• Nenhum resultado encontrado

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS"

Copied!
58
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS

DA SUBJETIVIDADE DOS QUADROS À FICÇÃO DAS NARRATIVAS: UM DIÁLOGO ENTRE FRIDA KAHLO E CLARICE LISPECTOR

Gabriele Costa Viana

Rio de Janeiro 2021

(2)

DA SUBJETIVIDADE DOS QUADROS À FICÇÃO DAS NARRATIVAS: UM DIÁLOGO ENTRE FRIDA KAHLO E CLARICE LISPECTOR

Monografia submetida à Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Letras na habilitação Português/ Espanhol.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Diego

Rio de Janeiro 2021

(3)

Agradeço a Deus, por ter me ajudado até aqui e por ter me sustentado em todos os momentos dessa jornada.

Aos meus pais, Sandra Helena e Renato Ribeiro, que me apoiaram em toda minha vida escolar. Eles me ajudaram em todas as esferas da minha vida e me acalmaram nos momentos difíceis, assim como meu irmão, William Viana. Ingressar e me formar na UFRJ foram sonhos que vocês me ajudaram a tornar realidade.

Aos meus familiares, em especial à minha querida avó, Maria Hilda e as minhas tias Andréia Cristina e Denise Fernandes, que me ajudaram a permanecer na universidade.

À minha querida amiga, Sarayane Miranda, por estar comigo desde o primeiro dia de faculdade, por ter passado por todas minhas mudanças de áreas, até eu me encontrar na literatura comparada, por ter sido a primeira a ouvir e a apoiar minha pesquisa quando ainda era apenas uma idéia, serei eternamente grata por todo apoio. Ao meu grande amigo, Rômulo Fernandes, por embarcar em todos os meus devaneios ao decorrer do semestre, por sempre me ouvir e por estar presente em todos esses anos de UFRJ. Jéssica Corrêa e Thaís Fernanda que chegaram para completar minha graduação com muito alegria e companheirismo. Obrigada por todos esses anos, vocês se tornaram amigos para a vida, nossa amizade vai além dos portões da Faculdade de Letras.

À minha melhor amiga, Milena Ramalho, por ter vivido mais essa experiência ao meu lado. Ao meu companheiro e parceiro de vida, Gustavo Santana, por estar comigo nas horas boas e ruins, por seu apoio e por confiar em mim mais do que eu mesma. Você foi e é essencial. E a todos os meus amigos que estiveram ao meu lado durante todos esses anos.

Ao meu querido orientador, Marcelo Diego, por dispor seu tempo para escutar minhas ideias com toda atenção. Por passar seus conhecimentos e me instruir com todo carinho e dedicação. Obrigada por ter tornado minha pequena ideia em uma grande pesquisa que muito nos orgulha. Por último, mas de suma importância, aos meus queridos professores da escola básica. Em especial a Elisabeth Bragança e Pierre Marques por florescerem em mim a paixão pela língua portuguesa. À Danielle Souza que me inspira a ser uma professora mais humana e amiga. Ao Alan Ferreira, por me apresentar no ensino médio a Clarice Lispector, que hoje se tornou, junto a Frida Kahlo meu projeto de pesquisa.

(4)

A presente monografia tem como objetivo a realização de um estudo comparativo entre as obras de Frida Kahlo e Clarice Lispector, aproximadas pela teoria da psicanálise. Kahlo, por ser considerada artista surrealista, movimento que se baseia na teoria de Freud; e Lispector, por ser detentora de uma escrita enigmática, que gira em torno dos questionamentos da vida. Para tanto, foram analisadas quinze obras visuais de Frida Kahlo, contando com os esboços realizados em seu diário, além de seus escritos; e cinco obras visuais de Clarice Lispector, bom como trechos dos seus livros A descoberta do mundo e Água viva. Como substrato teórico, são utilizados os conceitos de "livro de artista" e "ecphrasis". A aplicação da metodologia aqui adotada tornará possível a percepção de características comuns às obras de duas artistas, a princípio distantes no tempo e espaço.

Palavras chaves: Literatura comparada, Frida Kahlo, Clarice Lispector, Psicanálise, Literatura,

(5)

Esta monografía tiene como objetivo realizar un estudio comparativo entre las obras de Frida Kahlo y Clarice Lispector, aproximadas por la teoría del psicoanálisis. Kahlo, por ser considerada una artista surrealista, movimiento basado en la teoría de Freud; y Lispector, por tener una escritura enigmática, que gira alrededor a las cuestiones de la vida. Para eso, se analizaron quince obras visuales de Frida Kahlo, contando con los bocetos realizados en su diario, además de sus escritos; y cinco obras visuales de Clarice Lispector, así como extractos de sus libros "A descoberta do mundo" y "Água viva". Como sustrato teórico se utilizaron los conceptos de "libro de artista" y "ecphrasis". La aplicación de la metodología aquí adoptada permitirá percibir características comunes a las obras de las artistas, al principio distantes en el tiempo y en el espacio.

Palabras Claves: Literatura Comparada, Frida Kahlo, Clarice Lispector, Psicoanálisis, Literatura, Artes Visuales.

(6)

Figura 1: Lágrimas de Coco……….14

Figura 2: Frutos de la tierra……….15

Figura 3: Los cocos……….. 15

Figura 4: Viva la vida………15

Figura 5: El marxismo dará salud a los enfermos ………...16

Figura 6: Lo que el agua me dio...17

Figura 7: Moisés o Núcleo solar………...19

Figura 8: La máscara………29

Figura 9: Gruta………..37

Figura 10: Medo...38

Figura 11: Pássaro da liberdade...39

Figura 12: Perdida na vaguidão...40

Figura 13: Caos, metamorfose sem sentido...46

Figura 14: Las dos Fridas...47

Figura 15: Desenho do lugar imaginário... 47

Figura 16: El abrazo de amor de El Universo, la tierra (México), Yo, Diego y el señor Xóloti……….48

Figura 17: Desenho do quadro "El abrazo de amor de El Universo, la tierra (México), Yo, Diego y el señor Xóloti"………48

Figura 18: Mi nacimiento………..51

Figura 19: Mi nana y yo………52

(7)

SUMÁRIO

1INTRODUÇÃO...8

1.1 O DIÁLOGO ENTRE ESCRITA E ARTES PLÁSTICAS ...10

2 AS OBRAS DE KAHLO COMO REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADE NACIONAL E A PRESENÇA DO SURREALISMO...12

3 TERCEIRA FASE DO MODERNISMO: CLARICE LISPECTOR E A IDENTIDADE NACIONAL...20

4 LITERATURA LISPECTORIANA; PINTURAS DE KAHLO E A PSICANÁLISE...23

5 “LAS APARIENCIAS ENGAÑAN”, O EU INVENTADO...26

6 ESCRITOS DE FRIDA KAHLO E PINTURAS DE CLARICE LISPECTOR...32

7 O LIVRO DE ARTISTA...41

8 ECPHRASIS NA NARRATIVA DE ÁGUA VIVA E NAS PINTURAS DE FRIDA KAHLO...50

CONSIDERAÇÕES FINAIS...55

(8)

1 INTRODUÇÃO

No México dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1940 existiram duas grandes e importantes mulheres que mudaram as artes plásticas e a literatura nacional de seus países. Frida Kahlo, no México Pós-revolução, e Clarice Lispector, no Brasil estadonovista. Atualmente, as duas artistas seguem sendo potências para pautas feministas e para as artes, mesmo décadas após suas mortes.

Este trabalho tem como objetivo comparar parte das obras da pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954) e da escritora naturalizada brasileira Clarice Lispector (1920-1977). Será criada uma ponte entre as artes plásticas, mais especificamente, a pintura, e a literatura, por meio da análise de obras das duas artistas. Todas os pontos aqui discutidos irão abordar e interpretar suas obras a partir da visão da psicanálise, além de levar em conta seus contextos históricos e movimentos literários e artísticos, nos quais estão inseridas.

As duas artistas tiveram contextos familiares semelhantes, tanto Kahlo como Lispector só tinham irmãs e sentiram cedo a perda de suas mães. Frida Kahlo foi a terceira filha do casal Matilde Calderón y Gonzaléz, mexicana de origem indígena e espanhola, e do fotógrafo Wilhelm (Guillermo) Kahlo, judeu descendente de alemães. Sua mãe teve depressão pós parto e Kahlo foi alimentada por uma ama de leite, por conseguinte, tiveram uma relação distante por toda a vida de Matilde. Lispector também foi a terceira filha do casal Pinkhas Lispector, que mais tarde passaria a ser Pedro Lispector, e Mania Lispector, que mais tarde passaria a ser Marieta Lispector, ambos judeus russos. Segundo Benjamin Moser, no livro Clarice, Mania Lispector teria sido violentada por um bando de soldados russos, teria contraído sífilis dos homens que a violentaram e não conseguiu tratamento, devido às péssimas condições durante a guerra civil russa. Seus pais acreditavam que a gravidez pudesse curar a sífilis de Mania, logo nasceu Chaya Pinkhasovna Lispector, mais tarde Clarice Lispector, de uma mãe sifilítica e que por sorte não nasceu com sífilis congênita. Lispector se culpava por não ter curado a mãe da doença que a matara com apenas 42 anos de idade. E revela isso na crônica “Pertencer”, de 15 de junho de 1968.

