podem ser
utilizados por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, ainda que com finalidades
diversas, situação impensável quando se trata de propriedade material. Por certo
que esta característica se refere apenas à concepção intelectual, e não ao suporte
material no qual a criação se insere.
É justamente esta não rivalidade que provoca a denominada “falha do mercado”,
pois os bens protegidos pela propriedade intelectual são passíveis de serem
copiados, e o mercado não é capaz de regular o preço dos bens intelectuais
disponíveis34. No dizer de James Boyle, “[...] whereaver things are cheap to copy and
hard to exclude others from, we have a potential collapse of the market35”. No
mesmo sentido, Denis Borges Barbosa:
“se um agente do mercado investe num desenvolvimento de uma certa tecnologia, e esta, por suas características, importa em alto custo de desenvolvimento e facilidade de cópia, o mercado é insuficiente para garantir que se mantenha um fluxo de investimento36”.
33 VIANNA, Túlio Lima. A Ideologia da Propriedade Intelectual: a inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais de autor. Anuário de Derecho Constitucional Latinoamericano, Tomo II, Ano 12. Konrad-Adenauer-Stiftung: 2006, p. 937.
34
BRANCO, Sérgio. O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro: uma obra em domínio público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 22.
35 BOYLE, James. The Public Domain. New Haven: Yale University Press, 2008, p. 4. Tradução livre: “[...] quando as coisas são fáceis de serem copiadas e difíceis de excluir terceiros, nós estamos diante de um potencial colapso do mercado”.
17
Em tal cenário, costuma-se alardear que no sistema capitalista é imprescindível a
consubstanciação da obra intelectual em meio físico para que esta adquira “valor de
troca”, e a disponibilização da criação na internet colocaria em risco a remuneração
do trabalho intelectual dos autores.
Desta opinião não comunga Túlio Lima Vianna, porquanto afirma que não obstante a
ausência de escassez em meio digital, a impressão de livros não foi abolida. Para o
doutrinador mineiro, as leis, que sempre foram de domínio público, estão fartamente
disponíveis na íntegra na Internet, mas as editoras jurídicas continuam produzindo e
vendendo códigos impressos, e muito embora existam inúmeras traduções da Bíblia
podem na Internet com facilidade, a obra sagrada continua sendo o livro mais
vendido no mundo37.
O desafio imposto pela sociedade capitalista digital é promover o ineditismo do
trabalho intelectual, de forma que a compra do “trabalho intelectual” inédito pelos
detentores do meio de produção garanta os lucros derivados do pioneirismo de sua
exploração. “Não são as patentes que garantem os lucros das empresas, mas
principalmente osegredo industrial e o pioneirismo38”.
1.5 A Cauda Longa (The Long Tail)
O termo “A Cauda Longa39” (The Long Tail) foi cunhado em um artigo escrito pelo
Editor Chefe da Revista Wired, Chris Anderson, posteriormente transformado em um
livro que veio a se tornar um dos mais influentes ensaios contemporâneos sobre
negócios.
37 VIANNA, Túlio Lima. A Ideologia da Propriedade Intelectual: a inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais de autor. Anuário de Derecho Constitucional Latinoamericano, Tomo II, Ano 12. Konrad-Adenauer-Stiftung: 2006, p. 937.
38 VIANNA, Túlio Lima. A Ideologia da Propriedade Intelectual: a inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais de autor. Anuário de Derecho Constitucional Latinoamericano, Tomo II, Ano 12. Konrad-Adenauer-Stiftung: 2006, p. 938.
18
A teoria da cauda longa foi inspirada na evolução da Curva ABC ou 80-20, a qual,
por sua vez, se baseava no teorema do século XIX do economista italiano Vilfredo
Pareto.
A mencionada Curva ABC era inicialmente utilizada como regra de controle de
estoque, por meio da qual os produtos com mais saída ficavam em destaque,
gerando uma economia de mercado denominada de “hits”, produtos com alto índice
de vendas.
No entanto, a democratização da tecnologia impactou o sobredito processo, de
forma que o mercado de hits foi aos poucos sendo substituído pelo mercado de
nichos, produtos que antes não representavam vendas expressivas e passaram a representar percentuais cada vez mais significativos na linha horizontal do gráfico,
em alusão à cauda de um animal.
