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ABORTO INDUZIDO E SELETIVO: O QUE PENSAM OS REPRESENTANTES DO BIOPODER?

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ABORTO INDUZIDO E SELETIVO: O QUE PENSAM OS REPRESENTANTES DO BIOPODER?

Iria Raquel Borges Wiese1 Elís Amanda Atanázio Silva2 Ana Alayde Werba Saldanha Pichelli3

Resumo: O aborto é considerado um problema ético de saúde pública. Nesse sentido, são percebidos vários atores, em cenas diferentes, que reivindicam um poder de decisão sobre a vida, sejam médicos, juristas e outros providos de poderes. Os motivos de se investigar o aborto a partir desses profissionais justificam-se pelo fato destes serem representantes do biopoder, de um poder de decisão sobre a vida a partir de um lugar institucional, seja na assistência à saúde das mulheres, seja na formulação da denúncia, no julgamento e interpretação dos direitos. Objetivou-se analisar os discursos dos profissionais de saúde e dos profissionais de direito sobre o aborto provocado e o aborto seletivo, bem como seu conhecimento sobre o tema em questão. Foram entrevistados 15 profissionais de saúde (médicos ginecologistas/obstetras, enfermeiros e psicólogos), bem como por 10 profissionais de direito (promotores de justiça e juízes de direito), os quais também responderam a um questionário. Os dados apontaram uma posição rígida dos participantes quanto à mudança na legislação penal sobre o aborto, os quais são influenciados sobremaneira por suas crenças religiosas. Observou-se um desconhecimento dos profissionais sobre a documentação necessária para a autorização da prática do aborto legal.

Palavras-chaves: Crenças, Aborto provocado, Aborto seletivo, Direito, Saúde.

O aborto induzido no Brasil é considerado crime. A legislação, no entanto, estabelece dois casos de excludente de ilicitude para essa prática, conforme o art. 128 do Código Penal brasileiro, decreto-lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Estes são o aborto necessário, denominado também de terapêutico, sendo praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da

1 Doutoranda em Psicologia Social e graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João

Pessoa-PB, Brasil.

2 Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa-PB, Brasil. 3 Pós-Doutora em Psicologia pela universidade de São Paulo (USP), São Paulo-SP, Brasil.

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gestante, e o aborto no caso de gravidez em decorrência do estupro, chamado por alguns autores de aborto sentimental, quando consentido pela gestante ou, se incapaz, pelo seu representante legal. Do art. 124 ao 127, o aborto é qualificado, excetuando-se os casos referidos, entre os crimes contra a vida. Especificamente, no art. 124 o aborto é tipificado como crime quando provocado pela grávida ou com seu consentimento, cuja pena é de um a três anos de reclusão.

O aborto seletivo, também denominado de Interrupção Seletiva da Gravidez (ISG), corresponde à cessação de uma gestação de um feto com anomalia incompatível com a vida extra-uterina. Com o avanço do aparato tecnológico da medicina, esses diagnósticos e prognósticos podem ser feitos com precisão. Dessa forma, trata-se de um procedimento terapêutico indicado para minimizar o sofrimento da gestante se constatado a inviabilidade de vida extra-uterina do filho que carrega no ventre.

No início de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente a ação impetrada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde e descriminalizou a prática de aborto de fetos anencefálicos. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontaram o Brasil como o quarto país do mundo em prevalência de anencefalia, anomalia incompatível com a vida mais referida pelo Supremo Tribunal Federal (STF, 2008). A cada dez mil gestações levadas a termo no país, cerca de nove são de fetos anencefálicos (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero [ANIS], 2004). Embora haja já uma permissividade jurídica, pesquisas demonstram que as crenças dos profissionais guiam suas atitudes frente a casos de abortamento, muitas vezes numa direção de violência institucional direcionado às mulheres que fizeram a escolha pelo aborto seletivo, e um desrespeito ao princípio bioético da autonomia, ao interferirem diretamente nessa escolha, dificultando o exercício desse direito sexual e reprodutivo, e agora também legal, que assiste essas gestantes (PORTO, 2009; RABAY E SOARES, 2008).

