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O CONHECIMENTO HISTÓRICO E SUA REDE FATORIAL. Teoria e filosofia da História.

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O CONHECIMENTO

HISTÓRICO E

SUA REDE FATORIAL

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1. Os fios das tramas

O conhecimento histórico se constrói dentro de uma rede de relações produzidas pela ação humana no tempo e no espaço, no âmbito das socieda-des. Paul Veyne chama essa rede de enredo2, Ivan Domingues a denomina trama.3 Utiliza-se aqui a noção de rede, cuja trama é o entrelaçamento dos fatores que estipulam a consciência histórica de todo agente.

A formação da consciência histórica e a elaboração do conhecimento his-tórico correspondente se realiza em um moto contínuo, por intermédio de um duplo processo: o de ser resultado da história empiricamente efetivada pelo agir humano no passado e o de produzir a história, no presente, desde a perspectiva de um futuro possível esperado.4 Como qualquer conhecimento

' Em parte o presente texto desenvolve reflexões apresentadas era MARTINS, Estevão de Rezende. 0 caráter relacionai do conhecimento histórico. Em: COSTA, Cléria B. da (org.). Um passeio com Clio. Brasília: Paralelo 15, 2002, p. 11-26.

! A tradução brasileira utiliza a expressão "trama" para o original francês "intrigue". 0 modo como Veyne trata do terma

sugere mais o sentido de enredo, como em uma montagem romanesca ou dramatúrgica. A expressão trama também aponta nessa direção. 0 contexto de Veyne contudo sugere o termo enredo como mais adequado', enquanto para Domingues a expressão trama se adequa mais, pois recorre ao tempo e ao espaço como elementos da tessitura (trama) de sustentação da consciência e na narrativa histórica. Ambas noções são análogas e consistentes com a noção de rede fatorial, em que trama e intriga se completam. A primeira sustenta o discurso, a segunda dá-lhe direção. Cf. Paul Veyne. Como se escreve a História.

Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2008,4a. ed., reimpr., p. 42 ss. [orig. francês 1971, p. 46 ss.].

3 DOMINGUES, I.Ofioea trama - reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo/Belo Horizonte: Iluminuras/Editora da

UFMG, 1996.

4 A correlação entre experiência empírica e horizonte de expectativa foi estabelecida por Reinhardt Koselleck (Vergangene

Zukunft. Frankfurt: Suhrkamp, 1985, p. 349-375 [Ed. bras. 2006]) e retomada por Jõrn Rüsen {Razão Histórica. Brasília:

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racionai humano, também o histérico depende de um feixe de lafores em cujo entrecruzamento se situa o agente, indivíduo subjetivamente csaasciente e ativo.

Tem-se, pois, ao menos três instâncias de referência fatorial! cpe se arti-culam para produzir o conhecimento histórico. A primeira instância é© agente. A segunda, o tempo em que a ação é efetivada.5 A terceira, os espaços em que a ação se insere: o espaço físico e o 'espaço' social.6

São-lhes comuns as variáveis sociais (parentesco, solidariedade de co-munidade, grupo ou ciasse, por exemplo), políticas (consciência «80 papel individual ou coletivo nas instituições, da cidadania, da represeirisrção, den-tre outros),. econômicas (organização do trabalho, modos de produção, fon-tes. de renda, e análogos) e culturais (convicções, crenças, opiniões» interes-ses, e assim por diante). Essas variáveis são situadas empiricMeote pela historicidade concreta do tempo preenchido pelo agir. Como esses feitores se aplicam tanto ao 'homem comum' quanto ao 'especialista' (historiaefbr), cabe tipificar o sujeito histórico enquanto agente.

1.1 O agente histórico

Na perspectiva do tempo refletido da experiência subjetiva, em que a vivência imediata no tempo (a histórica concreta) é transformada em história pensada, vale considerar o sujeito agente sob dois pontos de vista. De uma parte, o indivíduo é, ele mesmo, resultado de uma determinada rede fatorial de circunstâncias históricas prévias7, em cujo contexto emerge, se forma, estrutura seu modo de relacionar-se com si e com o mundo, define metas e objetivos, age. Nessa perspectiva o indivíduo é 'produto da história' como

5 A forma de perceber e registrar a experiência vivida em termos consecutivos é chamada de tempo, no sentido aristotélico

da medida do movimento {Física IV, 12.221 b28) e desde a perspectiva da categorização racional que « o s è própria (Tomás

de Aquino, Summa theologica Ia, 10, 4: tempus vero est mensura motus). Essa convenção basta para a constituição do

contacimento histórico. A discussão metafísica sobre a natureza intrínseca do tempo (Kant: O espaço e o tempo, como coreJições de possibilidade paraque os objetos nos sejam dados, só têm valor quando postos em relação com os objetos dos sentidos, é unicamente para a experiência. Critica da Razão Pura [1787], B 39,41-45,221-223) ou mesmo de sua superação

no infinitamente grande ou petjueno (Cario Rovelli: "La-gravité quantique: quand 1'espace et le temps líerâstent plus", em Les cm&srences de La Citê des Sciences. Disponível em: http://www.cite-sciences.fr/francais/ala_cite/col!^a(04-05/conferences/

01-O5-einstein/O3-rovelli/index.Ih5m) não é necessária nesíe contexto.

6 Para o espaço físico, uma-das melhores referentes continuando sendo a tradição geográfica hístoricizada representa

por Emrnanuel Le Roy Ladurie .(ver, dentre outras, sua última obra: Histoire humaine et comparée dudtmtat. Paris: Fayard,

2004-2010. 3 vols.). Para o espaço social, as tradições analíticas comparadas contemporâneas, com a s -apontadas em

Sandra J. Pesavento: História e História cultura!. Beto Horizonte: Autêntica, 2003, ou em Pesavento, S. «JJSantos, N. W./

Rossâni, M. (orgs.). Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em História Cultural. Porto Alegre: Asterisco, 2008

' O caráter "prévio" inclui drâs aspectos: o cronológico (temporal em sentido estrito) e o lógico (cuitas-aT). Ver, quanto a esse aspecto, os capítulos 2 e 6.

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resultante das ações acumuladas, em seu tempo e em seu espaço, no legado empírico da história. Cada agente se constrói como indivíduo, por conse-guinte, a partir do legado com que se depara e com respeito ao qual elabora sua própria autonomia reflexiva e atuante. De outra parte, com a consciência histórica de que é substrato, o sujeito age e produz, no tempo e no espaço que lhe são próprios, efeitos concretos. As ações assim efetivadas consti-tuem-se em experiências vivicjas. A reflexão historicizante operada pelo su-jeito insere tais experiências no conjunto acumulado da história, cujo legado

se articula em tradição, memória e narrativa. No primeiro caso da ação, pode-se falar de história-processo: a vivência e sua interiorização pela consciên-cia. No segundo, de história-produto: o sujeito, consciente da dimensão his-tórica em que se insere, age (seja em que sentido for).

