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Ser criança é ir à escola, ter amigos de montão : a escrita da infância em seu "ofício de aluno"

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DO RIO GRANDE DO SUL

DePe – DEPARTAMENTO DE PEDAGOGIA

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU – MESTRADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

LINHA DE PESQUISA 3

DAGMA HEINKEL

SER CRIANÇA É IR À ESCOLA, TER AMIGOS DE MONTÃO: A escuta da infância em seu “ofício de aluno”.

Ijuí (RS) 2010

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DAGMA HEINKEL

SER CRIANÇA É IR À ESCOLA, TER AMIGOS DE MONTÃO: A escuta da infância em seu “ofício de aluno”.

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Educação nas Ciências, Departamento de pedagogia (DePe) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientadora: Doutora Noeli Valentina Weschenfelder

Ijuí (RS) 2010

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RESUMO

Esta dissertação de Mestrado em Educação nas Ciências “A escuta da infância em seu ofício de aluno”, busca destacar a infância enquanto ator social, através da visibilidade das vozes da criança do 1º ano à 4ª série da Educação Básica que vive a sua infância no cotidiano de uma escola da rede privada de ensino. Trata-se de uma pesquisa em torno das concepções de “ofício de aluno” e “ofício de criança”, com base na Sociologia da Infância, mais especificamente em Regine Sirota (2001, p.15). Autores como Sarmento, Sarmento & Pinto, Narodowski, Rousseau, Ariès, Larrosa, Corsaro, dentre outros, articulam e mobilizam momentos ímpares de reflexões na tessitura desta pesquisa. A escuta das vozes da infância contemporânea institucionaliza é um desafio para as práticas pedagógicas nos anos iniciais do ensino. Os caminhos metodológicos que construí para esta pesquisa são qualitativos, sendo que a escuta da palavra da criança na escola em seu “ofício de aluno” e “ofício de criança” é construída através de observações diretas nos momentos do recreio, com registros no diário de campo, nas entrevistas estruturadas, nas fotos, no recolhimento de vozes gravadas, nos desenhos e poesias espontâneas das crianças e em alguns recortes de jornais e revistas que tratam das vivências e experiências da infância de hoje. Este estudo aponta a importância da disponibilidade de escuta do adulto para a sensibilidade dos ditos e não ditos da infância se vendo e se percebendo no contexto escolar, assinalando a importância de considerar as necessidades e especificidades da infância e seus modos singulares de apreensão e ressignificação do mundo que a cerca, no (com) partilhamento de saberes construídos nas relações de estar entre iguais, no reconhecimento do sujeito social que ela já é, e que dizem da beleza dos seus muitos modos de interação e socialização.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 10

Infância na vida: história que constitui a razão de uma caminhada... 10

CAPÍTULO 1 “FOI QUANDO SE OUVIU A VOZ DA CRIANÇA: PERCEPÇÕES DE NARODOWSKI SOBRE A INFÂNCIA DE ROUSSEAU... 20

1.1 A criança contemporânea constituída pelos discursos e práticas pedagógicas: como Narodowski analisa Rousseau... 25

1.2 “Moralização, enclausuramento, quarentena.... A Infância não pode mais parar: da família à escolarização”... 34

1.3 Espaço escolar compartilhado de vivências infantis contemporâneas plurais: “eu, tu, nós”... 43

CAPÍTULO 2 “DÁ PARA SER CRIANÇA NA ESCOLA PORQUE NÃO É TÃO ÃO DIFERENTE FORA: OS FAZERES PEDAGÓGICOS NA ESCOLA DA PESQUISA”...49

2.1 Caminhos metodológicos possíveis para a escuta das narrativas infantis escolarizadas... 53 2.2 Sociologia da Infância: contribuições para a pesquisa com crianças... 58

2.3 Como dar voz à infância acerca do seu “ofício de criança” e “ofício de aluno”... 61

2.4 Infância que diz: escola é ter companhia para estudar e as crianças ficarem sabidas... 64

2.5 E assim, a infância vai crescendo na escola: que espaço e lugar é esse?... 69

CAPÍTULO 3 “SOCIALIZAÇÃO DA INFÂNCIA NA ESCOLA”... 80

3.1 A presença da amizade na escola... 86

3.2 Nasce uma criança: a infância contemporânea para o currículo... 89

3.3 A gente estuda brincando... 94

3.4 “Ciranda, cirandinha vamos todos cirandar” – o trabalho com Projetos: um olhar para o ofício de aluno e ofício de criança... 97

SEM CONCLUSÕES: APENAS COMEÇANDO UMA ESCUTA REFLEXIVA! O QUE NÓS FARÍAMOS SEM ELAS?... 109

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LISTA DE ANEXOS

ANEXO A – INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS... 120

ANEXO B – INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS... 122

ANEXO C – TERMO DE CONSENTIMENTO... 124

ANEXO D – AUTORIZAÇÃO DA ESCOLA... 126

ANEXO E – REPORTAGENS ...128

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Dedico este trabalho primeiramente a Deus pelo dom da vida que me concede, presente recebido a cada novo amanhecer e a quem, com alegria e gratidão, entrego-a, com tudo que tenho e sou, em suas mãos de amor. Guia supremo de minha existência terrena.

Aos meus pais, Rodolfo e Martha e ao Gunther, meu esposo, pelas palavras de incentivo e o apoio incondicional recebido para o estudo.

Ao Christian e ao Mathias, meus amados filhos, que me ensinam, que o amor que nos une, busca fazer o melhor de nós mesmos a cada dia.

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AGRADECIMENTOS Registro a minha gratidão:

- às crianças que participaram desta pesquisa. Suas narrativas me ensinaram que por trás de cada rosto, de cada olhar, de cada gesto e palavra, de cada criança, existem vivências de infâncias singularizadas, que buscam viver as suas verdades/necessidades de vida, nas possibilidades do reconhecimento dos olhares adultos sobre o que é ser e estar criança/aluno nos contextos escolares;

- à Profª. Dra. Noeli Valentina Weschenfelder pelo trabalho de orientação desta Dissertação de mestrado, com quem muito aprendi. Seus ensinamentos e indicações enriqueceram minha escrita reflexiva, possibilitando aprendizagens necessárias de aproximações entre os campos de estudo da Pedagogia e da Sociologia da Infância;

- às professoras Drª. Anna Rosa Fontella Santiago, Drª. Waléria Fortes de Oliveira e a Drª Armgard Lutz pelo pronto acolhimento de participação na Banca de Qualificação deste trabalho de pesquisa. As inferências e significativas reflexões tornaram-se importantes na construção deste estudo;

- aos meus irmãos Augusto e William pela presença de cuidado e amor, mesmo estando longe;

- à escola participante da pesquisa, pelo apoio recebido e pela experiência do ser e estar professor que me possibilita;

- à Angélica, secretária de pós-graduação da UNIJUÍ, a Amália, secretária do Comitê de Ética da UNIJUÍ, aos professores e colegas de estudo e de pesquisa do mestrado, pelas aprendizagens, pelo carinho e pela disponibilidade ao outro;

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Não é nunca inocente o olhar que se projecta na direção do mundo, mesmo quando ele procura perscrutar, para além do conhecido, as formas obscuras entrevistas no desejo de descobrir. Todo conhecimento se assemelha à arte de navegar: para além do horizonte próximo há ilhas novas, antigos continentes a pontuar o rumo. Mas não há nenhuma inocência no gesto de prolongar a vista, semeada de notícia e de fantasma, ou de aparelhar os barcos e de medir ângulos e sinalizar as estrelas, que a ciência é a arte de marear assinalaram ambas. Navega-se para o conhecido: a descoberta é um efeito haver (SARMENTO, 2000, p.19).

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Figura 1 – A representação de como as crianças entendem os seus direitos.

Fonte: Desenho realizado por uma criança de 9 anos, participante da pesquisa, aluna da 4ª série.

