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PRODUTIVIDADE EM PESQUISA PQ 2009 I. IDENTIFICAÇÃO. Proponente: Adriano Correia Silva

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PRODUTIVIDADE EM PESQUISA – PQ 2009

I. IDENTIFICAÇÃO

Proponente: Adriano Correia Silva

Título: Hannah Arendt e a modernidade política: da diluição da fronteira entre vida biológica e política.

Instituição: Universidade Federal de Goiás Unidade: Faculdade de Filosofia

Departamento: Filosofia

II. APRESENTAÇÃO

No prefácio de A condição humana, obra publicada há cinqüenta anos, Hannah Arendt já anuncia que seu propósito no livro não era fornecer respostas teóricas às perplexidades do nosso tempo, mas promover uma “reconsideração da condição humana a partir da posição privilegiada de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes. (...) O que proponho – prossegue Arendt – é muito simples, portanto: nada mais que pensar o que estamos fazendo” (ARENDT, 1958, p. 5). “Pensar o que estamos fazendo” consistiu, antes de tudo, em considerar as implicações das transformações operadas no domínio dos negócios humanos na era moderna e, dentre elas, da vitória do animal laborans para a compreensão da vida desejável e para o domínio político. Em vista disto, Arendt examina as condições da vida humana sobre a Terra, a distinção entre as esferas pública e privada, o significado da pólis; no mesmo sentido, busca elucidar o significado do trabalho, da fabricação e da ação, e as transformações operadas nestas capacidades humanas mais gerais, assim como na sua disposição hierárquica. As atividades do trabalho, da fabricação e da ação traduzem as dimensões fundamentais da experiência humana de sua existência como sendo ativa. Ao trabalho corresponde o animal laborans, à fabricação o homo faber e à ação o homo politicus. Esses tipos traduzem as dimensões do que é necessário, do que é útil e do que é livre.

Ao focar sua análise no que chama de “era moderna”, Arendt busca compreender as implicações políticas da diluição da fronteira entre o público e o privado por conta da ascensão da sociedade, por um lado, assim como da transformação do caráter daquelas atividades, promovida pelas inversões na hierarquia tradicional que as presidia e pela

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progressiva indistinção entre o trabalho e a fabricação. Hannah Arendt julgava, por fim, que não poderíamos apreender os fundamentos da moderna compreensão da política sem percorrer a trilha privilegiada que traz à vista a progressiva implicação da vida biológica no poder político. Essa indicação ilumina a definição dos marcos da interpretação arendtiana da modernidade como o ocaso da política, com a vitória do animal laborans e do princípio de felicidade, e a conversão da vida em bem supremo.

Pretendo pensar nesse projeto os possíveis desdobramentos das três últimas seções da obra A condição humana, a partir das indicações do prefácio, sobre nossas novas experiências e temores mais recentes. O que se depreende daí, e que Arendt apenas indica, por meio da vitória do animal laborans sobre o fabricante e o homem de ação na época moderna, é um novo limiar em que humanidade e animalidade têm suas fronteiras diluídas, e a fruição do mero estar vivo converte-se no horizonte da felicidade. Para meus propósitos, importa enfatizar o caráter dessas atividades, notadamente do trabalho e da obra, em sua relação com a natureza e o mundo, e sua relevância para a compreensão do animal laborans, não apenas como uma das dimensões incontornáveis da existência humana, mas como um tipo vitorioso na definição das possibilidades humanas de existência.

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III. PROBLEMA E JUSTIFICATIVA

Desde a publicação de As origens do totalitarismo, em 1951, o pensamento de Hannah Arendt tem se firmado como uma das mais profícuas interpretações da modernidade política, para além do próprio fenômeno totalitário tal como ele se cristalizou nos regimes nazista e stalinista. O debate que sua obra tem suscitado é permanentemente enriquecido pela apropriação de vários de seus conceitos fundamentais por pensadores incontornáveis na compreensão contemporânea da ética e da política, como Jürgen Habermas, Paul Ricoeur e Giorgio Agamben, dentre tantos outros. No caso específico de Giorgio Agamben – cuja obra, amplamente discutida atualmente, subjaz a várias das intuições básicas para o desenvolvimento dessa pesquisa, em proximidade e em distância –, encontramos uma aproximação, até então tida em geral por inusitada, entre os diagnósticos de Hannah Arendt e de Michel Foucault sobre a modernidade política, centrada na conversão do que Agamben denomina vida nua ou a vida no sentido estritamente biológico em fonte última da legitimidade dos corpos políticos, por um lado, e em objeto central do zelo e do fomento que constituem a tarefa deles. O que visamos nessa pesquisa é antes de tudo examinar a plausibilidade da hipótese, que ora aventamos, de que na obra arendtiana a era moderna e o mundo moderno estão politicamente assentados no que provisoriamente denominamos de zoocracia, ou governo da vida, compreendida como o mero estar vivo, e em que medida tal evento representaria uma ruptura com o que Arendt julga ser o sentido e a razão de ser da política: a liberdade.

O problema dessa pesquisa consiste, portanto, na indagação sobre as implicações da moderna conversão do estar vivo em preocupação humana suprema para as possibilidades de instauração de comunidades políticas orientadas pela preservação e pelo fomento da liberdade, compreendida, consoante Hannah Arendt, como a possibilidade de conservar e renovar o mundo comum por meio do permanente engendramento da novidade inerente à ação política. Para tal propósito, a obra A condição humana é central, uma vez que ela busca articular a interpretação arendtiana do significado da ação e da política com seu diagnóstico do ocaso da política na modernidade com a vitória do animal laborans e a concepção da vida como o bem supremo.

A despeito de, por um lado, estar sendo progressivamente aprofundada contemporaneamente a discussão sobre o significado do que Michel Foucault denominava biopolítica – referindo-se ao fato de, na modernidade, a regulação do processo vital ter se convertido na suprema tarefa política e resultado em uma espécie de “estatização do

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biológico” (FOUCAULT, 2002, p. 286; cf. p. 288)1, mediante a concentração da política na gestão da vida biológica, com vistas à longevidade e à produtividade de indivíduos tornados dóceis pela disciplina – e de, por outro lado, serem constantemente mencionadas as sugestões de Giorgio Agamben sobre a afinidade entre os diagnósticos de Arendt e Foucault, praticamente não dispomos ainda de um estudo amplo e aprofundado sobre a relação entre os termos vida (biológica) e política na obra de Hannah Arendt. Julgamos que nosso projeto de pesquisa, que tem em vista basicamente o estabelecimento do significado desses conceitos, da relação entre eles e a sondagem das implicações políticas correspondentes, tem sua razão de ser nesse propósito de contribuir para o preenchimento dessa lacuna.

      

1- Giorgio Agamben (2006, p. 34) nota que “quando, como mostrou Foucault, o Estado moderno a partir do século XVII começa a incluir entre suas tarefas essenciais o cuidado da vida da população – e transforma assim sua política em biopoder – é sobretudo mediante uma progressiva generalização e redefinição do conceito de vida vegetativa (que coincide agora com o patrimônio biológico da nação) que o Estado realiza sua nova vocação”.

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IV. OBJETIVOS

a) Compreender o significado dos conceitos de política e de vida na obra de Hannah Arendt, assim como a articulação entre eles, visando a situar o pensamento arendtiano no debate atual sobre a relação entre o biológico e o político.

b) Analisar em que medida uma política que tem em seu centro a vida biológica pode representar um recrudescimento da ruptura instaurada pelo totalitarismo. Em vista disso, examinar as implicações políticas da diluição da fronteira entre a natureza e o mundo humano, tal como interpretada por Arendt.

c) Examinar os passos do processo, tal como descrito por Arendt, que conduz à conversão da vida em bem supremo na modernidade, assim como à vitória do animal laborans, concebido não mais como uma condição incontornável da existência humana, mas como um tipo definidor dos contornos de um modo vida anti-político. À parte disso, examinar a adequação e o vigor heurístico do termo zoocracia para descrever o processo analisado por Arendt.

