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O ANAGRAMA DE NAEL: PARADOXOS E MEMÓRIA PRESENTES NO NARRADOR DO ROMANCE DOIS IRMÃOS DE MILTON HATOUM

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Baleia na Rede, Vol. 1, nº 8, Ano VIII, Dez/2011 - ISSN 1808 -8473 – FFC/UNESP/Marília, SP

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O ANAGRAMA DE NAEL: PARADOXOS E MEMÓRIA

PRESENTES NO NARRADOR DO ROMANCE ‘DOIS IRMÃOS’ DE

MILTON HATOUM

Vera CECARELLO1 Resumo: O narrador do romance Dois irmãos de Milton Hatoum pode ser considerado como tendo uma presença que é ausente. Nael é um narrador que é testemunha e protagonista, já que é o portador do discurso, transmitindo a história da família de libaneses. O romance conta a história conflituosa dos gêmeos Yaqub e Omar que viviam em Manaus. Filho da empregada índia com um dos gêmeos que viviam na casa, Nael rememora seu passado quando quase todos já estavam mortos. Sua ambigüidade de pertencimento, ou ainda, a dialética entre os aspectos formais e sociais dão corpo à narrativa de Nael. Seu olhar fronteiriço e à margem permeia todo o romance e relaciona aspectos internos da narrativa com aspectos mais amplos do contexto histórico brasileiro no século XX.

Palavras chave: Literatura brasileira. Literatura e sociedade. Milton Hatoum. Narrador.

Manaus, Yaqub e Omar

“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor nem o que foi nem o que fui [...] Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falta eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” (ASSIS, 1995, p. 14)

Filhos de Halim e Zana, os gêmeos Yaqub e Omar são os protagonistas de um conflito que permeia toda a narrativa de Dois irmãos (2004a), segundo romance do escritor amazonense Milton Hatoum. Os gêmeos eram idênticos fisicamente, “tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmo olhos castanhos e graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura” (HATOUM, 2004a, p.16) e eram diferenciados apenas por uma cicatriz no rosto de Yaqub causada por Omar em uma briga na adolescência.

Porém, divergiam entre si em quase tudo, seja no comportamento, nas atitudes ou em suas ambições e, por isso, sempre viveram em conflito. Yaqub era mais quieto, habituado aos cálculos e, na década de 1950, muda-se para São Paulo para estudar engenharia. Omar, também chamado de Caçula, era menos afeito ao trabalho, um bom vivant que gostava de festas e atividades ilícitas. O primeiro, uma espécie de Fausto

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Vera Helena Picolo Ceccarello. Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) – Faculdade de Ciências e Letras, campus de Araraquara (FCL-Ar). E-mail: vera_pc@yahoo.com.br.

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80 tupiniquim que saiu de Manaus para construir cidades, literalmente. O outro, um

Macunaíma manauara que abusava das audácias juvenis enquanto tentava se desvencilhar da mãe.

Na parede, viu uma fotografia: ele e o irmão sentados no tronco de uma árvore que cruzava um igarapé; ambos riam: o Caçula, com escárnio, os braços soltos no ar; Yaqub, um riso contido, as mãos agarradas no tronco e o olhar apreensivo nas águas escuras. (HATOUM, 2004a, p.21).

Publicado no ano de 2000, o romance Dois irmãos (2004a) contribuiu para consolidar o nome de Milton Hatoum como um dos mais expressivos da literatura brasileira contemporânea. O livro é narrado na forma de flashbacks e se inicia pelo prólogo, com Zana no leito de morte perguntando se os filhos já haviam feito as pazes. Seu início cronológico se dá em 1914 e segue até meados da década de 1970.

O romance vai tecendo a história da família de libaneses em um período de decadência da cidade de Manaus que já não colhia mais os louros da belle époque da borracha, convivendo com as agruras deixadas por ela e pelo seu crescimento desenfreado, culminando com a implantação da Zona Franca. Uma cidade, pois, em plena transformação, situada à periferia da periferia do capital, distante do projeto modernizador que se instaurava no Brasil, especialmente na região sudeste. A decadência de Manaus não é apenas física, demonstrada pelo fim dos igarapés e da cidade flutuante, mas também mostra, através do romance de Hatoum, como seus personagens lidam com essa contingência que é da cidade, mas também de cada um deles.