A infância é associada à imaturidade, à minoridade, e seria um estado do qual haveria que se emancipar para se tornar dono de si mesmo. Ela é uma metáfora de uma vida sem razão, obscura, sem conhecimento (KOHAN, 2003, p. 237).

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INTRODUÇÃO

Exercita-te no escutar. Aprende a ler e a escrever de novo. Conta-te a ti mesmo a tua própria história. E queima-a logo que a tenhas escrito. Não sejas nunca de tal forma que não possas ser também de outra maneira. Recorda-te de teu futuro e caminha até a tua infância. E não perguntes quem és àquele que sabe a resposta, nem mesmo a essa parte de ti mesmo que sabe a resposta, porque a resposta poderia matar a intensidade da pergunta e o que se agita nessa intensidade. Sê tu mesmo a pergunta (LARROSA, 2006, p. 41).

Infância na

Infância na

Infância na

Infância na

vida:

vida:

vida:

vida: história

que constitui

a razão de

uma

caminhada

Figura 2 – A representação de como a criança se vê no espaço da sala de aula.

Fonte: Desenho realizado por uma criança de 9 anos, participante da pesquisa, aluna da 4ª série.

Primeiramente, trago a minha vivência e experiência, para um possível diálogo na tessitura desta pesquisa. Durante dezesseis anos fui professora de Educação Infantil. Atualmente – já se somam 6 anos - não estou mais em sala de aula no contato direto com a criança, visto que em razão da função que exerci na Orientação Educacional – por dois anos - e no momento presente como Assessora Pedagógica – 4 anos - junto aos professores da Educação Infantil à 4ª série da Educação Básica, não tenho “uma turma só minha”, mas,

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procuro ser e estar presente em todas as séries com uma saudação de bom dia, numa escuta, numa conversa, num colo, num abraço, em sorrisos trocados, na escuta de um desabafo, num lanche compartilhado, numa história, numa poesia, nas músicas, na organização e preparo das celebrações – Páscoa, dia das mães, dos pais, dos avós, da criança, da Mostra Arte Criança SETREM, do Natal -, numa e noutra atividade que vão tecendo e articulando as práticas pedagógicas na escola.

A criança em si é algo muito forte dentro de mim. Ela me chama a atenção. Faz-me parar e “ganhar” tempo com ela, ganho e ganho muito na riqueza da sabedoria da infância que se “divide” comigo. A infância me puxa e me convida a olhá-la, me desafia em seus modos de socialização, questiona meu “escutar” e me convoca á conversas de igual para igual, na condição humana que nos encontramos como sujeitos em constante reconhecimento social do outro.

Costumo dizer às professoras que, no meu trabalho de Assessoria Pedagógica, também me faço presente – e isto de certa forma alivia, em parte, a falta que sinto das gentes pequenas – em cada uma das vivências do (con) viver diário da sala de aula em que posso me fazer presente, na possibilidade que tenho de refletirmos juntas o processo de ensino e de (não) aprendizagem da criança e do professor. Momentos ímpares de reflexão e de significância única construídos em (re) aprenderes mútuos.

Estar entre e com crianças e poder vivenciar as inúmeras possibilidades delas viverem a infância é algo que para mim, demonstra-se numa beleza que encanta – é o lado gostoso e bom de estarmos juntos, do conviver e do aprender entre – mas, pelo outro lado – no avesso do olhar -, também há o desencanto deste mesmo olhar, do “tudo bom e bonito”, pois sabemos das inúmeras infâncias sofridas e exploradas que lutam para (sobre) viver neste mundo de relações desiguais e complexas. São muitos os desafios de entendimentos às diferenças e singularidades infantis, nas possíveis quebras de lógicas pautadas nos padrões de normalidade de uma infância absoluta e única, de uma única maneira de ser e estar criança, para o exercício da reflexão nas particularidades do viver o humano sendo tecidas nas redes das complexidades de um mundo ao qual estamos todos inseridos.

Mas, quero mais. Quero porque preciso. O pouco que sei não me basta. Sinto falta de saberes de compreensões para com esta infância que está na instituição escolar contemporânea. Sinto que a criança nos diz tanto, e ao mesmo tempo, nos interroga só que não conseguimos apreender – com nosso olhar adultocêntrico - tamanha sabedoria infantil de ser e viver neste espaço socializado de saberes, permeado por inúmeras diferenças e contradições que é o espaço escolar.

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Assim como Silva (2006, p. 10) propõe, disponho-me também, na condição de pesquisadora “com raízes crianceiras”, a escuta das vozes das crianças nas séries iniciais do ensino fundamental – grupo singular e que dizem de uma determinada realidade (mas nunca absoluta), de crianças denominadas por Narodowski (1998) como “hiper-realizadas”1 – de uma escola privada de ensino, para melhor buscar entender os seus modos de ver e sentir-se na condição que se encontra como criança/aluno, dando espaço e visibilidade às suas narrativas.

Os referenciais utilizados permitem considerar a criança um sujeito, para além de um simples objeto de pesquisa, reconhecendo a infância que vive o aluno no dia a dia dos espaços escolares, gastando seu “tempo juntas diariamente” (CORSARO, 1997, p. 95).

Pretendo então, refletir sobre as singularidades que a criança nos trás em suas narrativas. Trata-se de um exercício difícil, mas possível e necessário para quem acredita no infante enquanto sujeito social, construtor de sua história de vida, a quem Marchi (2010, p. 5) refere sujeito com “autonomia conceitual”, no reconhecimento da criança enquanto protagonista social e “eleita como objeto de estudo por direito próprio”. Por isso, os registros das vozes e palavras da criança-aluno participante da pesquisa, serão preservadas em sua originalidade de escrita para o reconhecimento deste pequeno sujeito e a legitimidade das formas próprias e singulares de expressar-se na (com) vivência do contexto escolar.

Pensando no modo como as crianças vivem as suas infâncias na escola, pretendo problematizar outras concepções sobre a criança naturalizada na posição de aluno, para além do que a voz infantil institucionalizada nos diz: “lugar de criança é na escola” (frase de uma criança de 9anos, participante da pesquisa, aluno da 4ª série). A sociologia da infância oferece novos paradigmas para pensar a infância contemporânea, sendo assim, a metodologia utilizada possibilita dar “voz” e “vez” para que as crianças possam “dizer-se” e manifestar-se nas diferentes possibilidades de linguagens que a constituem. Neste trabalho serão considerados a dimensão do “ofício de aluno” e “ofício de criança”2 tendo aporte teórico nos

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Esse conceito de “hiper-realização” é refletido por Narodowski (1998) em um importante texto intitulado “Adeus à infância (e a escola que ensinava)”. Este autor sinaliza a complexidade das vivências da infância contemporânea em dois pólos de fuga: a infância “hiper-realizada” e a infância “des-realizada”. Segundo Narodowski (1998, p. 174) “o pólo da infância hiper-realizada é a infância da realidade virtual. Trata-se das crianças que realizam sua infância com a Internet, os computadores, os sessenta e cinco canais da TV a cabo, dos videogames e que há tempo deixaram de ocupar o lugar do não saber. [...] O outro ponto de fuga é constituído pelo pólo que está conformado pela infância des-realizada. É a infância que é independente, que é autônoma, porque vive na rua, porque trabalha desde muito cedo. [...] É a infância não da realidade virtual, mas da realidade real”.

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relevantes estudos de Sirota (2001), na reflexão das práticas pedagógicas e os processos de socialização efetivados pelos sujeitos infantis.

Para estas reflexões, ressalto também a importância dos estudos de Marchi (2010, p. 5) os quais assinalam que a partir da década de 70, as Ciências Sociais repensam a sua teoria, “reformulando o quadro teórico-metodológico” na importância do “caráter ativo, reflexivo da conduta humana”, referindo-se a “invisibilidade epistemológica da criança” e que “dominou” os estudos sociológicos até fins dos anos 60”.