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V. METODOLOGIA

Essa é uma pesquisa teórica que será desenvolvida principalmente mediante uma investigação bibliográfica a partir das fontes primárias que constam em nossas referências bibliográficas. Como o tema da pesquisa é objeto de uma intensa discussão no âmbito da ética e da política na filosofia contemporânea, seguramente ampliaremos o escopo da bibliografia examinada, ao longo da pesquisa. Priorizaremos a análise dos próprios textos da obra, publicada ou inédita, de Hannah Arendt, notadamente devido ao fato de, mesmo em nível mundial, serem escassos os textos que investigam aprofundadamente a relação entre vida biológica e política na obra da autora.

No desenvolvimento da pesquisa, pela escassez de comentários clássicos sobre o tema, mas também devido ao modo como compreendemos a atividade filosófica, investiremos na apresentação dos resultados provisórios da pesquisa em eventos acadêmicos nacionais, internacionais e locais, visando pôr à prova as hipóteses de trabalho que orientam essa investigação. Desdobrarei, ademais, a pesquisa nos cursos que ministrarei no mestrado em filosofia no período abrangido por essa pesquisa.

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VI. APRESENTAÇÃO DA HIPÓTESE

Em A vontade de saber, primeiro volume da História da sexualidade, no capítulo conclusivo intitulado “Direito de morte e poder sobre a vida”, Michel Foucault afirma o seguinte: “o homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão sua vida de ser vivo” (FOUCAULT, 2005, p. 134). Esse diagnóstico define os marcos da sua reflexão sobre o surgimento, na modernidade, de um biopoder e uma correspondente biopolítica – a concentração da política na gestão da vida biológica, com vistas à longevidade e à produtividade de corpos tornados dóceis pela disciplina e ao “ajustamento da acumulação dos homens à do capital” (FOUCAULT, 2005, p. 133), majorando a vida em geral da população sem torná-la mais difícil de sujeitar. De uma parte, a disciplina dos corpos, de outra a regulamentação dos viventes. A regulação mesma do processo vital converte-se na suprema tarefa política e resulta em uma espécie de “estatização do biológico” (FOUCAULT, 2002, p. 286; cf. p. 288)2. Buscarei apontar, sem estabelecer, entretanto, um paralelo entre Arendt e Foucault, que, em linhas gerais, essas indicações podem iluminar também a definição dos marcos da interpretação da modernidade em Hannah Arendt como o ocaso da política, com a vitória do animal laborans e do princípio de felicidade, e a conversão da vida em bem supremo. Seguramente Arendt e Foucault, que não conheciam as obras um do outro, têm juízos distintos sobre o significado da política e do poder, para mencionar o mais flagrante. Não obstante, ambos julgam que não podemos apreender os fundamentos da modernidade política sem percorrer a trilha privilegiada que traz à vista a progressiva implicação da vida biológica no poder político.

Hannah Arendt pôs em relevo, pioneiramente3, o fato de que os gregos possuíam duas palavras etimologicamente distintas para significar vida, pois distinguiam entre a vida biológica ou a vida de todo vivente, chamada zoé, da vida da qual se pode contar uma história e identificar uma singularidade, a bíos ou o modo de vida que se pode escolher livremente, independentemente das necessidades impostas pela condição de vivente. Nas palavras de Werner Jaeger, bíos designa a existência humana, “não como um simples       

2- Giorgio Agamben nota que “quando, como mostrou Foucault, o Estado moderno a partir do século XVII começa a incluir entre suas tarefas essenciais o cuidado da vida da população – e transforma assim sua política em biopoder – é sobretudo mediante uma progressiva generalização e redefinição do conceito de vida vegetativa (que coincide agora com o patrimônio biológico da nação) que o Estado realiza sua nova vocação” (2006, p. 34).

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processo temporal, mas como uma unidade plástica cheia de sentido, como uma forma consciente de vida” (JAEGER, 1995, p. 537). A zoé traduz na vida do homem o imperativo da necessidade e os círculos inflexíveis com que a physis preside a existência de todo vivente. O que define a bíos, um modo de vida, é antes de tudo a liberdade, como salientava Aristóteles na Ética a Eudemo (1215a35ss.), o fato de que resultava de uma escolha deliberada. Dentre os modos de vida, Aristóteles, como Platão, menciona três: a vida votada aos prazeres do corpo (bíos apolaustikós), a vida política (bíos politikós) e a vida contemplativa do filósofo (bíos teoretikós). Para ambos, a despeito de esses gêneros de vida não se ocuparem das coisas necessárias nem das meramente úteis e estarem acima delas, é possível estabelecer uma hierarquia entre eles. Para Aristóteles, a vida dedicada aos prazeres do corpo é o nível mais elementar da existência humana livre, pois supõe a identidade de felicidade com prazer sensível. A vida política, a despeito da grandeza de sua meta, não pode se apresentar como o maior bem, pois, diz ele, a excelência visada pelo homem de ação, assentada na honra, permanece sempre dependente “mais de quem a confere do que de quem a recebe” (Ética a Nicômaco, 1095b23). Apenas a vida contemplativa pode ser tida pela mais desejável, não apenas porque visa fins mais elevados que os assuntos humanos, mas porque traduz, ademais, um modo de vida mais próximo das coisas divinas e mais afim à quietude contemplativa dos deuses. Com efeito, Aristóteles afirma que “se as analisássemos uma por uma, as circunstâncias da ação se nos mostrariam triviais e indignas dos deuses… A atividade de Deus, que ultrapassa todas as outras pela bem-aventurança, deve ser contemplativa; e das atividades humanas a que mais afinidade tem com esta é a que mais deve participar da felicidade” (1178b16ss.).

Se tivermos em conta a insistência de Aristóteles em separar bíos de zoé, na Ética a Eudemo e na Ética a Nicômaco, a definição do homem como animal político (zoon politikon), em A política, não deixará de nos conduzir a embaraços, notadamente se dermos razão a Hannah Arendt, mas não apenas a ela, e reconhecermos que a tradição do nosso pensamento político se assentou desde o início em uma distinção pretensamente rigorosa e segura entre natureza e política, entre a ordem da physis e a ordem do nómos, assim como entre zoé e bíos, a vida natural e o modo de vida, entre, enfim, “as atividades atinentes a um mundo comum e aquelas pertinentes à manutenção da vida, uma divisão tida por axiomática e evidente por si mesma, na qual se baseou todo o pensamento político antigo” (1958, p. 28). Ainda que o homem não deixasse de ser um membro da espécie quando se convertia em cidadão, compreendia-se que o princípio a orientar sua conduta como

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cidadão respondia às demandas da pólis, radicalmente distintas daquelas do lar (oikos), onde eram atendidas as necessidades do homem como um vivente.

Com efeito, logo no primeiro livro de A política, Aristóteles faz remontar a pólis à comunidade mais elementar que é a família, presidida pelas instituições naturais do matrimônio e da escravidão. Da família segue a vila, que se constitui da associação das famílias, e da vila segue a polis, a partir da reunião de várias vilas, mas não mais em vista da satisfação das necessidades naturais de reprodução e conservação da vida. Importa repetir esse bem conhecido movimento do pensamento aristotélico porque dele resultam duas afirmações fundamentais: a primeira, de que a pólis existe por natureza; a segunda, de que o homem é político por natureza. Aristóteles sustenta que os animais, e os homens entre eles, desejam naturalmente se reproduzir, de modo que a primeira forma de associação entre os homens é a do macho com a fêmea, que institui uma família, fundada, portanto, sobre necessidades biológicas. A vila que se segue da associação entre as famílias ainda é mobilizada pela necessidade de assegurar a reprodução e a proteção da vida, em um grau de autarquia que família alguma pode atingir. A pólis, como comunidade auto-suficiente, é o ponto culminante desse processo e, nessa medida, é por natureza, como as primeiras associações ou comunidades, na medida em que é o fim ao qual elas visam, mas transcende qualquer condição meramente gregária, uma vez que promove a vida boa.