A Internet foi responsável pela democratização da produção, porquanto mais
produtos ou serviços puderam ser oferecidos, e da propagação, por atingir um
número indeterminado de consumidores com um custo próximo a zero pela
divulgação.
Neste cenário, a teoria da cauda longa estuda e explica a origem de um novo
universo, no qual se constata um equilíbrio entre a receita total dos inúmeros
produtos de nicho e a receita total dos poucos grandes sucessos.
Nas palavras do escritor e editor-chefe: “Embora ainda estejamos obcecados pelos
sucessos do momento, esses hits já não são mais a força econômica de outrora”,
pois ao invés de os consumidores avançarem para uma única direção, eles agora se
dispersam à medida que o mercado se fragmenta em inúmeros nichos.
A obra revela as oportunidades decorrentes desta nova economia de mercado,
apontando o poder da produção colaborativa e a ascensão de uma grande cultura
paralela, perspectivas de uma estrutura na qual, em que pesem os esforços de
19
1.6 A Função Social da Propriedade Intelectual
O conceito de propriedade intelectual é apresentado sob dois prismas: o
exclusivista, o qual enfatiza a idéia de monopólio, e o humanista, que reflete a idéia
de proteção aos direitos do pensamento40.
De acordo com a classificação dominante, o direito autoral e a propriedade industrial
são ramos da propriedade intelectual, e deste modo,
“Os direitos de propriedade intelectual são essencialmente direitos de exclusivo ou de monopólio. Reservam aos titulares a exclusividade na exploração ao abrigo da concorrência. São freqüentemente qualificados como direitos de propriedade, particularmente nas modalidades de propriedade literária ou artística e propriedade industrial. Mas a qualificação nasceu ao final do séc XVIII e continua a existir com a clara função ideológica, para cobrir a nudez crua do monopólio sob o manto venerável da propriedade.41”
A proteção destes direitos imateriais é feita mediante uma concessão de monopólio
temporário pelo Estado ao autor ou inventor, a qual, em um primeiro momento,
parece ser contrária aos fundamentos do Estado liberal, pautado na livre
concorrência e não interferência do Estado.
Todavia, a concessão de monopólios se mostra coerente com o desenvolvimento do
liberalismo se considerada a teoria do market failure, segundo a qual o Estado
interferiria no mercado para assegurar o equilíbrio, corrigindo uma falha da livre
concorrência. No caso da propriedade intelectual, o Estado não só concederia o
40
VARELLA, Marcelo Dias e MARINHO, Maria Edelvacy Pinto. Propriedade Intelectual na OMC. Revista do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, Brasília, v. 2, n. 2, p.136-153, jul./dez. 2005, p. 137.
20
direito exclusivo, mas também deveria fiscalizar o abuso destes direitos impedindo
práticas nocivas ao mercado42.
Sobretudo diante dos significativos avanços tecnológicos experimentados por nossa
sociedade globalizada, cresce a preocupação pelos efeitos colaterais decorrentes do
crescimento do mercado de tecnologia da informação e comunicação. Além dos
benefícios que evidentemente proporcionam, sua expansão exponencial passa a
exigir da sociedade uma reflexão mais aprofundada sobre a implementação de
medidas e controles capazes de efetivamente tutelar numa perspectiva de
equilíbrio43.
A intervenção estatal se mostra indispensável a garantir a continuidade de
investimentos, porquanto o mercado não se mostra capaz de regular eficientemente
a oferta de obras intelectuais. Afinal, se um agente do mercado investe no
desenvolvimento de determinada tecnologia, que, por suas características, resulta
em altos custos de investimento, mas facilidade de cópia, o mercado será
insuficiente para garantir a manutenção do fluxo de investimento44.
Em princípio, e em linhas gerais, os direitos autorais têm a nobre função de
remunerar os autores por sua produção intelectual. Do contrário, os autores teriam
que viver, em sua maioria, subsidiados pelo Estado, o que tornaria a produção
cultural infinitamente mais difícil e injusta.