Nessa visão, o comportamento humano é resultado de forças sociais que os sujeitos não entendem nem controlam. Foi justamente nesta “tempestade” de entendimentos, da dimensão social, histórica e cultural a qual os diferentes sujeitos sociais estão em confronto no mundo, que busco na pesquisa de Marchi (2010, p. 5) argumentos sobre a construção de compreensões “outras” no campo sociológico, pois, a pesquisadora escreve sobre a “crise teórica nas Ciências Sociais e no chamado ‘retorno do ator’ à cena teórica, que emergiu a Sociologia da Infância como um campo de estudos que propõe um novo paradigma para os estudos sociais da infância e das crianças”.

“A vista de um ponto”3 para pensar a infância “da” escola e “na” escola de Ensino Fundamental, na escuta de suas vozes, possibilita prestar atenção no universo infantil presente no contexto escolar. Os Sociólogos da infância Sarmento e Pinto (1997, p. 26) nos ajudam a refletir sobre “o descentramento do olhar doadulto como condição de percepção das crianças e da inteligibilidade da infância”, por isso, a relevância do diálogo entre os estudos Sociológicos da Infância e os estudos da Pedagogia.

São possíveis compreensões que para Marchi (2010, p. 5) constroem-se na “’voz e vez’” dada aos “atores e suas ações como dotadas de sentido com lógica própria”. Neste sentido, a pesquisa de Quinteiro (2002, p. 147), nos ajuda na compreensão de como são “tecidos os fios da infância com os fios da escola” e que Sirota (2007, p. 44) inaugura como uma das ricas possibilidades de relações, ou seja, “socialização horizontal”.

As relações construídas demonstram os modos de ser e estar professor de crianças, trata-se de uma postura profissional que apreende a criança que fala, suas narrativas e que Marchi (2010, p. 6) sabiamente nos lembra: “não significa estudar o objeto de forma isolada das relações sociais que o constituem”, mas na compreensão de que as crianças/alunos convocam a reflexões complexas da infância enquanto construção social, que fazem e refazem história cotidianamente, através dos seus processos de socialização e ressignificação

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Trago esta expressão “a vista de um ponto” como uma forma de “olhar ao avesso” a expressão comumente usada como “o ponto de vista”.

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do que lhes é posto e dado institucionalmente. Neste pensamento, a criança é reconhecida como sujeito e ator social e segundo essa mesma autora (2010, p. 3),

O princípio da criança-ator interroga sobre as imagens tradicionais da criança no Ocidente e seu lugar na sociedade. O princípio da infância como construção social questiona a ideia desta como categoria definida simplesmente pela biologia e passa a entender seu significado como variável do ponto de vista histórico, cultural e social e sempre sujeito a um processo de negociação tanto na esfera pública quanto na privada.

Assim, pensar a infância na escola e a escola constituindo a infância, ou ainda, os mundos da infância e a cultura do universo escolar tornam-se importantes aspectos a considerar nesta investigação.

Concordo com Marchi (2010, p. 12), pois “trata-se, portanto, de abandonar a visão dualista e excludente que caracteriza o pensamento baseado em dicotomias” – aqui neste caso, infância e escola -, mas, no propósito de reflexão sinalizado por Prout (2005, p. 75 apud MARCHI), na qual a infância é “constituída por redes heterogêneas da realidade social”. Trata-se de reflexões que fazem emergir as diferenças e pluralidades do mundo social, do espaço, da prática escolar e das vivências e experiências dos pequenos sujeitos e atores infantis presentes no seu processo de ensino e aprendizagem na escola.

Ao ouvir as vozes da infância em seu ofício de aluno e de criança através do uso do método de pesquisa com viés etnográfico, a relevância e necessária articulação do contexto social e histórico ao qual a criança e sua infância estão imersos, torna-se questão importante nos estudos sociológicos. Assim, Marchi (2010, p. 7) nos alerta para a complexidade do empreendimento investigativo: “a questão é bem mais complexa e diz centralmente respeito ao fato de se ligar, sociologicamente, os níveis micro e macro de investigação, tendo por objetivo compreender o lugar e a ação social das crianças”4.

Nessas dimensões de compreensões para com a infância, torna-se importante ressaltar que as pesquisas de Sirota (2001, 2004), Quinteiro (2002, 2004), Sarmento (1997, 2003, 2004, 2006, 2007, 2008, 2010), Marchi (2010) e Narodowski (1998, 2001), buscam justamente produzir entendimentos neste campo de discussão – infância e escola –, sendo que um dos

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Neste entendimento, do movimento necessário entre as relações micro e macro sociais, não irei me ater de forma mais aprofundada nestes dois conceitos, visto que o que aqui foi registrado já localiza a criança e a sua infância num contexto de mundo maior, dando e sofrendo influências sociais e históricas. Segundo Sarmento (2003, p. 8) “o debate não se situa no fato das crianças produzirem significações autônomas, mas em saber se essas significações se estruturam e se consolidam em sistemas simbólicos padronizados, ainda que dinâmicos e heterogêneos, isto é, em culturas”.

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compromissos é permitir-se pensar e desnaturalizar ideias pré-concebidas de criança/aluno/escola desvinculadas de uma história social e cultural construída pelo ser humano. Esses pesquisadores abrem a possibilidade para uma leitura do contexto escolar como um espaço de resignificações da infância, que na função em que se encontra - de aluno-,reescreve seu próprio papel frente aos objetivos e propostas pela instituição educativa. Os estudos mostram certa mobilização da criança em busca do reconhecimento da ação infantil, seus sonhos e desejos, vistos com seus próprios “óculos”, bem como, a expressão de suas representações e entendimentos sobre a escola e o seu papel de aluno, ou seja, a criança é ator social em seu “ofício de aluno” e por isto tem algo a dizer para os adultos na e da escola.

Ao fazer este movimento de dispor-me à escuta, em dar visibilidade às vozes da infância escolarizada, reconheço que a criança com certeza irá contribuir com a escola e seus currículos. Com suas ideias, seus pensamentos, sua socialização e representação do mundo escolar, com seus sonhos e desejos, constato a quebra de paradigma do campo sociológico tradicional, buscando uma interpretação conceitual da infância percebida e assinalada especialmente por Sirota (2007). Assim, a sociologia da infância considera a criança como “ator integral” – numa contradição ao discurso da sociologia e da pedagógica tradicional que concebem a criança/aluno como depositária de seus saberes, tábula rasa – que pouco, ou nada sabe, na desconsideração da riqueza dos saberes próprios e das culturas singulares infantis. Ou então, as relações entre infância e escola ainda estão em via de serem compreendidas e tecidas.

Marchi (2010, p. 6 e 7) pondera que para este modo de entendimento metodológico é “importante ressaltar também que o paradigma da criança-ator não significa considerar as ações das crianças no ‘vazio social’ ou na ausência dos efeitos das propriedades estruturais e das relações sociais de poder e dominação”, bem como, não “passar de um pólo ao outro (da incompetência total à competência total das crianças): afirmar que as crianças são ‘ativas’ não implica lhes atribuir uma total autonomia independente de todo contexto sociológico e de toda construção teórica”.

Ao eleger dar visibilidade para as vozes do aluno/criança, ressalto o contexto sociológico objetivando outras compreensões, quando a criança, em seu “ofício de aluno”, manifesta sua necessidade de poder viver a sua infância no espaço instituído socialmente ao aprender. Neste sentido, convoca a outros entendimentos adultos para com os seus processos de socialização, representação e aprendizagem infantil. Complexidade de relações entre atores adultos e crianças, entre a figura do professor e do aluno, a que Sirota (2007, p. 44) se refere como a necessária (socializ) ação, “não mais em termos de socialização vertical, mas em

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termos de socialização horizontal”. Palavras de difícil compreensão para a cultura escolar tradicional, quando a lógica das suas relações adultocêntricas estão estabelecidas e determinadas como naturais e verticais. Os estudos acima mencionados mostram que o mundo da infância desassossega nossas supostas “verdades”, na necessidade de considerar diferentes vivências contemporâneas nos muitos modos de ser e estar criança na escola.