Considerando o que indicamos antes acerca da relação entre physis e nómos, necessidade e liberdade, bíos e zoé, essa dedução biológica (KULLMANN, 1993, p. 165ss. e LLOYD, 1993, p. 136) do caráter natural da pólis e da natureza política do homem não deixa de soar problemática – não menos que, em outra medida, a indicação, no início da Metafísica, de que “todos os homens desejam, por natureza, conhecer (A, I, 980a21), ou, na Poética, de que o imitar é inato ao homem (1448b24ss.). O desconforto prossegue quando Aristóteles afirma ser evidente “que o homem é um ser político mais que a abelha ou qualquer outro animal gregário” (1253a7-9) – em suma, que o homem não é o único ser político, o único animal gregário que partilha alguma atividade comum, embora seja o mais político. A qualidade política do homem é especificada ainda pelo lógos que, mais que a voz dos animais, limitada à expressão do prazer e da dor, pode apreender e manifestar o útil e o inútil, assim como o justo e o injusto, o bem e o mal. Em todo caso, também o lógos, como diferença específica, pode ser compreendido como “uma particularidade biológica do homem” (KULLMANN, 1993, p. 167), mais que uma propriedade do comportamento social.

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A compreensão aristotélica do político por referência à natureza e o estatuto da relação physis e nómos no domínio prático deve ser examinado mais detidamente do que posso fazer nessa exposição. Cabe notar, em todo caso, que em Aristóteles o natural não coincide com o biológico, embora o inclua; de outra parte, que há formas de associação humanas que respondem à condição natural gregária do homem, mas, como no caso das constituições degeneradas, não são naturais, pois não correspondem a formas naturais, normativamente desejáveis, de governar e ser governado. Na Política, como nota Geoffrey E. R. Lloyd, “há uma tensão entre os empregos descritivos e os normativos da natureza e do natural… Não apenas Aristóteles parece não observar uma distinção necessária entre o domínio da natureza e o da sociedade humana, das leis e das convenções – entre physis e nómos –, mas, além disso, ele crê poder justificar certas recomendações concernentes a esta recorrendo àquela” (LLOYD, 1993, p. 152; cf. p. 153). O que salta à vista, com efeito, é o fato de que a physis é a um só tempo descritiva e normativa, pois corresponde tanto ao que é habitualmente o caso, sempre ou na maior parte das vezes, quanto à manifestação de um télos, um “em vista de quê”. Não obstante, Aristóteles seguramente não desconsidera a distinção e mesmo oposição entre physis e nómos. Ocorre que “o domínio que Aristóteles julga dever ser circunscrito pela physis inclui certos itens que são igualmente, de seu próprio ponto de vista, nómoi” (LLOYD, 1993, p. 155), o que o permite indicar que certos costumes e convenções humanas estão de acordo com a natureza. Aristóteles não foi muito preciso quanto ao papel da natureza em seus argumentos éticos e políticos (cf. ANNAS, 1996, p. 48), mas é seguro que quando pensa no homem como um animal político, não julga que ele seja naturalmente cidadão, uma vez que, como nota Julia Annas, “somente quando o hábito é direcionado pela razão para produzir disposições para se engajar social, cultural e politicamente com outros em uma forma de sociedade (que Aristóteles identifica com a pólis) os seres humanos atingem a meta de seu desenvolvimento natural” (ANNAS, 1999, p. 51-2). Em suma, para que nossa mera condição gregária natural resulte em uma comunidade política, não basta a mera natureza, mas são necessários ainda éthos e lógos, que constituem, junto à physis, as três condições indispensáveis para a virtude. Para Hannah Arendt, Aristóteles

julgava ser apenas uma característica do homem o fato de poder viver numa pólis e que essa organização da pólis representava a forma mais elevada do convívio humano; por conseguinte, é humana num sentido específico, tão distante do divino que pode existir apenas para si em plena liberdade e independência, e do animal cujo estar junto, onde existe, é uma forma da vida em sua necessidade. Portanto, a política na acepção de

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Aristóteles (…) não é, de maneira nenhuma, algo natural e não se encontra, de modo algum, em toda parte onde os homens convivem (ARENDT, 1998, p. 47).

Para Hannah Arendt, a tradução latina, desde Sêneca, da expressão zoon politikon por animal socialis revela o quanto a ação depende e é condicionada pelo fato de os homens viverem juntos, mas também o quanto já havia se perdido a compreensão grega original da política (ARENDT, 1958, p. 23). Com efeito, ainda que a palavra polítikon abrangesse entre os gregos o sentido de nossa condição naturalmente gregária ou social, assim como o modo de vida do cidadão, compreendia-se que o mero viver junto a outros não constituía um traço especificamente humano, como indicamos, uma vez que esse mero estar junto era compreendido como uma limitação imposta pelas necessidades de nossa vida biológica e não constituía diferença suficiente para expressar a especificidade da condição humana.

A célebre definição dupla do homem como zoon logon ekhon (um animal capaz de fala) e zoon politikon (um animal naturalmente impulsionado à vida em comunidade), que está na origem do pensamento político ocidental, acabou por elidir a distinção, também fundamental em Aristóteles, entre zoon politikon, tal como aparece em A política, e bíos polítikos, como encontramos na Ética a Nicômaco e na Ética a Eudemo – entre o instinto para a vida social e o livre engajamento em um modo de vida que aspira a plenitude –, onde devemos notar não apenas a substituição de zoé por bíos, mas um uso de politikós que enfatiza, nas Éticas, não o instinto gregário, mas o engajamento em um modo de vida ativo que afirma a liberdade. Arendt sustenta que nas célebres definições do homem como um animal político e como um animal capaz de fala, “Aristóteles apenas formulou a opinião corrente da pólis sobre o homem e o modo político de vida, de acordo com a qual todos os que estavam fora da pólis – escravos e bárbaros – eram aneu logou, privados não da capacidade de falar, é claro, mas de um modo de vida no qual a fala e apenas a fala fazia sentido e no qual a ocupação central de todos os cidadãos era falar uns com os outros” (ARENDT, 1958, p. 27).

O estar junto a outros traduz a condição humana da pluralidade, sem a qual não poderíamos conceber a vida política. Hannah Arendt sustenta que o nosso estar junto, em todo caso, difere da mera condição gregária animal, na medida em que traduz a comunidade de seres únicos, que se reconhecem como singulares, a despeito de pertencerem à mesma espécie. Assim, “a pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política […] A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência nas leis gerais do comportamento, se

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os homens fossem incessantes repetições reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza ou essência fosse a mesma para todos e tão previsível quanto a natureza ou a essência de qualquer outra coisa” (ARENDT, 1958, p. 7 e 8).

Nesse sentido, podemos afirmar que em Aristóteles é em virtude da natural condição de vivente, ou simplesmente para viver, que os homens formam comunidades. Entretanto, se é o instinto que preside o viver em comum, ele apresenta-se como condição para o estabelecimento de uma comunidade política que, não obstante, não se dá sem a decisão consciente de aspirar a uma vida qualificada, em eudaimonia, orientada pelo lógos que discerne a justiça. Não é outra a razão de ele afirmar que “a pólis nasce para o viver, mas existe para o viver bem” (Política, I, 2, 1252b29-30). Para Giorgio Agamben, a oposição entre o simples fato de viver e a vida politicamente qualificada não pode elidir a implicação da vida biológica na política, já em Aristóteles. Para ele, devemos antes examinar a dinâmica de exclusão e inclusão que preside a relação da vida biológica com a pólis. A fórmula aristotélica traduziria, então, a política como “o lugar em que o viver deve se transformar em viver bem, e aquilo que deve ser politizado fosse desde sempre a vida nua. A vida nua tem, na política ocidental – diz ele –, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens” (AGAMBEN, 2002, p. 15). Assim, é como se a vida biológica – cuja distância do conceito agambeniano de vida nua ainda cabe matizar – fosse de fato o campo de atuação da vida política, em uma deliberada exclusão, mas em uma evidente implicação, como se a política consistisse sempre em uma ordenação da vida biológica. Para ele, “o conflito político decisivo que governa todo outro conflito é, em nossa cultura, o conflito entre a animalidade e a humanidade do homem. A política ocidental é, pois, co-originariamente biopolítica” (AGAMBEN, 2006, p. 146). Para Agamben, desde a pólis há uma imbricação entre vida biológica e política e, em vista disso, não podemos conceber uma réplica política à modernidade biopolítica na história política ocidental.