O conflito latente entre os gêmeos sempre envolveu todos que viviam na casa: “a loucura e a paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e contra todos neste mundo não foram menos danosas que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição calculada” (HATOUM, 2004a, p.264). Zana, na tentativa de conciliar os filhos fazendo-os trabalhar juntos, em segredo, avisou Yaqub sobre um trabalho que Omar estava desenvolvendo em Manaus. Porém, Yaqub trai o irmão fazendo um acordo às escondidas e Omar, ao saber de tudo, se desespera, espanca Yaqub e vai preso. Como conseqüência, a única alternativa para pagar a dívida feita pelos irmãos, foi vender a casa, mesmo contra a vontade de Zana.

A decadência dessa família é também a decadência da casa, entendida como metáfora de um espaço que, ao longo do tempo, deteriorou-se em meio a conflitos,

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81 rancores e ressentimentos. Ironicamente, com o desenrolar dos acontecimentos, a única

parte da casa que permanece intacta é o quartinho dos fundos, lugar em que viveu o narrador do romance: “No projeto da reforma, o arquiteto deixou uma passagem lateral, um corredorzinho que conduz aos fundos da casa. A área que me coube, pequena, colada ao cortiço, é este quadrado no quintal.” (HATOUM, 2004a, p. 256).

O narrador do(s) romance(s)

Narrado em primeira pessoa, os detalhes dessa trajetória familiar vão sendo contados por alguém que esteve muito próximo do que aconteceu. O narrador Nael, cujo nome é revelado apenas no nono capítulo do romance, é filho de Domingas, uma índia que trabalhava como empregada na casa. Ela e o menino viviam no quarto dos fundos e é justamente de lá que ele vê muitos dos acontecimentos do romance: viu Halim lamentar a atenção desmesurada de Zana ao filho Omar; viu a partida de Yaqub e sua ascensão social em São Paulo; viu Omar permanecer em Manaus, com suas bebedeiras, contrabandos e mulheres; viu sua mãe sofrer, silenciosamente, dia após dia, humilhações e sentir saudades de sua terra natal.

Nael é um filho bastardo e não reconhecido pela família de libaneses. Sempre foi tratado como filho da empregada, mas era também filho de um dos gêmeos: “Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde eu tinha vindo. A origem, as origens. Meu passado, de alguma forma, palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia [...] Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai.” (HATOUM, 2004a, p.73).

„Quando tu nasceste‟, ela [Domingas] disse, „seu Halim me ajudou, não quis me tirar da casa... Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas ele queria muito, eu deixei...‟ (HATOUM, 2004a, p.241, grifo meu).

Ao longo do romance, muitas lacunas vão sendo preenchidas, pois a estrutura da narrativa se baseia numa relação de segredo e anúncio, sendo que os três segredos contidos na construção do romance se constituem como eixos centrais. O primeiro deles é a identidade do narrador; o segundo segredo, diz respeito à origem paterna de Nael,

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82 levado com ambigüidade até o fim; e o terceiro é o próprio desenrolar do romance que

se relaciona aos destinos dos personagens. (PERRONE-MOISÉS, 2006, p.285).

No romance Dois irmãos (2004a) há, na verdade, uma “duplicação da escrita”. Ou seja, trata-se de um livro dentro de outro livro, pois o relato de Nael que se desdobra “consiste numa versão, interpretação dos fatos – e, como tal, não pode ser simplesmente transmitido, mas implica uma construção.” (BIRMAN, 1997, p.196).. Por isso, além de ser narrador do livro, Nael é também autor.