Cada posição sobre a temática em questão demarca um conjunto de princípios, uma marca de contexto pessoal e, nesse sentido, não é fácil apresentar uma visão que não seja comprometida com os valores e as crenças que a compõem. Alguns estudos (PORTO, 2009; RABAY E SOARES, 2008) mostram que com os operadores do direito e os profissionais da saúde não é diferente, especialmente juízes e promotores, e obstetras, ginecologistas e enfermeiros, respectivamente. Embora se tenha uma legislação sobre o assunto e normas técnicas de atenção humanizada ao abortamento, as discussões não se encerram no ponto de vista jurídico, ao contrário, abrangem um leque variado de considerações. É justamente esse leque de considerações, os quais geralmente remetem às crenças, que interessam a esse trabalho. O que pensam esses profissionais,

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representantes do dispositivo saber/poder que legitimam e normatizam comportamentos e condutas da sociedade, os quais se confrontam diretamente em sua atividade profissional com essa problemática, sobre o aborto provocado e seletivo?

Para compreender tal objeto de estudo, referenciamos Foucault, através do seu método genealógico, metodologia que busca o poder no interior da história, ao invés de remetê-lo a um sujeito constituinte, considerando, dessa forma, os efeitos que discursos revestidos de cientificidade produzem. Trata-se de uma reconstituição da história, de forma não linear, que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc. A referência não deve ser o modelo de língua e signos, mas sim o da historicidade, o que interessa não é a relação de sentido, mas sim a relação de poder, sobretudo sobre os corpos. “A genealogia, como análise da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo” (FOUCAULT, 2007, p. 15). Um dos privilégios do poder soberano foi por muito tempo o direito de vida e de morte. Essa prerrogativa, sem dúvida, derivava do direito concedido ao pai de família romano de dispor da vida de seus filhos e escravos. Da mesma forma, escavando as origens do que se denominou aborto, observa-se que essa problemática nem sempre ganhou status de tema polêmico, sendo seu entendimento variado de acordo com o imaginário social de determinada época, o qual impulsiona a história. Em outras épocas, segundo o livro do Êxodo da Lei Hebraica (1000 anos antes de Cristo), a prática do aborto era punida conforme quisesse o marido e o arbítrio social, uma vez que a mulher não tinha autonomia sobre seu próprio corpo. Nesse sentido, o feto não era considerado no ato de abortar, mas sim o prejuízo econômico causado ao marido da vítima. Dessa forma, passou-se a castigar tanto o terceiro que tenha praticado aborto quanto a própria gestante, sendo o aborto tido como um ato de lesão ao direito do marido à prole (MATIELO, 1994; VERARDO, 1987).

Uma história do aborto pode ser considerada como a genealogia dos valores, da moral, da sexualidade, dos interesses econômicos e patriarcais, concentrada nas meticulosidades e nos acasos do começo, escavando suas origens. O genealogista precisa reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas. É essa minuciosidade que caracteriza o método, o que não é possível fazer neste trabalho, devido a inúmeras questões, sendo feito apenas en passant (FOUCAULT, 1997; FOUCAULT, 2007; MATIELO, 1994; VERARDO, 1987).

Contudo, o direito de vida e morte já não é mais um privilégio absoluto. Com isso, o direito de morte deslocou-se no sentido de um poder que gera a vida. Essa morte, fundamentada no direito

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soberano de defesa ou de pedido que defesa, vai surgir como o simples reverso do direito do corpo social de possibilitar a sua própria vida, de mantê-la ou desenvolvê-la, a partir de mecanismos de controle e regulação das populações. Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenvolver que o poder funda seus pontos de fixação; a morte configura-se como o momento que foge ao seu domínio; ela se traduz como o ponto mais secreto da existência, o mais “privado”. Nesse sentido, pode-se afirmar que a sociedade revestiu-se de um poder político responsável pela tarefa de gerir a vida (FOUCAULT, 1997).