No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo.

(9)

Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. (LISPECTOR, 1999, p. 111)

As duas artistas morreram jovens: Kahlo com 47 anos e Lispector com 56 anos de idade. Lispector morreu de um câncer que foi diagnosticado muito tarde, um câncer de ovário que se espalhou por todo seu organismo, levando-a a óbito no dia 09 de dezembro de 1977. Frida Kahlo morreu oficialmente por embolia pulmonar, mas há suspeita de suicídio, já que havia muitos frascos de remédios vazios ao lado de sua cama. O último registro em seu diário foi a frase “Espero alegremente a saída – e espero nunca mais voltar – FRIDA”. Kahlo faleceu no dia 13 de julho de 1954.

Além disso, Kahlo e Lispector se assemelham quanto a suas obras. Frida Kahlo, além de pintar, também escrevia, mas como um hobby ou um jeito de se manter ocupada, enquanto não podia pintar por conta das cirurgias que fez. Clarice Lispector pintava, também como um hobby, mas mais do que isso, a pintura era uma paixão à qual se dedicou em seus últimos anos de vida.

No decorrer deste trabalho serão expostas as muitas semelhanças que atravessam as vidas e obras dessas duas grandes mulheres, revelando como as suas obras foram instrumentos fundamentais para a política e cultura de seus países. Kahlo, para a Revolução Mexicana e por ser uma das primeiras pintoras mexicanas reconhecidas por sua arte; e Lispector, durante o Estado Novo e a Ditadura Militar e por ser uma das grandes inovadoras da literatura brasileira, ao trazer discussões que envolvem o inconsciente e o fluxo de consciência em sua narrativa. Além de apresentar a literatura de Lispector e a pintura de Kahlo como objeto de estudo e ponte entre as artes e a psicanálise. Obras que se preocupam com o íntimo do ser, com seus mistérios e fragmentações, que mostram realidades que não são visíveis no dia a dia, que enxergam além do que nos está a mostra. Segundo Breton apud Fer (1998) não se trata apenas de questionar a “realidade”, mas também de questionar a forma pela qual ela era normalmente apresentada, elas se importavam com o modo que essa realidade era apresentada.

Frida Kahlo e Clarice Lispector, duas mulheres que desbravaram caminhos. Mulheres que fizeram muito por outras mulheres. Kahlo pintava sua própria experiência, em pinturas duras e reais em meados dos anos 1920-1930. Lispector, longe de ser uma escritora de auto- ajuda, era antes uma questionadora do sentido da vida. Escreveu sobre aflições, sobre a vontade de ser livre. Rompeu todas as fronteiras, colocando o leitor em si mesmo e levando-o ao questionamento da própria existência. Uma mulher que escreveu sobre outras mulheres em plenos anos 1940. Duas mulheres que inspiraram e ainda inspiram muitas outras mulheres.

(10)

1.1 O DIÁLOGO ENTRE ESCRITA E ARTES PLÁSTICAS

A arte vem acompanhando todo o desenvolvimento humano desde a Pré-história, quando foram identificadas as primeiras expressões artísticas – os desenhos no interior das cavernas eram uma forma de se expressar e de contar suas histórias –, até os dias de hoje. Grandes tradições artísticas têm como parâmetro as antigas civilizações, cada uma delas tendo desenvolvido estilos, técnicas e formas únicas de arte que ainda são espelhos para artistas contemporâneos.

Para os fins a que se propõe este trabalho, é possível começar a observar o diálogo entre as artes visuais e a escrita a partir do início do século XX, sobretudo no Brasil, com o movimento modernista, que tinha como característica o rompimento com as formas tradicionais e a liberdade de criação; tratava-se de um momento de experimentação e reinvenção estética. O Modernismo teve três fases, a primeira de 1922 a 1930; a segunda de 1930 a 1945 e a terceira de 1945 a 1980. Há, no entanto, quem entenda que o término dessa fase tenha sido em 1960 e, ainda, aqueles que entendem que o movimento está ativo, em certa medida, até os dias de hoje. O movimento foi criado a partir da integração de tendências culturais e artísticas do continente europeu, as Vanguardas Históricas, do período que antecede a Primeira Guerra Mundial. Movimentos como o Expressionismo, Cubismo, Futurismo, Dadaísmo e Surrealismo tinham o mesmo objetivo, o rompimento com o passado e as tradições.

Segundo Briony Fer (1998), os surrealistas tinham o desejo de chocar, confundir as expectativas convencionais e trabalhar do ponto de vista do inconsciente. As obras tinham em comum o efeito de desorientar, queriam revelar o inconsciente na representação e desfazer concepções reinantes de ordem e realidade. Não queriam apenas questionar a realidade, mas também, questionar a forma pela qual era apresentada.

No Modernismo, mais especificamente no Modernismo da terceira fase, uma das características mais fortes na prosa foi a sondagem psicológica, com a tentativa de descrever o mais íntimo do ser, a complexidade da vida e da existência. Segundo Bellemin (apud Santos et al, 2017, p.4), os leitores começaram a olhar a escrita de uma forma especial, pois perceberam que em determinado discurso há sempre algo a mais, tanto quanto nas ações humanas, na sua psique. Assim como o Surrealismo, a terceira fase do Modernismo se importa com o “não dito”

(11)

e com o inconsciente. É nesses dois períodos que esse trabalho irá se concentrar, ao analisar as obras da pintora mexicana Frida Kahlo e da escritora brasileira Clarice Lispector.

(12)

2 AS OBRAS DE KAHLO COMO REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADE NACIONAL E A PRESENÇA DO SURREALISMO

As obras de Frida Kahlo têm um estilo próprio, ela buscava a representação de uma identidade nacional do México pós-revolucionário e a revalorização da cultura indígena, com suas roupas e cores vivas. Seus quadros se ligam intimamente ao contexto histórico no qual vivia, além de expressar seus sentimentos e dores. Kahlo nasceu em 1907, mas sempre respondia que nasceu no ano de 1910, ano da Revolução Mexicana, pois segundo ela, nascera com a revolução.

A Revolução Mexicana se iniciou com a derrubada do governo ditatorial de Porfírio Diaz – o porfiriato, que vigorava no México havia mais de trinta anos – e a ascensão de Francisco Madero ao poder. O movimento revolucionário mexicano se iniciou com uma reforma política e acabou assumindo características populares.

No ano de 1910, o México se encontrava sob a liderança política de Porfírio Díaz, que havia implantado a ditadura no México nos anos de 1876 a 1880 e de 1884 a 1911, permanecendo mais de trinta anos no poder.

Durante a ditadura porfirista, prevaleceu o modelo das grandes propriedades de terra e a ausência de liberdades democráticas. Porfírio Díaz conduziu a classe latifundiária a assumir as ideias da burguesia norte-americana e européia, negando todas as tradições indígenas mexicanas. A política de Díaz visou valorizar a entrada de capital estrangeiro para explorar os recursos minerais e vegetais e para fabricar produtos de exportação. Juntamente com a expressiva taxa de crescimento econômico do México durante o porfiriato, crescia a desigualdade social, com uma minoria da população concentrando a maior parte da renda. Enquanto isso, pioravam as condições sociais no campo, com populações indígenas e camponesas perdendo suas terras, sendo censuradas, perseguidas e assassinadas. Cresciam cada vez mais a insatisfação e os movimentos de contestação, através de uma dissidência armada.

Após a renúncia de Porfírio, Francisco Madero, que era integrante de uma elite que fazia oposição ao governo anterior, assumiu o poder no México. Madero conquistou a população mexicana com promessas de reformas sociais que iriam diminuir a exclusão social – grande parte da população mexicana era analfabeta.

Com o passar do tempo, o novo governo não cumpriu com suas promessas, o que foi gerando insatisfação entre os camponeses que reivindicavam a posse da terra por meio da reforma agrária. Dois camponeses se destacaram na oposição ao governo de Madero: Emiliano Zapata e Francisco ‘Pancho Villa’ (líderes revolucionários camponeses).