Em contrapartida, os direitos autorais não podem ser impeditivos do
desenvolvimento cultural e social. É na interseção dessas premissas, que o Estado
deve se dedicar para conjugar os dois aspectos numa economia capitalista,
globalizada e digital, processo no qual a função social tem papel preponderante45.
42 VARELLA, Marcelo Dias e MARINHO, Maria Edelvacy Pinto. Propriedade Intelectual na OMC. Revista do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, Brasília, v. 2, n. 2, p.136-153, jul./dez. 2005, p. 137-138.
43 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; CATTA PRETA, Suzana Maria Pimenta. Função
Solidário-Consumerística da Empresa: um estudo sobre a Lei Estadual Paulista 13.576/09.
44 BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
21
Dentre as garantias fundamentais pétreas, a Constituição Federal assegura, no
artigo 5º, incisos XXII e XXIII, o direito de propriedade, devendo esta atender a sua
função social. Adiante, inaugurando o capítulo a respeito dos princípios gerais da atividade econômica, o artigo 170 da Carta Magna estabelece que a ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados determinados princípios, entre os quais se destaca a função social da propriedade.
Em meio à inafastável necessidade de ponderação de interesses, o jornalista,
compositor e produtor musical, Nélson Motta, alerta: “Desejam colocar a cultura sob
o controle do Estado e nada sabem sobre o mundo digital e a internet46”.
A doutrina apresenta exemplos nos quais a literalidade da lei autoral brasileira
desautoriza uma série de condutas, que se mostram em conformidade com a
funcionalização do instituto da propriedade.
Dentre as hipóteses mais comentadas, observa-se que pela LDA, não seria
permitido fazer cópia de livro que, mesmo com edição comercial esgotada, ainda
esteja no prazo de proteção dos direitos autorais. Todavia, pelos princípios
constitucionais do direito à educação (art. 6º, caput, e art. 205), do direito de acesso
à cultura, à educação e à ciência (art. 23, inciso V) e, mais importante, pela
determinação de que a propriedade deve atender a sua função social (art. 5º, inciso
XXIII), deve-se admitir a cópia do livro, ainda que protegido, em obediência à lógica
jurídica, que determina a subordinação da lei ordinária (LDA) aos princípios
constitucionais.
Um dos mais interessantes documentários sobre as questões que permeiam a
propriedade intelectual, e especialmente, a autoria, o filme “¡Copiad, Malditos! –
46
22
derechos de autor en la era digital”47, dirigido pelo espanhol Stéphane M. Grueso e
produzido pela Elegant Movies Film em parceria com RTVE, a televisão pública
espanhola.
Além de discutir as mudanças nas formas de produção e circulação da cultura pelas
redes digitais, questionando o significado da palavra “copiar” para várias pessoas, o
filme é também um experimento, na medida em que registra a busca por uma
licença livre para sua própria distribuição, que, ao final, foi realizada por meio de
uma licença Creative Commons.
Toda a burocracia que envolve o direito autoral espanhol é apresentada, desde a
consulta a advogados especializados com vistas a liberar item por item da produção,
passando pelo trabalho de cada parte da equipe, até a complicada liberação dos
direitos da televisão co-produtora.
Outros exemplos apontados prestigiam e configuram a efetivação do princípio da
função social dos direitos autorais, ainda que aparentemente contrários à lei, como
se verifica nas hipóteses de cópia para a preservação da obra, inclusive por meio de
digitalização, a representação e execução de qualquer obra em instituições de
ensino públicas ou gratuitas, desde que sem fins lucrativos, a autorização de cópia
privada de obra legitimamente adquirida, e a permissão de representação e
execução de obras em âmbito privado48.
Mutatis mutandis, convém colacionar a contribuição de Vladmir Oliveira da Silveira e Suzana Maria Pimenta Catta Preta acerca da função solidária:
Dada a função social da propriedade inserida no Artigo 5º, XXII, no Artigo 182, § 2, e no Artigo 186 da Constituição Federal de 1988, conjugada às previsões dos incisos II, V e VI do Artigo 170, surge uma função não apenas social, mas solidária da empresa frente ao mercado de consumo, bem como do fornecedor em sentido lato.