Hannah Arendt segue caminho diverso. Seguramente, também para ela os antigos tinham por fundamental à política uma clara demarcação entre as demandas naturais da sobrevivência e as demandas políticas da liberdade, que falavam ambas no cidadão. Não obstante, ela sustenta que desde os gregos, o domínio político se revela como o espaço onde desenvolvemos uma espécie de segunda natureza – não uma zoé transfigurada, mas uma nova physis, em acréscimo à vida privada e natural que jamais suprimimos. Nas palavras de Werner Jaeger, citadas por Arendt, com a pólis o homem recebeu, “em

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acréscimo a sua vida privada uma espécie de segunda vida, seu bíos politikos. Agora todo cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma aguda distinção em sua vida entre o que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)” (ARENDT, 1958, p. 24). Seguramente, para ela, a capacidade humana para a política não se deixa subsumir sob a expressão zoon politikon. O “homem – diz ela – é a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação” (ARENDT, 1998, p. 23). “O único fator material indispensável na geração do poder é a convivência entre as pessoas”, diz Arendt (1958, p. 201). Não podemos conceber uma comunidade política sem um mundo que ao mesmo tempo separe e relacione os homens entre si. Assim, “a política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas” (ARENDT, 1998, p. 24). Com efeito, “a esfera pública, enquanto mundo comum, mantém-nos reunidos e ainda evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer. O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvidas, ou ao menos não fundamentalmente, mas o fato de que o mundo entre elas perdeu sua capacidade de mantê-las juntas, de relacioná-las e de separá-las” (ARENDT, 1958, p. 53).

A despeito de seu diagnóstico da irremediável ruptura do fio da tradição, em nossos tempos, Hannah Arendt se liga à tradição do nosso pensamento político quando concebe como desejável a conservação da “consagrada linha divisória e protetora entre a natureza e o mundo humano” (ARENDT, 1958, p. 323-4). Tal vínculo com a tradição indica o quanto ela tinha noção das implicações da dissolução desta linha protetora, com a conseqüente canalização da vida biológica e de suas demandas para o âmbito da política, funcionalizada doravante pela vida, mas também com a inserção da ação e de suas infortunas, a irreversibilidade e a imprevisibilidade, no ambiente natural. O que marca a consolidação do mundo moderno, na avaliação de Arendt, por outro lado, é uma progressiva indistinção entre as esferas social e política, com a conseqüente “ascensão do ‘lar’ (oikia) ou das atividades econômicas ao domínio público” (ARENDT, 1958, p. 33).

“O traço distintivo da esfera do lar – diz Arendt – era que nela os homens viviam juntos porque eram compelidos por suas carências e necessidades”, constrangidos pela tarefa de conservar a própria vida – “a comunidade natural no lar nascia, portanto, da necessidade, e a necessidade governava todas as atividades aí realizadas” (ARENDT, 1958, p. 30). Por outro lado, a esfera da pólis “era a esfera da liberdade, e se havia um relacionamento entre essas duas esferas, era óbvio que o domínio sobre as necessidades da

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vida no lar era a condição para a liberdade da polis” (ARENDT, 1958, p. 30-1), e nunca que a política devesse ser um meio para proteger a sociedade – seja de fiéis, de proprietários acumuladores, de empregados ou de operários. Para Hannah Arendt, o que era marcante na distinção entre a pólis e o lar era o fato de a pólis “conhecer apenas ‘iguais’, ao passo que o lar era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava tanto não estar sujeito às necessidades da vida quanto ao comando de outro e também não estar no comando. Significava nem governar nem ser governado” (ARENDT, 1958, p. 32). Ainda que se possa estabelecer um vínculo entre vida privada e vida pública a partir da liberação das necessidades pressuposta para a conquista da liberdade na esfera pública, Hannah Arendt enfatiza a imprescindível distinção entre o princípio que orienta a vida privada e o princípio que norteia a vida pública, a saber: entre a necessidade e a liberdade.

A esfera social é “o domínio curiosamente híbrido onde os interesses privados adquirem significação pública” (ARENDT, 1958, p. 35). O que caracteriza a atitude propriamente moderna é a compreensão da política como uma função da sociedade, com a implicação fundamental de que as questões eminentemente privadas da sobrevivência e da aquisição transformaram-se em interesse “coletivo”, ainda que nunca se possa falar de fato de tal interesse como sendo público. O advento de uma esfera híbrida como a social acaba por promover uma indistinção entre os domínios público e privado e o deslocamento de princípios de uma esfera a outra, constituindo-se como uma intersecção, minando as possibilidade de felicidade pública ou privada. Com efeito, diz Hannah Arendt, “a busca irresponsável por interesses privados na esfera público-política é tão prejudicial ao bem público quanto a arrogante tentativa dos governos de regular a vida privada de seus cidadãos é prejudicial para a felicidade privada” (ARENDT, 1977, p. 104). Ela julga que a modernidade rompe, por um lado, a distinção entre natureza e mundo, pela intervenção científica na natureza, deflagrando processos artificiais; por outro, dilui a fronteira entre público e privado, política e economia, vida política e vida biológica, com a ascensão da esfera social. Focarei minha atenção nesse último movimento, cujas implicações para a política são mais flagrantes.

Como Foucault, Arendt julga que a modernidade pode ser compreendida politicamente como o primeiro período na história em que “o biológico reflete-se no político” (FOUCAULT, 2005, p. 134). Para ambos, o evento decisivo da modernidade política, e que traduz a sua ruptura com a compreensão clássica da política, é o ingresso da zoé na pólis (AGAMBEN, 2002, p. 12), a politização da vida biológica ou a instrumentalização da política pela vida, compreendida como bem supremo. Ou, para dizer

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como Agamben, mais que o ingresso da zoé na pólis, a indistinção entre zoé e bíos, ou entre o espaço da vida biológica e o espaço político (AGAMBEN, 2002, p. 16). Para Arendt,

entre a opinião de o Estado e a coisa política serem uma instituição indispensável para a liberdade, e a opinião que vê nele uma instituição indispensável para a vida está uma contradição intransponível da qual, aliás, os defensores dessas teses quase não têm consciência. Trata-se de uma grande diferença se a liberdade ou a vida é cotada como o bem com valor mais alto – como parâmetro pelo qual se orienta todo o agir político. Se entendemos por política algo que, não importa em qual escala, surgiu em sua essência a partir da pólis e continua ligado a ela, então forma-se, no acoplamento entre política e vida, uma contradição interna que revoga e arruína justamente a coisa política específica (ARENDT, 1998, p. 76).

Hannah Arendt estava convencida de que a oposição entre liberdade e vida biológica está na base de tudo o que podemos compreender como política e das virtudes especificamente políticas. Para ela, poderíamos inclusive dizer que é o próprio fato “de que hoje o que está em jogo na política é a existência nua e crua de todos o sinal mais evidente da calamidade em que nosso mundo caiu” (ARENDT, 1998, p. 77). Como nota Giorgio Agamben, em sentido análogo, “a nossa política não conhece hoje outro valor (e, conseqüentemente, outro desvalor) que a vida, e até que as contradições que isso implica não forem solucionadas, nazismo e fascismo, que haviam feito da decisão sobre a vida nua o critério político supremo, permanecerão desgraçadamente atuais” (AGAMBEN, 2002, p. 18)4. Mais do que isso, “a natureza dos grandes experimentos totalitários do século XX resultam completamente incompreendidos se concebidos apenas como uma continuação das últimas grandes tarefas dos Estados-nação do século XIX: o nacionalismo e o imperialismo. O que está em jogo aqui – prossegue Agamben – é algo completamente distinto e mais extremo, já que se trata de assumir como tarefa a própria existência fática dos povos, ou seja, em última análise, sua vida nua” (2006, p. 140). Isso decorre, para Arendt, da moderna desconsideração da necessária distinção entre vida biológica e política, assim como entre a felicidade que se experimenta na satisfação das necessidades vitais e a que se experimenta na fruição da liberdade política. Com efeito, diz ela, “o que os tempos modernos esperavam de seu Estado, e o que esse Estado fez, de fato, em grande escala foi uma libertação dos homens para o desenvolvimento das forças produtivas sociais, para a produção comum de mercadorias necessárias para uma vida ‘feliz’” (ARENDT, 1998, p.       