Como se constitui esse legado, como dele toma consciência o agente? O processo histórico de tomada de consciência do meio-ambiente cultural em que o indivíduo emerge pode ser comparado com um sistema de círculos concêntricos cujo centro é a subjetividade particular do indivíduo. Esse cen-tro é suposto como o de um agente racional humano conformado segundo as características físicas e mentais normais. O primeiro círculo concêntrico cor-responde à primeira fase temporal de contato entre o sujeito e o legado histó-rico da cultura. Nesse círculo, habitualmente, encontram-se as relações fa-miliares, o aprendizado da linguagem, o treinamento comportamental, a trans-missão dos valores elementares vigentes no respectivo espaço social. Os fa-tores enfeixados nesse primeiro círculo costumam ser ordinariamente estu-dados pela psicologia do desenvolvimento infantil. Não são diretamente re-fletidos pela ciência histórica, mas é profícuo tê-los presentes, na medida em que as tradições mentais, as constantes culturais e os hábitos sociais amiúde revelados pela pesquisa (notadamente na história oral8) apontam para os pro-cessos de formação dos agentes desde seus primeiros momentos de sociali-zação. Trata-se de uma fase de instrução, de educação informal, de constitui-ção individual e comunitária do sujeito consciente.

O segundo círculo concêntrico corresponde à formalização dos fatores instrucionais e educacionais no sistema escolar, com suas especificidades sociais, culturais e institucionais programadas, planejadas, dirigidas. Plane-jamento, programa, diretriz são expressões institucionalizadas da

experiên-8 Cf. Ferreira, Marieta de M. e Amado, Janaína (orgs.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006,8a.

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cia histórica pregressa a cada sujeito tomado individualmente, fixadas nas estruturas organizacionais da respectiva sociedade.9

Esse círculo e o primeiro são permeáveis (aliás, como todos, pois a metá-fora aqui- utilizada,, que os ilustra, também os pode velar). O segundo círculo tem uma amplitude temporal importante, pois se estende até a idade adulta e é regularmente objeto de estudo da sociologia e da antropologia.10 Nesse âmbito o sujeito tem como referência a formação recebida no primeiro círcu-lo, de que se vale na; interação com a experiência realizada no segundo. Tam-bém. aqui a investigação psicológica tem sua relevância, embora interesse registrar, para os efeitos da presente reflexão, o aspecto do desafio que re-presenta para o sujeito a conformação de sua identidade no manejo do lega-do inicia! com o legalega-do social acrescilega-do pela experiência fora lega-do círculo, digamos, familiar imediato.

Um terceiro círculo abrange o espaço social da afirmação individual di-ante do universo mais amplo das relações sociais para além do círculo fami-liar inicial e do círculo da escolarização. Encontram-se elementos dos gru-pos de compartilhamento de valores por opção pessoal e as experiências de afirmação profíssionaí. Pode-se descrever outros possíveis círculos. Os três que são apresentados aqui reúnem os fatores principais que ilustram as fon-tes de formação do legado histórico com que se tem de haver o sujeito. É com relação a esse legado, pois, que o sujeito consolida, renova, altera, de-senvolve sua identidade particular em meio à cultura histórica envolvente e conformadora, em cujo seio se encontra. Nesse sentido diz-se que nenhum agente racional humano nasce em um mundo sem história. Sua identidade como sujeito agente, todavia, evolui (ou deve evoluir) da herança sócio-cul-tural para a constituição autônoma de si. Ela passa, dessarte, por um proces-so de apropriação consciente de seus fatores componentes e de sua 'domesti-cação' crítica pela razão.

'Dttfe exemplos: um contemporâneo e brasileiro: os parâmetros curriculares nacionais; outro, do inicio da institucíonafização do modelo 'tamtiboldtiano' de universidade: para Wilhelm von Humboldt, formar-se (no sentido de educar-se) em si mesmo è a finalidade dtolltomem enquanto tal - "Sich in sich zu bilden, [ist] der Zweck des Menschen im Menschen". Ideen luanem Versuch, die G S m e n der Wirksamkeit des Staates zu bestimmen. (1792), Gesammelte Schriften (edição da

Academia Pmssiana de Ciências;trate. I - XVII, Berlim, 1903-1936), em: vol. 1 (1903) pp. 56 e 76. " Cf. por exemplo Mathews,,GDrdon. Cultura global e identidade individual. Bauru: EDUSC, 2002.

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1.2 A construção da identidade do agente histórico

Pode-se assim dizer que o sujeito se constitui, historicamente, em proces-sos de constaição de identidade por quatro vias, não excludentes e, no mais das vezes» entrelaçadas: identidade por assimilação ou apropriação, identi-dade por contraste, identiidenti-dade por rejeição e identiidenti-dade por diferença.

A identidade por assimilação ou apropriação, eventualmente também cha-mada de aculturação (pela tradição dos legados histórico-culturais), correspon-de ao processo correspon-de submissão do sujeito ou da comunidacorrespon-de a um outro ou a uma outra, em que se funde. Diz-se que a comunidade maior assimila o 'cor-po [iniciahraeeite] estranho' e que o sujeito se apropria da cultura (valores, história, língua) do grupo. Esse é o caminho mais comum ao desenvolvi-mento do sujeito, conforme testemunhado pela psicologia evolutiva e pela história cuítaraL Processo semelhante ocorre com respeito à cultura históri-ca, na medida em que a projeção do enraizamento temporal, no passado, procura tecer uma identidade que se aproprie dos elementos 'originários' do espaço, do meio e do tempo respectivos a cada indivíduo ou grupo. Por certo esse processo pode ser traumático e doloroso. No entanto, é provável que a naturalidade da assimilação se dê com menos dificuldades do que nos de-mais casos de construção identitária, que se fazem por confronto, conflito e, eventualmente, aniquilação moral ou física.

A identidade por contraste se elabora em um processo de diferenciação do outro mediante reforço sistemático dos elementos que lhes sejam incomuns. Como no efeito especular, os traços de determinada cultura são realçados no que se distinguem das demais ou da(s) dominante(s). A preservação das tra-dições folclóricas em comunidades de imigrantes, sem que haja contraposição ou oposição à(s) cultura(s) predominante(s) na sociedade global em que se encontram os imigrados, é um bom exemplo deste tipo de identificação por contraste. A apropriação da cultura original, transposta para outro meio, evolui para o contraste. A celebração de festas como o ano novo chinês ou os cultos a Iemanjá, de comunidades numericamente menores mas não necessaria-mente conflitantes com a majoritária, indicam do que se trata aqui.

A identidade por rejeição representa uma forte agudização dos processos conflituosos. Não apenas as crises de crescimento do indivíduo, mas tam-bém grupos sociais, comunidades imigradas ou transplantadas, etc. podem tender a buscar suas identidades pelo combate àquela(s) em que se encon-trem porventura imersas. Como nos outros casos, a consciência história bus-ca um enraizamento de longo prazo no passado para sustentar o conflito e a

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rejeição da 'camisa de força' que seria, no sentimento de muitos, a cultura imposta - de fato ou de direito. Os primeiros momentos da consciência negra nos Estados Unidos,, nos anos 1960, e no Brasil - dentre outros países - , nos anos 1970-80, exemplificam essa versão combatente da identidade. Proces-sos semelhantes, porém, sem o componente racial específico, se deram nos movimentos terroristas posteriores aos acontecimentos de maio de 1968, em particular na Alemanha e na Itália. Com graus mais ou menos intensos de uso de violência armada, os processos de descolonização nos quatro cantos do mundo mas mais especialmente os da segunda metade do século 20 -foram acompanhado® de uma dolorosa busca de identidade por rejeição. E freqüentemente com boa razão, que não se analisará aqui em pormenor. Tam-bém os nacionalismos do início do século 20 (pense-se, por exemplo, no caso do Império AiíisÉro-Húngaro) como os redivivos do final do século 20 (Irlanda, Córsega, País Basco, Sérvia, Curdistão, Armênia, Palestina, Israel, Afeganistão, Iraque, etc.) apresentam, com maior ou menor radicalismo, ati-tudes de autoaürmação identitária por rejeição da cultura histórica prece-dente, envolvente, predominante ou diretora - sem necessariamente limitar-se às fronteiras geopolííicas de um determinado estado.