Esta visão decorre de um novo conceito sobre o papel solidário exercido pelo fornecedor. Tal papel não é mais de singelo contratante, mas o de um
47 Todo o processo de produção do documentário está registrado em detalhes no blog: <http://copiadmalditos.blogspot.com.br/p/home-que-es-esto.html>. Acesso em 22 de fevereiro de 2012.
23 agente multifacetado frente ao amplo espectro do mercado de consumo, cujo universo de interesses é incomensurável49.
Por certo que a função solidária da propriedade intelectual impõe deveres
acessórios à mera disponibilização da criação intelectual em meio físico, garantindo
à sociedade hipercomplexa, formas de circulação das informações, com vistas à
necessária promoção de cultura e conhecimento.
Acerca do impasse que se verifica entre a impossibilidade de contenção do
desenvolvimento tecnológico e a necessidade de regulamentação e tutela,
sobretudo dos meios eletrônicos, Maria Eugênia Finkelstein pontifica:
O tempo confirmou que uma regulamentação extensa e compreensiva, antes cogitada, foi e permanece irreal frente à velocidade com que a atividade comercial se desenvolve e se reinventa nesta seara, o que efetivamente não permite uma regulamentação que não acompanhe sua evolução, sob pena de gerar uma estagnação na atividade comercial e social que caracteriza a sociedade contemporânea50.
Em sintonia com os preceitos constitucionais e com a necessidade de equacionar
proteção autoral, exploração econômica e difusão cultural, o Anteprojeto que “Altera
e acresce dispositivos à Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que altera,
atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais, e dá outras providências”,
incluiu um parágrafo no artigo 28, estabelecendo, como objeto fundamental da
proteção normativa, do ponto de vista econômico, a garantia das vantagens
patrimoniais resultantes da exploração das obras literárias, artísticas ou científicas
em harmonia com os princípios Constitucionais da atividade econômica.
49
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; CATTA PRETA, Suzana Maria Pimenta. Função
Solidário-Consumerística da Empresa: um estudo sobre a Lei Estadual Paulista 13.576/09.
24
2 O DIREITO AUTORAL
“O homem nasce original e morre plágio51”.
O Direito de Autor pode ser compreendido como o conjunto de prerrogativas que a
lei reconhece a todo criador intelectual sobre suas produções literárias, artísticas ou
científicas, com certa originalidade, em princípio de ordem extrapecunária, sem
limitação de tempo, ou de ordem patrimonial, ao autor, durante toda a sua vida, com
o acréscimo, para os sucessores indicados na lei, do prazo por ela fixado52.
A consagração do Direito Autoral ocorreu em função da doutrina dos direitos
individuais, no século XVIII, e é apresentado pela doutrina como um ramo do direito
privado, ainda que entrecortado por normas de ordem pública para atender às
finalidades de regular as relações jurídicas advindas da criação e da utilização
econômica de obras intelectuais, estéticas e compreendidas na literatura, nas artes
e nas ciências53.
“Direito autoral é o que tem o autor de obra literária, científica ou artística, de ligar o seu nome às produções do seu espírito e de reproduzi-las, ou transmiti-las. Na primeira relação, é manifestação da personalidade do autor; na segunda, é de natureza real, econômica54”.
Um dos traços distintivos entre a propriedade industrial e o direito autoral é a
finalidade da criação. Em se tratando de objetos de concessão de patentes, e,
portanto, tutelados pela propriedade industrial, constituem-se de invenções ou
modelos de utilidade que, em regra, costumam ter por finalidade a solução de um
problema técnico. A título ilustrativo, o telefone foi inventado com a finalidade de
51 FERNANDES, Millôr.
52 CHAVES, Antônio. Direito de Autor: princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p.17. 53
25
permitir o contato entre as pessoas, evitando o problema de deslocamento de um
lugar a outro para esta comunicação55.
Em contrapartida, a composição de uma música ou a elaboração de uma escultura
ou uma pintura não tem a finalidade de solucionar qualquer problema técnico. O que
se pretende com essas obras é tão somente causar emoção, estimular o deleite
humano, o encantamento56.