Um dos fenômenos fundamentais do século XVII foi o que se poderia designar de a ascensão da vida pelo poder: “se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico”. (FOUCAULT, 2005, p. 286). Esse poder sobre a vida erigiu-se sobre dois pólos fundamentais; o primeiro centrou-se no corpo como máquina, no conhecimento e docilização do corpo assegurados por procedimento de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo se formou um pouco mais tarde, no século XVIII, cuja análise repousou sobre o corpo-espécie, transpassado por processos biológicos: os nascimentos, a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, processos assumidos mediante uma série de intervenções e controles reguladores, ou seja, uma bio-política da população. Resumidamente, pode-se falar num biopoder, na organização do poder sobre a vida, o qual se desenvolveu em torno dos dois pólos: das disciplinas do corpo e das regulações da população. Foucault (1997) afirmou que

Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos (p. 132).

As problemáticas em torno do ser humano durante a modernidade foram situadas ao mesmo tempo fora da história a partir das imediações biológicas e dentro da historicidade humana, permeada por suas técnicas de saber e de poder. A partir de então, proliferaram-se tecnologias políticas a fim de se investir no corpo, na saúde, nas maneiras de se alimentar e morar, e, pode-se dizer também, nas escolhas e direitos reprodutivos. De fato, o controle da vida é um objeto de

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disputa na sociedade moderna, visto que oposto às épocas nas quais um soberano possuía o direito de matar ou de deixar viver, as sociedades contemporâneas são caracterizadas pela existência de um poder político que se outorga a tarefa de gerir a vida (FOUCAULT, 1997).

Nessa perspectiva, a problemática do aborto coloca em cena diferentes atores que reclamam um poder de decisão sobre a vida. Estes são os médicos, os governos e o poder judiciário. Outra consequência desse biopoder é a crescente importância assumida pela atuação da norma, aplicada através do sistema jurídico da lei. De acordo com Foucault (1997, p. 135) "a lei funciona como uma norma e a instituição jurídica se integra cada vez mais a um contínuo de aparelhos (médicos, administrativos, etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras". Nesse contexto, parece que os diferentes atores que disputam o poder sobre o embrião posicionam-se dentro de um campo de representações onde o direito à vida constitui um pano de fundo. A análise de dados divide de um lado a problemática pelo controle da vida e de outro um discurso científico sobre o embrião, no qual o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, muito mais que o direito que se tornou um objeto de disputas políticas, mesmos se estas disputas se formulam através de afirmações jurídicas.

A proposta de investigação dos discursos acerca do aborto, cujo objetivo central é o levantamento, através de entrevistas, das crenças dos profissionais de saúde e de direito já referidos, insere-se no campo da pesquisa qualitativa. Os motivos de se investigar o aborto a partir desses profissionais se justifica pelo fato de estes serem representantes do biopoder, ou seja, da decisão sobre a vida a partir de um lugar institucional, de micropoderes constituintes do próprio Estado. Nesse sentido, propõe-se como método de investigação o arqueológico. Este analisa as formações discursivas, a partir de fatos enunciativos produzidos por sujeitos em determinado lugar institucional. A arqueologia também ressalta as relações entre as formações discursivas e as não-discursivas (instituições, práticas, processos econômicos, etc.).

Método

2.1. Participantes

Participaram do estudo 26 profissionais, sendo 10 da área de Direito (6 juízes e 4 promotores) e 16 da área de Saúde (7 enfermeiros, 5 médicos e 4 psicólogos). Observou-se que a maioria dos participantes é do sexo feminino (N=15), com idades variando entre 24 e 60 anos (M=39,77; DP=10,86), sendo 30 – 49 anos a faixa etária de maior frequência. Quanto ao tempo de atuação na área de profissão, a maioria respondeu o período de 0 – 10 anos. Em relação ao item