Enquanto narrador do romance ele tem uma presença que é ausente. Isso se coloca como um paradoxo que é a chave para a compreensão de sua narrativa: ao mesmo tempo em que é o epicentro do romance, o portador do discurso e aquele que narra os acontecimentos de toda a família, Nael não se mostra ou se deixa entrever muito pouco nas linhas do romance. Estava perto o suficiente dos fatos para poder narrá-los posteriormente, mas estava longe o bastante para não participar da vida familiar. Isso se deve à sua condição periférica dentro da família, diante do seu não reconhecimento como parte dela. Essa bastardia se confunde também como uma condição de agregado, vivendo na casa a custa de pequenos favores, usando roupas e livros dos gêmeos além de ser o porta-voz de Zana sobre as fofocas da vizinhança.

Podia freqüentar o interior da casa, sentar no sofá cinzento e nas cadeiras de palha da sala. Era raro eu sentar à mesa com os donos da casa, mas podia comer a comida deles, beber tudo, eles não se importavam. Quando não estava na escola, trabalhava em casa, ajudava na faxina, limpava o quintal, ensacava as folhas secas e consertava a cerca dos fundos. (HATOUM, 2004a, p.82).

Trata-se, pois de uma condição peculiar, já que era e não era filho dos gêmeos, era e não era membro da casa. Essa ambigüidade existente na vida de Nael, especialmente com relação ao microcosmo social e familiar, também se revela na busca por suas origens paternas.

Adiei a pergunta sobre o meu nascimento. Meu pai. Sempre adiara, talvez por medo. Eu me enredava em conjecturas, matutava, desconfiava de Omar, dizia a mim mesmo: Yaqub é o meu pai, mas também pode ser o Caçula, ele me provoca, se entrega com o olhar, com o escárnio dele. (HATOUM, 2004a, p. 133).

Nael sempre desconfiou que um dos gêmeos era seu pai, mas esse segredo não é revelado ao leitor, apesar dele saber a verdade. Pouco antes da morte de Domingas, Nael

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83 confessa que ela “guardou até o fim aquelas palavras, mas não morreu com o segredo

que tanto me exasperava.” (HATOUM, 2004a, p.244). Ela revela que teve um pequeno relacionamento com Yaqub na juventude e também que, certa vez, Omar violentou-a: “Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão.” (HATOUM, 2004a, p.241).

Pode se tratar de uma estratégia narrativa, ou seja, Nael não mencionou o nome de seu verdadeiro pai para que o leitor se entremeasse pelos mesmos caminhos duvidosos que ele, fazendo com que sua história se tornasse mais verossímil. Afora isso, há um elemento importante no que tange à relação de Nael com os gêmeos: o fato de não ter mencionado o nome de nenhum deles como seu pai significa que nenhum deles agiu como tal. Essa dúvida acerca de sua paternidade gerou uma lacuna que jamais foi preenchida: “O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos.” (HATOUM, 2004a, p.264).

Nael, portanto, é um narrador à margem que não sabe de suas origens, vê com impotência o sofrimento da mãe e vê os gêmeos arruinarem a vida de todos naquela família. Ao narrar aquela história, que é sua e de cada um deles, pela primeira vez é Nael quem detém a voz, é ele quem fala por aqueles que não estão lá para contar o que ocorreu. Seu olhar é fronteiriço em parte por causa do sentimento de exclusão – social e familiar – e também porque nunca soube a identidade verdadeira de seu pai, sendo essa dúvida uma das molas propulsoras do romance.

Ele se coloca na fronteira do pertencimento, assim como sua mãe também “é e também não é uma índia” (HATOUM, 2004b, p.138): logo após seu nascimento, em um povoado às margens do rio Jurubaxi, Domingas foi levada para um internato de jovens órfãs e foi educada com os valores da “civilização” e da religião cristã. Depois disso é que foi levada para trabalhar na casa de Halim e Zana, de onde nunca mais saiu.