(13)

A Revolução Mexicana teve como emblema de sua luta a busca pela revalorização da cultura indígena e a reforma agrária, ou seja, a distribuição de terras entre os camponeses. Essa necessidade de terras gerou o início da revolução que tinha como lema “Tierra y Libertad”.

A revolução deixou marcas profundas no México e em distintas esferas – políticas, sociais e econômicas; entretanto, a grande marca deixada foi a da consciência que se formou no povo mexicano: a busca por uma identidade nacional que abriu discussões sobre o mexicanismo. Passou-se a pensar o papel social que teria a arte. Dessa forma, buscava- se uma arte genuinamente mexicana que rompesse com os padrões europeus que eram valorizados por Porfírio Diaz. Uma arte que estivesse marcada pelas cores vivas, pela culturas, pela mestiçagem e pela valorização do povo indígena.

Os artistas desse período vão se valer da discussão da existência de dois Méxicos, um México índio, mestiço, e o México europeu. Nas palavras de Octavio Paz: “A revolução revelou-nos o México, ou melhor, deu-nos olhos para enxergar. E deu olhos aos pintores. [...]” (PAZ, 1976, p. 134.)

A revolução revelou um outro México, o que deu para os artistas, principalmente aos artistas plásticos, a inspiração dessa nova realidade, com artes que mostrassem uma cultura mexicana mais autêntica. Isso levou pintores muralistas a cobrir paredes de espaços públicos com as mais variadas imagens – realistas, satíricas – que refletiam o México de cores e história com suas aspirações e conflitos.

Segundo Ades (1997), o Muralismo mexicano se relacionou diretamente com a necessidade de mudanças sociais, fundamentando-se em três valores capitais: o nacional, o popular e o revolucionário. O Muralismo se preocupou em retratar a importância de classes menos favorecidas, como a dos índios, mestiços, camponeses e operários. Os artistas muralistas estavam preocupados em fazer arte a partir de uma noção de identidade que não negasse o passado colonial e pré-hispânico, mas que o integrasse.

O movimento Muralista mexicano ou escola modernista mexicana atingiu seu auge em 1930, com grandes artistas: David Alfaro Siqueiros, José Clemente Orozco, Fernando Leal e Diego Rivera, marido de Frida Kahlo. Esses artistas mudaram a cultura mexicana, deixando de lado as imagens europeias e trazendo figuras que caracterizavam mais propriamente o México indígena.

Frida Kahlo também foi uma artista que se preocupava em representar a cultura mexicana, não só em suas obras, mas também, em seus vestidos, em seus colares pré- colombianos, brincos coloniais, pulseiras e anéis. Ela se identificava com os indígenas e isso se reflete nos vestidos e no estilo como se vestia.

(14)

Kahlo valorizava a cultura mexicana em suas pinturas, como, por exemplo, no caso de Lagrimas de coco, Frutas da la tierra, Viva la vida, Los cocos e seus autorretratos com seus animais de estimação, macacos e pássaros, além dos autorretratos que mostravam suas cores e acessórios. Na pintura Lágrimas de coco, de 1951 (Figura1) além de representar as frutas com cores vivas e intensas, Frida também pinta a bandeira do México e escreve “Pintó con todo cariño. Frida Kahlo.”

Figura 1: Frida Kahlo, Lágrimas de Coco, 1951. Técnica: Óleo sobre tela, 25,4x34,6 cm. Fonte: Latin American Art

(15)

Figura 2: Frida Kahlo, Frutos de la tierra, 1938. Técnica: Óleo sobre tela, 40,6 x 60 cm. Fonte: Acervo digital: Frida Kahlo UNESP.

Figura 3: Frida Kahlo, Los cocos, 1951. Técnica: Óleo sobre tela 25x 34,6 cm. Fonte: Acervo digital: Frida Kahlo UNESP.

Figura 4: Frida Kahlo, Viva la vida, 1954. Técnica: Óleo sobre tela 52x 72 cm. Fonte: Museu Frida Kahlo.

Como se vê nas figuras 2,3 e 4, Kahlo pintou mais de uma vez frutas como forma de aludir à identidade desse novo México.

Além de buscar apreender a identidade mexicana, Frida Kahlo foi uma grande ativista do Partido Comunista e revelou em seu diário que gostaria de fazer uma arte que fosse útil à revolução e ao comunismo. No quadro El marxismo dará salud a los enfermos, de 1954 (Figura

(16)

5) Kahlo representou a si mesma sem as duas muletas que a sustentavam e passou a ser sustentada por duas mãos, que representam a corrente do marxismo. Dentro do quadro também é pintado o retrato de Karl Marx, que ocupa o lugar de libertador. Logo, o quadro representa a concepção do marxismo como libertador da humanidade – e o quadro em si como libertador da própria Kahlo de seu sofrimento.

Figura 5: Frida Kahlo, El marxismo dará salud a los enfermos, 1954. Técnica: Óleo sobre tela 76x61 cm. Fonte: Arte até você.

Por mais que Kahlo afirmasse que sua pintura fosse sobre ela mesma e suas experiências de vida, André Breton, teórico do Surrealismo, ao conhecer suas obras, concluiu que eram puro Surrealismo. “Ainda que ela fosse fiel à tradição mexicana, Breton viu uma ligação entre o seu trabalho e o Surrealismo.” (FER, 1998, p. 242). A pintura Lo que el agua me dio, de 1938 (Figura 6), chamou a atenção de Breton por lhe parecer uma representação de uma frase de seu livro Nadja: “Eu sou a ideia do banho num aposento sem espelhos”. Nessa pintura, Kahlo está em uma banheira observando suas experiências destrutivas flutuando sobre a água; para Breton, essas imagens que flutuam sobre a água seriam memórias e sonhos. “É uma espécie de autorretrato, mas do tipo que inverte as convenções habituais de retrato ao pintar não a cabeça, mas a metade inferior do corpo sob a superfície da água, sobreposta por

(17)

referências simbólicas à família, ao nascimento, à sexualidade e à morte.” (FER, 1998, p. 243) Portanto, essa pintura poderia ser definida como surrealista, já que inverte as convenções naturais e traz à tona suas memórias e sonhos, em uma expressão espontânea e automática do pensamento, prevalecendo o sonho e o inconsciente. Os sonhos que emergem no Surrealismo envolvem fantasias e conteúdos “latentes” do inconsciente. Segundo Freud, no sonho há um conteúdo manifesto e outro latente. O manifesto é o que aparece, o latente é o inconsciente expressando o que o consciente não quer mostrar, logo, podemos observar essa pintura de Kahlo como uma representação do conteúdo latente de seu sonho, de memórias que sua mente não quer expor.

Figura 6: Frida Kahlo, Lo que el agua me dio, 1938. Técnica: Óleo sobre tela 91x 70,5 cm. Fonte: História das artes.

As obras de Frida Kahlo, principalmente os autorretratos, são caracterizadas pelas flores em sua cabeça, asas no lugar dos braços ou com o corpo de veado, como na pintura Veado herido, de 1946. A imagem do quadro é composta por um veado com o corpo coberto por flechas e o rosto de Kahlo no lugar do rosto do animal. Essas obras saem completamente das

(18)

expectativas convencionais, naquilo que Breton descreve como “estado de completa perturbação mental”, o que caracteriza as artes plásticas no Surrealismo. No entanto, para a escritora mexicana Anita Brenner, esses traços característicos das obras de Kahlo, na verdade, vinham da fonte da cultura mexicana: “[Kahlo] se percebia como criatura com possibilidades de se metamorfosear. Sem dúvida, o Surrealismo teve algo a ver com esse assunto, mas sua verdadeira fonte era o enfoque mágico da vida na antiga cultura mexicana.” (BRENNER apud BASTOS, 2010, p. 98)

Outra pintura muito analisada pelos surrealistas é Moisés o Núcleo solar, 1945 (Figura 7). Essa obra foi feita após Kahlo ler “Moisés e o monoteísmo”, de Freud. Nela a pintora expressa na pintura as primeiras impressões que teve ao ler o livro e confessa que para ela o quadro está incompleto, e suas imagens, confusas. A pintura é de grande complexidade, pois Frida Kahlo tentou representar o livro de uma maneira mais pessoal, há toda uma simbologia, e para decifrá-la é necessário captar a linguagem pictórica pessoal da artista. Há traços de religiosidade, da arte popular mexicana e da cultura pré-colombiana.

