Pesquisas em Educação Musical Humanizadora: refletindo sobre conceitos e
metodologias
Murilo Ferreira Velho de Arruda1, Ilza Zenker Leme Joly2
1 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil. mfvarruda@gmail.com 2 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil. ilzazenker@gmail.com.
Resumo. O objetivo deste artigo foi agregar estudos em educação musical realizados na linha de pesquisa
Práticas Sociais e Processos Educativos do Programa de Pós-‐Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, no interior de São Paulo, Brasil. O eixo central escolhido para seleção das pesquisas foi a prática e ensino musical coletivo. Desta forma foram selecionadas seis dissertações de mestrado: Joly (2007), Sanchez (2009), Fiorussi (2012), Oliveira (2014), Galon (2015) e Arruda (2016); e uma tese de de doutorado: Martins (2015). As pesquisas se fundamentam principalmente nas obras do educador brasileiro Paulo Freire e por isso partilham de uma compreensão de educação musical em prol da humanização. Consideramos que as escolhas metodológicas destas pesquisas se alinham aos fundamentos teóricos da educação musical humanizadora ao compreender o convivio, a amorosidade e o diálogo enquanto elementos essenciais das práticas que se pretendem humanizadoras, incluindo o ato de pesquisar.
Palavras-‐Chave: processos educativos; educação musical; humanização; prática musical coletiva; convivência.
Research in Music Education humanizing: reflecting about concepts and methodologies
Abstract. This paper aims to aggregate studies in music education made in research group "Social Practices
and Educative Processes" from Education Postgraduation Program at Federal University of São Carlos, in São Paulo state, Brazil. The central aspect chosen to select the researchs was collective music practice and collective music education. From this, six masters dissertations were selected: Joly (2007), Sanchez (2009), Fiorussi (2012), Oliveira (2014), Galon (2015) and Arruda (2016); and a doctoral thesis: Martins (2015). The studies are grounded mainly in the works of educator Paulo Freire and share a comprehension of music education for the humanization. We consider that the methodological choices on those researchs are aligned to the theoretical foundation of humanizing music education in comprehending coexistence, lovingness, dialogue as essential elements on practices that intended to be humanizing, including the research making.
Keywords: educative processes; music education; humanization; collective musica practice; coexistence;
1 Introdução
Este estudo tomou como base pesquisas da Educação Musical, desenvolvidas no âmbito da linha de pesquisa “Práticas Sociais e Processos Educativos”, que tivessem como eixo central a prática e ensino musical coletivo, a convivência em espaços de prática musical e processos humanizadores que se dão através das relações humanas na música. Partindo então dessa ideia, foram selecionadas sete pesquisas (sendo seis dissertações de mestrado e uma de doutorado) realizadas na linha de pesquisa anteriormente citada, que pertence ao Programa de Pós-‐Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, interior de São Paulo, Brasil.
As pesquisas selecionadas podem ser apreciadas na tabela a seguir:
Tabela 1. Lista com nomes das pesquisas, respectivos autores/as e datas das publicações.
Autor / Autora Título Nível Ano
Maria Carolina Leme Joly
Convivência em uma orquestra comunitária: um olhar para os processos educativos
Dissertação de Mestrado em Educação
2007 Melina Fernandes
Sanchez Dança e música: por uma educação humanizadora em prática musical coletiva
Dissertação de
Mestrado em Educação 2009 Eduardo Fiorussi Roda de choro: processos
educativos na convivência entre músicos
Dissertação de Mestrado em Educação
2012 Pedro Augusto
Dutra de Oliveira
Por uma educação musical humanizadora: o ensino coletivo de música a várias mãos
Dissertação de Mestrado em Educação
2014 Mariana Galon da
Silva Criação musical coletiva com crianças: possíveis contribuições para processos de educação humanizadora
Dissertação de
Mestrado em Educação 2014 Denise Andrade de
Freitas Martins
Desvelando para ressignificar: processos educativos decorrentes de uma práxis musical dialógica intercultural
Tese de Doutorado em Educação
2015
Murilo Ferreira Velho de Arruda
Prática musical coletiva na Orquestra de Metais Lyra Tatuí: contribuições para o
desenvolvimento humano
Dissertação de Mestrado em Educação
2016
A partir destes trabalhos, temos como objetivo central discutir os conceitos mais significativos
abordados em contextos de práticas e ensino musicais coletivos e sistematizar as escolhas metodológicas feitas para estes estudos. Para isso, apresentaremos o referencial teórico que se
constitui de: práticas sociais e processos educativos, processos educativos humanizadores, e práticas sociais e processos educativos humanizadores em música.