4- “Talvez também os campos de concentração e de extermínio sejam (…) uma tentativa extrema e monstruosa de decidir entre o humano e o inumano, que terminou envolvendo em sua ruína a possibilidade mesma da distinção” (AGAMBEN, 2006, p. 49).

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74). Nesse sentido, como enfatiza com precisão Giorgio Agamben,

se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna, em relação à clássica, é que ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé. Daí, também, a sua específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto – a “vida nua” – que indicava a sua submissão (2002, p. 17).

Nos termos da obra A condição humana, que examinarei a partir desse ponto, nos tempos modernos venceu o animal laborans.

A atividade do trabalho (labor) corresponde ao processo biológico do corpo humano e consiste no metabolismo do homem com a natureza, em vista da satisfação das necessidades permanentemente repostas no processo vital. Da interação do homem com a natureza através do trabalho não resta qualquer vestígio duradouro. O trabalho apenas preserva a vida no eterno ciclo de esgotamento e regeneração, de produção e de consumo. A vida, em seu sentido puramente biológico, é a condição humana do trabalho.

A obra ou fabricação (work ou fabrication), por sua vez, produz um mundo artificial de coisas, diferente de qualquer ambiente natural. Da interação do homem com a natureza através da fabricação surgem coisas para serem usadas e que, por conseguinte, portam uma durabilidade de que não desfrutam os produtos do trabalho, feitos para serem consumidos. Dentre os produtos do homo faber, temos as ferramentas e utensílios, mas também as obras de arte e as instituições políticas. A obra corresponde ao caráter não natural da existência humana, cuja mortalidade é redimida pela produção de um mundo de coisas cuja duração tende sempre a ultrapassar o tempo da vida dos próprios fabricantes e não pelo sempre recorrente ciclo vital da espécie. A condição humana da fabricação é a mundanidade, o fato de que habitamos um mundo e de que podemos constituí-lo.

A ação, por fim, é a única atividade que se dá diretamente entre os homens, sem mediação de qualquer objeto natural ou coisa fabricada, e corresponde à condição humana da pluralidade, “a paradoxal pluralidade de seres únicos” (ARENDT, 1958, p. 176). Esta noção de que a pluralidade é a condição mesma da vida política é muito cara a Hannah Arendt. Em sua última obra, A vida do espírito, ela afirma que a pluralidade, mais do que definir o caráter da vida política, “é a lei da Terra” (ARENDT, 1995, p. 17). A ação

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corresponde ao fato de que os homens, no plural, habitam o mundo – ao próprio fato de que somos todos humanos, mas de um modo tal que não somos idênticos a ninguém que jamais viveu, vive ou viverá. A pluralidade é, portanto, ao mesmo tempo igualdade e distinção. A ação tanto depende da pluralidade quanto a afirma, pois ao agir, o indivíduo confirma sua singularidade e aparece a outros indivíduos únicos.

O que constitui o artifício humano e garante a durabilidade do mundo é a fabricação, a atividade do fabricante (homo faber) de “operar nos” materiais, em contraposição ao trabalho, a atividade do trabalhador (animal laborans), que se mistura com os materiais. Muito embora o produto da atividade do homo faber se desgaste com o uso que dele fazemos, ele não se consome no próprio processo vital. A diferença entre fabricação e trabalho corresponde à distinção entre o uso e o consumo, entre o desgaste e a destruição. Embora o uso tenha como conseqüência o desgaste dos produtos da fabricação, estes não são produzidos para serem desgastados, mas para serem usados; o desgaste provocado pelo uso atinge diretamente a durabilidade do produto, mas eles são feitos para portar durabilidade. As coisas destinadas ao consumo, no entanto, são destruídas no mesmo momento em que se servem delas. Elas são integralmente absorvidas no ciclo vital de sobrevivência do organismo humano: elas são digeridas. Enquanto a durabilidade empresta certa independência aos objetos em relação ao homem que os produziram e os utilizam, a assimilação dos produtos destinados ao consumo pelos organismos vivos os destitui de qualquer existência independente, objetiva. A diferença entre uma mesa e uma maçã reside no fato de que esta desaparece quando é consumida. E uma tonelada de maçãs não dura mais que uma. A fertilidade e produtividade do trabalho não compensam a futilidade e o caráter não-mundano de seus produtos.

O animal laborans, pela sua atividade, o trabalho, não é capaz de construir um mundo de coisas nem de cuidar do mundo criado pelo homo faber. Os produtos do trabalho, do metabolismo do homem com a natureza, não demoram no mundo o tempo suficiente para se tornarem parte dele; do mesmo modo, a atividade do trabalho, atenta somente ao ritmo das necessidades biológicas, é indiferente ao mundo ou sem mundo, compreendido como artifício humano.

A era moderna, pensa Hannah Arendt, é o tempo da vitória do animal laborans sobre o homo faber. Mesmo a atividade da fabricação é tragada pelo ritmo das máquinas nas linhas de produção e montagem e assimiladas à atividade do trabalho. O homo faber não é suplantado pelo animal laborans, mas assimilado por ele devido à transfiguração do princípio

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de utilidade do fabricante no princípio de felicidade, compreendida como saciedade, ou como mero contentamento. A vitória do animal laborans, do trabalhador, é o triunfo do consumo sobre o uso, do metabolismo sobre a durabilidade das coisas, da necessidade sobre o mundo, da vida sobre a imortalidade, e se realiza na diluição do homo faber pelo animal laborans, ou na paradoxal conversão da fruição da vida biológica em um modo de vida. Contra tal triunfo, Hannah Arendt afirma, não obstante, que “a tarefa e a grandeza potencial dos mortais repousa em sua capacidade de produzir coisas – obras e feitos e palavras – que mereceriam estar em casa na eternidade, e em certa medida estão, de modo que através delas os mortais pudessem encontrar seu lugar em um cosmos onde tudo é imortal, exceto eles próprios” (ARENDT, 1958, p. 19).

O animal laborans retira-se voluntariamente do mundo para atingir seus propósitos na gestão de sua vida biológica, mas é também expelido dele, “na medida em que é prisioneiro da privatividade do seu próprio corpo, adstrito à satisfação de necessidades das quais ninguém pode compartilhar e que ninguém pode comunicar inteiramente” (ARENDT, 1958, p. 118-9). O animal laborans é repelido do mundo para o refúgio de um ambiente próprio a sua animalidade. Para Hannah Arendt, “o fato é que a capacidade humana de vida no mundo implica sempre uma capacidade de transcender e alienar-se dos processos da vida, enquanto a vitalidade e a vivacidade só podem ser conservadas na medida em que os homens se disponham a arcar com o ônus, as fadigas e as penas da vida” (ARENDT, 1958, p. 120-1).

A relação intrínseca entre trabalho e vida, que o torna uma atividade enredada no rigoroso e inflexível círculo imposto pelas necessidades vitais, indica o quanto a integral absorção da existência pelo trabalho pode resultar em um dano permanente para a durabilidade do mundo, das coisas fabricadas pelo homo faber, inclusive aquelas forjadas para estabilizar e conferir resistência às fugazes manifestações de grandeza do homem de ação. As coisas necessárias ao processo vital são as menos mundanas e mais naturais; ainda que produzidas pelo homem, são aprisionadas no eterno movimento cíclico da natureza, materializado na produção e no consumo. A vida, diz Hannah Arendt, “é um processo que em toda parte consome a durabilidade, desgasta-a e a faz desaparecer, até que finalmente a matéria morta, resultado de processos vitais pequenos, singulares e cíclicos, retorna ao gigantesco círculo global da natureza, onde não existe começo nem fim e onde todas as coisas naturais volteiam em imutável e infindável repetição” (ARENDT, 1958, p. 96). A vida humana seria uma perene recorrência imutável dos ciclos da espécie, se não houvesse

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um mundo no qual cada indivíduo chega pelo nascimento e do qual se retira com a morte. Uma vida especificamente humana é plena de eventos que ocorrem em um mundo. Ela afirma a singularidade de cada membro da espécie e secciona a temporalidade cíclica da vida biológica. É em vista disto que “embora a natureza se manifeste na existência humana por meio do movimento circular de nossas funções corporais, ela faz sua presença ser sentida no mundo feito pelo homem por meio da constante ameaça de sobrepujá-lo ou fazê-lo perecer” (ARENDT, 1958, p. 98). É da diluição da fronteira entre natureza e mundo que provêm as implicações mais relevantes dessas transformações.