Frida Kahlo representou, a partir do nascimento de Moisés, como acontecimento central, grupos de personagens históricos importantes, heróis como Gandhi, Jesus Cristo, Marx, Stalin, Buda, Freud etc. Acima estão os deuses e abaixo os heróis que, de alguma forma, mudaram a história da civilização humana. À esquerda, estão os deuses do Oriente, e à direita, do Ocidente. No centro está Moisés, que nasce debaixo de um sol vermelho. Segundo Bastos (2010), Kahlo explicou que o sol era o centro de todas as religiões, o primeiro Deus, criador e reprodutor da vida. Esse sol envolve todos os personagens históricos, religiosos e políticos que permeiam sua vida. As lágrimas no colo do útero referem-se à impossibilidade de Kahlo ter um filho. Ela representa o bebê com o rosto de Rivera, que tem na testa o terceiro olho, o olho da sabedoria, traço marcante em suas obras. Como coloca Bastos, o nascimento de Moisés representa todos os heróis – e Rivera como seu herói. Ali, a pintora fez uma lista de heróis e deuses que enfrentaram o temor da morte.

(19)

Figura 7: Frida Kahlo, Moisés o Núcleo solar, 1945. Técnica: Óleo sobre tela 61x75,6 cm. Fonte: Historia del arte: temas, imágenes y comentario.

A pintora atualiza o tema da criação de forma singular e pessoal, porque tinha desejo de ter um filho desde a adolescência, mas o acidente que sofreu aos 18 anos a impossibilitou. Kahlo engravidou três vezes, mas não conseguia sustentar a gravidez, por causa da deformação da pélvis. Como se vê na tela acima, Diego era seu tudo, inclusive o filho que não poderia ser gerado por ela.

Essa obra é marcada por um traço libertador e revolucionário que engloba religião e ciência. Frida Kahlo foi uma artista, mesmo não se considerando, com fortes traços e princípios surrealistas, mas também com inconfundíveis traços da cultura mexicana.

(20)

3 TERCEIRA FASE DO MODERNISMO: CLARICE LISPECTOR E A IDENTIDADE NACIONAL

Na terceira fase do Modernismo brasileiro, a narrativa era caracterizada principalmente pelo intimismo e pela introspecção psicológica. Guimarães Rosa e Clarice Lispector se destacaram por criarem narrativas com fluxo de consciência, rompendo a linearidade da história. Lispector se detém no cotidiano, a fim de desvelar as angústias dos personagens e sondar os mecanismos da mente humana. Além de explorar o “eu” em seus livros de ficção, Clarice Lispector, também se preocupava em escrever sobre a situação de seu país, sobretudo em suas crônicas.

Clarice Lispector, mesmo posicionando-se publicamente sobre política de forma muito discreta, escreveu crônicas criticando políticos e mostrando-se contrária aos acontecimentos no Brasil. Participou, inclusive, de uma passeata contra a Ditadura Militar em 1968. Na crônica “A entrevista alegre”, de 30 de dezembro de 1967, Lispector diz à entrevistadora, Cristina, que gostaria que o Brasil fosse um regime socialista. “Cristina me perguntou se eu era de esquerda. Respondi que desejaria para o Brasil um regime socialista. Não copiado da Inglaterra, mas um adaptado a nossos moldes.” (LISPECTOR, 1999, p. 59)

Lispector publicou crônicas como “Dos palavrões no teatro”, de 7 de outubro de 1967, e “Carta ao Ministro da Educação”, de 17 de fevereiro de 1968, em um período muito particular no Brasil: o da Ditadura Militar. Entre 1964 a 1985, o Brasil esteve sob um regime político comandado por membros das forças armadas. O governo do presidente João Goulart, conhecido como Jango, foi derrubado por um golpe de Estado, tomando o poder o marechal Castelo Branco. Os militares na época justificaram o golpe com a alegação de que havia uma ameaça comunista no país. A Ditadura durou até a eleição de Tancredo Neves, em 1985. A Ditadura Militar utilizou a edição de Atos Institucionais que colocavam em prática a censura, a perseguição política, a supressão de direitos constitucionais, a total escassez de democracia e a repressão aos que eram contrários ao regime.

Clarice Lispector escreveu a crônica “Carta ao Ministro da Educação” no dia 17 de fevereiro de 1968, um momento da política educacional que tendia à privatização. Lispector foi aluna da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde cursou Direito. Na carta, ela menciona que foi uma das primeiras colocadas: “Eu mesma fui universitária e no vestibular classificaram-me entre os primeiros candidatos”. O MEC queria diminuir o número de vagas, alegando a falta de verbas para a Educação, e em consequência teria de mudar a forma de ingresso nas universidades públicas. Lispector escreveu na crônica:

(21)

O MEC, visando evitar o problema do grande número de candidatos para poucas vagas, resolveu fazer constar nos editais de vestibular que os concursos seriam classificatórios, considerando aprovados apenas os primeiros colocados dentro do número de vagas existentes. Esta medida impede qualquer ação judicial por parte dos que não são aproveitados, não impedindo no entanto que os alunos tenham o impulso de ir às ruas reivindicar as vagas que lhes são negadas.

Senhor ministro ou senhor presidente: “excedentes” num país que está em construção?! E que precisa com urgência de homens e mulheres que o construam? Só deixar entrar nas faculdades os que tirarem melhores notas é fugir completamente ao problema. O senhor já foi estudante e sabe que nem sempre os alunos que tiraram as melhores notas terminam sendo os melhores profissionais, os mais capacitados para resolverem na vida real os grandes problemas que existem. (LISPECTOR, 1999, p.77)

Acrescentou que seria um crime essa nova forma de ingresso:

Ser estudante é algo muito sério. É quando os ideais se formam, é quando mais se pensa num meio de ajudar o Brasil. Senhor ministro ou Presidente da República, impedir que jovens entrem em universidade é crime. Perdoe a violência da palavra. Mas é a palavra certa. (LISPECTOR, 1999, p.77)

E finalizou dizendo que essa carta era também um protesto: “Que esta páginas simbolizem uma passeata de protesto de rapazes e moças.”

A autora também escreveu a crônica “Dos palavrões no teatro”, em 07 de outubro de 1967, durante a Ditadura Militar, regime marcado por intensa censura. Lispector falou sobre isso, mas não diretamente, nessa crônica: começou dizendo que não era acostumada a falar palavrões por não ter esse hábito em sua casa durante a infância, mas que não via problema no uso deles, se empregados em momentos em que outras palavras não conseguiriam expressar da mesma maneira. Citou, então, duas peças de teatros que utilizavam palavrões e que para ela eram excelentes peças. A primeira chama-se “A volta ao lar”, com Fernanda Montenegro, e a segunda, “Dois perdidos numa noite suja”, com Fauzi Arap e Nélson Xavier. Continuou a crônica observando que as pessoas compravam ingressos para as peças cujo conteúdo mais as agradava, e que se esse tipo de linguajar as escandalizasse, elas não comprariam os ingressos.

Lispector não revelou o que a motivava ao abordar tal assunto, porém, conhecendo-se o contexto histórico do momento da publicação dessa crônica, entende-se ser sobre a censura nas artes. Acrescentava, ainda que essas peças eram de alta qualidade e não podiam ser restringidas por causa de palavrões.

Há peças de teatro, como "A volta ao lar" (Fernanda Montenegro, excelente) ou "Dois perdidos numa noite suja" (Fauzi Arap e Nélson Xavier, excelentes), que simplesmente não poderiam passar sem o palavrão por causa do ambiente em que se

(22)

passam e pelo tipo dos personagens. Essas duas peças, por exemplo, são de alta qualidade, e não podem ser restringidas. (LISPECTOR, 1999, p.36)

Finalmente, conclui a crônica declarando não entender o problema do uso de palavras de baixo calão e acrescentando que, de qualquer forma, esses são termos que integram a língua portuguesa. Nesse contexto, as crônicas citadas foram de grande importância para entender o momento de censura e a situação da educação no Brasil da Ditadura, que por sua vez não difere muito dos dias atuais. Mais do que simples crônicas, esses textos são um protesto.

Em seus livros de ficção, Clarice Lispector se aprofunda no íntimo do ser e surge com a concepção de um sujeito fragmentado e composto por particularidades difíceis de serem interpretadas, assim como Kahlo tenta transmitir a complexidade da vida e da existência humana. Sujeitos divididos, guiados por pulsões e desejos que não conseguem se realizar completamente, estão sempre em busca de algo difícil de ser captado, definido e descrito. Essas são ideias intimamente ligadas à psicanálise, campo de investigação teórico da psique humana, desenvolvido por Sigmund Freud. Essas são características dos movimentos em que Kahlo e Lispector estão inseridas, o Surrealismo e terceira fase do Modernismo brasileiro, respectivamente. Isto posto, a seguir serão analisadas obras de Clarice Lispector e de Frida Kahlo, com o auxílio de instrumentos da psicanálise.