2 Referencial Teórico
2.1 Práticas Sociais e Processos Educativos
Considerando que estamos enfocando trabalhos oriundos de um grupo de pesquisa denominado “Práticas sociais e processos educativos” é natural que o primeiro conceito abordado seja sobre a compreensão específica que vem deste grupo. As principais perguntas que guiam os estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa como um todo dizem respeito a “como as pessoas se educam?”, “onde?”, e “em que relações?”. O recorte do presente artigo diz respeito às pesquisas desenvolvidas no âmbito das práticas sociais e musicais, mas que tem por pano de fundo as relações humanas entre pessoas que fazem música em diferentes contextos. Por isso começamos a falar sobre o contexto geral das práticas sociais.
Partimos do pressuposto de que somos seres sociais. Em outras palavras, nossa vida é significada e ressignificada através de nossas relações (entre pessoas e o ambiente). A este convívio entre pessoas unidas por um objetivo comum, chamamos "práticas sociais". Araújo-‐Olivera (2014), considera que:
o ser humano nasce de uma mulher e um homem, para advertir que não nasce sozinho; nasce e a partir desse momento o ser é em intersubjetividade [...]. Nasce no seio de uma família, de uma cultura, de um mundo de significados que são próprios e particulares. Isto nos permitirá entender que esse 'seu mundo' não é um mundo somente de um eu, mas do nós (p. 71-‐ 72, grifos da autora).
Para Oliveira et al. (2014), no artigo intitulado Processos educativos em práticas sociais, o conceito de práticas sociais envolve interações entre pessoas e os ambientes naturais, sociais e culturais onde eles vivem ou estão, por um motivo ou outro, inseridos. Segundo os/as autores/as, as práticas sociais “desenvolvem-‐se no interior de grupos, de instituições, com o propósito de produzir bens, transmitir valores, significados, ensinar a viver e a controlar o viver; enfim, manter a sobrevivência material e simbólica das sociedades humanas” (p. 33). Desta maneira aprender a falar, tocar um instrumento musical e gostar ou não de determinado tipo de música, são exemplos de aprendizados ou processos educativos que se desenvolveram através de práticas sociais, como o brincar, tocar numa orquestra, dançar, cozinhar etc.
O educador Paulo Freire (2014) afirma que: "Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo" (p. 96). De modo que educação não é algo que se doa, mas algo que se constrói, sempre coletivamente. Além disso, a educação é um processo contínuo, que acontece ao longo da vida:
...não é possível ser gente sem, desta ou daquela forma, se achar entrenhado numa certa prática educativa. E entranhado não em termos provisórios, mas em termos de vida inteira. O ser humano jamais para de educar-‐se. Numa certa prática educativa, não necessariamente a de escolarização, decerto bastante recente na história, como a entendemos (Freire, 2001, p. 13)
Neste processo de educar e educar-‐se em comunhão, não é possível se "deseducar" ou "reeducar". Isto implica também considerar que os conhecimentos não devem ser hierarquizados: um conhecimento útil e outro sem utilidade; um de grande importância um de menor importância, e assim por diante. É sabido que historicamente, foram valorizados desigualmente conhecimentos e consequentemente a vida de pessoas e grupos.
A importância de se estudar os processos educativos em práticas sociais, além de contrapor esta hierarquização, também é afirmar constantemente que em toda prática social decorrem processos educativos.