É nestes modos de socialização que os estudos de Sirota (2007) assinalam a possibilidade de outras relações a serem estabelecidas e do reconhecimento da criança como sujeito social, com seus modos próprios de ser, agir e ver. O infante como ator social com lógicas singulares e que Ferreira (2002, p. 20) convoca “os adultos a desafiarem as barreiras de seu próprio adultocentrismo”. Dimensão esta, que demonstra nova postura, para igual social, e que rompe com a verticalidade nas relações para com estes pequenos sujeitos os quais estão na escola e possuem capacidade de se dizer e dizer do mundo de hoje, através do “ofício de criança” e do “ofício de aluno”.

Nessa perspectiva de ressignificação das relações, os estudos de Sirota (2007, p. 9) apontam “para fazer acontecer o ser social” que a criança já é “por oposição a essa concepção de infância, considerada como um simples objeto passivo” a ser educado e formado. Para esta mesma pesquisadora, é “um movimento geral da sociologia, [...] que se volta para o ator e de um novo interesse pelos processos de socialização”. Trata-se de outros modos de ver os processos de socialização, os quais fazem emergir no mundo social, a infância como protagonista, construtora da história que vive. Posturas adultas que dizem do dispor-se à criança na condição de escuta dos ditos e não ditos e no reconhecimento de saberes prévios já construídos em suas diversas experiências e vivências dos mundos infantis anteriores e fora da escola.

É com a concepção de socialização verticalizada e com modos de relações verticais, materializadas em práticas e discursos sociais, que tais paradigmas tentam romper, sinalizando para outra dimensão de conceber a infância em seus processos de socialização na escola, pois, para Sirota (2001, p. 9) “a infância será essencialmente reconstruída como objeto sociológico através dos seus dispositivos institucionais, como a escola, a família”. Por isto, pretendo, modestamente, contribuir na reconstrução dos olhares para com a infância contemporânea, como objeto sociológico, no específico de meu estudo, dando voz às crianças de uma escola de um município da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul.

Neste sentido, Sirota (2005, apud MARCHI, p. 9) reflete que “assim, trata-se de compreender o que mudou no novo estatuto da infância e que atravessa o atual conjunto das

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instâncias de socialização neste rearranjo próprio da contemporaneidade, onde a criança é levada a construir sua própria experiência em um ‘quebra-cabeças’ de referências e normas”.

Logo, a criança “na” e “da” escola, percebida como objeto social capaz de dizer-se e perceber-se na condição de aluno, também denuncia e é denunciada pelas práticas pedagógicas em seu “ofício de criança”. No contexto deste debate é que formulo as minhas questões de pesquisa, num desafio constante em busca de outros entendimentos para a condição de criança no “ofício de aluno”.

Para dar conta deste desafio, realizei um estudo de caso5 junto a um grupo de crianças das séries iniciais da Educação Básica, numa instituição particular de ensino, localizada num município da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul. A partir deste trabalho pretendo:

1. Revisar e melhor entender a complexidade da construção histórica social e da representação da criança até os dias de hoje, a contemporaneidade, para mapear como a infância entrou na escola e lá permaneceu/permanece até os dias atuais, refletindo sobre os processos de socialização no contexto da escolarização inicial. Nesse sentido são valiosos os estudos sociológicos de Rousseau (2004), Ariès (2006), Sarmento (1997, 2003, 2004, 2006, 2007, 2008, 2010) e Sarmento & Pinto (1997), Pinto (1997), Sirota (1994, 2001, 2007), Quinteiro (2002, 2004), Montandon (2001), Marchi (2010) e outros, pois, permitem problematizar os modos como as crianças vivem e sentem seu “ofício de aluno”.

2. Sendo assim, minha pesquisa poderá ser útil para ressignificar a docência nos anos iniciais da minha escola, e quem sabe, contribuir com a rede de ensino em que atuo, construindo outros entendimentos sobre a infância na escola de hoje, de modo que as crianças possam vivenciar a confiança em si como seresinteligentes e criativos, com condições de dizerem dos seus desejos e necessidades. No decorrer deste estudo procuro construir novas sensibilidades e uma compreensão mais aprofundada para com as crianças. Logo, buscarei “ouvir suas vozes”, sustentada pelos estudos de Sirota (2001, p. 15) sobre o “ofício de aluno” e o “ofício de criança” e outras pesquisadoras que investigam, tomando os estudos da infância como respaldo teórico-metodológico. Minha caminhada na escola como professora e Assessora Pedagógica mostra a necessidade urgente de um encontro com elementos que favorecem redimensionar a relação entre educadores e sujeitos infantis imersos em uma determinada cultura, a escolar.

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Estudo de caso na posição de Lüdke e André (1986) apresenta-se como estratégia de pesquisa específica ou mesmo complexa, mas, a sua delimitação faz-se necessária. O estudo de caso sinaliza um interesse próprio, particular e representa um diferencial na educação. Rico em dados descritivos é flexível, e centra-se no estudo da realidade contextualizada e complexa dos sujeitos envolvidos.

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Portanto, faz-se necessário um estudo mais aprofundado sobre os conhecimentos que se tem sobre a criança e sobre seus diferentes modos de ser e estar neste mundo atual, suas representações sociais. As tentativas de compreensão dos universos infantis convocam a pedagogia a um diálogo constante com as diversas áreas do conhecimento humano, tais como a psicologia, a sociologia, a história, a antropologia, com o intuito de reconhecer as capacidades e potencialidades criadoras das representações sociais e culturais da criança. Interlocuções necessárias para com os sujeitos infantis, vistos numa relação de atores e sinalizados por Javeau (apud SIROTA, 2001, p. 11) na perspectiva de “trabalhar para o conhecimento da infância como um grupo social em si, como um ‘povo’ com traços específicos”.

Ao definir a escuta das vozes da infância contemporânea em seu “ofício de aluno” e “ofício de criança” e seus modos de socialização na escola, tendo como pressuposto central a construção social e histórica da infância, apresento o lugar de onde escrevo e retomo a minha história de vida, a escolha e relevância do tema da pesquisa. Assinalo os significados e conceitos fundamentais que sustentam o tema, escrevo então, sobre as escolhas teóricas e metodológicas, mostrando a minha opção pela Sociologia da Infância. Desde esta pespectiva, distingo a seguir, o que é criança e o que é infância, para refletir sobre o “ofício de criança” e “ofício de aluno”. Enfim, exponho um possível caminho metodológico para escuta das narrativas infantis escolarizadas. Os autores que estão comigo nesta caminha inicial dando aporte teórico e metodológico são: Sirota (2001), Marchi (2010), Lüdke e André (1986), Minayo (2007), Barbosa & Kramer & Silva (2008), Oliveira (2006), Quinteiro (2004), Larrosa (2006), Rocha (2008), Campos (2008), Cruz (2008) e Kohan (2000), e outros.

Sendo assim, organizo minha dissertação da seguinte forma: no capítulo I, intitulado “Foi quando se ouviu a voz da criança: percepções de Narodowski sobre a infância de Rousseau”, faço uma revisão bibliográfica. Rousseau com sua obra “Emilio” ou “Da Educação” assinala os possíveis modos de entendimentos sobre a trajetória da infância e sua educação, desde a Idade Moderna até os dias atuais, bem como os estudos de Narodowski e como este autor analisa a obra de Rousseau. O capítulo objetiva refletir como a escola moderna incorpora/incorporou a criança e a infância, e as influências do contexto social e histórico na definição dos conceitos de aluno/escola/criança/infância.

Situando a infância desta pesquisa em seu contexto escolar, o capítulo 2 intitulado “Dá para ser criança na escola porque não é tão diferente fora: os fazeres pedagógicos na escola da pesquisa” merece ser problematizado, principalmente quando a realização deste estudo de caso é a escuta da voz da criança institucionalizada, suas relações e seus modos de

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significar/estar na escola em seu ofício de aluno e de criança. O cuidado na escolha dos caminhos metodológicos construídos para ouvir a criança/aluno em suas narrativas e seus pontos de vista, possibilitam conhecer/refletir outras formas e (re) leituras do mundo escolar, que, de algum modo, buscam entender quem é a criança desta pesquisa.