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religião e religiosidade, estes disseram ser, majoritariamente, católicos e religiosos, respectivamente. Para a delimitação do número de entrevistados, apenas para o estudo qualitativo, foi utilizado o critério de saturação (SÁ, 1998), segundo o qual “quando os temas e/ou argumentos começam a se repetir isto significaria que entrevistar uma maior quantidade de outros participantes pouco acrescentaria de significativo; pode-se então realizar mais umas poucas entrevistas e parar” (p.92). Nesse sentido, responderam ao questionário 16 profissionais de saúde e 10 de direito, os quais também participaram da entrevista. Vale ressaltar que uma entrevista com um dos profissionais de saúde, uma psicóloga, foi perdida, totalizando, desse modo, 15 profissionais de saúde entrevistados.

2.2. Instrumentos

Utilizou-se como um dos instrumentos de coleta de dados um questionário bio-demográfico, a fim de identificar o perfil dos participantes, tendo como variáveis de interesse o sexo, a idade, etnia, a profissão, o estado civil, número de filhos, a religião, a religiosidade, o tempo de trabalho na área, bem como um questionário auto-aplicável como proposto por Faúndes, Duarte, Andalaft-Neto, Olivatto e Simoneti (2004), a fim de verificar o conhecimento dos profissionais de saúde e de direito acerca da legislação brasileira sobre o aborto. Em seguida, foi realizada uma entrevista do tipo semi-estruturada com os participantes da pesquisa com a finalidade de investigar suas crenças sobre o aborto seletivo e o aborto provocado, com seguinte pergunta norteadora: o que o senhor/senhora pensa sobre o aborto provocado e o aborto seletivo?

2.3. Procedimentos

O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado da Paraíba com o fim de solicitar autorização para seu prosseguimento. Mediante aprovação, iniciou-se a fase de coleta de dados, na qual os participantes foram contatados e informados, previamente, a respeito dos objetivos e procedimentos da pesquisa. O contato com os participantes foi feito nos locais de coleta acima referidos, cujos diretores já haviam previamente declarado possuir condições para o desenvolvimento deste estudo, autorizando a sua execução. 2.4. Análise dos dados

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Os dados bio-demográficos, bem como os do questionário, foram analisados através de estatística descritiva (frequência, média, desvio padrão). Os discursos foram analisados com base em Categorias determinadas a partir dos sentidos suscitados e processados em uma série de etapas, de acordo com a proposta de Figueiredo (1993).

Resultados e discussão

Em relação ao conhecimento dos participantes acerca da legislação sobre o aborto (tabela 1), observou-se que a maioria (n=24), sendo 15 da área de saúde e 9 da área de direito, respondeu que esta prática não é punida, se praticada por médico, nos casos em que há risco de vida para a gestante (aborto terapêutico) e quando resulta de estupro (aborto sentimental). O aborto em virtude de malformação fetal grave (aborto seletivo) foi referido pela maioria dos profissionais de saúde (n=10) como sendo permitido pelo Código Penal (CP) brasileiro, diferentemente dos profissionais de direito, cuja minoria (n=4) respondeu nesse sentido. Desse modo, pode-se concluir que a opinião sobre a legislação do aborto da maioria dos participantes, de ambas as classes profissionais, foi consonante com as previsões legais (GRECCO, 2010).

Quanto à opinião sobre quais circunstâncias o aborto deveria ser permitido, a maioria dos participantes concordou que as situações previstas em lei devem continuar sendo autorizadas, sendo 22 participantes favoráveis ao aborto terapêutico, 13 de saúde e 9 de direito, e 19 favoráveis ao aborto sentimental, sendo 13 de saúde e 6 de direito. Observou-se que dois participantes disseram ser contra a legalização do aborto terapêutico, sendo eles evangélicos. Dentre aqueles que afirmaram ser contrários à prática do aborto sentimental (n=5), 3 responderam ser adeptos da religião evangélica e 4 são da área de direito. No tocante ao aborto seletivo, a maioria dos participantes (n=22) também respondeu ser favorável e a minoria (n=3), 2 evangélicos e 1 católico, contrária.