Na era moderna, uma das manifestações de tal ameaça é o persistente tratamento “dos objetos de uso como se fossem bens de consumo” (ARENDT, 1958, p. 124). A repetição e a interminabilidade impressas no processo de fabricação após a revolução industrial o contaminam com a marca da circularidade do trabalho. Em todo caso,

a interminabilidade da produção só pode ser garantida se os seus produtos perderem o caráter de objetos de uso e se tornarem cada vez mais objetos de consumo ou, em outras palavras, se o ritmo do uso for acelerado tão tremendamente que a diferença objetiva entre uso e consumo, entre a relativa durabilidade dos objetos de uso e o rápido ir e vir dos bens de consumo, reduzir-se até se tornar insignificante (ARENDT, 1958, p. 125).

Dada a necessidade de substituir o mais rapidamente possível as coisas mundanas que nos rodeiam, não mais respeitamos sua durabilidade. Com isso, diz Hannah Arendt,

temos de consumir, devorar, por assim dizer, nossas casas, nossa mobília, nossos carros, como se estes fossem as “coisas boas” da natureza que se deteriorariam inaproveitadas se não fossem arrastadas rapidamente para o ciclo interminável do metabolismo do homem com a natureza. É como se houvéssemos rompido à força as fronteiras distintivas que protegiam o mundo, o artifício humano, da natureza, tanto o processo biológico que prossegue dentro dele quanto os processos naturais cíclicos que o rodeiam, entregando-lhes e abandonando-lhes a sempre ameaçada estabilidade de um mundo humano. Os ideais do homo faber, fabricante do mundo, que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados à abundância, o ideal do animal laborans (ARENDT, 1958, p. 126).

Ocorre que o mundo, compreendido como um lar feito pelo homem, “consiste não de coisas que são consumidas, mas de coisas que são usadas” (ARENDT, 1958, p. 134), como já enfatizei. Essa diferença é fundamental e é a razão principal de Hannah Arendt reservar apenas ao fabricante de coisas duráveis a designação homo faber, reservando ao

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trabalhador, em seu metabolismo com a natureza, a designação animal laborans. O que está em questão é a capacidade humana de erigir um modo de vida para além de sua inextirpável animalidade e, dado seu fracasso, a conseqüente ocupação exclusiva com o prolongamento de uma vida confortável. Assim,

Sem tomar as coisas das mãos da natureza e consumi-las, e sem se defender contra os processos naturais de crescimento e declínio, o animal laborans jamais poderia sobreviver. Mas, sem estar em casa em meio a coisas cuja durabilidade as torna adequadas ao uso e à construção de um mundo, cuja própria permanência está em contraste direto com a vida, essa vida jamais seria humana (ARENDT, 1958, p. 135).

Giorgio Agamben nota, acertadamente, que “era justamente a este primado da vida natural sobre a ação política que Arendt fazia, aliás, remontar a transformação e a decadência do espaço público na sociedade moderna” (2002, p. 11). Ele acrescenta, entretanto, que curiosamente a autora não articula suas análises penetrantes de A condição humana com as de As origens do totalitarismo, notadamente no que concerne aos campos de concentração e ao próprio regime totalitário. Poderíamos indicar, incidentalmente, em direção diversa, que os estreitos vínculos de A condição humana com os problemas abertos pelo exame do totalitarismo – como a centralidade da perspectiva biológica, a compreensão do dominação totalitária como despolitização e a relação da novidade totalitária com a modernidade política, por exemplo –, assim como as articulações entre campos de concentração e o que ela chama de natureza humana, em As origens do totalitarismo, por outro, configuram amplamente o espectro daquilo que Agamben nomeia biopolítica, seguindo Michel Foucault. Mais relevante, todavia, é indicar que se Arendt insiste na conservação da distinção e da fronteira entre natureza e política não é por ignorar que a modernidade política configura-se marcadamente como biopolítica, a despeito de ela não empregar esse conceito. Sua insistência traduz a deliberada intenção de escovar a modernidade política a contrapelo, para lançar mão de uma célebre imagem de Walter Benjamin. Seu diagnóstico da vitória do animal laborans – da tradução da zoé em modo de vida, da disponibilidade política da vida nua doravante gerida por expedientes governamentais, que configura a modernidade biopolítica – é contrabalançado por sua defesa de que a identificação da política à administração da vida redunda na impossibilidade da política cujo sentido é a liberdade. Para tal conclusão, ela não dependia da imagem da pólis grega, notadamente se idealizada. Bastava lançar mão da tradição republicana e do legado revolucionário, que não apontam necessariamente para aquém da modernidade.

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Antes de tudo, Hannah Arendt se recusa a conceber que a liberdade, como razão de ser da política, possa encontrar um substituto adequado no alívio proporcionado pela segurança contra a violência ou na felicidade compreendida como saciedade.

Hannah Arendt afirmou reiteradas vezes que o sentido ou a razão de ser da política é a liberdade. Com isso, ela recusava outras possíveis definições do sentido da política: como a promoção do bem-estar, da segurança ou da felicidade do maior número, e a gestão da longevidade e da produtividade do processo vital dos membros da comunidade política. De outra parte, recusa, por um lado, a compreensão da liberdade como um fenômeno da vida interior ou como uma mera deliberação acerca dos cursos de ação pré-estabelecidos, como livre-arbítrio; por outro, repele a identificação da liberdade com a mera liberação dos constrangimentos das necessidades vitais ou daqueles de um estado de guerra de todos contra todos. Mais do que isso, defendeu que “a liberdade como um fato demonstrável e a política coincidem e são relacionadas uma à outra como dois lados da mesma matéria” (ARENDT, 1992, p. 195). Assim, “a raison d’être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação” (ARENDT, 1992, p. 192).

Não constitui uma réplica a essa indissociabilidade entre liberdade e política, para Hannah Arendt, o fato de que as nossas experiências mais recentes, como o espraiamento da dominação totalitária, e mesmo uma tradição moderna mais antiga, levem-nos a julgar que a liberdade começa onde termina a política ou que quanto mais política menos liberdade. A suposição de que a liberdade materializa-se antes de tudo em uma liberação dos constrangimentos da política ou do governo repousa em um equívoco fundamental, para a pensadora: a equação da liberdade política com a segurança. Tal incompreensão traduz uma moderna convicção básica, a de que a liberdade política não implica em participação no governo, mas em proteção da esfera privada contra os eventuais desmandos que coloquem em risco a realização dos propósitos de alcançar prosperidade e conforto. A associação da liberdade com a proteção do processo de acumulação com vistas à satisfação das necessidades vitais acaba por ocultar que o próprio processo vital é sempre presidido pela necessidade e por seus ciclos, e nunca pela liberdade. Quando a liberdade é identificada com a segurança ou a regulação e proteção dos propósitos privados, é a própria política que é funcionalizada pela vida – e talvez nada defina melhor em que consiste a tradição predominante na modernidade política. O liberalismo, a despeito do nome, diz Arendt, contribuiu

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mesma filosofia, tem de se ocupar quase que exclusivamente com a manutenção da vida e a salvaguarda de seus interesses. Ora, onde a vida está em questão, toda ação se encontra, por definição, sob o domínio da necessidade, e o âmbito adequado para cuidar das necessidades vitais é a gigantesca e ainda crescente esfera da vida social e econômica, cuja administração tem obscurecido o âmbito político desde os primórdios da época moderna (ARENDT, 1992, p. 202).