Assim, o capítulo 3 ressalta as narrativas da criança/aluno e seus diferentes modos de compreensões, interações e socializações na instituição escolar, procurando formas alternativas de vivenciar a sua infância escolarizada, pois, afinal, a escola “ocupa-se” das e com as gentes pequenas. É isto que faz esta criança nos dizer: “a escola é onde eu passo a grande parte do dia” (criança de 9 anos, participante da pesquisa, aluna da 4ª série). Este capítulo busca também registrar e salientar a prática pedagógica da escola pesquisada através dos Projetos de Estudo.

Nas páginas finais da escrita desta pesquisa, tendo como título “Sem conclusões: Apenas começando uma escuta reflexiva! O que nós faríamos sem elas?”, busco mobilizar reflexões “com” e “sobre” a infância contemporânea que está na escola, quando as mudanças sociais, históricas e culturais atuais, deslocam e desafiam os saberes da Pedagogia moderna sobre os modos de socialização e aprenderes da infância em seu ofício de aluno.

O que a criança em seu “ofício” tem a dizer? Na realização da pesquisa, coloquei-me na posição de ouvinte das falas das crianças na escola, na possibilidade de que a música de Winken (1998) da “orquestra invisível” e ou então, falas invisibilizadas/silenciadas da criança na escola, possam se tornar visíveis e “audíveis” a nós adultos no ofício de educadores da infância, como Junqueira (2006, p. 69) nos diz tão bem, “é possível que aprendamos a nós mesmos e aos nossos alunos”. Prática que não termina nunca, a do aprender e do conhecer a infância, possível e necessária aos fazeres docentes em ação.

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CAPÍTULO CAPÍTULO CAPÍTULO CAPÍTULO ---- “FOI “FOI “FOI “FOI QUANDO SE OUVIU QUANDO SE OUVIU QUANDO SE OUVIU QUANDO SE OUVIU A VOZ DA CRIANÇA: A VOZ DA CRIANÇA: A VOZ DA CRIANÇA: A VOZ DA CRIANÇA: PERCEPÇÕES DE NARODOWSKI SOBRE A INFÂNCIA DE ROUSSEAU.

Figura 3 – A representação de como a criança se vê e se percebe no espaço escolar.

Fonte: Desenho realizado por uma criança de 9 anos, participante da pesquisa, aluno da 4ª série.

Foi quando se ouviu claramente uma voz espantada de criança: — O imperador não leva nada vestido!

— Estes inocentes! As coisas ridículas que dizem! — exclamou o pai da criança. Mas um murmúrio começou a crescer no meio da multidão:

— Aquela criança diz que o imperador não leva nada vestido... O imperador não leva nada vestido! E daí a pouco toda a gente repetia: — O imperador não leva nada vestido!

Por fim, até o próprio imperador achou que eles deviam ter razão, mas pensou para si próprio:

Não posso parar, senão estrago o cortejo.

E lá foi andando com um ar cada vez mais orgulhoso, enquanto os cortesãos continuavam a segurar uma cauda que não existia (ANDERSEN, 2005, p. 18).

Inicio este primeiro capítulo com uma breve introdução para assinalar a possibilidade e a importância da escuta adulta às vozes infantis, no reconhecimento de que as crianças têm algo a nos dizer. O recorte acima destacado é parte de um dos grandes clássicos da literatura infantil, intitulado “A Roupa nova do Rei”, escrito pelo dinamarquês Andersen6 e que provoca a possibilidade de reflexões “outras”, frente ao que, muitas vezes, é “naturalizado como verdade”. Em uma postura reflexiva, busco tecer um diálogo entre criança/infância/escola, trazendo os olhares infantis em seu “ofício de aluno” e criança, ou seja, os seus olhares de

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Aqui nesta pesquisa faremos uso da tradução de 2005 intitulada “A Roupa Nova do Rei”. Primeiramente este clássico dinamarquês foi traduzido para Portugal, quando se lê “O Fato Novo do Rei”. A tradução aportuguesada da palavra “fato” significa “roupa”.

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percepções.

Esta consideração – criança escolarizada como ator do mundo social e histórico em contínua transformação -, faz um resgate bibliográfico entre a infância da Idade Moderna, retratada na importante obra literária de Rousseau intitulada “Émile” ou “Da Educação”, e que sinaliza representações de uma determina época em que a infância é compreendida e descrita como idade a ser preservada e ausente do mundo adultocêntrico. Na interlocução com estas compreensões, trago entendimentos “outros” sobre a infância contemporânea, de vivências plurais e desiguais e de modo muito significativo ressaltada através dos estudos de Narodowski, os quais se referem ao pequeno sujeito infantil em seu processo de escolarização e como se deu este caminho da institucionalização da criança.

Assim, o primeiro capítulo da escrita está subdividido em três considerações fundamentais de contextualização da infância enquanto construção histórica e social. A primeira refere-se sobre “A criança contemporânea sendo constituída pelos discursos e práticas pedagógicas: como Narodowski analisa Rousseau”; quando logo depois, ainda neste mesmo capítulo, no subtítulo 1.2, irei ressaltar a questão da “Moralização, enclausuramento, quarentena7... A Infância não pode mais parar: da família à escolarização”, com o aporte teórico dos estudos de Ariès (2006), Narodowski (2001), Arroyo (2008), Dornelles (2008), e outros. Isto para que, depois desta volta necessária às nossas raízes, possamos compreender a infância/criança de hoje na escola, refletida no subtítulo 1.3, intitulado como: “Espaço escolar compartilhado de vivências infantis contemporâneas plurais: eu, tu, nós”, quando os importantes estudos de Sarmento (2007), Narodowski (1998), Filho (2006), Sirota (2001), Quinteiro (2004) sublinham a infância escolarizada.

Antes de lançar este olhar necessário ao passado, neste momento introdutório do capítulo, reafirmo a importância de uma escrita reflexiva e aberta, e que segundo Larrosa (2006, p. 103), é “de todos e de cada um de nós” na perspectiva de compreensões de uma infância viva que para Souza (2008, p. 103) constrói-se num “eterno movimento do mundo e seu estado permanentemente de inacabamento”.

Ressalto também a importância de atentar para a criação literária de Andersen quanto a sua capacidade de trazer a “força” de um imaginário social8 criado e sustentado por uma

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Termo usado por Philippe Ariès em sua obra: “História Social da Criança e da Família” referindo-se a separação da criança em relação a sua família e mantida distante – na escola - numa espécie de temporária reclusão, antes de viver no mundo.

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Imaginário Social segundo a pesquisadora Valeska Fortes de Oliveira (2007, p. 114), demonstra-se no entendimento da criança com a “chance de realizar o que ainda não existe, de criar, de inovar e não repetir ou reproduzir de modo passivo, desenvolvendo-se como ser inteligente, que é movido por sua permanente curiosidade”. Assim, “[...] ela exercita, cotidianamente, o seu protagonismo”.

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determinada situação, e que por sua vez, proporciona outras leituras e outras percepções da criança. Sirota (2007, p. 45) define isto como possibilidades, “não mais como distanciamentos individuais, mas como manifestações de culturas de resistência”. A criança reage frente a esta realidade “criada”, denunciando através da fala o seu pensamento.

Relações sociais em que a criança se manifesta como aponta Sirota (2007, p. 44) em suas possibilidades “próprias [...] e, portanto, a um reconhecimento da criança como ator coletivo com suas próprias formas culturais, à luz das quais serão reinterpretadas as formas institucionais da transmissão”. Mostra-se assim, a capacidade de (re) elaboração da infância frente a determinadas situações, na possibilidade de não serem totalmente iludidas e convencidas diante de realidades “pintadas” socialmente e que se apresentam em seu dia a dia na sua dimensão de criança.