Ao identificar e valorizar processos educativos em práticas sociais, voltamos um olhar crítico ao estabelecido monopólio pedagógico de sistemas educacionais, que pretendem, muitas vezes, deter o único meio pedagógico capaz de educar (Oliveira et al., 2014, p. 38).
Portanto, os processos educativos estão além das salas de aula, das escolas e universidades: estão em todas as nossas práticas sociais. E é por meio da Educação que nos construímos buscando ser
mais, conceito que se relaciona com a humanização que será abordada no seção seguinte. 2.2 Processos educativos humanizadores
Compreendemos a partir da leitura de Paulo Freire e Ernani Maria Fiori que a verdadeira educação é um ato político a favor do sujeito, para que este seja verdadeiramente sujeito de sua própria história, que atua com consciência crítica, de forma autônoma e em busca do ser mais, que é vocação de todo ser humano. Nesta busca, o diálogo tem papel central. Aqui o diálogo entendido como o encontro de
pessoas, mediatizadas pelo mundo, que se colocam em constante ação e reflexão para transformação do mundo, para sua humanização. O diálogo funda-‐se no amor, na humildade, fé nas pessoas, e se faz uma relação horizontal.
Fiori (2014) propõe que para que haja libertação, ou seja, para retornar à condição de sujeito, é preciso "romper as estruturas socioeconômicas que o coisificam" (p. 64). Neste sentido, o termo "coisificação" se opõe à "humanização". O autor afirma que a "coisificação" está relacionada com a alienação: "O sujeito não se reencontra mais no mundo que ajuda a reconstruir: nele, nesse mundo desumanizado, fica retido como objeto de outro sujeito: aliena-‐se" (p. 64).
Neste trabalho estamos selecionamos pesquisas que buscam processos educativos humanizadores em práticas sociais musicais como veremos a seguir.
2.3 Práticas sociais e processos educativos humanizadores em música
Partimos de uma perspectiva da educação musical que não visa à profissionalização de instrumentistas. Para a educação musical aqui exposta, esta é uma possibilidade, não um objetivo. Ela busca ser acessível a todas as pessoas, acreditando que podem favorecer também a apreciação, expressão, comunicação e lazer. Todas as pessoas tem a capacidade para aprender música e gostar
da música que fazem. As pessoas podem querer aprender música, também são sem o objetivo de
tornarem instrumentistas e mesmo assim se beneficiar profundamente de uma ação em educação musical.
À educação musical, que busca não apenas o desenvolvimento técnico-‐musical, mas a formação humana, com base no ser mais, enquanto vocação de todo o ser humano, se dá o nome de humanizadora. Segundo Galon et al. (2013, p. 6) a educação musical humanizadora:
[...] é inerente ao ensino musical de excelência, ou seja, sem humanização não é possível desenvolver um ensino musical qualificado. Ambas não se separam, pois só o sujeito humanizado desenvolve sua autonomia, dialoga, pode ser um apreciador crítico, consciente de sua técnica, criativo, que ouve o outro, toca com o outro, aprende com o outro, aberto a experiências musicais e não apenas a
informações musicais, autônomo de suas escolhas e produtor de cultura.
É necessário frisar que isto tal perspectiva vai na direção contrária ao caráter redentor que é geralmente atribuído a música. Por si só, ouvir, estudar e fazer música pode tanto favorecer a alegria, a auto-‐estima, autonomia, respeito, amorosidade, quanto desfavorecer. As pesquisa por nós destacadas destacam, antes de tudo, as relações que se dão através e por causa da prática e ensino musical coletivo. Para isso, a pessoa educadora assume um papel fundamental, não só guiando pelos
caminhos musicais, mas sendo uma referência de vida para os/as estudantes. A todo momento se
aprende sobre sua coerência entre o que se faz e o que se diz. O educador musical Carlos Kater (2004) nos ajuda a compreender isto, dizendo:
[...] o educador musical, como qualquer professor, presta-‐se, querendo ou não, como modelo de referência para seus alunos, não só do ponto de vista musical (sua competência técnico-‐específica, digamos), mas também enquanto pessoa humana que é. Sua postura singular, maneira de ser e de estar, opiniões e comportamentos atuam ininterruptamente para eles como viva ilustração.
O professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no
quadro da rigorosidade do pensar certo1, nega, como falsa, a fórmula farisaica do
"faça o que mando e não o que eu faço". Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo.
Consideramos que esta busca pela coerência que envolve o pensar certo, faz parte da busca conjunta pela humanização. Pensar e agir sobre suas ações, colocar em suspensão suas certezas, assumir-‐se inconclusos, fazem parte deste pensar certo. Por fim, destacamos que a excelência musical e a formação humana coexistem em uma educação musical humanizadora. Não é possível conceber uma educação musical humanizadora que utilize a música para formação humana, sem critérios, sem rigorosidade. Da mesma forma, não é possível conceber uma prática musical de excelência deixando de lado a formação dos indivíduos. Excelência musical e formação humana são interdependentes, ou seja uma contribui e justifica a concretização da outra.
A partir deste referencial, mostraremos a seguir as escolhas metodológicas tomadas em cada estudo selecionado.
3 Educação Musical Humanizadora e metodologias de pesquisa
Todas as pesquisas tiveram como ponto de partida metodológico a investigação qualitativa, que segundo Oliveira (2014), é aquela que tem como direção principal a compreensão dos fenômenos narrados a partir da perspectiva dos sujeitos colaboradores da pesquisa. Ainda segundo este autor, a investigação qualitativa é, em especial, um modo específico de olhar. Os pesquisadores passam então, a dar atenção àquilo que emerge pouco a pouco dos sujeitos pesquisados, registrando tanto as ações previsíveis como as imprevisíveis. As contribuições que esse tipo de pesquisa pode trazer estão baseadas na procura coletiva de conhecimentos que possibilite o crescimento de todos os envolvidos, em um contexto em que todos aprendem com todos, por meio de construção compartilhada de saberes e experiências.
E é desse contexto que as pesquisas selecionadas decorrem. Todas as sete pesquisas trazem como ponto de partida essa comunhão com os sujeitos pesquisados, partindo do princípio de todos trazem conhecimentos significativos das suas experiências de vida. Então, pesquisador e sujeitos estão aqui colocados em igualdade de importância, derrubando qualquer muro hierárquico que possa destacar o pesquisador como aquele que tem um determinado conhecimento, mais importante e necessário do que aquele que colabora como sujeito na pesquisa.
Joly (2007) realizou sua pesquisa "Convivência em uma orquestra comunitária: um olhar para os
processos educativos" com a Orquestra Experimental da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar), criada em 2001, fruto de trabalho de musicalização iniciado em 1989, que atendia a comunidade universitária e a comunidade da cidade de São Carlos e região, interior de São Paulo. Essa pesquisadora destacou como pontos significativos a riqueza das trocas de saberes presentes em uma orquestra cujo cotidiano se mostra atento tanto aos resultados musicais como também ao envolvimento e crescimento pessoal de seus participantes.