Com efeito, diz ela, “o desaparecimento do abismo que os antigos tinham de cruzar diariamente para transcender a estreita esfera do lar e ‘ascender’ à esfera da política é um fenômeno essencialmente moderno” (ARENDT, 1958, p. 33). Justamente por isto a coragem era a virtude política por excelência entre os antigos, pois deixar a proteção do lar, em que se defende em segurança a vida e a sobrevivência, e adentrar na esfera pública, em que se devia de antemão estar disposto a arriscar a própria vida e se expor à insegurança de uma livre interação entre iguais, exige coragem. Aristóteles afirma que “à covardia é próprio o ser facilmente tomado pelo temor do risco – especialmente se relacionado à morte ou à mutilação do corpo – e supor que a preservação, em todo caso, é melhor que uma morte nobre. Seus acompanhantes são a brandura, a fraqueza, o desespero, o amor à vida [philopsychia]”5. Assim, um “excessivo amor à vida era um obstáculo à liberdade e um sinal claro de escravidão” (ARENDT, 1958, p. 36), e de covardia. À liberdade política é inerente o risco, pois demanda o abandono da proteção do lar. Os antigos compreendiam que “só pode ser livre quem está disposto a arriscar a vida” (ARENDT, 1998, p. 53). Assim,

é preciso coragem mesmo para deixar a segurança protetora de nossas quatro paredes e adentrar o âmbito político, não devido aos perigos específicos que podem estar à nossa espreita, mas por termos chegado a um domínio onde a preocupação para com a vida perdeu sua validade. A coragem libera os homens de sua preocupação com a vida para a liberdade do mundo. A coragem é indispensável porque, em política, não a vida, mas sim o mundo está em questão (ARENDT, 1992, p. 203).

A ascensão da vida biológica como bem supremo traduz a vitória do animal laborans. Os ideais da abundância, da vida confortável e da saciedade se afirmaram frente a todos os outros na modernidade. Com a vitória do animal laborans, é a existência do próprio mundo, como obra do homem, que está em questão, sob a permanente ameaça de ser tragado pelos processos mobilizados para a satisfação das necessidades, sempre pululantes e fonte de intensa experiência prazerosa do mero estar vivo. Hannah Arendt nota que

      

5- ARISTÓTELES, On virtues and vices. The complete Works of Aristotle, 6, 1251a18-1251a23. Cf. ARENDT, 1998, p. 53.

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quanto mais fácil se tornar a vida numa sociedade de consumidores ou de trabalhadores, mais difícil será preservar a consciência das exigências da necessidade que a compele, mesmo quando a dor e o esforço, as manifestações externas da necessidade, são quase imperceptíveis. O perigo é que tal sociedade, deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo interminável, já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade – a futilidade de uma vida que “não se fixa nem se realiza em assunto algum que seja permanente, que continue a existir depois de terminado [seu] trabalho” (ARENDT, 1958, p. 135).

Uma perturbação da relação entre necessidade e saciedade pode fazer com que o impulso para a satisfação de necessidades trague tudo à sua volta. Se o animal laborans, como animal condicionado que pode ampliar o espectro das necessidades que lhe imprimiu a natureza, maximiza suas necessidades por meio da identificação da máxima felicidade com a máxima saciedade, ele pode tragar em seus ciclos vitais, a um só tempo, natureza e mundo. Para Hannah Arendt, a vitória do animal laborans traduz o apequenamento da estatura e dos horizontes do homem moderno, para quem a felicidade é o maior bem e se mostra exclusivamente como saciedade e mesmo fastio. A despeito de não se apresentar como realizável, pela incessante ampliação do espectro das necessidades, devido à vasta suscetibilidade do homem ao condicionamento, tal saciedade permanece como alvo e diretriz. Para ela,

o último estágio de uma sociedade de trabalhadores, a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido submergido no processo vital global da espécie, e a única decisão ativa ainda requerida do indivíduo fosse a de deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e penas da vida ainda individualmente sentidas, e aquiescer em um tipo de comportamento funcional, entorpecido e “tranqüilizado”. O problema das modernas teorias do behaviorismo não é que estejam erradas, mas sim que possam a tornar-se verdadeiras, que realmente constituam as melhores conceituações possíveis de certas tendências óbvias na sociedade moderna. É perfeitamente concebível que a era moderna (…) venha terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu (ARENDT, 1958, p. 335-6).

Em um relevante trecho de A condição humana, quando examina a capacidade humana para a grandeza, em obras, feitos e palavras, como uma possível redenção da mortalidade humana e um índice de seu parentesco com os deuses, Hannah Arendt recorre

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a um célebre fragmento de Heráclito, para indicar que a Grécia pré-filosófica aplicava a diferença entre o homem e o animal, radicada na incapacidade animal para existir mais que como um membro de sua espécie, à própria espécie humana. Assim, diz ela, “só os melhores (os aristoi), que constantemente provam serem os melhores (aristeuein, verbo que não tem equivalente em nenhuma outra língua) e que “preferem a fama imortal às coisas mortais”, são realmente humanos; os outros, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferece, vivem e morrem como animais” (ARENDT, 1958, p. 19). Heráclito afirmara que “uma só coisa escolhem os melhores contra todas as outras, um rumor de glória eterna contra as (coisas) mortais; mas a maioria está empanturrada como animais” (B29) – talvez seja essa ainda a razão de Aristóteles, na Ética a Nicômaco, quando menciona os três tipos de vida que se pode escolher livremente (1095b12ss.), volta sua atenção apenas para a vida política do cidadão e a vida teorética do filósofo, deixando de considerar a vida dedicada aos prazeres do corpo.

A diluição moderna da fronteira entre natureza e mundo devolve o homem a sua animalidade e ao rígido círculo que a envolve. Na obra O aberto, Agamben nota, ressoando Arendt, que “para uma humanidade que se tornou novamente animal, não resta coisa alguma senão a despolitização das sociedades humanas por meio do desdobramento incondicionado da oikonomia, ou a tomada da própria vida biológica como a tarefa política (ou quiçá impolítica) suprema” (AGAMBEN, 2006, p. 140-1).

Ao animal laborans, compreendido como um tipo humano vencedor na modernidade e não como uma das dimensões incontornáveis da condição humana, é vedado o amor mundi, e não é outra a razão de sua vitória representar o ocaso da política. Ele jamais poderia dizer, como Maquiavel, “amo mais Florença que minha vida ou a salvação da minha alma”. Nas palavras de Arendt,

o desejo de que nosso nome sobreviva corresponde ao desejo de permanecer no mundo, inteiramente independente da vida. Nosso conceito de imortalidade é inutilizável pelo fato de que ele é ambíguo: vida eterna ou presença eterna no mundo. A vida eterna está inteiramente pronta a sacrificar a presença eterna no mundo, assim como a sede de renome está pronta a sacrificar a vida e mesmo a vida eterna (Maquiavel) (ARENDT, 2005, p. 734 [jul. 1955]).

Arendt nota, em seu diário de pensamento, que na Antiguidade “o mundo é eterno, os homens são mortais, e o gênero humano é imortal enquanto espécie” – a ênfase recai sobre o mundo. Com o Cristianismo, “o mundo é mortal, o homem enquanto indivíduo é

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imortal e o gênero humano enquanto espécie é mortal” – aqui a ênfase recai sobre o indivíduo. Por fim, na modernidade, “o mundo é potencialmente imortal, o homem é mortal e a espécie é imortal – a ênfase recai sobre a espécie (ARENDT, 2005, p. 879 [jun. 1968]). Isso importa muito a Arendt. Na penúltima seção de A condição humana, intitulada “A vida como bem supremo”, ela retoma suas considerações iniciais na seção “Eternidade versus Imortalidade”, para indicar o quanto na modernidade o que está em questão é a própria possibilidade da política. Para Arendt,

o motivo pelo qual a vida se afirmou como ponto último de referência na era moderna e permaneceu como bem supremo para a sociedade moderna foi que a moderna inversão de posições ocorreu dentro da textura de uma sociedade cristã, cuja crença fundamental no caráter sagrado da vida sobrevivera à secularização e ao declínio geral da fé cristão, que nem mesmo chegaram a abalá-la (ARENDT, 1958, p. 313-4).