Retomo a escrita da epígrafe que inicia o capítulo, quando Andersen (2005) sinaliza o momento em que se ouve e percebe “claramente uma voz de criança”. O momento retratado neste recorte do conto remete aos estudos de Sirota (2007) e marca a possibilidade de um pensar diferente, “reinterpretado”, de um não dito, do aparecimento de uma possível verdade escondida, do “desmascaramento” de uma situação e prática concebida na naturalidade de uma história social construída intencionalmente, que busca, na lógica do “senso comum”, sem um possível “estranhamento” frente aos fatos, a naturalização de uma realidade.

A criança da fala, retratada no conto não poderia ficar restrita somente às páginas de um livro, mas poderia ganhar vida fora dele, na concretude das relações e vivências entre humanos, ultrapassando a visão dualista, adultos versus crianças. Sendo assim, assinalo a importância da escuta das vozes da infância na escola do Ensino Fundamental – séries iniciais -, ou seja, como criança da manifestação, da (re) interpretação dos fatos que a ela se apresentam cotidianamente em seu papel de ator social. Ora, foi a fala, a voz de uma criança, foi o espanto, foi a coragem de um pequeno sujeito que abriu a possibilidade de um “novo pensar” ou, então, de um novo olhar para o que se apresentava na época9 com toda uma roupagem invisível – na pretensão da construção de uma determinada verdade, conveniente a poucos.

No conto, é a voz de uma criança que marca, o início de uma possível dúvida naquilo que busca ser consenso entre a comunidade adulta; a voz de uma única criança ecoa entre

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Época da Idade Moderna em que a criança não era vista e nem percebida como alguém socialmente. Criança que vivia a sombra do adulto.

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aquele mundo social, mas que na figura de um adulto – seu pai -, se vê logo abafada e silenciada, numa tentativa de colocá-la no lugar de sujeito “ridículo”, pois não “sabe o que diz”, porque todos se sentiram, conforme Larrosa (2006, p. 48) “contrariados quando alguém começou a falar e rompeu com o silêncio”.

Na leitura deste conto infantil, a criança é vista por duas formas simultâneas que marcam a fala do pai: inocente e ridícula. Ao mesmo tempo em que é concebida como “inocente criança” que vê e percebe o real da situação: a falta de roupas do rei é também tida como “criança ridícula”, na fala adultocêntrica de seu pai. Mas, em seu olhar de criança, o qual não consegue guardar só para si, percebe e expressa a leitura visual que faz das roupas inexistentes do rei, pois, na sua sabedoria infantil, as roupas não estavam ali, elas não existiam. A quem estavam querendo enganar?

Na lógica infantil, a criança “grita” o seu pensamento e mostra aos adultos o que ela realmente vê. Manifesta em sua fala, como que num ato incontido de abrir os olhos dos demais expectadores, para uma possibilidade de um pensamento diferente. Segundo Souza (2008, p. 105), “cria algo que nunca existiu antes”. Com sua fala, a criança opõe-se frente a uma situação que pretende demonstrar-se como uma verdade, numa pretensa lógica na naturalidade de fatos acreditados e confessados por alguns. No certo, instala-se uma situação de dúvida e esta gera movimentos “entre” os sujeitos ali envolvidos.

Para alguns, duvidar dos próprios pensamentos pode demonstrar ser um ato de fraqueza e estupidez. A possibilidade de reconhecer e reconhecer-se na tomada de consciência frente a uma determinada situação, neste caso, na história das roupas do rei, que é articulada em uma suposta “verdade” – inquestionável - na lógica da manutenção de uma realidade, não envolve este tipo de postura e questionamentos de um pensar diferente.

Só mesmo a criança em sua dita “inocência” é capaz de expor-se e manifestar-se com coragem e sinceridade, ao verbalizar o seu modo de apreender uma situação inusitada que se apresenta e que Souza (2008, p. 105-106) aponta como “ato de fala, que é particular ao falante, e implica, portanto, sua singularidade”.

É essa imagem de criança que tem “voz”, que pode e sabe manifestar-se em suas “cem linguagens” (EDWARDS, 1999) que a constitui em um sujeito social ativo, produtor de histórias e de falas. Segundo Souza (2008, p. 106) “na interdependência da experiência individual com a pressão permanente de valores sociais que circulam no contexto do sujeito falante”. É essa infância que convoca à perspectiva assinalada por Souza (2008, p. 103) quando diz que “ignorar a natureza social e dialógica do enunciado/da fala é apagar a profunda ligação que existe entre a linguagem e a vida”.

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É nesse desafio e disponibilidade de escuta para com os sujeitos pequenos na escola, que busco caminhos e formas de aproximação, para ir assim, tecendo a muitas vozes e mãos, a possibilidade de pensar/escutar a criança/aluno.

DEZ DIREITOS NATURAIS DAS CRIANÇAS

1. Direito ao ócio: Toda criança tem o direito de viver momentos de tempo não programado pelos adultos.

2. Direito a sujar-se: Toda criança tem o direito de brincar com a terra, a areia, a água, a lama, as pedras.

3. Direito aos sentidos: Toda criança tem o direito de sentir os gostos e os

perfumes oferecidos pela natureza.

4. Direito ao diálogo: Toda criança tem o direito de falar sem ser interrompida, de ser levada a sério nas suas ideias, de ter explicações para suas dúvidas e de escutar uma fala mansa, sem gritos.

5. Direito ao uso das mãos: Toda criança tem o direito de pregar pregos, de cortar e raspar madeira, de lixar, colar, modelar o barro, amarrar barbantes e cordas, de acender o fogo.

6. Direito a um bom início: Toda criança tem o direito de comer alimentos sãos desde o nascimento, de beber água limpa e respirar ar puro.

7. Direito à rua: Toda criança tem o direito de brincar na rua e na praça e de andar livremente pelos caminhos, sem medo de ser atropelada por motoristas que pensam que as vias lhes pertencem.

8. Direito à natureza selvagem: Toda criança tem o direito de construir uma cabana nos bosques, de ter um arbusto onde se esconder e árvores nas quais subir. 9. Direito ao silêncio: Toda criança tem o direito de escutar o rumor do vento, o canto dos pássaros, o murmúrio das águas.

10. Direito à poesia: Toda criança tem o direito de ver o sol nascer e se pôr e de ver as estrelas e a lua.

‘Todo o adulto tem o direito de ser criança’ (ALVES, 2008).

Figura 4 – A representação de como a criança percebe e faz as suas leituras de mundo. Fonte: Desenho realizado por uma criança de 8 anos, participante da pesquisa, aluno do 3º ano.

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Que as vozes destas crianças/alunos, marcadas pela realidade de um determinado contexto social, histórico e econômico, vivendo a sua infância em seus ofícios – importantes e necessários - possam continuar falando e sendo ouvidas:

“Pois tem várias crianças que não tem escola e nem amigos” (criança de 9 anos, participante da pesquisa, aluna da 4ª série).

“Eu me sinto na escola uma criança feliz porque eu tô tendo minha oportunidade de aprender e de brincar enquanto algumas crianças estão trabalhando para sustentar a família” (criança de 9 anos, participante da pesquisa, aluna da 4ª série).

Mesmo na triste constatação e leitura do contexto social apontada na fala dessa criança/aluno.

1.1 A criança contemporânea constituída pelos discursos e práticas pedagógicas: como Narodowski analisa Rousseau

Se a presença enigmática da infância é a presença de algo radical e irredutivelmente outro, ter-se-á de pensá-la na medida em que sempre nos escapa: na medida em que inquieta o que sabemos (e inquieta a soberba de nossa vontade de saber), na medida em que suspende o que podemos (e a arrogância da nossa vontade de poder) e na medida em que colocam em questão os lugares que construímos para ela (e a presunção da nossa vontade de abarcá-la). Aí está a vertigem: no como a alteridade da infância nos leva a uma região em que não comandam as medidas do nosso saber e do nosso poder (LARROSA, 1998, p. 232).

