V Mostra de Pesquisa da
Pós-Graduação
Cinema e sexualidade: aspectos narrativos e estéticos das
representações do sexo no cinema produzido no Rio Grande do
Sul
Cristina Kessler Felizardo, Carlos Gerbase (orientador)
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, FAMECOS, PUCRS
Resumo
O presente trabalho consiste em uma apresentação do projeto de dissertação de mestrado em andamento provisoriamente intitulado “Cinema e sexualidade: aspectos narrativos e estéticos das representações do sexo no cinema produzido no Rio Grande do Sul”. A pesquisa busca desvendar como é tratada a temática da sexualidade nesta cinematografia em especial, a partir da análise de cenas que contêm representações do ato sexual nos filmes de ficção em longa-metragem produzidos no estado. Entre os principais referenciais teóricos e metodológicos estão Michel Foucault (1984, 1985, 1988, 1990, 1994, 1996), Tanya Krzywinska (2006), Jullier e Marie (2009) e Vanoye e Goliot-Lété (1994).
Introdução
Sexo e sexualidade são temas capazes de provocar o interesse e a curiosidade, tanto quanto o desconforto e o constrangimento. O terreno da sexualidade é pantanoso, irregular, obstruído por paradoxos e ambigüidades. Para Foucault (1988), a sexualidade é, ela própria, produto de uma diversidade de discursos heterogêneos. O autor chama a atenção para o fato de que, mais poderosa e eficiente que a interdição do sexo, é a produção de discursos afirmativos sobre o tema. Segundo o filósofo, os elementos negativos denunciados pela hipótese repressiva (proibições, censuras, negações) seriam “somente peças que têm uma função local e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso.” (FOUCAULT, 1988, p.18-19). Ao contrário de sofrer apenas um processo de restrição, Foucault sustenta que, a partir do século XVII, o sexo
foi, mais do que nunca, colocado em discurso. A sexualidade, para o autor, é um dos modos históricos pelos quais o indivíduo moderno constitui-se como sujeito.
Partindo das reflexões de Foucault, é possível considerarmos a arte (em geral), e o cinema (em particular), como espaços privilegiados de representações capazes de modular os imaginários. Se os discursos sobre o sexo estão por todos os lugares, encontram nas formas simbólicas um espaço especialmente convidativo à sua articulação.
O cinema descobriu muito cedo sua vocação popular, fazendo do encontro com o público sua razão de ser. O sexo, ao contrário, pertence ao domínio do privado. Assim, a primeira transgressão assinalada pelo cinema, desde muito cedo, foi justamente a transgressão do olhar, ao tornar visíveis cenas que deveriam, em tese, estar circunscritas ao âmbito particular, e assim tirar proveito do aspecto voyeurístico que envolve a exibição cinematográfica.
Do tratamento dado à temática ao grau de explicitude imagética, as opções feitas na confecção da obra cinematográfica podem produzir resultados diversos, dos mais realistas e explícitos àqueles que fornecem apenas sutis indicações, provocando o espectador a complementar a ação com o auxílio de sua imaginação. O “proibido” e o “permitido” em termos de representações do sexo no cinema estão ligados a um complexo conjunto de interesses que envolvem produtores, governos, grupos religiosos e a sociedade em geral. Assim, estão envolvidos no tema tanto a interdição (censuras, códigos de produção, sistemas de auto-regulamentação) quanto a afirmação (discursos produzidos pelos filmes em torno do sexo)
.
A proposta da pesquisa, de caráter qualitativo e exploratório, é oferecer um espaço de reflexão sobre as diferentes abordagens à temática que vêm sendo feitas pela cinematografia produzida no Rio Grande do Sul, além de esclarecer conceitos e questões envolvidos no tema.Metodologia
Além de uma pesquisa bibliográfica sobre aspectos das representações do sexo no cinema, outras estratégias metodológicas vêm sendo utilizadas a fim de operacionalizar a parte empírica da pesquisa:
1. Levantamento do corpus de pesquisa: nosso corpus provém de um levantamento de obras artísticas inscritas em alguns critérios, a saber: filmes de ficção em longa-metragem produzidos por produtoras estabelecidas no Rio Grande do Sul (ainda que em regime de
co-produção), não importando a bitola ou o uso de suporte digital ou analógico, que contenham representações diretas ou indiretas do ato sexual, e cujas cópias estejam disponíveis.
Para a definição do corpus de pesquisa, foram cumpridas diferentes etapas:
1.1 Através de entrevista não-diretiva com o professor e pesquisador Glênio Póvoas, foi possível obter a listagem de todos os filmes produzidos no Rio Grande do Sul até o ano de 2005. Destes, foram inseridos no corpus de pesquisa apenas aqueles que atendem aos critérios de longa-metragem e obra de ficção.
1.2 Através de pesquisa documental e utilizando os mesmos critérios explicitados, expandimos a listagem de filmes gaúchos de ficção em longa-metragem, complementando a filmografia produzida no Rio Grande do Sul até o ano de 2009.
1.3 Dos filmes listados, o corpus foi reduzido aos filmes disponíveis, já que algumas das obras produzidas no estado – especialmente na primeira metade do século XX - foram consideradas perdidas, não sendo mais possível acessá-las. Assim, o corpus ficou restrito às obras disponibilizadas na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, nas videolocadoras de Porto Alegre ou nos acervos pessoais a que tivemos acesso.