A identidade por diferença é um componente comum às outras formas de construção identitária. No processo temporal da consciência histórica, a afir-mação dos indivíduos e dos grupos se dá na sucessão e a contemporaneidade do pensamento e da cultura produzidos pelos próprios homens mediante a constituição da diferença. A consciência da diferença, necessariamente de-corrente da contemplação do outro, pode derivar para a assimilação, para o contraste, para a rejeição. No entanto, o fiel do processo decisório é a cons-ciência da diferença. Ou das diferenças, se se preferir. Se há campos em que as diferenças alcançam um significado destacado, como a raça, a língua, a política, a religião cm a economia, a descrição narrativa de si e de sua comu-nidade contempla uma inficomu-nidade de pormenores, cuja importância relativa para a autoafirmação depende da escala de valores e de sua realização histó-rica concreta no tempo e no espaço correspondentes ao(s) sujeito(s).

A trama de sustentação da identidade individual e grupai do agente se compõe, de pelo menos quatro fios: a história originante (o legado em que se emerge), a identidade construída, a ação interveniente no tempo e no espaço concretos, a expressão narrativa da reflexão interpretativa da cultura, que a historiciza. Essa composição vale para qualquer sujeito, inclusive para o que se torna historiador no decurso de sua formação e atuação.

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2. A rede de fatores e a historicização do agir e do refletir

O sujeito, desde a perspectiva de sua historicidade própria, emoldurado por sua cultura, é por certo capaz de a transcender sem a negar, de a assumir sem dela constituir-se prisioneiro. Em especial o historiador, pelo patamar metódico em que opera, dota-se dos meios para compor a historicidade de si e da historicidade de sua reflexão sobre a historicidade de outrem sem as amalgaraar." ,

Elabora assim, em sentido amplo (como se verá mais adiante), a concep-ção de sentido mediante a qual seu agir se sustenta como meio de obter os resultados que entende fazerem sentido amanhã, ao ponto de pautarem o agir de hoje, continuando o agir de ontem ou com ele contrastando.12

2.1 O conhecimento histórico

A expressão 'conhecimento histórico' tem pelo menos duas acepções

possíveis. Em um primeiro sentido, ela enuncia que todo e qualquer conhe-cimento é obtido necessariamente em certo tempo, em um espaço dado e sob circunstâncias determinadas. Um segundo sentido refere-se àquele tipo de conhecimento que se adquire mediante os procedimentos metódicos própri-os à história como ciência. Em ambprópri-os própri-os casprópri-os a obtenção de conhecimento parece estar submetida a exigências teóricas de acerto e de certeza que, em função de longa tradição racionalista, seguramente conduziriam à verdade. O fundamento dessa segurança residiria no fato de se admitir que a faculda-de cognitiva racional do agente humano é capaz da verdafaculda-de e que sua apti-dão à objetividade provém de uma adequação ótima à realidade de seu ins-trumental sensível de observação. Estas suposições se caracterizam, pois, ao mesmo tempo, pelo otimismo gnosiológico e pela ingenuidade metafísica.

Nesse ponto cabe recordar que a questão do conhecimento, em geral, passou a estar controlada por critérios que, em tese, dever-se-iam aplicar apenas ao conhecimento controlável intersubjetivãmente, ou seja: científico.

" Cf. Rvisen, Jõrn. Reconstrução do passado. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2007. (Vol. II de "Teoria da

História") íed.orig. 1986],

" Cf. Veyne, Paul. t e Quoiidien et 1'lntéressant. Entretiens avec Catherine Darbo-Peschanski. Paris : Les Belles Lettres,

1995. Veyne (desde Como se escreve a História. Brasília: EdllnB, 1998,4a. ed.; ed. original francesa Paris: Le Seuil, 1971

(Col. Points 1978]), em tom cético quanto à metafísica do real, considera que do cinza do quotidiano somente se extrai o que aparece mteressante aos olhos do observador. Assim, a perspectiva valorativa estipula as 'práticas' (o agir) que interessam ao agente comum como ao moomum (o historiador), que as potência ao inseri-las na narrativa significante do discurso historiográSoo. Ver também Rüsen, Jõm. História Viva. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2007. (Vol. III de "Teoria

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Um fator de difusão desse requisito de verdade e certeza obtidas por contro-le foi a crescente escolarização nas sociedades contemporâneas (como men-cionado acima na referência ao "segundo círculo concêntrico"). No ensino escolar (o que incluiu, a seu tempo, a catequese paroquial) trabalha-se com aquisição de certezas; de acordo com o modelo científico. A dóxa fica assim submetida às exigências da epistéme e o argumento retórico presente na nar-rativa recorre à forma da demonstração lógico-discursiva para estruturar-se. Embora essa mescla de procedimentos possa ser distinguida e isolada no campo das ciências humanas e sociais, no qual se situa a história, ela é, no entanto, habitualmente requerida em quaisquer campos de conhecimento. Há certa aparência de confusão decorrente da busca legítima dos agentes por obter segurança subjetiva e coletiva. Por vezes os mecanismos de observa-ção e conclusão são utilizados de modo taxativo (em particular na vida quo-tidiana), sem explicar ou aplicar os procedimentos metódicos requeridos pelo controle intersubjetivo de qualidade cognitiva da narrativa.13

Nessa busca incessante de superar os fatores de incerteza quanto à pectativa de garantia absoluta dos resultados obtidos pelo conhecimento ex-perimental, admitir que o caráter fundamental do conhecimento em geral — inclusive o científico — está em sua dependência da rede fatorial de circuns-tâncias, de condições e de hipóteses, contribuiu para se reconhecer um duplo imperativo metódico. De uma parte requer-se a cuidadosa reconstituição do conjunto necessário e suficiente dos fatores que concorreram que o objeto de estudo (o 'fato', a 'tendência', o 'processo', a 'política', o 'regime', etc.) se tenha efetivado em determinado tempo, em determinado espaço, em de-terminada sociedade, em dede-terminada cultura.

De outra parte exige-se que o historiador explicite a rede fatorial de cir-cunstâncias que lhe é própria, e desde cuja perspectiva realiza sua operação historiográfica. Em nenhuma hipótese o imperativo metódico admite caráter aleatório ou arbitrário. O controle intersubjetivo de qualidade cognitiva - ou seja: a admissibilidade plausível e verossímil do discurso historiográfico tanto em seu processo de construção (pesquisa documental, por exemplo) quanto em sua forma de apresentação (narrativa argumentada, por exemplo) - faz parte do contrato social de qualidade historiográfica no trato do passado e em sua exposição no presente.

13 Excelente discussão do processo de constituição do sentido pela história está em Klaus E. MOIIIer/Jórn Rüsen (eds.):

Historische Sinnbildung. Probleiusléllungen, Zeitkonzepte, Wahrnehmungshorizonte, Darstellungsstrategien. Reinbeck: Rowohlt,

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Que o homem seja a medida de todas as coisas, no aforisma de Protágoras retomado por Husserl, constitui-se, para as ciências humanas e sociais, em lema meramente indireto. O conhecimento é por certo relacionado ao sujeito que o adquire ou constrói. Tal realidade não implica, todavia, no plano meto-dícamente controlado da ciência, que o sujeito cognoscente tenha carta branca para o inventar.14 As teorias da construção do objeto e da participação da estrutura psicológica e histórica dos sujeitos na constituição do saber torna-ram-se correntes, sem que tal seja sinônimo de escolhas quaisquer ou de preferências particulares individualizadas.