Figura 5 - A criança tem um corpo e uma história Fonte: TONUCCI (1997, p. 97).

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Aqui busco construir uma reflexão entre os ideais de criança/aluno e sua educabilidade pela Pedagogia na escola moderna circunscritas na proposta de Rousseau, com a sua obra “Emílio” ou “Da Educação”, - publicada pela primeira vez em 1762 -, em contraponto ao conceito com o qual trabalha Narodowski (2001) na escrita do seu livro “Infância e Poder”, no qual analisa a criança contemporânea. Ou, então, dito de outra forma: como Rousseau influenciou a construção do “ofício de aluno” presente nas ideias e nas concepções que marcaram os discursos pedagógicos Modernos até os dias atuais.

Em Narodowski (2001, p.10), o discurso pedagógico

É que nos faz dizer o que dizemos, que dá significados aos conceitos que construímos, que categoriza e ao mesmo tempo dota de instrumentos específicos nosso pensamento no que respeita ao pedagógico. Se a Pedagogia elabora sentidos acerca da atividade educativa, nosso objetivo será construir novos sentidos em relação aos sentidos da Pedagogia.

Assim, Narodowski (2001, p. 24) nos ensina que a Pedagogia e a construção de um discurso sobre a infância é questão fundamental com o advento da Idade Moderna, tendo nos dispositivos pedagógicos a possibilidade de intervir/agir na produção “de uma infância desejada numa sociedade desejada”.

Em Rousseau, encontram-se algumas ideias da educabilidade da infância. As ideias filosóficas de Rousseau narradas em seu grande clássico: “Emílio”, marcam uma nova “era” para a criança, para as vivências da infância e sua educação. “Emilio” é a narrativa de uma nova concepção – moderna – de infância. A criança passa a ser vista pelo adulto com novas percepções e novos modos de sensibilização nas relações estabelecidas no ato de educar, marcas que subvertem profundamente a visão que se tinha até então da criança na época vigente. Para Norodowski (2001, p. 30), Rousseau apresenta-se como

Não sendo o único mas sim um dos protagonistas exemplares das mais brilhantes páginas de textos e manuais de didática e psicologia educacional, o Émile surge como a fonte inesgotável de reflexões a respeito da infância e dos processos mais gerais de educação e infantilização.[...] Émile produz efeitos inequívocos na configuração da pedagogia moderna ao delinear a criança mas, sobretudo, ao delineá-la em sua educabilidade, em sua capacidade natural de ser formada.

Assim, faz-se necessário este “olhar para trás”, para o passado, para que possíveis compreensões do “olhar de hoje” para com a infância e a escola sejam caminhos tecidos, como nos ensina Santos, na vivência de um passado presente e de um presente que carrega consigo o passado, numa verdadeira indissociação do tempo histórico social, vivido pela

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humanidade. Para o autor (2007, p. 134), “cada época cria novos atores e atribuem papéis novos aos já existentes”.

Rousseau (2004)10 com sua visão, constrói um “novo papel” aos sujeitos adultos e infantis da Modernidade. Com a máxima “antes de falar, antes de entender, ele já se instrui” (2004, p. XIII) este autor revela o seu pensamento de sensibilidade para com o infans11 no que diz respeito a sua instrução, ou seja, a sua educação.

Quem irá instruí-las da melhor maneira possível, nesta nova visão Moderna de uma infância que passa da sua negação ao seu reconhecimento como sujeito diferente do adulto?

Rousseau na sua obra “Emílio” assinala questões importantes sobre o desenvolvimento da criança, seus processos de convivência com a natureza e a interação com o adulto. As ideias de Rousseau transformam as percepções e os conceitos para com o sujeito infantil.

Segundo Dalbosco (2007, p. 318), Rousseau é “um dos primeiros e mais importantes teóricos modernos da infância” razão pela qual suas ideias iluministas de educar se refletem sobre o processo de formação da criança influenciando, historicamente, as concepções de criança/infância, e a formação–ação dos educadores – leia-se adultos -, que então passam a buscar uma relação pedagógica de respeito às necessidades e capacidades próprias de cada idade em que a criança se encontra.

Então, para Rousseau (2004), a criança somente precisa ser trabalhada e desenvolvida para “vir a ser”. Os educadores, sujeitos adultos, seriam então, os grandes realizadores desta construção do ser humano, centralizando sua ação no controle do comportamento e na valorização da inteligência, vista, como natural da criança.

Rousseau (2004, p. 74), como filósofo do século XVIII, apresenta as suas percepções sobre a infância, o que é próprio e natural da criança “na ordem das coisas”, ou então, o “lugar que a natureza [...] atribui na cadeia dos seres” (Idem,2004, p. 79). O autor (p. 91) também afirma que:

A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos temporões, que não estarão maduros e nem terão sabor, e não tardarão em se corromper; teremos jovens doutores e crianças velhas. A infância tem maneiras de ver, pensar e de sentir que lhe são próprias.

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A leitura da obra original de Rousseau “Émile” ou “Da Educação”, lida e estudada para este trabalho de pesquisa encontra-se em sua 3º edição, ano de 2004.

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Para Barbosa (2006, p. 54), com esta ideia de infância, Rousseau apresenta a “sua visão da natureza específica da criança e das formas mais naturais de educá-las”. Infância inscrita e assinalada por Rousseau (2004, p. 82) como “submetida aos outros em razão de suas necessidades, e porque vêem melhor do que ela o que lhe é útil [...]”. Palavras estas que registram o sentimento do não reconhecimento da infância como alguém que já é, mas como um vir a ser. Destaco a infância habitada com vontades próprias, sonhos, desejos, necessidades, capacidades, mas, em muito, sufocadas por representações e narrativas de “verdades” questionáveis, construídas pelo mundo adultocêntrico, na desconsideração de outros modos de ser e estar humano.

Vale lembrar, que na escrita de “Emílio”, surgem questões específicas a uma época vivida – um tempo e um espaço determinando modos de compreensões -, traz-se à tona a preocupação com a educação da criança para uma sociedade emergente – sociedade capitalista -, com novos paradigmas sociais, econômicos e políticos.

Cria-se então, a escola pensando numa infância educável – de corpo e de mente -, na intencionalidade de um movimento social da época que, para Narodowski, seria a infância sendo apropriada, adotada e assinalada pelos discursos e práticas de uma outra pedagogia que agora passa a questionar os modelos pedagógicos vigentes na época. A narrativa de “Emílio” é um marco fundamental na transformação dos modos de percepção e concepção da infância do seu tempo. Investe-se na educação/formação da criança pensando-se no futuro.

Rousseau (2004, p. 48) assinala a seriedade e a necessidade dos adultos da época de pensarem no significado da educação/formação da infância, logo cedo, a partir do seu nascimento, ao sinalizar que “a educação do homem começa com o nascimento; antes de falar, antes de ouvir, ele já se instrui”. Logo, parte do pressuposto de que nascimento e educação se completam naturalmente na busca fundamental de formar este homem, antes de inseri-lo na sociedade como cidadão. Para o filósofo, a educação torna-se questão fundamental à formação do sujeito.

A preocupação de Rousseau situa-se na relação com os cuidados voltados a esta criança, no oferecimento de uma formação adequada para este ser infantil. O autor desenvolve então, todo um “contrato de educação”, onde alguém – sujeito racional adulto - precisaria assumir a responsabilidade formadora, antes de inserir este sujeito em potencial para formação, num contexto de um mundo social maior.

O pensamento de que a sociedade seria corrompida e fruto da ação do homem, fica reafirmado no seu livro “Emílio”, quando Rousseau (2004, p. 7) enfatiza: "tudo está bem quando sai das mãos do Autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem”, na

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possível lógica de que Deus teria criado o mundo belo e perfeito, e a perdição/corrupção do sujeito aconteceria neste viver as relações sociais, ou seja, nas vivências e experiências deste mundo social. Assim, a infância passa a ser considerada por Rousseau, como o momento de aprendizagens humanas por excelência, refletindo a visão de um tempo puro e natural que o homem dispõe. Tempo de aprender, tempo de investimento e formação por parte do mundo adultocêntrico. Tempo de semear boas sementes para que nasçam bons frutos.