Frente às demais circunstâncias, os participantes, majoritariamente, se posicionaram desfavoráveis à autorização da prática do aborto. A religião ou religiosidade foi apontada por grande parte dos profissionais (n=19), 12 de saúde e 7 de direito, como sendo muito importante ou

importante na formação da sua opinião acerca do aborto. A maioria dos participantes (n=17) afirmou, ainda, que a sua religião não aceita a prática do aborto em nenhuma situação. Devido ao tamanho da amostra e demais especificidades, não se pode afirmar que houve relações estatisticamente significativas entre as variáveis de estudo, embora se tenha observado que dentre

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os profissionais contrários à prática do aborto, todos afirmaram ser adeptos de alguma religião. A influência das crenças religiosas nas respostas dos participantes foi observada com mais clareza nas entrevistas.

Desse modo, nas entrevistas puderam-se observar duas categorias: Crenças contrárias e Crenças favoráveis à prática do aborto induzido. Na primeira categoria, foram observadas narrativas em torno da sacralidade e heteronomia da vida, permeadas por crenças de cunho religioso: “(...) eu sou totalmente contra essa possibilidade, uma vez que ele viola o bem mais

sagrado do ser humano que é a vida (...) principalmente o Brasil que é um país muito religioso, com a influência da Igreja católica (Promotor 2)”. “Tem a questão religiosa, né? Que eu sou católica. Até pra esses abortos de pacientes de estupro, eu me sinto mal à beça” (Médica 4).

Além disso, os profissionais consideraram o aborto enquanto homicídio e crime, ainda aliada à ideia de sacralidade da vida: “Pra mim é um crime, um homicídio que dá-se o nome de

aborto pela especialidade, pra mim não muda, pra mim ainda é um agravante que diz que quem está fazendo isso é a própria mãe, então pra mim é mais grave ainda.” (Promotora 1). “Eu gostaria de compreender, mas os meus princípios morais, religiosos, pessoais, minhas convicções, minha racionalidade não me permitem compreender, a não ser, como eu disse, como um crime” (Juiz 1). “Como é que a pessoa tem coragem de fazer uma coisa daquelas, sabendo que é ilegal,

quem é que vai legalizar, já basta de homicídios que acontece no. Vamos legalizar mais homicídio é?(Enfermeira 5).

Na segunda subcategoria, foram constatados discursos pró-escolha ancorados na perspectiva dos direitos reprodutivos e sexuais , na redução de riscos e danos e, por fim, na autonomia da mulher sobre seu próprio corpo, observados apenas dentre os profissionais de saúde, sendo 1 médica, 2 psicólogas e 2 enfermeiros, os quais apresentaram os seguintes discursos: “Teria que ser

estudado esse caso do aborto com mais facilidade, ser tirado dessa esfera da criminalidade, passar pra outra esfera judicial, e rever a mulher como ser humano. Porque a gente não vê, é como uma caixinha de fazer filho (...) ninguém vê realmente, psicologicamente aquela pessoa. É um drama que só você passando mesmo perto daquela pessoa pra você ver.” (Enfermeira 2). A mulher

poderia ter esse direito, tanto em determinados casos, como também ter esse direito e ter todo um recurso, toda uma segurança.” (Psicóloga 3).

Emergiram duas subcategorias, Crenças contrárias e Crenças favoráveis à legalização do aborto seletivo. Na primeira subcategoria, foram observados dois discursos em torno da sacralidade da vida, permeadas por crenças de cunho religioso, remetendo-se para a fatalidade, o determinismo

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que pode ser compreendido com a máxima “assim Deus quis”, e pela crença num milagre divino: O

seletivo eu sou a favor de continuar com a gestação porque, voltado pra minha religião, eu acredito muito que de certa forma que milagres acontecem. Então por que não deixar essa pessoa viver durante o período que ela pode conseguir viver? (Enfermeira 4).