A boa nova cristã a proclamar a imortalidade da vida individual fez com que ela passasse a ocupar o lugar antes ocupado pela vida do corpo político. Assim, diz ela,

essa inversão só podia ser desastrosa para a estima e a dignidade da política. A atividade política, que até então derivara sua maior inspiração da aspiração por uma imortalidade mundana, baixou agora ao nível da atividade sujeita a vicissitudes, destinada a remediar, de um lado, as conseqüências do caráter pecaminoso do homem, e de outro atender às necessidades e interesses legítimos da vida terrena. Daí por diante, qualquer aspiração à imortalidade só podia ser equacionada com a vanglória; toda fama que o mundo pudesse outorgar ao homem era ilusória, uma vez que o mundo era ainda mais perecível que o homem, e a luta pela imortalidade humana era sem sentido, uma vez que a própria vida era imortal (ARENDT, 1958, p. 313-4).

Em todo caso, diz ela, “disso não se segue de modo algum que continuemos a viver num mundo cristão. Pois o que importa hoje não é a imortalidade da vida, mas o fato de que a vida é o bem supremo” (ARENDT, 1958, p. 319).

Em um sentido bastante fundamental, enfim, a tarefa da política, para Arendt, é a redenção da mortalidade e da futilidade dos homens por meio da edificação de um espaço durável para a liberdade, no qual a grandeza da existência frágil e fútil dos mortais se manifesta e encontra abrigo e louvor. É nesse sentido que a política permanece ainda ligada a sua origem grega. No final de Sobre a revolução, Arendt menciona o trecho de Édipo em Colono no qual, pela boca de Teseu, se traduz a sabedoria de Sileno, o sátiro companheiro de Dioniso: “não ter nascido se sobrepõe a todo significado revelado em palavras; de longe, a segunda melhor coisa para a vida, uma vez que ela tenha aparecido, é retornar para o

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lugar de onde saiu” (ARENDT, 1990, p. 281). Sileno teria sido perseguido pelo rei Midas, que buscava indagá-lo sobre o que seria a melhor coisa para o homem, esperando que o modo de vida do rei, coberto de status e riqueza, fosse confirmado como o mais feliz. Na versão de Nietzsche em O nascimento da tragédia (§ 3), ele teria dito, após ser aprisionado: “miserável efêmero, filho do acaso e da labuta, por que me forças a dizer-te o que seria para ti a maior bênção ignorar? O que é melhor para ti está inteiramente fora do teu alcance: não ter nascido, não ser, ser nada. Mas a segunda melhor coisa é morrer logo”. Para Nietzsche, é a tragédia que permite aos gregos vislumbrar o abismo no qual pende a existência humana sem desejar a própria aniquilação. Para ele, é pela transfiguração trágica do horrível em beleza que os gregos encontram uma justificativa para o permanecer vivo. Arendt afirma, por seu turno, que Teseu, o lendário fundador de Atenas, nos informa o que permitia ao homem comum, ao jovem e ao velho, suportar o fardo da vida: “era a pólis, o espaço dos livres feitos e das palavras vivas do homem, que poderiam dotar a vida de esplendor” (ARENDT, 1990, p. 281). Se para Nietzsche a vida só se justifica como um fenômeno estético, para Arendt ela só é redimida de sua futilidade na ação política.

Politicamente, está em questão em nossos tempos, enfim, “que uma sociedade de consumidores possivelmente não é capaz de saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central em relação a todos os objetos, a atitude de consumo, condena à ruína tudo em que toca” (ARENDT, 2001, p. 264). Em outras palavras, a vitória do animal laborans é a vitória da condição natural de vivente sobre qualquer outra condição da existência humana. Seja no conceito de zoon politikon, seja no de bios politikos, Aristóteles jamais concebeu a possibilidade de nos convertermos em meros animais vivos, incapazes de uma existência política que seja mais que a gestão do contentamento animal. Para Hannah Arendt, a diluição da fronteira entre natureza e mundo, entre animalidade e humanidade, cristalizada na vitória do animal laborans como o modelo da vida excelente ou feliz, revela o “perigo de que o homem possa estar disposto e realmente esteja a ponto de converter-se naquela espécie animal da qual, desde Darwin, ele imagina descender” (ARENDT, 1958, p. 322). Na modernidade, sustenta Arendt, o modo de vida do consumidor venceu, e, é nossa hipótese, as implicações políticas de tal vitória dificilmente podem ser exageradas.

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VII. RESULTADOS E PRODUTOS

Estão previstos, para o período abrangido pela pesquisa os produtos e atividades listados abaixo. A despeito de parecer traduzir uma grande quantidade de resultados, o volume de produtos se harmoniza com o ritmo de minhas atividades nos últimos anos, assim como com algumas outras que já fazem parte do meu cotidiano como professor de uma universidade que conta com um programa de pós-graduação.

a) Livros: No período conclusivo da pesquisa, será publicado um livro que articule

seus resultados, cujo título provisório é o mesmo do presente projeto de pesquisa. Pretendo, além disso, organizar uma publicação com os textos resultantes do colóquio que organizarei.

b) Artigos: Serão elaborados quatro textos atinentes ao tema da pesquisa, a serem

publicados como capítulos de livros e submetidos para publicação em periódicos de reconhecida excelência, versando sobre: o significado do termo animal laborans; o significado político da mortalidade na obra arendtiana; Hannah Arendt e a biopolítica; a política em uma sociedade de consumidores: a modernidade como o ocaso da política na obra de Hannah Arendt; a distinção entre natureza e política.

c) Disciplinas na pós-graduação: Serão ministradas três disciplinas no mestrado em

filosofia, com conteúdo diretamente relacionado ao tema da pesquisa.

d) Disciplina na graduação: Nos semestres nos quais não ministrarei disciplina na

pós-graduação, ministrarei as disciplinas Filosofia Política Contemporânea, Tópicos de Ética e um Tópico ou Seminário com ementa livre, priorizando a abordagem de temas atinentes à pesquisa.

e) Orientação: Prevejo para o período a manutenção de um número de cinco

orientandos no mestrado em filosofia, respeitados o fluxo dos alunos e a demanda por orientação. Serão orientados a cada ano três alunos de iniciação científica, sendo que um deles disporá de bolsa de estudos, de acordo com a disponibilidade de recursos do Pibic/Cnpq - UFG.

f) Eventos: Participarei, a cada ano, de eventos de nível nacional e, no período da

(28)

organizar um colóquio nacional sobre o tema da Biopolítica, na obra de Arendt e de outros autores, no segundo semestre de 2010.

g) Grupo de estudos: Instaurarei e manterei um grupo de estudos reunindo alunos de

graduação e pós-graduação em filosofia, para tratar de temas e problemas fundamentais à presente pesquisa.

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VIII. CRONOGRAMA DE TRABALHO

 

Primeiro semestre a) Revisão da bibliografia fundamental;

b) Organização do Grupo de Estudos em Biopolítica, que cobrirá todo o período da pesquisa, reunindo estudantes de graduação e pós-graduação de filosofia, com participação de pesquisadores e professores para discutir temas afins (*);

c) Seleção de estudantes de Iniciação Científica para pesquisar temas e referências desta pesquisa(**);

d) Seleção de estudantes de mestrado para trabalhar com temas referentes a esta pesquisa (***)

d) Disciplina na pós-graduação

Segundo semestre a) Redação do primeiro artigo/capítulo de livro

b) Início da orientação de Iniciação Científica c) Revisão exaustiva da bibliografia fundamental d) Organização de colóquio nacional sobre Biopolítica e) Disciplina na graduação

Terceiro semestre a) Redação do segundo artigo/capítulo de livro

b) Disciplina na pós-graduação c) Revisão da bibliografia secundária

d) Organização de livro com textos do colóquio sobre Biopolítica

Quarto semestre a) Redação do terceiro artigo/capítulo de livro b) Revisão exaustiva da bibliografia secundária c) Disciplina na graduação

Quinto semestre a) Redação do quarto artigo/capítulo de livro b) Disciplina na pós-graduação

c) Primeira elaboração do livro com os resultados da pesquisa

Sexto semestre a) Disciplina na graduação

b) Redação do relatório final da pesquisa c) Redação final do livro

(*) Esta será uma atividade contínua.

(**)Esta será uma atividade contínua, dependendo da programação de bolsas do programa PIBIC/UFG.

(***) Esta também será uma atividade contínua e dependerá do calendário de seleção do Mestrado de Filosofia da UFG.

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