A preocupação na formação desta criança, já desde pequena, é reafirmada por Rousseau (2004, p. 88) quando escreve “se considerarmos a infância em si mesma, existe no mundo ser mais fraco, mais miserável, mais à mercê de tudo o que o rodeia, que necessite tanto de piedade, de cuidados, de proteção, do que uma criança?”. Esta fragilidade revela a preocupação de um tempo presente, a infância nominada por Rousseau (2004, p. 119) como “o sono da razão”. É alguém, que segundo Bujes (2002, p. 54), “vai atingir a maioridade através da razão”, quando então irá desempenhar o seu papel na sociedade. Penso que com esta visão de educação, de criança e de infância, Rousseau sugere a educabilidade da infância, pois a criança é vista como faltante da razão adulta, portanto, um ser incompleto.

Ainda segundo Rousseau (2004, p. 91), a infância apresenta as suas particularidades de “ver, de pensar e de sentir que lhe são próprias”, naturais da condição que se encontra “antes de serem homens”. Para o filósofo (2004, p. 82), que marca de certa forma a Modernidade, a infância é um tempo de vida em que o sujeito se demonstra fraco, necessitado de cuidados e de proteção, “submetida aos outros em razão das suas necessidades”. Afirma ainda que “a natureza fez as crianças para serem amadas e socorridas” (ROUSSEAU, 2004, p. 87). Surge assim, uma preocupação compartilhada na época por Rousseau, quando aponta para a criança certas necessidades e características físicas e emocionais que a constitui e que também precisam ser observadas, desenvolvidas em seu “método da natureza” (ROUSSEAU, 2004, p. 216), pois, ao tornar “vosso aluno atento aos fenômenos da natureza e logo o tornareis curioso”. Continua em suas reflexões (2004, p. 101-102) e registra suas considerações nas seguintes palavras: “mestres zelosos, sede simples, discretos, contidos. Jamais vos apresseis em agir, a não ser para impedir que outros ajam”. E ainda continua (2004, p.102)

E, se vos acontecer, em algum momento de entusiasmo, perder o sangue-frio e a moderação com que deveríeis formar vosso estudo, não procureis disfarçar vosso erro, mas dizei-lhe francamente, com uma reprimenda carinhosa: meu amigo, tu me fizeste mal. De resto, é importante que todas as ingenuidades que pode produzir numa criança a simplicidade das idéias que lhe dão nunca sejam comentadas em sua presença, nem citadas de maneira que ela possa vir a reconhecê-las. Uma

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gargalhada indiscreta pode estragar o trabalho de seis meses e causar um dano irreparável para toda a vida.

Rousseau sempre lembra que a criança é fruto da educação que receberia. A educação na infância, ou seja, a educação do “pré-adulto”, aquele que ainda não é, assume assim um caráter de responsabilidade do futuro cidadão social. Segundo Narodowski (2001, p. 35), a busca de ações e práticas cotidianas para com a infância, na observância das especificidades deste momento de vida que se faz através da educação, permite “nomear a infância”, para enfim, “assinalar o próprio do corpo infantil” e “acabar-se como adulto”.

A infância, preparada pela educação, assinala uma reflexão importante nas palavras de Narodowski (2001, p. 29) quando pergunta: “que lugar se atribui a pedagogia no que diz respeito à existência de uma criança carente, necessitada e incompleta? Como o discurso pedagógico assume e ao mesmo tempo constrói essa transformação?”.

As palavras de Narodowski (2001, p. 30) se completam no registro das linhas acima, quando para o autor, Rousseau se manifesta como “um dos protagonistas exemplares das mais brilhantes páginas de textos e manuais de didática e psicologia educacional”. “Emílio” assinala grandes mudanças para a época, principalmente na pedagogia que passa a conceber a criança como possível de ser educada, formada e instruída.

Os pensamentos e práticas pedagógicas escolares “sobre” a criança/aluno que Narodowski (2001, p. 31) nos chamam a atenção, ao especificar que, “a pedagogização da infância não é, em absoluto, coisa de criança”, mas sim, uma ideia recorrente que nasce e se concretiza na escrita de “Emílio”, quando “nomeiam-se” as peculiaridades, as especificidades infantis e tudo que é referente à infância. Diz-se o que é característico desta fase e o que a criança “pode” e “deve” fazer e ser. O autor (p. 31) pondera:

Nomear é em Émile associar as características infantis ao espaço que a natureza entrega a ela. Nomear é, além disso, pleitear um modelo de atividade educativa sobre a infância que se adéqüe a essas características [...]. Por isso é que Émile é fonte iniludível na tradição pedagógica: ali se especificam com cuidado e rigor os alcances e os limites da infância; ali se nomeia o referente à infância. Ali se lhe proporciona definitivamente status discursivo dentro do campo da reflexão pedagógica.

Observa-se, na leitura da citação acima, que o verbo – ação de “nomear” - é ressaltado pela repetição contínua ao que é “referente à infância”, demonstrando-se como questão central na prática da pedagogia da escola moderna. Pela ação de “nomear” enquadra-se a criança dentro de certos padrões de referência. São nomeações adultocêntricas, que buscaram construir representações do que é infância e que nos possibilitam a compreensões de como se

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deu este caminho, ao longo dos tempos nos discursos pedagógicos da contemporaneidade. Estes ainda são, e foram, habitados por concepções que buscaram homogeneizar os sujeitos de uma determinada época. Para além de modos únicos de ser e estar socialmente, reporto-me às reflexões de Sirota (2007, p. 44) quando a autora aponta para uma nova visão de socialização entre adulto e criança “não mais em termos de socialização vertical, mas em termos de socialização horizontal, [...], portanto, a um reconhecimento da criança como ator coletivo com suas próprias formas culturais, à luz das quais serão reinterpretadas as formas institucionais da transmissão”.

Este “nomear” o que é específico do ser infantil, presente também nas falas e nas práticas pedagógicas escolares contemporâneas, “cria”, por sua vez, uma infância específica, que dita modos de ser, estar e viver esta fase da vida, na atualidade. São ideias articuladas em concepções modernas de um sujeito que ainda não é, mas que virá a ser alguém socialmente. A grande maioria dos discursos pedagógicos são sustentados e pensados em ideias de uma criança e da sua infância por quem, socialmente, é legitimado a trabalhar com ela – a escola, ou ainda, o professor.

Pude observar essa questão da nomeação por parte da escola em relação à infância, nos momentos em que estive imersa no campo de pesquisa, na observação e registro das vozes e cenas da criança/aluno em suas vivências escolares. Foram as relações de estar “entre” os sujeitos pequenos que me proporcionaram vivências de alguns modos modernos – mesmo sendo sutis -, de entendimento para com a criança contemporânea e que descortinam a dimensão social de verticalidade estabelecida nos vários processos de construção do conhecimento entre adultos e crianças institucionalizadas.

Relações e ideias construtoras dos sujeitos da escola, adultos e crianças, se descortinam na disposição das classes – enfileiradas uma atrás da outra – na sala de aula; os tempos escolares que ditam os momentos dos aprenderes nas diferentes ciências do conhecimento; a concepção de infância, dos espaços escolares, do currículo, do ser professor, de quem ensina e de quem aprende, quem fala e quem escuta,..., estas foram, também, questões observadas no decorrer da pesquisa.

Ainda reflito sobre outra questão séria a ser estudada e debatida no campo da Pedagogia que é em relação aos livros e material didático – textos, jogos, brincadeiras, cantigas,... – em que as diferentes infâncias sinalizadas por Narodowski como “des-realizadas” são pouco contempladas em suas necessidades e vivências do cotidiano. São práticas pedagógicas que denunciam e corroboram à nomeação de uma infância única e

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