A explicação — ou as explicações do mundo, setoriais ou globais - cor-res-pondem a um mundo representado, mas não inventado.15 A ciência pro-cura construir um 'mundo 3', na expressão de Popper, no qual o grau de coe-rência com o observado e de consistência na estrutura lingüística resista à prova intersubjetiva e produza resultados práticos.16 A teoria da imagem su-cessiva, correspondente a cada estágio de desenvolvimento do conhecimen-to adquirido, ao abandonar a pretensão de validade absoluta, ganha em efi-cácia com a atitude da reconstrução permanente da imagem projetada do reai, como bem percebeu Max Planck.

A experiência realizada pelas ciências naturais, de que o conhecimento absoluto do universo é um ponto assintótico de referência de progresso cog-nitivo, como um horizonte que orienta por ser inalcançável por definição, confortou as ciências sociais, dentre elas a história, na proposta de inovar os procedimentos de investigação, compreensão e explicação daquela fração do real que é o processo das ações humanas em sociedade.17

" Ver, por exemplo, a critica de Antonio Cicero ao 'refúgio no relativismo' como forma de escapar do controle metódico emCicero, Antonio; Salomão, Waly (Orgs.). Banca nacional de idéias: o relativismo enquanto visão de mundo. Rio de Janeiro:

Francisco Alves, 1994.

. 1S l e d a Maria Pauiani, desde a perspectiva da economia política, defende com pertinência (malgrado a oposição que

encorrfra, a posição 'relacionai' (e não relativista) aqui apresentada: "Como tentei demonstrar, não é fácil,... associar a defesa da razão intersubjetiva à defesa da retórica como método. Vimos ... que, para Habermas, posturas como as de Rorty, ao m e l a r e m proposições de natureza e valores de verdade distintos - correção teórica, adequação normativa e veracidade (sinceridade) - acabam por minar o processo renovador da abertura lingüística do mundo que a razão intersubjetiva e a "grande conversação da humanidade" deveriam justamente produzir. Como indiquei..., dado que McCIoskey utiliza o termo" lEüõrica" em vários sentidos, fica difícil caracterizar sua postura .... Se ... admitirmos ... que sua influência maior vem do nespragmatismo americano, então fica também problematizada sua filiação à empreitada filosófica contemporânea... a valo-rização da esfera intersubjetiva que Habermas p a t r o c i n a . e m Rev. Econ. Polit. vol.28 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2008.; doi:

10.1S90/S0101-31572008000100009.

,6 Popper, Karl R. "A Lógica das Ciências Sociais* [1961], em: Popper, Karl. Em Busca de um Mundo Melhor. Lisboa:

Fragmentos, 1992, p. 11-22.

" Ver meus apontamentos em "Compreender, Explicar e Narrar*, em Anais da V Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, p. 85-87, São Paulo: SBPH, 1986.

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Durkheim afirmou com razão que "o pensamento verdadeira e propria-mente humano não é um dado primitivo; é um limite ideal de que nos apro-ximamos sempre mais e mais, mas que, provavelmente, jamais atingiremos".18 Durkheim referia-se aqui tanto à faculdade de conhecer (obter informações) como ao conhecimento enquanto acervo de informações. Tanto na hipótese de que a faculdade fosse uma tabula rasa ou na que a considera preenchida, parcial ou totalmente, por conhecimentos, não se dispõe de indícios sufici-entes para fechar a questão acerca da exatidão absoluta dos teores cognitivos presentes na consciência e/ou por ela adquiridos.

Pelo contrário, a experiência do erro reforça sistematicamente, desde a crítica de Aristóteles a Platão, a tese da improbabilidade do condicionamen-to absolucondicionamen-to - biofísico, genético ou histórico - da faculdade humana de pen-sar. O relativismo positivista de Comte, embora aderisse incondicionalmen-te ao modelo da verificação empírica das observações como critério de sua veracidade, afirma a necessidade de levar-se em conta o caráter transitório do conhecimento obtido: "... toda procura das leis que regem os fenômenos é eminentemente relativa, pois supõe imediatamente um progresso constan-te da especulação, sem que a realidade exata possa ser, em aspecto nenhum,

inteiramente desvelada."19 Vê-se que desde meados do século 19 o reconhe-cimento da dependência fatorial (relacionai) do conhereconhe-cimento - ou, ao me-nos, dos resultados argumentados e demonstrados que obtém - já constava, por assim dizer, da agenda teórica.

Sua inserção no manual dos métodos científicos, sem correr o risco de perder-se em uma miríade de palpites infundados, é uma realidade incon-tornável desde a segunda metade do século 20. Pelo reconhecimento suces-sivo do duplo critério do controle metódico dos procedimentos de pesquisa e dos enunciados lingüísticos que exprimem os resultados alcançados, bem assim o da intersubjetividade no quadro dos métodos coletivamente aceitos e praticados, conseguiu-se neutralizar, na prática metódica, o perspectivismo, tal como defendido, por exemplo, por Nietzsche.20 Nietzsche - por vezes presente no determinismo biológico ou fisiológico contemporâneo, embora nem sempre citado - considerava que o critério de verdade se reduz à

utili-18 Lições de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 249.

,9 A. Comte: Cours de phüosophie positive, 48a lição. Paris: Bachelier, 1839, vo.l IV, p. 287- 470, esp. p.317. 20 Ver Solomon, Robert C.. "Nietzsche ad hominem: Perspectivism, personality, and ressentiment,' em The Cambridge

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dade biológica pela qual o homem, que se considera o sentido e a medida de todas as coisas, projeta ilusoriamente, na essência das coisas, certas perspec-tivas utilitárias bem definidas. Nietzsche entende poder ver a mesma ilusão na ciência, na religião e na moral, às quais contrapõe a apoteose subjetiva do indivíduo na vontade de poder.

Tanto o subjetivismo arbitrário quanto o perspectivismo puro e duro, con-tudo, representaram razão sufipiente para que se rejeitasse a forma também "pura e dura" do relativismo. Mas não necessariamente a forma relacionai do conhecimento. E essa forma relacionai do conhecimento que se sustenta aqui, tomando-se a construção do conhecimento histórico como exemplo.

O conhecimento histórico aqui referido é o produzido pela história como ciência, de acordo com os padrões comumente aceitos na prática profissio-nal corrente. Seu contexto é o das posições teóricas sobre a história em se-guida resumidas, circunscrito à questão específica da natureza do conheci-mento sob o ângulo formal da história.

2.2. Questões teóricas quanto ao conhecimento histórico

Inicialmente convencione-se entender por 'teoria da história' a análise epistemológica da história como ciência, isto é, a forma especializada pro-fissional de produção de conhecimentos sobre o passado dos agentes racio-nais humanos em sociedade. Sua fonte é a historiografia admitida como tal pelos que, por sua vez, são socialmente reconhecidos como integrantes de uma corporação profissional de historiadores. Essa corporação é identificada pelo procedimento que utiliza para tratar as fontes informativas com que li-da, para as articular e elaborar os discursos mediante os quais narra, constru-tivamente, o processo temporal e ativo em que os homens se fizeram.