(23)

4 LITERATURA LISPECTORIANA; PINTURAS DE KAHLO E A PSICANÁLISE

A psicanálise é um campo teórico que inovou diversos campos tanto das ciências quando das humanidades, criada por Freud, que buscou desvendar o inconsciente e a composição da psique humana. Seu método de investigação é baseado em associações livres do sujeito, que dão validade para as interpretações. Freud encontrou nas artes, desde o teatro, literatura até as artes plásticas, um caminho seguro para comprovar suas teorias. Quando comprovada a existência do inconsciente, a psicanálise busca estudar o que está por trás das ações humanas, tentando interpretar sonhos, por exemplo.

Na literatura, os autores se sentem livres para escrever sobre o que querem, escrevem o que não teriam coragem de falar, procuram formas de expressar o “não dito”. Para Zilberman (1981) a obra literária é fruto da imaginação de seu autor. Ele enxerga o mundo, capta uma parte da realidade e passa para a escrita seus sentimentos e sua forma de ver a realidade, dando a ver o que está além do que se revela no dia a dia. Por isso, no decorrer dos anos, os leitores começaram a perceber que havia algo a mais no discurso, algo que ia além das ações humanas, mas sim na sua psique. O escritor escreve sobre o desconhecido, sobre os enigmas de um “eu” fragmentado.

Já nas artes, mais especificamente nas pinturas, segundo Bastos (2010), para a psicanálise, trata-se de uma referência à questão da sublimação, em que a criação é a expressão do mecanismo da sublimação:

A sublimação consiste em uma substituição do objetivo sexual por outro mais valorizado socialmente: a capacidade de o sujeito investir em atividades artísticas, intelectuais, políticas e cientificas, denominadas, por Freud, “atividades superiores.” [...] A arte seria, assim, uma modalidade de sublimação das pulsões, na qual o sujeito manteria o objetivo de investimento, transformando seu alvo. [...] Freud e Lacan capturaram dados para estabelecer a teoria sobre sublimação via estudo de artistas e suas obras. Portanto, o saber da psicanálise pode nortear a compreensão do processo que transforma a profunda dor do sujeito em arte. (BASTOS, 2010, p. 16)

Deste modo, é possível observar como Kahlo sublimou sua dor e seus traumas por meio de sua arte. É diante do trauma do acidente de bonde que ela inventa sua arte; a partir dele, ela cria, a partir do vazio, para poder suportar a dor do corpo e da alma. A literatura de Clarice Lispector tira o sujeito do cotidiano, o faz levantar questionamentos sobre sua existência e buscar respostas, além de instigar o leitor a ter outra percepção da realidade, levando-o assim a tocar o mais íntimo do seu ser.

(24)

Outra característica das obras de Frida Kahlo é o efeito de “estranhamento” causado pelas cores vibrantes e fortes que ela utiliza em seus quadros, para representar os eventos dramáticos que aconteceram em sua vida. Segundo Fer (1998), o termo de estranhamento para Freud era o oposto de “doméstico” e “familiar”, tudo que deveria permanecer secreto e escondido, mas que veio à tona. Para Bastos (2010), o estranhamento remonta ao que é familiar para o sujeito e o torna assustador, gerando uma sensação de desamparo. É no desamparo e na invasão do real que Kahlo começou a pintar.

Além disso, Frida Kahlo tinha as tranças como marca, e as levava para seus autorretratos. Segundo Freud, em Conferência XXXIII: Feminilidade, de 1933, o ato de trançar e tecer é na realidade uma técnica inventada pelas mulheres e tentava imaginar o motivo inconsciente dessa realização. Kahlo, no momento em que se divorciou de Diego Rivera, pinta o quadro Autorretrato con pelo corto, 1940 (técnica: óleo sobre tela 40 x 28 cm), recorrendo à arte para sublimar sua extrema dor ao perder seu grande amor. A artista tinha cabelos longos e escuros e sempre estava com saias coloridas, mas no quadro ela se representa com um paletó, uma tesoura na mão e seus cabelos cortados caídos ao chão. Uma interpretação possível seria a dos seus cabelos como significantes da sexualidade feminina. No quadro, Kahlo deixa uma mensagem para Rivera de uma forma invertida, uma estrofe de uma música mexicana. “Olha, se te quis, foi pelo seu cabelo, agora que estás careca, já não te quero mais.” No ano seguinte, em 1941, ela pinta o quadro Autorretrato con trenza (técnica: óleo sobre tela 59,5x40 cm), e nessa obra, Kahlo está com seus cabelos de novo com tranças. Naquele momento, Frida Kahlo e Diego Rivera haviam-se casado outra vez.

Na literatura de Lispector, o inconsciente também é trabalhado, quando a voz narrativa traz a questão do sujeito dividido, fragmentado. Ela apresenta um sujeito que possui um vazio existencial que está sempre à procura de algo difícil de ser descrito. A sublimação também se faz presente em sua escrita, particularmente em Água Viva. Esse livro é uma narrativa em forma de carta, na qual a personagem, cujo nome não é revelado, escreve para um destinatário, também não especificado. A carta narra seus dias solitários, a vida, o corpo. Trata-se de um texto para ser mais vivido do que lido, pelas experiências intensas que a personagem conta ao longo dele. A personagem diz que o que ela escreve não é para ser lido, e sim para ser. “O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser.” (p. 37)

A personagem era uma pintora que se encontrava em um momento de grande vazio existencial, e essa dor e o vazio gerado por ela a impulsionaram a buscar a felicidade. Ela canalizou sua dor e angústia para um objeto diferente do que já fazia, no caso a pintura, e passou a escrever, ou seja, sublimou as pulsões traumáticas por meio da escrita. Conforme Valle (apud

(25)

Santos et al, 2006), ocorreu uma metamorfose dos destinos da pulsão, em que sublimar é a ação do sujeito para criar para um Outro que represente o seu desejo. Além disso, a narrativa aborda questionamentos sobre a existência humana e da criação, busca entender o corpo, o pensamento e a linguagem sem a forma óbvia com a qual estamos acostumados a ver.

Já em A hora da estrela, Lispector traz uma narrativa repleta de questionamentos acerca do fazer literário e também reflete sobre a complexidade e os conflitos internos da personagem. Segundo Santos et al (2017), Clarice Lispector, com sua forma de escrever, desarticula a linguagem e consegue atingir o “atrás do pensamento”. Sua escrita alcança o “não dito”.

Lispector, ao buscar entender o sujeito dividido, e Kahlo, ao dizer “yo soy la desintegración”, revelam que existe mais de um “eu” dentro de um sujeito, que esse sujeito é fragmentado, que uma pessoa pode ter máscaras e vários “eus” no interior de si. Frida Kahlo, ao dizer que pinta a si mesma e sua realidade, estaria de fato pintando o real vivido por ela ou suas autoficcionalizações?

(26)

5 “LAS APARIENCIAS ENGAÑAN”, O EU INVENTADO

Clarice Lispector e Frida Kahlo escrevem e/ou pintam as suas realidades, por mais pesada que estas sejam. Em Água Viva, Lispector escreve palavras carregadas, intensas, e o mesmo acontece quando ela descreve a gruta. Em várias passagens ela deixa isso claro: “Tudo o que te escrevo é tenso” (p. 27). Também diz que o que escreve é como fogo: “O que te escrevo não vem de manso, subindo aos poucos até um auge para depois ir morrendo de manso. Não: o que te escrevo é de fogo como olhos em brasa.” (p. 31). Nas crônicas, Lispector também passa esse sentimento para sua escrita. A crônica difere do romance porque nas crônicas a voz do discurso não é a de uma personagem criada, mas do próprio sujeito biográfico da escritora, que revela seu cotidiano e seus sentimentos do dia a dia, como na crônica “Dies Irae”, de 14 de outubro de 1967:

Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. (LISPECTOR, 1999, p. 37)

Ainda nesta crônica, Lispector diz que nada do que fez a agrada: “Nada que eu fiz me agrada. E o que eu fiz com o amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia.” (p. 38) No Diário de Frida Kahlo: um retrato íntimo, a pintora também escrevia e desenhava seu dia a dia, e pode-se sentir sua dor, seu amor pelo seu marido Diego Rivera, sua alegria e suas angustias. Em 1953, Kahlo amputou a perna direita até o joelho e escreveu em seu diário:

Julho de 1953 Cuernavaca Pontos de apoio

Em todo o meu corpo existe apenas um, e eu quero dois. Para que eu tenha os dois terão que me cortar um. O um que não tenho é o que tenho de ter para poder caminhar o outro já deve estar morto! Para mim as asas são supérfluas. Mesmo que as cortem eu voarei!!

(KAHLO, 2017, p. 159)

No decorrer do ano de 1950, Frida Kahlo se submeteu a sete cirurgias na coluna, sofreu uma infecção e passou nove meses no hospital. Em 1951, após receber alta, começou a andar de cadeira de rodas. E escreveu sobre esse momento em seu diário.