Também com a Orquestra Experimental da UFSCar, Sanchez (2009) realizou sua pesquisa de mestrado "Dança e música: por uma educação humanizadora em prática musical coletiva",
1 Para Freire (2015), pensar certo "demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos fatos. Supõe a disponibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-‐lo. [...] Do ponto de vista do pensar certo não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente" (p. 35)
buscando discutir como a vivência e reflexão de atividades em dança podem contribuir para a percepção de si mesmo, do outro e do significado da prática musical em contexto de Orquestra Comunitária de modo a se constituir em uma Educação Humanizadora. Foram realizadas rodas de conversa e sete intervenções que adotaram a Metodologia de Ensino Arte no Contexto/Dança. A exemplo dos outros pesquisadores, Sanchez (2009) destaca a escuta e o diálogo com o outro como pontos valorizados no decorrer da pesquisa. Diz a autora que foi preciso “re-‐ver, re-‐escutar, re-‐ pensar, re-‐considerar e re-‐avaliar concepções, valores e certezas na busca pela coerência entre o que se vive fora e dentro da pesquisa.” Os aspectos considerados mais relevantes foram: reconhecimento do espaço pessoal e da sua relação com o espaço coletivo, ampliação do significado da prática musical para além dos interesses e motivações individuais, extensão das aprendizagens geradas para a vida, conscientização da importância dos silêncios, das pausas, dos gestos, dos olhares, percepção das sutilezas, semelhanças e diferenças existentes entre seres humanos, percepção da responsabilidade individual e no grupo, valorização da singularidade e da diversidade humana. Fiorussi (2012), em sua pesquisa denominada “Roda de Choro: processos educativos na convivência
entre músicos”, teve por objetivo descrever e compreender os processos educativos decorrentes das
interações entre músicos de uma “Roda de Choro”2 para perceber como ocorrem, dialogicamente as trocas de experiências, de olhares, de gestos e como decorrem dessas ações os processos educativos. Esse pesquisador aprofundou os estudos em um espaço de convivência onde se encontrar pessoas de diferentes idades, classes sociais, sexos, profissões, com finalidade de tocar e/ou ouvir juntos choros e outros ritmos da música brasileira. Percebeu então que aprendizagens acontecem com constância e as experiências de cada um se somam e são compartilhadas. Dos aspectos mais relevantes levantados por essa pesquisa, um deles diz respeito aos processos educativos que trazem as possibilidades de ampliação de consolidação da cultura, da memória, da expressão, do diálogo, da arte, do olhar, do sentir, do parar, da intergeracionlidade, do resgate da história, da generosidade, do respeito, do ouvir a si e ao outro.
Oliveira (2014) realizou sua pesquisa "Por uma educação musical humanizadora: o ensino coletivo
de música a várias mãos" em um programa sociocultural que oferece gratuitamente o ensino
coletivo de música para crianças e adolescentes de 6 a 18 anos, em uma cidade no interior de São Paulo.
Um dos aspectos ressaltados por Oliveira (2014) é de que não há educação ou educação musical sem o outro, sem que haja uma relação de convívio e compartilhamento de saberes. O que valoriza os processos educativos humanizadores é justamento o encontro intersubjetivo entre sujeitos e sujeitos, sujeitos e pesquisador. Para este pesquisador a grande aprendizagem veio por meio de uma escuta e um olhar atento às vozes e as fazeres musicais de seus colaboradores. As crianças e jovens mostraram nas suas ações, nas relações intersubjetivas os principais aspectos dos processos educativos vivenciados no decorrer da pesquisa. São eles: a colaboração, o aprendizado coletivo, os diálogos verbais e musicais, a importância em se ouvir o outro, a criação musical, a tomada de decisões, a satisfação e alegria em ensinar e em se reunir para fazer música, o desentendimento e a busca por soluções, o expressar de opinião.
Martins (2015) realizou sua pesquisa "Desvelando para ressignificar: processos educativos
decorrentes de uma práxis musical dialógica intercultural", no projeto de extensão universitária
"Escrevendo o Futuro -‐ (Re) cortando papéis, criando painéis", na cidade de Ituiutaba, interior de Minas Gerais. Tal projeto envolve três instituições: Universidade do Estado de Minas Gerais, Conservatório Estadual de Música “Dr. José Zóccoli de Andrade”, e a escola de educação básica, Escola Estadual Governador Bias Fortes. A análise dos dados levantados na intervenção e registrados
2 Roda de Choro é uma prática musical coletiva, onde as pessoas se encontram para tocar músicas de um repertório popular
em diários de campo possibilitou a construção das seguintes categorias: a) Fortalecimento da Identidade: “Nossa, ele é forte, é o Zumbi, guerreiro negro igual nóis!”; b) Respeito ao outro: “Eu tava sentindo muito à vontade para tocar música!”; c) Desejo de ser mais: “Quando esse projeto entrou, mudou a minha vida inteirinha [...]. Agora fiquei só nas música!". Com inspiração na Fenomenologia, as entrevistas, fotos, filmagens, desenhos e textos escritos pelos/as participantes colaboradores/as da pesquisa também fizeram parte dos dados coletados.