Ainda acerca das peculiaridades do direito autoral, Antônio Chaves observa que a
distinção entre o direito autoral e os demais direitos de propriedade material se
revela pelos modos de aquisição originários e derivados. Tal se verifica porque o
direito autoral só surge para o autor mediante a criação da obra, e não existe
perfeita transferência entre cedente e cessionário, uma vez que a obra intelectual
não sai completamente da esfera de influência da personalidade de quem a criou,
em decorrência da manutenção dos direitos morais57.
Ao adquirir um bem seu titular exerce sobre ele as faculdades de usar, gozar, dispor
e reivindicar. Mas, quando se trata de direito autoral, faz-se necessário apontar uma
peculiaridade que constitui a diferença básica entre a titularidade de um bem de
direito autoral, considerado bem móvel e a titularidade dos demais bens: a incidência
da propriedade sobre o objeto, não sobre a criação. A única exceção se encontra no
artigo 77 da LDA, que prevê, salvo convenção em contrário, que o autor de obra de
arte plástica, ao alienar o objeto no qual ela se materializa, transmite o direito de
expô-la, mas não transmite ao adquirente o direito de reproduzi-la.
Outro aspecto a ser considerado no âmbito do direito autoral, definido pela
Organização Mundial da Propriedade Industrial – OMPI, é a compensação pela
atividade intelectual.
“Por derecho de autor se entiende un conjunto de derechos exclusivos encaminados a la protección de las obras literarias y artísticas. La finalidad
55 PARANAGUÁ, Pedro, BRANCO, Sérgio. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Editora FGV Direito, 144 p. Série FGV Jurídica, 2009, p. 30.
56
Excepcionando a regra encontram-se os sofwares, ou programas de computador, criações com função francamente utilitária protegidas por direito autoral.
26 del derecho de autor es promover lãs ciencias, la cultura y las artes. Para ello se ofrece una compensación a los creadores de dichas obras y se trata de llegar a un equilibrio entre los derechos de esos creadores, los derechos de los empresarios, como los editores, los organismos de radiodifusión, las compañías discográficas, etc. y los derechos del público58”.
As conquistas tecnológicas impuseram um ritmo complexo na vida contemporânea,
impactando, e porque não dizer, dificultando a análise e a defesa dos direitos
autorais. A título exemplificativo, pode-se mencionar que até meados do século XX,
a qualidade da cópia não autorizada de obras de terceiros, por exemplo, era sempre
inferior à do original, sendo feita por mecanismos nem sempre acessíveis a todos.
A cultura digital — cujo melhor exemplo é a internet —, tornou possível a qualquer
pessoa que tenha acesso à rede mundial de computadores, acessar, copiar e
modificar obras de terceiros, sem que nem mesmo seus autores possam exercer
qualquer tipo de controle sobre isso. Tal importa em afirmar que a conduta da
sociedade contemporânea tem desafiado os preceitos estruturais dos direitos
autorais, pois diariamente são feitas cópias de músicas, filmes, fotos e livros
mediante o download das obras da internet, contrariamente à literalidade da lei59.
No final de 2006, a International Federation of the Phonographic Industry (IFPI —
Federação Internacional da Indústria Fonográfica) e a Associação Brasileira de
Produtores de Discos (ABPD) anunciaram a intenção de processar judicialmente
usuários da internet que disponibilizem grande número de músicas na rede. Vê-se,
nesse passo, que a grande questão a ser analisada no caso dos direitos autorais é a
busca pelo equilíbrio entre a defesa dos titulares dos direitos e o acesso da
sociedade ao conhecimento60.
58“Por direito de autor se entende um conjunto de direitos exclusivos determinados à proteção das
obras literárias e artísticas. A finalidade do direito de autor é promover as ciências, a cultura e as artes. Por isso se oferece uma compensação aos criadores de tais obras e se trata de alcançar um equilíbrio entre os direitos desses criadores e os direitos dos empresários, como os editores, os organismos de radiodifusão, as empresas discográficas, etc., e os direitos do público”.
59 PARANAGUÁ, Pedro, BRANCO, Sérgio. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Editora FGV Direito, 144 p. Série FGV Jurídica, 2009, p. 21-22.