Os afetos e as relações mais íntimas de Nael eram com Halim e Domingas. Ele era o grande ouvinte de Halim, e foi através dele que Nael soube de muitas coisas: “Eu era o seu confidente, bem ou mal, era um membro da família, o neto de Halim.” (HATOUM, 2004a, p.134). Eram companheiros de conversas, passeios e buscas desenfreadas por Omar. A relação afetiva de Nael com Domingas e Halim passa por algo que está no romance e que Nael não presenciou como testemunha ocular, mas que lhe foram transmitidos por esses dois personagens. A experiência de vida de Nael se

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84 junta aos relatos ouvidos e dão forma ao romance Dois irmãos (2004a).

Nael, anagrama de Anel

Pode-se dizer que Nael é a síntese do romance, não apenas por ser o narrador, ou seja, aquele que faz com que o mundo ficcional se torne real para o leitor, organizando os relatos para que fiquem cognoscíveis e assumindo certa totalidade narrativa. Para além disso, há um desdobramento da função estrutural e social de Nael no romance que é ainda mais significativa e se manifesta em diferentes aspectos. Nael pode ser considerado um anagrama de Anel, pois ele é um elo, unindo as histórias e as tramas familiares, dando unidade ao romance.

Em primeiro lugar, o narrador-Anel cumpre esse papel em termos formais já que é o narrador do romance. Ele pode fazê-lo porque é tanto testemunha quanto protagonista da história, já que viu e participou de eventos relevantes para a trajetória da família e da sua própria. Além disso, seu caráter testemunhal também se relaciona ao fato de ser um sobrevivente, ou seja, resolve escrever seu livro quando quase todos já estão mortos. Em termos narrativos, essa espera, essa sedimentação das memórias é fundamental, pois como disse Halim certa vez em uma conversa com Nael:

[...] as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras [...] (HATOUM, 2004a, p.244).

Porém, Nael também é protagonista pois, sendo o portador do discurso, se não fosse por ele não haveria história. É ele quem organiza sua experiência com o que lhe foi contado por Domingas e principalmente por Halim. Há, neste ponto, mais um desdobramento do papel do narrador-Anel: ele opera a junção entre a narrativa oral e a narrativa escrita, rompendo com uma aparente separação entre elas.

Se se pensar na diferenciação proposta por Walter Benjamin (2010) entre o narrador oral, como o portador de uma narrativa que é coletiva – visto que ela é transmitida a partir da experiência e compartilhada com todos os membros de uma comunidade –, o narrador moderno que escreve romances, em contrapartida, não apresenta mais essa caracterização, uma vez que se isola no ato da escrita e distancia-se

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85 de seus interlocutores (BENJAMIN, 2010, p.198). Há, portanto, um declínio da

narração por haver um declínio da experiência, que se dava nas trocas coletivas e sociais, fonte na qual recorrem os narradores.

Ao narrador tradicional cabe contar as histórias, pois carrega consigo a experiência do vivido e do ouvido. Ao romancista, cabe uma experiência fragmentada e de esvaziamento do sujeito. Benjamin (2010) constata o fim da narrativa tradicional, mas aponta outra forma de narrar que surge das ruínas dessa narrativa; o narrador passa a ser aquele que recolhe as sucatas, os lixos, os cacos da vida moderna e opera a reconstrução para que o passado não caia no esquecimento. (BENJAMIN, 2010, p.37).

Nesse sentido, as lembranças de Nael são o solo fundador de sua narrativa, operando a tensão entre memória e oralidade por meio da escrita. Ele conecta e sintetiza não apenas suas memórias familiares, dando a elas uma unidade de sentido, mas também duas formas narrativas, oral e escrita. Se antes as narrativas orais eram coletivas, mas se restringiam ao local, através do romance escrito, elas podem ganhar outros espaços.

Porém, o narrador-Anel não opera apenas internamente, mas também em termos sociais. Nael é, como já foi dito anteriormente, um filho bastardo, um agregado da casa e mestiço. Ele não é assumido como filho dos gêmeos, vive de pequenos favores e mexericos e é humilhado, especialmente por Omar. Esses elementos fazem com que Nael tenha um olhar fronteiriço, uma fratura social e familiar, representada pelo lugar físico que lhe cabe na casa.