Galon (2015) realizou sua pesquisa "Criação musical coletiva com crianças: possíveis contribuições
para processos de educação humanizadora" no projeto social Tocando à Vida, na cidade de Ribeirão
Preto, interior de São Paulo, que oferece aulas coletivas gratuitas de instrumentos musicais para crianças de 6 a 13 anos. Um dos aspectos apontados por Galon (2015) foi de que a pesquisa qualitativa não tem a pretensão de uma neutralidade científica, mas que esse fator não reduz sua qualificação. Diz ainda a autora que esse tipo de pesquisa proporcionou a ela um modo específico de olhar e ver o mundo. A partir da leitura do material se realizou a categorização dos dados resultando nos seguintes temas: a) Conflito e competitividade; b) Diálogo; c) Autonomia e compromentimento; d) Convivência, partilha e colaboração; e) Musicalidade criativa; f) Transformação. E a autora conclui que os processos de criação coletiva, desenvolvidos no decorrer da pesquisa, ampliaram as possibilidades de desenvolvimento humano das crianças envolvidas, possibilitando um fazer musical mais significativo, essencial e possível.
Arruda (2016) realizou sua pesquisa "Prática musical coletiva na Orquestra de Metais Lyra Tatuí:
contribuições para o desenvolvimento humano", junto à Orquestra de Metais Lyra Tatuí (Lyra
Tatuí), um grupo criado e mantido pela trabalho voluntário do músico Adalto Soares e da musicista Silvia Zambonini, trompista e percussionista, respectivamente. O projeto criado em 2002, acontecia na cidade de Tatuí, interior de São Paulo e contava com aproximadamente 80 integrantes entre os 5 aos 24 anos que aprendiam a tocar instrumentos de metal e percussão, através de uma prática musical coletiva. O grupo tinha como objetivo inicial ensinar música para as crianças e adolescentes que estudavam na escola pública da cidade. Os encontros para o desenvolvimento da pesquisa aconteceram em três momentos diferentes: nos ensaios, apresentação musical e momentos de convivência mais intensa onde o pesquisador ficou hospedado na casa dos idealizadores da Lyra Tatuí. Os dados foram discutidos a partir das duas categorias: a) Humanização: em busca do ser mais; b) Aprendendo, ensinando e fazendo música. Arruda (2015) ressalta os aspectos que surgiram como mais significativos no caminho percorrido, muitos deles relacionados ao desenvolvimento de características relevantes para a convivência entre os sujeitos e o mundo. Dentre esses aspectos ele destaca: saber escutar, amorosidade, respeito, compromisso, liderança, autonomia e cuidado afetivo.
É possível destacar então que palavras como convivência, diálogo, compromisso, colaboração, fortalecimento da identidade, respeito ao outro, partilha, autonomia, diálogos verbais e musicais, tomada de decisões, satisfação e alegria em ensinar e em se reunir para fazer música, desentendimento e a busca por soluções, expressar de opinião, entre outras foram as mais constantes nas pesquisas estudadas. Em busca dos processos humanizadores ou da humanização, podemos retomar o que foi destacado por Galon (2014) quando afirma que a humanização traz em seu bojo o diálogo, a experiência, a autonomia, a produção cultural, a crítica, a conscientização, enfim, a libertação de processos de desumanização.