Na segunda subcategoria, foram constatadas narrativas justificando a legalização através do diagnóstico de inviabilidade do feto, bem como no sofrimento que a gestação poderia acarretar à mãe e ao nascituro: “(...) embora o coração esteja batendo, (...) se a mãe não quer, se a ultrassom

está comprovando ali que não tem a menor possibilidade dele sobreviver e você obrigar uma mãe, mesmo que ela não vá correr risco, a levar aquela gravidez adiante até os nove meses eu acho que aí tem que ouvi-la mais, sabe? Tem que dar um apoio a ela (...) a medicina está muito avançada não aí nesse caso, eu acho que a gente tem que começar a entender que não tem como obrigar uma mãe que não quer.” (Juíza 1) “A questão é sobrevida. Depois que esse bebê nascer, como vai ser? (...) Sou de acordo com a indução do aborto (...) não teria uma vida que se estenderia” (Enfermeira 5).

No âmbito das opiniões dos profissionais jurídicos, uma pesquisa recente feita com juízes e promotores sobre a legislação do aborto, mostrou que grande parte deles respondeu favoravelmente à ampliação das circunstâncias em que o aborto não é punido, especialmente em relação ao aborto seletivo. Verificou-se, ainda, uma relação estatisticamente significativa entre a atitude frente ao aborto e a religião. Dentre os que afirmaram concordar com a permissão do aborto em todas as circunstâncias apresentadas pelo estudo, a maioria respondeu não ser religiosos ou de religiosidade intermediária, ou cuja religião ou concepções religiosas pessoais não foram importantes (DUARTE, OSIS, FAÚNDES & SOUSA, 2010). Nesse sentido, observou-se que as crenças religiosas foram importantes na formação dos participantes da pesquisa em questão, de acordo também com os resultados da presente pesquisa. Contrariamente à literatura (PAPALEO, 2000), os evangélicos não se mostraram flexíveis frente aos abortos já previstos em lei, visto que sua maioria respondeu que o aborto sentimental não deveria ser legalizado.

Quanto às informações jurídicas, observou-se um desconhecimento tanto por parte dos profissionais de saúde quanto dos profissionais de direito acerca do procedimento legal para a prática dos abortos previstos em lei. A maioria dos participantes de ambas as áreas errou ao afirmar ser necessário o alvará judicial para a realização os abortos legais (sentimental e terapêutico). Para estes não se faz necessário nenhum tipo de formalização judicial (GRECCO, 2010).

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Em relação ao boletim de ocorrência, grande parte dos profissionais pesquisados respondeu equivocadamente ser necessário para a prática do aborto sentimental, o que também foi constatado nas pesquisas referidas acima. A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (BRASIL, 2005) retirou a obrigatoriedade da apresentação do boletim de ocorrência policial em se tratando de maiores de 18 anos. O embasamento legal é que tal crime é de iniciativa privada, cabendo à vítima iniciar a investigação criminal e processar judicialmente o agressor, e o direito da mulher de presunção de veracidade de seu depoimento (VENTURA, 2009).

Tais resultados corroboram a tese de que grande parte dos serviços de saúde não está habilitada para a assistência às mulheres vítimas de violência e, mais precisamente, os casos de estupro. Muitas mulheres que engravidam em decorrência de violência sexual ainda não têm acesso ao aborto legal, visto que o número de estupros não corresponde à solicitação pela interrupção nos serviços especializados Embora a lei não exija boletim de ocorrência nem laudo de perícia para a realização do aborto legal, ele é usualmente solicitado nos serviços médicos. Isso acontece devido ao temor dos médicos de serem acusados na justiça pela prática do aborto. No entanto, esse temor é injustificado, pois caso o médico seja induzido ao erro ao indicar aborto legal, devido às circunstâncias, ficará isento de pena (FAÚNDES, OLIVEIRA, ANDALAFT NETO & COSTA LOPEZ, 1998).

Referências

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Referências

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