Tais questões dialogam diretamente com a própria maneira com que Nael narra seu romance: ele é um narrador ausente, que pouco se mostra e menciona seu nome apenas duas vezes durante todo o livro. É, portanto, de uma ambigüidade social formalizada pelo romance através da narrativa nuanceada de Nael. Daí a importância da forma literária para a compressão de diversos elementos, tanto formais quanto sociais dentro do romance. Trata-se de uma interpretação dialeticamente íntegra que funde texto e contexto. “O externo (no caso, o social) importa, não como causa nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto interno.” (CANDIDO, 2006, p.14, grifos do autor). Através da narrativa de Nael, pode-se melhor compreender a estruturação do romance, e a presença ausente do narrador em relação à dinâmica familiar que fazia parte, ao mesmo tempo em que era excluído socialmente.

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86 que aturar mais um filho de ninguém. “Halim se aborreceu, disse que tu eras alguém,

filho da casa...” (HATOUM, 2004a, p.250). Entre ser filho de ninguém e ser filho da casa há um vazio que Nael busca preencher com a sua narrativa e seu retorno às origens. Essa lacuna sentida por Nael pode ser entendida como uma desvalorização pessoal ou mesmo a perda de uma filiação efetiva. Assim, sua ambigüidade de pertencimento familiar se manifesta também através do seu discurso que em parte quebra o sistema familiar – ao saber claramente que lugar social lhe cabia na casa, bem como suas funções – mas também une a família através de sua origem, através de seus possíveis pais e da índia Domingas. (KOLEFF, 2005, p.37).

Por fim, amarrando o conteúdo do romance, seus segredos e seu desfecho, o narrador-Anel pode também ser considerado uma síntese do conflito entre os gêmeos Yaqub e Omar. Se na adolescência brigavam pela mesma garota, cada vez mais o espaço de disputa entre eles se acirrou, até que causou a derrocada da família por causa de um endividamento dos irmãos, acabando também com todas as relações internas entre os que viviam na casa.

A conseqüência mais nefasta e cruel dessa disputa entre os gêmeos é com relação a Domingas e Nael. Domingas foi uma vítima direta desse embate, entendido através da violência que sofreu por parte de Omar. Apesar do caso que teve com Yaqub, Domingas foi estuprada por Omar, não deixando claro, durante parte da vida de Nael, quem era seu verdadeiro pai.

Nael não transmite essa informação ao leitor, ao menos não diretamente, seja como estratégia narrativa que demonstra o percurso da dúvida de uma vida inteira, seja para reforçar que, independente de qual dos dois seja seu pai verdadeiro, nenhum deles cumpriu essa papel efetivamente. Portanto, não transmitir esse dado ao leitor pode significar que Nael é mesmo um filho de ninguém, ou o filho da casa e de sua decadência. No fundo, Nael se vale das ruínas da casa e da memória para construir sua narrativa.

Fiquei sozinho na casa, eu e as sombras dos que aqui moraram. Ironia, ser o senhor absoluto, mesmo por pouco tempo, de um belo sobrado nas redondezas do Manaus Harbour. O dono das paredes, do teto, do quintal e até dos banheiros. (HATOUM, 2004a, p. 253).

Pode-se inferir que, além da decadência da família, uma das conseqüências do conflito entre os gêmeos é Nael. A luta entre eles acabou atingindo Domingas e,

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87 portanto, Nael. “O mais complexo desses sentimentos (porque nele reside o segredo da

narrativa e da narração) é o que os liga à empregada Domingas [...], a empregada de coração simples, é o eixo afetivo sobre o qual os irmãos buscam equilibrar-se.” (PERRONE-MOISÉS, 2006, p.286). Porém, a busca pelo equilíbrio de Yaqub e Omar acabou tendo um resultado forte e significativo.