4 Considerações
Os ambientes onde as pesquisas foram realizadas tem uma forte conexão com aquilo que pensam e vivem os pesquisadores. Oliveira (2014), Galon (2015), Martins (2015) eram professor e professoras
de música nos ambientes pesquisados; Joly (2007) tocava desde criança na Orquestra Experimental da UFSCar e depois passou a dar aulas e regê-‐la; Fiorussi (2009) organizava e participava ativamente das rodas de choro como violonista; Sanchez (2009) antes de realizar a intervenção, esteve junto a orquestra citada por dois meses como observadora participante, tocando flauta doce, onde permaneceu durante toda a fase de intervenção e mesmo após a finalização da pesquisa. Arruda (2016) conheceu a Orquestra de Metais Lyra Tatuí a partir de uma visita de dois dias para conhecer as dinâmicas do ensaios, já que estava participando da construção de uma Fanfarra em sua cidade. Mesmo depois da pesquisa continuou viajando para Tatuí (a fim de estudar e visitar a família) e se encontrando com as pessoas que participaram da pesquisa. Deste modo, a convivência e estar próximo ao ambiente e sujeitos de pesquisa são aspectos fundamentais para pesquisas em Educação Musical Humanizadora. Sobre convivência, partilhamos das afirmações de Oliveira e Stotz (2004):
Conviver é mais do que visitar e, não sendo algo que possa ser delegado, requer um envolvimento pessoal de observação, questionamento e diálogo. Somente olho no olho com o outro e, com ele convivendo, é que se pode detectar e compreender posições políticas e informações que nos são fornecidas sobre dada realidade. Em todas as pesquisas foram utilizados os diários de campo como principal instrumento de coleta de dados.
Os estudos aqui selecionados evidenciam a não neutralidade ao fazer pesquisa. Conscientes de que pesquisar também é um ato político, que demanda escolhas (desde o tema, escolha do referencial teórico, a análise dos dados etc.) as pessoas pesquisadoras escrevem sobre suas trajetórias de vida a fim de evidenciar suas compreensões acerca do tema. Compreendemos que isto não reduz a qualificação da pesquisa, mas direciona o estudo para o diálogo entre saberes e conhecimentos. Vimos que as pesquisas destacaram aspectos importantes para as relações intersubjetivas e para a construção de pessoas mais sensíveis à convivência umas com as outras. O destaque para as contribuições do recorte realizado para a escrita deste artigo é de como os pesquisadores, que se propõem e dispõem a pesquisa no âmbito da pesquisa qualitativa se envolveram de maneira profunda com seus sujeitos ou colaboradores. Percebemos que o ato de pesquisa não se faz sozinho, mas por meio de uma convivência intensa que extrapola os limites da academia, criando espaços de convivência e cumplicidade que se transformam em compromisso, diálogo e respeito.
Neste sentido, ao se realizar pesquisas em Educação, o diálogo com o grupo pesquisado é fundamental para promover processos humanizadores, que contribuam com as práticas sociais bem como para construção de conhecimento acadêmico. O diálogo é intrinseco ao ato de pesquisar, para que sejam realizadas estudos com sujeitos e grupos, em construção coletiva; e não para sujeitos, de forma impositiva. Reiteramos que o diálogo então funda-‐se no amor, na humildade, fé nas pessoas, e se faz numa relação horizontal.
Por fim, consideramos que ao agrupar estes estudos em Educação Musical, pudemos refletir acerca de alguns aspectos metodológicos de pesquisas que partem de uma perspectiva humanizadora. A coerência entre o que se faz e o que se fala, o diálogo como elemento fundamental, bem como a convivência, são elementos necessários para que a pesquisa seja também um momento de humanização para aqueles que dela participam (pesquisador/a e sujeitos). Esperamos que este artigo possa contribuir com outras áreas de conhecimento.
O olhar qualitativo nos permitiu ver nas “entrelinhas” das relações de cada pesquisador com seu contexto, nos permitindo afirmar que para pesquisar “qualitativamente” é preciso valorizar as relações humanas e se permitir entrar em campo de maneira generosa, afetiva e compromissada.
Referências
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