Nem sempre a teoria da história - ou seja: a epistemologia da história enquanto prática científica - logra reconhecimento de seu sentido ou utilida-de. Na medida em que a epistemologia da história parece possuir a virtude de neutralizar os arriscados voos especulativos que se pensava poder fazer na filosofia da história, sem compromisso específico com o controle metódi-co de investigação empírica, cresceu o interesse pela teoria, muito especial-mente a partir dos anos 1970. Com a constituição da história como ciência, desde a metade do século 19, aproximadamente, e com as tendências de oposição à especulação filosofante, acentuada após a fundação da revista Annales em 1929, pareceu de 'bom tom' que o profissional da história se dedicasse exclusivamente ao trabalho empírico, sem 'perder tempo' com

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rias.21 Essas eram apenas instrumentos explicativos que se ia buscar em ou-tras áreas, como a ecoisoima ou a sociologia, para desvendar o emaranhado interdependente dos. processos estudados. Assim, considerava-se teoria da história inútil para o pesquisador, pouco informada (pois afastada da pesqui-sa concreta) ou ainda irrelevante e abstrata. A resposta a espesqui-sas objeções inerciaispode enveredar pela crítica a um certa naturalidade (indemonstrada) da suposta obviedade da prática do conhecimento histórico, como ocorreu -por exemplo - na primeira fase da assim chamada escola dos Annales, que pareceu assumir esta posição.22 Somente na época da assim chamada tercei-ra getercei-ração da 'escola' a reflexão epistemológica sobre os fundamentos do seu fazer ganhou espaço, a começar com o entrementes tão conhecido quan-to difícil Comment on écrit l 'hisquan-toire de Paul Veyne.23

O fato de a questão não vir a ser abordada sistematicamente não é de-monstração de sua irrelevância. No espaço de língua inglesa e alemã essa questão está presente de forma constante. A tendência argumentativa vai na seguinte direção: de inicio, constata-se que o termo história possui pelo menos três acepções. A primeira cobre "o que ocorreu ou aconteceu" (correspon-dendo à expressão latina tradicional das res gestaé). Essas ocorrências ou acontecimentos são obviamente tidos por efetivos - atos praticados por agen-tes racionais humanos, individual ou coletivamente, em função de condi-ções, circunstâncias, injuncondi-ções, intencondi-ções, objetivos, metas, etc. - e perten-cem inelutavelmente ao 'passado' humano, mesmo se sua presença na me-mória e na respectiva consciência não sejam tão óbvios. A segunda acepção diz respeito à "investigação do que se deu' {historia rerum gestarum) - essa atividade responde a métodos, procedimentos, 'cobranças profissionais', e depende das fontes de informação, de sua crítica e de sua fiabilidade. O

* Em parte, a reação de emSáacheirar-se na 'pesquisa empirica' foi também devida á ideologização do trabalho histórico, notadamente pelo pensamento marxista. Ver, por exemplo, a crítica de François Furet: Vatetierdefhistoire. Paris: Flammarion,

1982; Le passé d'une illusion. Essa/ sur 1'idée communiste au XXème siècle. Paris: LaffontfCalmann-Lévy, 1995. Uma das

defesas mais recentes do pensamento marxiano/marxista sobre a História (sem recorrer a artifícios ideológicos) está em Paul Blacidedge: Reílections on thetiSamst Theory of History. Manchester Univereity Press, 2006. Uma das primeiras foi o livro de

G. A. Cohen, Kari Marx's Theofiof History: A Defence, publicado pela Princeton University Press em 1978.

B Cf. Guy Bourdé/Hervé Ifeifin: Les ècoles historiques. Paris: Seuil, 1983, esp. caps. 7-11.

" Primeira edição francesa era 1971; 2' edição, com um adendo sobre o papel revolucionário de M. Foucault na

trans-formação do método histórico ena 1978. Desta edição de bolso, nas edições Seuil foi feita a tradução para o português, pela Editora Universidade de BrasiSa. Somente após os anos 1980 começaram a ser publicados ensaios esparsos, reunidos por editores e comentadores, de Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff, Emm.anuel Le Roy Ladurie e outros, sobre questões teórica emStódicas. Não raro utilizou-se o recurso da entrevista (como E. Hobsbawm, embora este tenha publicado em 1997 uma ratetânea fundamental para o conhecimento da prática científica da história segundo sua experiência: On History. Londres,Qrion, 1997, esp. cap. 2, The Sense ofthe Past).

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terceiro sentido expresso pelo termo história refere-se ao assim chamado 'produto final' em que se formulam os resultados obtidos, pela história-in-vestigação, sobre a história-processo: a historiografia. Assim, a linguagem corrente (e, no mais das vezes, também a linguagem científica), chama de 'livros de história' os que aqui se qualificaria como historiografia.

A palavra "história" refere, por conseguinte, tanto o ocorrido como o processo de o reconstituir cotpo o resultado em que o ocorrido (como se supõe ter-se podido, controlaVelmente, reconstruir) é entendido, narrado, explicado. O conteúdo da teoria da história é, dessarte, a análise da forma e da maneira como os historiadores investigam o passado e o produzem ou reproduzem em livros, artigos, relatórios, pareceres, documentários, etc. Vaie dizer: a teoria da história com efeito não investiga diretamente o passado humano, em qualquer de suas formas, mas exclusivamente o procedimento (e sua justificação) utilizado pelo historiador para o reconstruir. Uma com-paração com o jornalismo pode ajudar a compreender do que se trata: a teo-ria da históteo-ria não reinvestiga o que ocorreu (ou supostamente ocorreu), mas como o ocorrido (ou supostamente ocorrido) foi relatado. Como no futebol, para utilizar outro exemplo: a teoria da história não retoma o jogo em si mesmo, mas a reportagem sobre o jogo. O "repórter esportivo" representaria o historiador; o teórico da história toma diversas reportagens sobre o mesmo jogo, põe-nas lado a lado, busca-lhes semelhanças e diferenças, ângulos de observação, opções técnicas, preferências de abordagem, enfim, uma miríade de variáveis que por certo não fazem uma reportagem idêntica a outra. A comparação e a análise permitem indiscutivelmente que o historiador 'na linha de frente' disponha de um recurso inestimável de crítica metódica e de cotejo de fontes. O primeiro mal-entendido, pois, acerca da utilidade da teo-ria da históteo-ria para o trabalho do histoteo-riador resolve-se pela constatação de que ambas especialidades possuem objetos distintos, ou seja, a primeira cui-da cui-da análise crítica cui-da historiografia, a seguncui-da debruça-se sobre o passado "em si", tal como presente (isso mesmo: presente) nas fontes.

O segundo mal-entendido está na dúvida acerca da cientificidade possí-vel da pesquisa histórica. A aproximação da história com a literatura ou com a retórica tendeu sempre a esvaziar-lhe a cientificidade.24 Todo o mal-enten-dido reside na circunstância de que essas formas são tratadas como exclu-dentes e de que uma teria de ser prioritária sobre a outra. A convicção

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dica prevalente é de que a história procede de modo científico ao reunir suas fontes, analisá-las, descrevê-las, explicá-las e narrar seu fio. Esses passos são controláveis, comparáveis, criticáveis, reformáveis, confirmáveis, modifi-cáveis, compfetáveis, superáveis. Literatura ou retórica não substituem a his-tória e seu procedimento, mas são, com relação a ela, instrumentais. Marc Bloch, em texto magistral de 1914, ao paraninfar turma de bacharéis do li-ceu de Amiens, diz bem da importância dessa função crítica e analítica da história, como recurso metódico.25 Não chega a formular uma proposta em termos teóricos, mas ao comparar o trabalho do historiador com o de um juiz de instrução» deixa ciaro não apenas o quão relativo ao conjunto de circuns-tâncias é o conhecimento histórico obtido como ainda o papel de seleção e julgamento que o historiador tem de exercer, criteriosamente, diante da mas-sa de informações com que lida, nem sempre coerente ou consistente.