(27)

Passei um ano doente, sete operações na coluna vertebral. O Dr. Farill me salvou. Me devolveu alegria de viver, mas ainda estou na cadeira de rodas, e não sei se voltarei a andar imediatamente. Estou usando um colete de gesso que, apesar de ser uma coisa pavorosa, faz com que me sinta melhor da coluna. Não sinto dores. Apenas um... cansaço assustador, e, como é natural muitas vezes, desespero.

DESESPERO. Que palavra nenhuma é capaz de descrever. Mesmo assim, quero viver. Já comecei a pintar novamente. Um quadrinho para dar de presente ao Dr. Farril que estou fazendo com todo o carinho.

(KAHLO, 2017, p. 113-114)

Além de escrever sobre as dores físicas, ela também escrevia muito sobre as dores do coração, referindo-se ao seu grande amor, Diego Rivera. “Por que o chamo de meu Diego? Nunca foi nem será meu. Ele pertence a si mesmo.” (KAHLO, 2017, p. 220)

Frida Kahlo pintava e escrevia muito sobre o seu “eu”, assim como Clarice Lispector, mas ambas podem revelar apenas o que desejam, podem criar um “eu fictício”. As duas constroem seus “eus”, uma construção de identidade. Como diz Carlos Mendes de Sousa, em Clarice Lispector: figuras da escrita:

O sujeito não é entrevisto como uma essência, mas como uma entidade por construir, um artifício. O “sujeito construído”, que obriga a pensar a identidade em termos de artifício, constitui uma das figuras marcantes do reflexo do subjetivismo no pensamento e na cultura atuais.” (SOUSA, 2012, p. 512)

Em Água Viva, Lispector escreveu em alguns momentos que a realidade é inventada pela personagem. “Estou transfigurando a realidade – o que é que está me escapando? Por que não estendo a mão e pego? É porque apenas sonhei com o mundo, mas jamais o vi.” (p. 65). “O real eu atinjo através do sonho. Eu te invento, realidade.” (p. 74)

Na crônica “Persona”, escrita no dia 2 de março de 1968, Lispector diz que todos as pessoas, quando adolescentes, escolhem uma máscara para representar um papel e conseguir se encaixar no mundo. É uma liberdade, mas é a liberdade de não ser, é uma escolha, escolhem que máscara usar, escolhem quem serão, qual persona serão.

Bem sei que uma das qualidades de um ator está nas mutações sensíveis de seu rosto, e que a máscara as esconde. Por que então me agrada tanto a ideia de atores entrarem no palco sem rosto próprio? Quem sabe, eu acho que a máscara é um dar-se tão importante quanto o dar-se pela dor do rosto. Inclusive os adolescentes, estes que são puro rosto, à medida que vão vivendo fabricam a própria máscara. E com muita dor. Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel é uma surpresa amedrontadora. É a liberdade horrível de não ser. E a hora da escolha. (LISPECTOR, 1999, p. 80)

(28)

Continua dizendo que também tem uma máscara “para não ficar desnuda para o resto da luta”, pois quando não se escolhe uma máscara, o rosto sensível ao se ferir se fecha em uma máscara involuntária, ou seja, com os obstáculos da vida e os ferimentos, acabam se tornando outras pessoas involuntariamente. Finaliza dizendo que a máscara de repente cai por causa de um olhar ou de uma palavra.

É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente – ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra ouvida – de repente a máscara de guerra de vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caem como um ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele chora em silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este ser morrerá. A menos que renasça até que dele se possa dizer “esta é uma pessoa”. Como pessoa teve que passar pelo caminho de Cristo. (LISPECTOR, 1999, p. 80-81)

Na crônica “A bravata”, de 26 de outubro de 1968, Clarice Lispector entrou novamente no assunto da “Máscara”. A crônica é sobre uma mulher tímida que saía pouco e que não aceitava muitos convites, também não percebia quando um homem tinha interesse por ela. Em um dia ela decidiu ir a um coquetel na companhia de ninguém. Resolveu usar maquiagem, mas usou tanto que parecia estar usando uma máscara. Queria ser quem na verdade não era, queria se mostrar outra persona.

Lembrou-se que no fim de tarde havia uma espécie de coquetel para os professores primários em férias. Lembrou-se da atitude nova que desejava, não combinou a ida com nenhum professor ou professora – arriscar-se-ia toda só. Vestiu um vestido mais ou menos novo, mas a coragem não vinha. Então – só o entendeu depois – pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de sim esmo. Esse alguém era exatamente o que ela não era. Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria exigindo demais de si mesma? Toda vestida, com uma máscara de pintura no rosto – ah persona, como não te usar e enfim ser! –, sem coragem, sentou-se na poltrona de sua sala tão conhecida e seu coração pedia para ela não ir. Parecia que previa que ia se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-de-coragem, levantou-se e foi. (LISPECTOR, 1999, p. 147)

Ela se incomodava com a máscara, mas não podia tirá-la e se mostrar na frente das pessoas. Quando chegou em casa finalmente pode ser ela mesma, pode mostrar sua “alma nua”.

Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em casa estava agasalhante, ela se olhou ao espelho quando estava lavando as mãos e viu a persona afivelada no seu

(29)

rosto: a persona tinha um sorriso parado de palhaço. Então lavou o rosto e com alívio estava de novo de alma nua. Tomou então uma pílula para dormir. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e se prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de dormir começava a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou. (LISPECTOR, 1999, p. 148)

Lispector usa a expressão "máscara" em muitas de suas crônicas, mas com sentidos modificados, dependendo da pragmática. Há a máscara objeto, parte das vestimentas como um acessório; a maquiagem máscara, pintura no rosto, representada na crônica "A bravata"; e a máscara de cunho psicológico, significando os diversos papéis que uma pessoa pode vir a ter, os modos de ser e as funções sociais que a pessoa assume ao longo da vida, como na crônica "Persona".

Em 1945, Frida Kahlo pintou o quadro intitulado "La máscara" (Figura 8). Ao contrário das máscaras de Lispector que procuram esconder, a máscara de Kahlo, na verdade, exterioriza os sentimentos reais dela. Ao trazer uma representação de máscara triste e chorosa, não encobre seu "eu", mas sim o revela.

(30)

Frida Kahlo jamais recebeu afeto da parte de sua mãe. Segundo Gérard de Cortanze, uma hipótese seria a de Kahlo usar a doença para ganhar um pouco de amor e atenção. Em seu diário, ela escreveu: gostamos de ficar doentes porque assim ficamos protegidos.” (KAHLO, 2017, p. 234) Kahlo tornou-se outra pessoa para ser aceita, uma vez que se considerava deformada e estranha. Cresceu achando que sua forma de se comportar não era adequada, que teria de ser outra pessoa para ser mais interessante. “Pero ese engaño y esa máscara permitirán a Frida sobrevivir" (CORTANZE, 2015, p. 30).

Segundo Burrus (2010), Kahlo estava obcecada pelo próprio sofrimento e sempre teve medo de ser abandonada. O pai dela foi nomeado o primeiro fotógrafo oficial do Patrimônio Cultural do México, nomeado por Porfirio Díaz, e com isso ele desenvolveu o hábito de caminhar pelas ruas do México para fotografar. Como era epilético, Kahlo o acompanhava, para o caso de ele ter um ataque repentino. Guillermo, pai de Kahlo, muitas vezes estava caminhando com a máquina fotográfica, segurando sua mão, e em um instante desabava. Burrus acrescenta que talvez isso a tenha transformado na mulher que sempre teve medo de ser abandonada, porque a mesma mão que a guiava, também a desamparava.

Para Bastos (2010), Kahlo acreditava que ser amada era uma necessidade muito mais forte que amar, segundo palavras da própria pintora: “Amada, não o suficiente, porque nunca se quer o suficiente, uma vida só não basta.” (KAHLO, apud BASTOS, p. 82) Cortanze também diz que, no quadro Autorretrato con traje de terciopelo, 1926 (técnica: óleo sobre tela 79,7x59,9 cm) Kahlo na verdade tinha a intenção de despistar o espectador, não queria revelar quem ela era, mas sim o que desejava ser. Ela adaptou sua identidade para mostrar a imagem, o “eu” que ela desejava ser, não necessariamente o “eu” com que ela se identificava. O autor acrescenta que as pinturas, principalmente os autorretratos que Kahlo pintou, não servem para revelar, mas sim para ocultar aquilo que ela não queria que os outros vissem.

Ao contrário de Cortanze, Hayden Herrera, em seu livro Frida: a bibliografia, acredita que, em seus autorretratos, Kahlo transmitia uma imagem refletida e imutável.