2. Verificação do corpus de pesquisa e análise fílmica: a partir da redução do corpus aos filmes disponíveis, teve início a fase atual da pesquisa, referente à verificação das obras. Nesta etapa, estão sendo assistidos os filmes e selecionados aqueles que contêm cenas de representação do ato sexual, seja esta representação direta ou indireta (extra-campo, ou fora de quadro). Os filmes são numerados e classificados de acordo com a presença ou ausência de representações do sexo, e os fragmentos (cenas/sequências) em que o objeto de análise se faz presente são, então, indexados e analisados. A abordagem utilizada insere-se no quadro que Teixeira (2005) classifica como o enfoque fenomenológico-hermenêutico, uma vez que o método utilizado - a análise fílmica - proporciona o que a autora denomina um “raio-x do fenômeno”, e pressupõe certo grau de subjetividade em que a interpretação do pesquisador não pode ser dissociada da análise. Os procedimentos de análise dos fragmentos indexados são apoiados em Vanoye e Goliot-Lété (1994), que abordam a análise de um filme ou fragmento como um processo de desconstrução e reconstrução, e em Jullier e Marie (2009), que fornecem uma espécie de “caixa de ferramentas” de grande utilidade para a análise fílmica. Cumpre ressaltar que o propósito da análise é oferecer janelas para a cena, propondo aspectos passíveis de reflexão e ajudando o leitor a colocar-se em uma posição de escuta das imagens, sem a intenção de atribuir juízos de valor – sejam eles éticos ou estéticos - às formas de representação do sexo, mas buscando, através da descrição e da interpretação,
compreender as diferentes maneiras com que o cinema feito no estado abordou a temática ao longo dos anos.
Resultados (ou Resultados e Discussão)
Embora a pesquisa esteja em andamento e a etapa atual seja ainda incapaz de gerar resultados conclusivos, é possível perceber que até o final dos anos 70 e início dos anos 80 a maior parte das produções realizadas no Rio Grande do Sul não abordavam com frequência a temática da sexualidade, e quando a abordavam, faziam-no geralmente através do uso de subterfúgios e metáforas que substituíam a representação direta do ato sexual. Apenas após esta época, com o início da produção em Super-8, os filmes começam a apresentar representações mais explícitas do sexo e discutir temas considerados tabus, como a masturbação ou o homossexualismo. Ademais, já no estágio atual da pesquisa é possível traçar certas linhas gerais das formas narrativas através das quais o sexo é abordado, o que poderá permitir uma posterior classificação dos filmes de acordo com o tratamento dedicado ao tema.
Referências
ABREU, Nuno Cesar. O olhar pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1996.
AMENGUAL, Barthélemy et al. L’erotisme en question. In: Cinema d’aujourd’hui, nº 4. Paris: FilmEditions – Pierre Lherminier Editeur, 1975.
BAUER, Martin; AARTS, Bas. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados
qualitativos. In: BAUER, Martin; GASKELL, George (org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e
som: um manual prático. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008.
BECKER, Tuio. Cinema no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1995. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
________________. Escolha sexual, ato sexual. Entrevista com J. O’Higgins, traduzida por Wanderson Flor do Nascimento a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. Disponível em <http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/escolhato.html>. Acesso em 30/11/2009. ________________. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
________________. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
________________. História da sexualidade 3: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
FRANK, Sam. Sex in the movies. Secaucus, New Jersey: Citadel Press, 1986.
JULLIER, Laurent. Interdit aux moins de 18 ans: morale, sexe et violence au cinema. Paris: Armand Collin, 2008.
JULLIER, Laurent & MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
KEESEY, Douglas & DUNCAN, Paul (ed.). Cinema erótico. Köln: Taschen, 2005. KRZYWINSKA, Tanya. Sex and the cinema. London: Wallflower Press, 2006. MICHELAT, G. Sobre a utilização da entrevista não-diretiva em sociologia. In:
THOILLENT, M.J.M. Crítica Metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1982.
MOREIRA, Herivelto e CALEFFE, Luiz Gonzaga. Metodologia da pesquisa para o professor
pesquisador. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
ONFRAY, Michel. A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______________. Teoria do corpo amoroso: para uma erótica solar. Lisboa: Temas e debates, 2001.
PÓVOAS, Glênio Nicola. Histórias do cinema gaúcho: propostas de indexação 1904-1954. Tese de doutoramento. Porto Alegre: PUCRS, 2005.
REICH, Wilhelm. A revolução sexual. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. SÁINZ, Salvador. El cine erotico. Barcelona: Royal Books, 1994.
STEYER, Fábio Augusto. Cinema, imprensa e sociedade em Porto Alegre (1896-1930). Porto Alegre: Edipucrs, 2001.
TEIXEIRA, Elizabeth. As três metodologias: acadêmica, da ciência e da pesquisa. Petrópolis-RJ: Vozes, 2005.
TYLER, Parker. A pictorial history of sex in films. Secaucus, New Jersey: Citadel Press, 1974. VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas-SP: Papirus, 1994.