Por essa razão a historiografia publicada possui sempre um caráter de transitoriedade, de correspondência ao status quaestionis tal como se afigu-ra aqui e agoafigu-ra, a cada vez. Essa correspondência 'datada' nada retiafigu-ra à pertinência do conhecimento. Pelo contrário, é justamente sua 'datação' que, no caso da ação racional humana individual e/ou social, abre a possibilidade de expansão e aprofundamento do conhecimento. Ambos fenômenos empí-ricos de produção de conhecimento somente são possíveis porque não se pode pressupor haver-se esgotado as fontes ou tê-las interpretado de forma definitiva.

A questão do conhecimento histórico científico é tratada, assim, sob três pontos de vista: seus pressupostos, sua estrutura e seu fundamento. Essa questão consiste justamente em saber-se qual é o estatuto científico próprio desse conhecimento. O fundamento ou a legitimidade do conhecimento é, por conseguinte, a questão nuclear. A teoria da história busca, aqui, dentro da tradição epistemológica, mostrar, de um lado, que o conhecimento cientí-fico pode ser fundamentado com argumentos factuais e lógicos e, de outro, que esse conhecimento não se obtém por acaso, mas metodicamente. O pres-suposto está, pois, em que a argumentação científica está vinculada a certas regras, conhecidas genericamente como método científico. As suposições do fundamento em si e do caráter metódico do conhecimento científico estão

25 Marc Bloch: Hisioire et historiens. Textos réunis parÉtienne Bloch. Paris: Armand Colin, 1995, pp. 8-16. Trad. E. de

Rezende Martins, 1936 (uso restrito): "Nós somos juizes de instrução encarregados de um amplo inquérito sobre o passado. Como nossos colegas da Justiça, colhemos testemunhos, com cujo auxilio buscamos reconstruir a realidade."

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historicamente inter-relacionadas. A herança clássica de que o conhecimen-to científico tem de ser um conhecimenconhecimen-to cerconhecimen-to desempenhou nessa inter-relação um papel decisivo.

O método cognitivo que o teórico busca identificar no resultado publica-do da pesquisa histórica não coincide necessariamente com os procedimen-tos de investigação adotados pelo historiador no trabalho direto com suas fontes ou com os fundamentos gobre os quais proclama ter-se baseado - se e quando o faz. A teoria clássica da ciência costuma deter-se exclusivamente no assim chamado "contexto da justificação", ocupando-se com a análise da validade do conhecimento, considerando irrelevante o "contexto da desco-berta", ou seja, a gênese do conhecimento. Como a teoria clássica da ciência considera que o conhecimento se baseia no que os sentidos e o entendimento apreendem, o contexto da justificação só admite argumentos empíricos e lógicos. O procedimento da teoria clássica da ciência é conhecido, por con-seguinte, como a reconstrução racional da ciência. Racional, já que pressu-põe que a ciência obedece a uma razão (sistema de regras, método ou lógica) independente do tempo e do espaço; reconstrução, porque se ocupa exclusi-vamente da análise a posteriori dos produtos cognitivos.26

A teoria contemporânea (pós-positivista ou pós-empírica) da ciência, que se desenvolveu a partir dos anos 1970, inaugurou novas abordagens, não restritas a uma rígida 'reconstrução racional', em que se encontram a teoria, a história e a sociologia da ciência. Mesmo se alguns epistemólogos recentes tenham defendido teses 'desconstrutivistas', não é necessário ir-se ao ponto de negar o bem-fundado da tese clássica da reconstrução racional, desde que essa reconstrução inclua elementos da gênese cognitiva e não apenas dos textos fechados em sua versão publicada. No caso do conhecimento históri-co, em função de sua relevância para a autocompreensão de autores e desti-natários do conhecimento e da complexa intersecção de fatores físicos, psí-quicos e sociais a que estão uns e outros submetidos, torna-se indispensável levar em conta um terceiro "contexto". Trata-se do "contexto da persuasão", no qual se situa o estilo expositivo de que se vale o construto racional da historiografia para 'costurar' um texto coerente, admissível, sobre o tema de sua investigação. O elemento persuasivo nada tem a ver com manipulação psicológica de leitores ou ouvintes, mediante recurso a manobras demagógi-cas ou a apelos emocionais. Ao contrário, é ele indispensável à coerência

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estilística e narrativa que, no caso da história (como por exemplo no caso da interpretação de dados estatísticos por amostragem era recenseamentos ou levantamentos de opinião), para articular fontes não necessariamente livres de lacunas ou de vaiar plurívoco. O argumento "persuasivo" tem de fazer ver ao interlocutor (leitor ou ouvinte) a plausibilidade controlável do modo pelo qual o conjunto foi (re)constraído.27

A teoria contemporânea da história lida, pois, com o produto cognitivo de historiadores, mas atpresenta uma multiplicidade de abordagens que tor-nou a paisagem, quanto à expectativa de clareza e íiabiíidade do conheci-mento afirmado, bem menos óbvia do que até aproximadamente 1970. A questão da objetividade pode servir de exemplo. A maior parte dos historia-dores não se ocupa muito desse tema, por considerarem, de um lado, que tal não constitui problema a resolver para a pesquisa empírica (as fontes seriam 'seguras') e, de outro, que isso é exagero dos teóricos. Basta que se leiam dois autores sobre o mesmo tema (mesmo aproximadamente), para se cons-tatar que a 'objetividade' sempre foi um problema para o conhecimento his-tórico e que a correspondência simples entre o investigado e o enunciado não é óbvia. Um bom exemplo recente, sem que os contrastes entre as obras sejam extremos, são os textos de Lídia Besouchet — uma biografia clássica de Pedro II28 — e de Lília Schwarcz sobre o imaginário social em torno de Pedro II29. A 'objetividade' do fenômeno imperial no Brasil do século 19 passa tanto pela figura pessoal do monarca quanto pelo sistema político, social e econômico sobre o qual se assentava o regime. O caráter polifacetado do 'dado' histórico do império brasileiro admite, sem que tal represente a negação absoluta do que precede, novas 'construções' cognitivas que reú-nem tanto aspectos até então desconhecidos ou não empregados, quanto ou-tras fontes ou novos procedimentos.

Em alguns casos, a controvérsia chega a suscitar observações críticas (ou rivais) sobre o 'partidarismo' de algum autor, ou sua opção teórica 'preconcei-tuosa', ou ainda sua postura engajada. De igual modo, nos anos 1970 (mas já

27 Chris Lorenz: Konstrukftnwder Vergangcnheil. Colônia: Bõhlau, 1997.

a Liara Besouchet: PedroBeo século XIX. Rio de Janeiro, 1993 (2* edição revista e ampliada).

29 Lilta Moritz Schwarcz: As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das

Letras, 1SS8."É assim, no priviãgüB à dimensão simbólica, aos mecanismos de consbução da memória da monarquia brasi-leira, que se pode encontrar nowtfcde nessa história tão conhecida e vasculhadas pelas biografias. Tal recorte, se não permite elaborar um sistema total de expfeação, introduz uma dimensão nova o terreno mágico, sagrado e simbólico de uma realeza que, ao mesmo tempo que nas mãos da elite local atualizou a tradição, a fez dialogar com as representações locais -"aparatos intelectuais", anteriores aseu estabelecimento"(p. 33).