Os autorretratos feridos de Frida eram uma espécie de grito silencioso. Em imagens de si mesma descalça, sem cabeça, rachada, aberta, sangrando, ela transformava a dor nas imagens mais dramáticas possíveis, de modo a imprimir nos outros a intensidade de seu próprio sofrimento. E, ao projetar para fora de si e para dentro das telas a sua dor, ela também a extirpava de seu corpo. Os autorretratos eram réplicas fixas e imutáveis de sua imagem refletida, e nem os reflexos nem as telas sentiam dor. (HERRERA, 2011, p. 420)

Portanto, Kahlo, assim como Lispector, acreditava que era necessário usar uma máscara para sobreviver no mundo. Kahlo utilizava sua arte para dar forma a um "eu" que não

(31)

necessariamente correspondia ao "eu" que ela percebia em sua realidade. Porém, ao mesmo tempo, como sujeitos divididos, todos esses "eus", de alguma maneira, faziam parte da totalidade de Lispector e Kahlo.

Em 2004, ao abrir um dos quartos trancado por Diego Rivera, descobriram um desenho feito por Kahlo intitulado Las apariencias engañan. Nele, Kahlo desenhou seu corpo com borboletas sobre as fraturas de sua perna. Cobriu o próprio corpo com um vestido transparente, que deixava transparecer as partes machucadas. Kahlo poderia estar revelando que seus vestidos longos eram para cobrir suas imperfeições e deixá-la com uma aparência saudável, ou seja, as aparências enganam, porque na realidade Kahlo não estava saudável.

Ambas conseguem trazer a vivacidade de seus respectivos mundos para seus respectivos modos de expressão. Kahlo, com sua pintura e em seus escritos no diário; Lispector, em sua escrita e em suas pinturas. Fazem-no com tamanha vivacidade, que é possível sentir e até mesmo ver essa vivacidade, no caso das descrições escritas. As duas se expressam de forma dura, forte e ao mesmo tempo sensível. Trazem suas verdades e seu eus fragmentados em diversas narrativas. Clarice Lispector e Frida Kahlo trazem a imagem que querem mostrar, aquela que podem mostrar; às vezes uma parte dela, às vezes tudo, ou, até mesmo, um “eu” completamente inventado.

(32)

6 ESCRITOS DE FRIDA KAHLO E PINTURAS DE CLARICE LISPECTOR

Frida Kahlo escrevia poemas e narrava histórias em seu diário, que também contam com uma presença forte de elementos surrealistas. Kahlo escrevia sem a preocupação com a métrica, fazia uso de versos livres e da escrita automática, ou seja, escrevia tudo o que vinha à mente, como no exemplo a seguir, retirado de um dos poemas escritos em seu diário. Kahlo não o datou, mas provavelmente o escreveu entre 1947 e 19741:

SORRISO TERNURA Gota, sota, mote MIRTO, SEXO, roto CHAVE, SUAVE, BROTA LICOR mão firme

AMOR assento firme GRAÇA VIVA VIDA PLENA PLENA SÃO...

(KAHLO, 2007, p. 88)

Em 2004, Raquel Tibol, publicou Escrituras de Frida Kahlo – Selección, proemio y notas, com um grande acervo de poemas e cartas escritos por Kahlo. Ela escreveu muitas cartas após o acidente, já que teve de se manter distante de seus amigos por muito tempo, e continuou escrevendo, principalmente quando estava nos Estados Unidos, por causa das exposições e trabalhos de seu marido. Um de seus poemas mais tocantes chama-se Recuerdo e foi escrito em 1922. Esse poema foi publicado em El Universal Ilustrado, uma revista mexicana ilustrada da década de 1920 que publicava obras de escritores e artistas experimentais.

Eu havia sorrido. Nada mais. Mas a luz fez em mim um profundo silêncio. Ele me seguia. Como minha sombra, perfeita e ligeira.

E a noite respirou um canto... (KAHLO apud TIBOL, 2007, p. 32)

Outro poema de Kahlo chama-se “Retrato de Diego” e foi escrito para um catálogo da exposição “Diego Rivera – 50 anos de trabalho artístico”, no Palácio de Belas Artes do México.

1 Acredita-se que Kahlo escreveu o poema entre 1947 e 1974. Chegou-se a essa conclusão ao pensar que no diário

existe uma ordem cronológica. A última data anterior à esse poema é de 22 de janeiro de 1947, e a primeira data posterior ao poema é de agosto de 1974.

(33)

Ela começa o poema dizendo que pintará esse retrato de Rivera com cores que não conhece, as palavras, e que por isso o retrato será pobre.

Mas eu não creio que as margens de um rio sofram por deixá-lo correr, Nem a terra sofra porque chove, nem o átomo sofra descarregando energia... Para mim tudo tem sua compensação natural.

(KAHLO apud TIBOL, 2007, p. 32)

Em 1953, Kahlo expôs seus quadros pela primeira vez em seu país, o que a deixou muito feliz e realizada, já que sua saúde estava muito debilitada. Ela fez questão de escrever à mão os convites para o evento, que consistiam em um poema ritmado. Dizia assim:

Com amizade e amor nascidos no coração

tenho o prazer de convidar você para minha humilde exposição. Às oito da noite

---- Já que, afinal de contas, você tem relógio ---- te esperarei na galeria

da Lola Alvarez Bravo. [...]

Estes quadros

pintei com minhas próprias mãos e eles esperam nas paredes para dar prazer aos meus irmãos. Bom, meu querido cuate, com amizade verdadeira te agradeço de todo o coração Frida Kahlo de Rivera.

(KAHLO apud HERRERA, 2011, p. 490-491)

Também em 1953, os médicos que cuidavam da saúde de Kahlo decidiram amputar sua perna direita, fato que a deixou completamente desestabilizada emocionalmente. Sua autoestima estava vinculada à sua vaidade, que foi parcialmente despedaçada. Segundo Herrera (2011), Kahlo ficou tão desmoralizada que não queria ver ninguém, nem mesmo seu marido, Diego Rivera. Um pouco depois da cirurgia, escreveu em seu diário:

Quieta, a dor

Barulhento, o sofrimento o veneno acumulado --- O amor estava me abandonando Agora meu mundo era estranho de silêncios criminosos de olhos forasteiros, alertas confundindo os males. Obscuridade de dia As noites eu não vivia Você está se matando!! com a faca mórbida

(34)

dos que estão zelando por você foi minha culpa?

Admito minha grande culpa Grande como a dor

Foi uma saída enorme aquele que por que passei, meu amor. Uma saída bastante silenciosa

Que me levou para a morte. KAHLO, 2017, p. 256)

Segundo Herrera, nesse dia Kahlo tentou se suicidar. No escrito, Frida Kahlo refere-se à morte como uma saída “bastante silenciosa”, pois se mataria por overdose de medicamentos. Cabe lembrar aqui que uma das suspeitas, por ocasião da morte de Kahlo, foi suicídio, em vez de embolia pulmonar. Em suma, Frida Kahlo também foi uma sensível escritora, mesmo que a escrita tenha sido uma atividade secundária em sua vida. Assim como fazia em sua pintura, Kahlo escrevia de forma livre e espontânea e usava sua realidade como inspiração. Além de seu grande amor, Diego Rivera.

Já Clarice Lispector pintava, parafraseando Kahlo, com cores que não conhecia, porque não estava acostumada com a pintura. Em algumas crônicas de A descoberta do mundo, Lispector mostrava seu encanto pela pintura. Na crônica “Palavras de uma amiga”, de 3 de agosto de 1968, diz que a pintura e a escultura a acalentavam: “Agora a pintura e a escultura podem acalentar.” (LISPECTOR, 1999, p. 122) Não é à toa que a escritora cria personagens que são pintoras, em Água Viva e em Sopro de vida, e uma personagem escultora, em A paixão segundo G.H.

Em Água Viva, de 1973, Lispector estabelece uma relação estreita entre pintura e escrita, ao criar uma personagem pintora que tem necessidade de escrever. A personagem diz que escreve porque a escrita é a área do destinatário. “Também tenho que te escrever porque tuas searas são de palavras discursivas e não o direto de minha pintura.” (p. 12). Contudo, mais do que para entrar na “seara” do outro, a personagem diz que se refaz ao deixar de pintar para escrever, ponto em comum com a biografia da autora, que se refaz ao pintar, saindo da escrita. Na verdade, todo o livro pode ser interpretado como uma metáfora, na qual muitas passagens exemplificam a forma dura e dolorida como a personagem pinta, assim como a forma da escrita de Lispector, fazendo reflexões sobre a vida e morte, sobre sonhos e estados da alma.