A violência sofrida pela índia Domingas equivale a dizer que Nael é o “hijo de la chingada”, aquela que foi violentada física e pelo branco: “a Chingada é a mãe aberta, violada ou seduzida pela força. O filho da Chingada é o fruto da violação, do rapto e da burla.” (PAZ, 2006, p.75, grifos do autor)2

. Metaforicamente, isso pode ser entendido como se Nael fosse também a síntese de outros conflitos implícitos: seja entre índios e brancos, imigrantes e brasileiros, locais e estrangeiros, patrões e empregados, classes trabalhadoras e classes dominantes.

Assim, entender Nael como a síntese do conflito entre os gêmeos significa entender como ele se configura como o narrador-Anel. Sua condição de bastardo, agregado da família e o filho mestiço da empregada, faz com que ele tenha um olhar fronteiriço e à margem, que se traduz numa dialética rarefeita entre o não ser e ser outro (GOMES, 1980). Tal condição tangente, o coloca como um narrador que não é apenas protagonista. Apesar de ser o portador do discurso, Nael também é uma testemunha dos fatos e dos acontecimentos, sendo seu protagonismo diluído por sua condição social, relegado pelo conflito entre os gêmeos. Foi preciso que o tempo sedimentasse suas memórias, suas lembranças para que, na condição de ser um dos únicos sobreviventes, pudesse contar sua história.

História essa que foi fruto de sua própria experiência na casa, trazida à tona através de sua memória, mas também diante do que lhe foi contado por Halim. Se uma comparação com o narrador tradicional de Benjmain (2010) fosse possível, Halim seria esse narrador, que compartilha as experiências andando pelas ruas de Manaus, entre a Igreja dos Remédios e o Mercado Municipal. Porém, o único ouvinte de Halim era Nael e, através de sua escrita, as palavras de Halim transcendem aquela casa, Manaus e a região norte, dando corpo à narrativa de Nael, que une as histórias orais à escrita.

Eis o paradoxo que perpassa a vida e o romance narrado por Nael: ao mesmo tempo em que detém a voz do discurso, as memórias e a história daquela família, que também é a história de sua origem e formação, Nael se coloca como um narrador que

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Vale salientar que a referência do autor se relaciona à cultura mexicana, mas cujos pressupostos podem ser aplicados neste caso.

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88 tem numa presença ausente. Tal ambigüidade pode ser entendida a partir desses

pressupostos que são formais e também sociais. Ao dar voz aos bastardos, agregados e esquecidos numa região distante, numa casa dos fundos, nas lembranças de um filho de ninguém, Milton Hatoum faz falar um tempo, lugares e (sobre)viventes que pareciam estar distantes e esquecidos da história brasileira.

Abstract: The narrator of the novel Dois irmãos, by the brazilian writer Milton Hatoum, can be

considered as having a presence that is absent. Nael is a narrator that is witness and protagonist, as the bearer of the speech, telling the story of a lebanese family. The novel tells the trajectory of the conflict between the twins brothers Yaqub and Omar, who lived in Manaus. Son of an indian employed with one of the twins who lived in the house, Nael remembers his past when almost everyone was dead. His ambiguity of belonging, or even, the dialectic between formal and social aspects support the Nael´s narrative. His border and margin place permeates the novel and internal aspects of the narrative relating to aspects of the context of brazilian history in the twentieth century.

Keywords: Brazilian literature. Literature and society. Milton Hatoum. Narrator.

Referências Bibliográficas

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1995.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2010, v.1. (Obras escolhidas).

BIRMAN, Daniela. Entre-narrar: relatos da fronteira em Milton Hatoum. 1997. 291 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.

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HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004a.

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89 KOLEFF, Miguel A. La trama de Nael: sobre la estratégia del narrador en „Dois irmãos‟

de Milton Hatoum. Todas as letras G. São Paulo, ano 7, n.7, 2005. Disponível em: http://www3.mackenzie.br/editora/index.php/tl/article/viewFile/834/518. Acesso em: 21/01/2011.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. A cidade flutuante. In: CRISTO, M. L. P. (org.). Arquitetura da memória. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas; UNINORTE, 2006.

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Artigo recebido em 30/06/2011 Artigo aceito em 20/11/2011

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