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antes) essa crítica ainda era corrente. A pretensão de uma objetividade 'natu-ral', que esteja supostamente 'por trás' de todo trabalho de investigação, é comum entre os historiadores. Não existe sobre ela, contudo, uniformidade de entendimento. A questão começa já com a concepção relacionai do que seja um fato histórico. E segue para o campo de sua interpretação. Quando se solicita a um historiador "fundamentar" sua posição — ou seja: demonstrar a verdade de seus enunciados y é-se habitualmente remetido a 'fatos' a que as sentenças se referem.

E possível que essa remissão convença imediata (e quase sempre trivial-mente) o interlocutor (leitor, ouvinte ou espectador). Pode ocorrer, todavia, que a reação seja: os fatos foram mal interpretados. Fato e interpretação de modo algum são, por conseguinte, conceitos unívocos referentes a dados apreensíveis sem mediação. Ambos conceitos estão relacionados com a pre-tensão de verdade. Assim o valor de verdade (veracidade, verossimilhança) é um recurso permanente da aceitabilidade do conteúdo afirmado no texto historiográfico, malgrado a complexidade de sua composição.

Embora o conceito de fato exerça um papel importante no conhecimento histórico, a historiografia evidentemente contém muito mais do que meros 'fatos'. Os historiadores não investigam apenas 'fatos', mas constroem ou reconstroem contextos abrangentes que os articulam. Regra geral fala-se de explicar ou interpretar os fatos. Os historiadores descrevem, por exemplo, não apenas o desmoronamento do império alemão em 1918, mas buscam se-melhantemente explicar porque se chegou a esse ponto. Tampouco se satis-faz o historiador em constatar que o regime colonial português e o império brasileiro até a véspera de seu desaparecimento eram escravagistas, mas pro-curam razões para isso e porque a escravidão durou tanto tempo.

Vê-se, assim, que o conhecimento histórico não pode restringir-se a um registro observacional trivial dependente da apreensão imediata. Não se lhe apüca, pois, o critério experimental próprio às ciências ditas naturais. Bem o formulou Marc Bloch ainda no texto de 1914: "Como vocês sabem, sou professor de história. O passado forma a matéria do que eu ensino. Conto-lhes batalhas que não vi, descrevo-Conto-lhes monumentos desaparecidos muito antes de meu nascimento, falo-lhes de pessoas que nunca encontrei. E minha situação é a de todos os historiadores. Dos acontecimentos de outrora não temos um conhecimento imediato e pessoal, comparável, por exemplo, àquele que seu professor de física tem da eletricidade. Sobre aqueles acontecimen-tos sabemos somente o que nos dizem as narrativas dos homens que os viram

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ocorrer. Se essas narrativas faltam, nossa ignorância é total e incurável. To-dos nós historiadores, os maiores e os mais humildes, somos pareciTo-dos com um pobre físico, cego e inválido, que só saberia de suas experiências pelos relatórios do auxiliar de laboratório".30

Estamos, dessa forma, diante de um problema típico das ciências huma-nas e sociais: em que consiste a fiabilidade de seus resultados? O objeto de seus conteúdos é ou não relativo, e a quê? Já se viu que não há contacto imediato com a experiência, no caso da história. A referência do mundo 'real' é amplamente mediada pelas fontes, pelo acesso a elas e pela formação teó-rica e metódica, do profissional que atua. E possível, assim, distinguir pelo menos três planos de relações articuladas horizontalmente, e verticalmente. Um primeiro plano diz respeito, por assim dizer, à 'origem' dos aconteci-mentos, ao momento originário da ocorrência. Em termos popperianos, um mundo 1 tomado inacessível pela convenção mesma que define a história como investigação do passado. Nesse mesmo plano a multiplicidade de fato-res que podem ter tido influência sobre as ocorrências (ou sobre seu conjun-to) entrelaçaram-se (supostamente) para formar um feixe de circunstâncias originadoras desse ou daquele ato.

Os possíveis observadores dessas ocorrências, por sua vez também resul-tantes — ao menos parcialmente — das circunstâncias de seu tempo, de sua origem e de sua formação — registraram-nas (quando o fizeram) em suporte material ou virtual (em escrito ou na memória, por exemplo, um e outra passando para a etapa subsequente pelas tradições), constituindo assim um segundo plano. Pode-se ver esse segundo plano como um mundo 2, articu-lando observação, consciência, memória e registro secundum subiectum, especialmente quando o registro tenha sido feito para produzir uma visão do mundo e da sociedade vinculada a uma tese, como no caso da assim chama-da historiografia oficial (ou oficiosa).

O mundo refletido, constituído criticamente mediante procedimentos investigatóiios metodicamente controlados, que passa a ser o cenário pensa-do pensa-do historiapensa-dor que, no futuro relativo àquele passapensa-do, e em algum presen-te relativo a ele próprio, está em um presen-terceiro plano. Nesse, a articulação dos fatores é ainda mais complexa, sobretudo porque o comprometimento do profissional com o seu tempo requer uma disciplina metódica ainda mais ri-gorosa. Jõm Riisen recorda, com razão, que os impulsos motivadores da

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colha dos assuntos de pesquisa e os efeitos sociais da historiografia estão, de certa forma, "antes" e "depois" do trabalho sistemático de investigação.31

A multiplicidade de fatores 'originadores' e 'explicativos' das ocorrên-cias qualificadas como históricas converge com o que se poderia chamar da mesma forma de explicação multifatorial dos fenômenos naturais. Na medi-da em que 'ser histórico' deixou de estar associado a critérios valorativos de importância, dependentes de regimes políticos, de autoridades dinásticas ou de modelos econômicos, mas àplica-se a todo e qualquer conjunto de acon-tecimentos que dependam da ação humana - qualquer que seja ela - é sem-pre possível 'historicizar', isto é, incluir no campo da investigação histórica qualquer intercorrência que se refira ao agente racional humano. Dessa for-ma, estudos 'de história' aparecem em praticamente todas as especialidades científicas existentes no mundo acadêmico.

O conjunto de relações complexas em três planos, que se esboçou aqui, mantém aberta a questão do tipo de explicação que se pode construir, na ciência histórica, para seus temas de investigação. Duas grandes linhas de concepção se formaram: a de tendência dita positivista, e a tendência chama-da de hermenêutica. A primeira buscaria excluir tochama-da forma relacionai do conhecimento, apoiando-se no modelo experimental das ciências naturais. Hoje só resta dela, no campo da ciência histórica, a estrita recomendação de que os dados empíricos coletados somente podem ser admitidos na constru-ção do conhecimento se e quando controlados. A segunda tendência, que se opôs diametralmente à primeira, afastou-se do modelo das ciências naturais e privilegiou o modelo explicativo de tipo intencional e narrativo. Uma e outra tendência pecaram pelos respectivos extremos. O feixe relacionai do conhecimento típico das ciências sociais necessita recorrer a ambos procedi-mentos: tanto o controle empírico das informações coletadas como os fato-res subjetivos (mas não arbitrários) têm de ser levados em conta.

A conjunção de dados 'reais' com pessoas e estruturas, 'reais', são fato-res que o conhecimento histórico articula nas explicações relacionais de fe-nômenos relacionais. É por conseguinte inteligível que se possa chamar o conhecimento histórico de relativo - no sentido de afirmar que é por

relacio-31 Jõrn Rüsen: Histórische Vernunfí. Grundzüge einer Hislorik, vol. I: Die Grundlagen der Geschichtswissenschaft.