Escrevo em signos que são mais um gesto que voz. Tudo isso é o que me habituei a pintar mexendo na natureza íntima das coisas. Mas agora chegou a hora de parar a pintura para me refazer, refaço-me nestas linhas. Tenho uma voz. Assim como me lanço no traço do meu desenho, este é um exercício de vida sem planejamento. O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo- me acontecer. (LISPECTOR, 1973, p. 24)

(35)

Segundo Carlos Mendes de Sousa, em Clarice Lispector: figuras da escrita, em Água viva Lispector não busca apenas escrever, e sim escrever-pintar, ou seja, trabalhar simultaneamente e conjuntamente os dois gestos, tanto da escrita, quanto da pintura. Esses gestos se alternam durante o livro – ora se pinta, ora se escreve. O livro não descreve o processo de escrita, mas mostra que a personagem escreve como pinta: “Aprofundo as palavras com se pintasse.” (p. 14). Em todo o livro, a personagem escreve como se pintasse, usando sempre a própria experiência para conseguir escrever, já que essa era uma seara nova para ela, trocando a pena por “essa coisa estranha que é a palavra”. Segue dizendo que pinta um “isto” e também escreve um “isto”.

Vou te dizer uma coisa: não sei pintar nem melhor nem pior do que faço. Eu pinto um "isto". E escrevo com "isto" – é tudo o que posso. Inquieta. Os litros de sangue que circulam nas veias. Os músculos se contraindo e retraindo. A aura do corpo em plenilúnio. Parabólica – o que quer que queira dizer essa palavra. Parabólica que sou. Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maças. E não me somo. (LISPECTOR, 1973, p. 74)

Lispector pintou a maioria de seus quadros anos depois da publicação de Água Viva, sem muita técnica, mas claramente fazendo aquilo que amava, naqueles que seriam seus últimos dias de vida. Pintava o que estava em seu inconsciente: sentimentos como medo, alegria e confusão. Ela já havia se questionado sobre o escrever – “Quem sabe escrevo por não saber pintar?” (LISPECTOR apud SOUSA 374)– e também dito que o processo de escrever e de pintar brotavam da mesma fonte: “Antes de mais nada pinto pintura. Acho que o processo criador de um pintor e do escritor são da mesma fonte. O texto deve se exprimir através de imagens e as imagens são feitas de luz, cores, figuras, perspectivas, volumes, sensações.” (LISPECTOR apud SOUSA 348)

Clarice Lispector também refletia sobre a pintura em muitas crônicas, principalmente na crônica "Temas que morrem", de 24 de maio de 1969. Ela diz que se sentiria inteira, realizada, se seu trabalho fosse pintar.

A verdade é que simplesmente me faltou o dom para a minha verdadeira vocação: a de desenhar. Porque eu poderia, sem finalidade nenhuma, desenhar e pintar um grupo de formigas andando ou paradas – e sentir-me inteiramente realizada nesse trabalho. Ou desenharia linhas e linhas, uma cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas linhas que os outros talvez chamassem de abstratas. (LISPECTOR, 1999, p. 197)

(36)

Lispector pintou ao todo 22 quadros, a maioria sobre madeira (apenas três sobre tela), os quais se encontram atualmente em dois acervos, o do Instituto Moreira Salles e o da Fundação Casa de Rui Barbosa, ambos no Rio de Janeiro. Ao olhar as suas telas, pode-se perceber o descompromisso com qualquer técnica específica; elas são pintadas com tinta guache, cola quente, lápis de cor, cores e linhas com manchas fortes. Uma construção que indica sobretudo inquietação e turbulência interior.

A maioria das telas foi pintada em 1975, dois anos antes da morte da escritora. Tratava-se de uma forma livre dela Tratava-se expressar, uma forma de Tratava-se acalentar. As formas e linhas geram composições abstratas, mas, segundo Lispector, na crônica “Abstrato é figurativo”, de 10 de outubro de 1970, a arte abstrata é na verdade figurativa: “Tanto em pintura como em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu.” (LISPECTOR, 1999, p. 316)

Ao mencionar a literatura, ela se refere ao olhar novo diante da realidade, ou seja, para Lispector, as obras que são consideradas abstratas, obras nas quais os artistas não estão preocupados em representar uma realidade, na verdade, são figurativas, são obras que, sim, querem mostrar a realidade, mas uma realidade difícil de ser vista e entendida por nós a olhos nus, uma realidade que não está a mostra.

Segundo Ricardo Iannace (2009), a pintura abstrata tem por base a autonomia, a liberdade criadora. As cores são arbitrárias, as pinceladas, enfáticas, e as texturas, exageradas; há colagens, distorções de figuras e de outras formas naturais. A composição abstrata, com suas linhas cruzadas umas sobre as outras, suas cores vivas e intensas, mostra uma realidade que vai além do visível: as coisas no mundo são tão invisíveis, dinâmicas e imateriais quanto tangíveis, estáveis e concretas. Lispector diz, na crônica “Temas que morrem”, que mesmo se pintasse apenas linhas, ali se sentiria concreta. “Desenharia linhas e linhas, uma cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas linhas que os outros talvez chamassem de abstratas.”

Em muitas outras crônicas, Lispector traz essa ideia de que o abstrato na verdade é concreto, figurativo. Em "Dois meninos”, a escritora cria um diálogo entre dois personagens que discutem sobre o que é abstrato e o que é concreto, em que os dois pareciam entender os conceitos de maneiras distintas. O diálogo dos meninos deixa o leitor em dúvida se matérias, sentimentos, emoções são realmente abstratas e não concretas. Já na crônica “Abstrato é figurativo” Lispector, mais uma vez afirma que abstrato na verdade, são as realidades não vistas. “Tanto em pintura como em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a

(37)

olho nu.” (LISPECTOR, 1999, p. 316) Lispector tematiza o “não dito” não apenas em sua literatura, mas também em sua obra pictórica, por meio de uma nova forma de interpretação e expressão da realidade.

Em Água Viva (1973), a personagem pintava grutas; e, em 1975, Lispector pintou um quadro intitulado “Gruta” (Figura 9) e outro intitulado “Interior da gruta”. As telas criam, a princípio, uma sensação de estranhamento, desconforto. Como a personagem descreve, “Só repetindo seu doce horror, caverna de terror e das maravilhas, lugar de almas aflitas, inverno e inferno.” (p. 16)

Figura 9: Clarice Lispector, Gruta, 1975. Técnica: mista sobre madeira, 40x50 cm. Fonte: Iannace, 2009

Em 1975, Lispector pintou o quadro “Medo” (técnica mista sobre madeira, 30 x 40 cm), que hoje se encontra no Arquivo-Museu da Literatura Brasileira, da Fundação Casa de Rui Barbosa. O título da obra remete a um sentimento também presente em muitas de suas obras literárias. Frequentemente, nós o personificamos, mas o medo em si não é tangível. Lispector conseguiu passar o sentimento para o quadro, conseguiu dar forma a algo que é abstrato, tornando-o concreto, ainda que por meio de uma forma abstrata. No congresso de Bruxaria em Bogotá, do qual participou em 1975, Clarice comentou a respeito desse quadro:

[...] Pintei um quadro que uma amiga me aconselhou a não olhar porque me

faria mal. Concordei. Porque neste quadro que se chama Medo eu conseguiria pôr para fora de mim, quem sabe se magicamente, todo o medo-pânico de um ser no mundo. É uma tela pintada de preto tendo mais ou menos ao centro uma mancha

Referências

Documentos relacionados

a) Aplicação das provas objetivas. b) Divulgação dos gabaritos oficiais do Concurso Público. c) Listas de resultados do Concurso Público. Os recursos interpostos que não se

Quando negativo, indica que parte do ativo não circulante (Permanente e Realizável a Longo Prazo) está sendo financiado por recursos de terceiros de curto prazo, o

g) aprovar ou não os pedidos de demissão de membros da Diretoria. 16 - A plenária será convocada pela Diretoria, através de seu presidente, com antecedência mínima de oito dias.

As pontas de contato retas e retificadas em paralelo ajustam o micrômetro mais rápida e precisamente do que as pontas de contato esféricas encontradas em micrômetros disponíveis

Código Descrição Atributo Saldo Anterior D/C Débito Crédito Saldo Final D/C. Este demonstrativo apresenta os dados consolidados da(s)

- os termos contratuais do ativo financeiro dão origem, em datas específicas, aos fluxos de caixa que são apenas pagamentos de principal e de juros sobre o valor principal em

Por esta razão, objetivamos analisar a política de expansão da Igreja Católica na Bahia, na década de 1950, e sua correlação com a criação do Primeiro Bispado em Vitória

As abraçadeiras tipo TUCHO SIMPLES INOX , foram desenvolvidas para aplicações que necessitam alto torque de aperto e condições severas de temperatura, permitin- do assim,