GõtBngen: Vandenhoek & Ruprecht, 1983. Ver, especialmente, a 'matriz disciplinar', na qual as funções sociais de orientação - em que o profissional busca seus temas, e ès quais os temas trabalhados 'retornam' sob a forma de historiografia - têm papel determinante. Trad. bras. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. Cf. também, do mesmo autor: Zerbrechende Zeil. Colônia: Bõhlau, 2001, esp. cap. 2.

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namentos cruzadas; que se constituí e sustenta. Ele está, pois, relacionado, à complexidade fatorial! do que investiga, à complexidade subjetiva dos regis-tros que são suas fontes e dos respectivos autores, à complexidade subjetiva do investigador e de seu meio, à forma estilística de sua exposição - é-lhe, assim, relativo. Mcnhram desses conjuntos, no entanto, exime-se do controle convencional expresso pelas regras metódicas. Mesmo quando estas evolu-em com o tevolu-empo, a cada tevolu-empo e a cada investigação cabevolu-em regras dè proce-dimento e controle iintersubjetivo. O caráter relacionai do conhecimento his-tórico, por conseguinte, exclui o relativismo no sentido clássico, que sugere arbitrariedade. A critica dita pós-moderna, como a do historiador norte-ame-ricano William McMeiil, que qualificou toda Historiografia de "mythistory" ("mitostória"), comi sua pretensão de eliminar da história qualquer veleidade de certeza, defende o> amálgama entre ciência e mito, fato e ficção.

Mais do que uma posição relativista, reconhece-se por trás dessa tendên-cia, que atribui a quasíquer história sobre o passado o mero estatuto de 'inter-pretações indemonslraveis', uma postura cética.32 Admitindo-se a dimensão relacionai da comunidade metódica de controle do conhecimento e do pro-cesso de sua obtenção, é possível compreender a proposta de Cario Ginzburg, de associar ao 'conhecimento certo' do físico o 'conhecimento conjectural' do historiador. Ginzfcurg trabalha com uma visão ultrapassada da metodologia das ciências naturais, mas tem o mérito de reconhecer o caráter conjectural do conhecimento próprio às ciências sociais como um elemento 'qualitati-vo*.33 Essa 'qualidade relacionai' ganhou especial projeção com o desenvol-vimento dos estudos 'culturais'.

3. Conclusão

O historiador sempre passa pela tentação de, sacudindo a árvore da temporalidade, colher novos frutos. Nos campos da história econômica ou sociai, cultural ou Intelectual, a noção de representação, de imagem reflexi-vamente construída do mundo, instaurou um regime temporal próprio, ten-dente a absorver a historicidade de todos os estados mentais e afetivos dos

* A abordagem defendsfei pelo crítico literário Stephen J. Greenblatt (em Practicing New Historicism [com Catherine

Gafegfterj - Unrversity ofCMcagraPress, 2001) e por seus seguidores, de uma liberdade criativa de cunho estilístico incondi-cional. mão teva em conta a especificidade metódica da produção de conhecimento histórico enquanto prática controlada. A esse propósito, ver capítulo 8.

™ Cario Ginzburg: Clue$,,M$ths and the Histórica! Method. The Johns Hopkins University Press, 1992; TheJudgeand the fiSssforaan. Verso Books, 1999..

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agentes históricos. Pelo menos desde os anos 1980 a noção de representação - com o que ela possa significar de 'composição subjetiva' dos 'mundos 1 e 2' — está firmemente instalada nas oficinas dos historiadores. O ambiente mental envolvente, reconhecido em princípio desde que Durkheim e Mauss cunharam a expressão 'representação coletiva', há cerca de um século, con-firmou inelutavelmente o caráter relacionai do conhecimento. Esse caráter não se referia agora apenas, napcepção husserliana, à relação de dependên-cia estabelecida entre sujeito e objeto. Inclui-se doravante a relação sodependên-cial, intersubjetiva se se quiser, como fator codeterminante do conhecimento. Con-temporâneos de Mauss, os historiadores da escola dos Annales, embora não tenham conservado o uso da expressão 'representação coletiva', adotaram a de 'mentalidades', sobretudo com o intuito de contrapor-se a uma história das idéias que lhes atribuísse qualquer forma de autonomia própria (inclusi-ve a da (inclusi-verdade de e(inclusi-ventuais 'leis' das ocorrências históricas) e ao que con-sideravam ser, então, a ilusão da independência do sujeito pensante.

A categoria das mentalidades, como construto de prazo longo e de ritmo lento, exprime complexos relacionais de geometria variável, multifacetados, e precedeu, na sua teimosa continuidade pois de difícil alteração brusca -a c-ategori-a de represent-ação hoje de uso corrente no c-ampo d-a explic-ação histórica das (relativas) constantes subjetivas do conhecimento. A legitimi-dade da categoria de representação como, por assim dizer, categoria-síntese do conhecimento relacionai em história, se baseia em três argumentos.

O primeiro foi empregado por Michel Foucault. Em As Palavras e as Coisas, Foucault lança mão da noção de representação para caracterizar o regime de verdade próprio à episteme clássica dos séculos 17 e 18. Foucault deu a esse conceito uma conotação teatral: a representação encena o mundo dos sinais ordenando-os em quadros.34 O uso subsequente da acepção fou-caultiana das relações culturais de sociedades dadas, por vezes escorregou para um relativismo stricto sensu que recusaria o controle metódico e que, na versão do linguistic turn, acabaria por reforçar certas tendências ficcionais pós-modernas. Um segundo argumento veio com os trabalhos de Louis Marin sobre a lógica de Port-Royal35, nos quais o complexo relacionai das repre-sentações assume o valor de princípio moderno da dominação simbólica,

34 Michel Foucault: Les Mots et les Choses. Une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966. Apud

Roger Chartier: "Le monde comme representation", in: Annales E.S.C., 1989,6, cit. pp. 1513-1514.

35 Louis Marin: La critique du discours. Êiude sur Ia Logique de Port-Royal et les Pensées de Pascal. Paris: Gallimard,

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articulado em torno dos sentidos de delegação e substituição aplicados à política. Um terceiro e último argumento aparece na obra de Pierre Bourdieu36, para quem a investigação da(s) representação(ões) passaria pela pesquisa sistemática de, uma retação-mestra e essencial a elas: a de sua dependência do processo de agregação e diferenciação dos grupos sociais a que estejam vinculadas.

O exemplo da categoria de representação, fundamental para a constitui-ção do saber Mstótico, mostra o quão 'relacionai' é este conhecimento. Mas não é por ser 'relacionai' - e, por conseguinte, de certa forma relativo - que o conhecimento histórico perderia eventualmente sua qualidade científica ou sua fíabiíidade.. Esse risco existiria somente se houvesse abandono do controle metódico e intersubjetivo ou sacrifício da qualidade epistêmica em favor do arbítrio ficcional descomprometido.37

* Em especial a partir (te La Distinction. Critique Sociale du Jugement, de 1979 (Paris: ÉditionsdeMinuit).

31 Ver Jõm Rüsen. Kvltonmaeht Sinn. Orientierung zwischen Gestern und Morgen. Colônia: Bòhlau, 2004; Kann Gestem

Bessei Werderi? Essays zum Bedenken der Geschichie. Berlim: Kulturverlag Kadmos, 2003. Ver também Peter Gay: O estilo na história. São Paulo: Compawhia das Letras, 1990 (orig. 1974).

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