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"[...] Falar é bom, mas entender, entender o que a professora tá falando(.) daí é outra coisa": um estudo etnográfico sobre práticas de linguagem dos imigrantes haitianos em uma escola pública no município de Blumenau - SC

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Academic year: 2021

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“[...] FALAR É BOM, MAS ENTENDER, ENTENDER O QUE A PROFESSORA TÁ FALANDO (.) DAÍ É OUTRA

COISA”:

UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE PRÁTICAS DE LINGUAGEM DOS IMIGRANTES HAITIANOS EM UMA ESCOLA PÚBLICA NO MUNICÍPIO DE BLUMENAU - SC

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Linguística.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Maria Inêz Probst Lucena

Florianópolis 2018

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária

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“[...] FALAR É BOM, MAS ENTENDER, ENTENDER O QUE A PROFESSORA TÁ FALANDO (.) DAÍ É OUTRA

COISA”:

UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE PRÁTICAS DE LINGUAGEM DOS IMIGRANTES HAITIANOS EM UMA ESCOLA PÚBLICA NO MUNICÍPIO DE BLUMENAU - SC

Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do Título de “Mestre em Linguística”, e aprovada em sua forma final pelo Programa

de Pós Graduação em Linguísticas da UFSC. Florianópolis, 20 de abril de 2018 ______________________________________ Prof., Dr. Marco Antônio Martins, Coordenador do Curso

Banca examinadora:

______________________________________

Prof.ª, Dr.ª Maria Inêz Probst Lucena, Orientadora Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

______________________________________

Prof.ª, Dr.ª Audrei Gesser, Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

______________________________________

Prof.ª, Dr.ª Neiva Maria Jung, Universidade Estadual de Maringá - UEM

______________________________________

Prof.ª, Dr.ª Maristela Pereira Fritzen, Universidade Regional de Blumenau – FURB – Presente por videoconferência

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À Prof.ª Dr.ª Maria Inêz Probst Lucena, minha orientadora, por ter me aceitado e acreditado em mim, ainda mais que vim de outra área de estudo. Por sempre estar presente e pela sensibilidade de recomendar leitura e até tranquilidade.

À banca, Prof.ª Dr.ª Maristela Pereira Fritzen, Prof.ª Dr.ª Audrei Gesser e Profª. Drª. Neiva Maria Jung, pela prontidão no aceite do convite, pela leitura atenta deste trabalho e por cada contribuição.

Ao Prof. Dr. Carlos Maroto Guerola pelas contribuições na banca de qualificação;

À Secretaria Municipal de Educação de Blumenau, que forneceu os dados necessários para que eu chegasse à escola que participaria desta pesquisa.

À escola e sua comunidade, por aceitar e incentivar minha presença nas aulas e eventos sociais de seus alunos.

Aos responsáveis dos alunos, por depositar em mim a confiança de acompanhar seus filhos durante um ano. Sem seu consentimento, esta pesquisa não existiria.

Ao professor Webster, da Associação Brahaitianos Unidos, por ensinar-me sua língua materna, o crioulo haitiano, e contribuir com as análises dos exemplos que apareceram nessa língua no presente trabalho. Aos demais haitianos que frequentaram essa associação no ano de 2017, por também participar da minha aprendizagem do crioulo e por me incentivar.

A minha família, que me deu todo apoio e entendeu minha ausência em diversos momentos e eventos sociais. Por se revezarem para estar presentes em todos os eventos vinculados a minha jornada no mestrado. Vocês compartilharam muitos quilômetros de distância e milhares de horas nesses dois anos, facilitando e tornando esses momentos mais leves. Vocês sempre foram meu pilar e, neste momento de dedicação ao estudo, não foi diferente.

A Deus por me conceder a oportunidade de ingressar no mestrado e me dar energia para concluí-lo.

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O presente trabalho investiga as práticas de linguagem de imigrantes haitianos no contexto escolar e articula essa discussão com as questões socioculturais e identitárias. Este estudo qualitativo e interpretativista seguiu os pressupostos da etnografia e analisou os dados gerados por meio de observações de aulas, entrevistas e análise documental onde estes imigrantes haitianos estão situados. Com o objetivo de conhecer as práticas linguísticas de imigrantes haitianos no contexto escolar em uma escola pública em Blumenau-SC, esta pesquisa está situada na área de Linguística Aplicada, na linha de pesquisas pós-colonialistas, que questionam as formas cientificistas e positivistas de conceber o uso de uma língua adicional. Fundamenta-se em estudos que discutem o ensino bilíngue para falantes de línguas minoritárias (MAHER, 2007a; MAHER, 2007b; GARCÍA, 2009, 2011, 2012, 2014), aborda o conceito de translinguagem (GARCÍA, 2009, 2011, 2012, 2014; FLORES; GARCÍA, 2013; GARCÍA; WEI, 2014) e discute os conceitos de “estabelecidos” e “outsiders” (ELIAS; SCOTSON, 2000) por meio da relação de identidade—alteridade (MONTE MÓR, 2008; HALL, 2011) durante as práticas de linguagem entre brasileiros e haitianos-haitianos. Os dados foram categorizados em cinco seções que trazem discussões sobre a hibridez cultural, identitária e linguística presente naquele contexto transcultural; a relação identidade-alteridade e sua implicação nas práticas linguísticas dos participantes da pesquisa; a questão da ideologia linguística presente no discurso e as atitudes dos participantes e sua relação com a educação bilíngue; a questão de gênero e religião e sua relação com as práticas linguísticas dos participantes desta pesquisa, e as práticas de linguagem pelo viés da translinguagem. Os resultados indicam que os haitianos reconhecem e fazem uso da alfabetização prévia em sua língua materna, utilizam tecnologias para traduzir do português para o crioulo e utilizam as práticas de translinguagem durante suas práticas de linguagem para aprenderem o português como língua adicional, mesmo a escola evidenciando uma ideologia monolíngue. Notou-se que a comunidade escolar e os próprios haitianos trazem em suas práticas linguísticas questões que influenciam a manutenção dos aspectos culturais e linguísticos hegemônicos. Essa manutenção dos aspectos culturais e linguísticos hegemônicos é (re)produzida via invisibilização do bilinguismo português-crioulo haitiano. Os resultados deste trabalho contribuem com a literatura sobre educação bilíngue, práticas de linguagem no contexto escolar e políticas linguísticas.

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This study investigates the language practices of Haitian immigrants in the school context and articulates this discussion with sociocultural and identity issues. This qualitative and interpretative study followed the assumptions of ethnography, and analyzed the data generated through class observations, interviews and documentary analysis where these Haitian immigrants are located. Aiming to know the linguistic practices of Haitian immigrants in the school context in a public school in Blumenau-SC, this research is part of Applied Linguistics area, in the line of post-colonialist researches, which question the scientificist and positivist ways of conceiving the use of an additional language. Besides, it is based on studies that discuss bilingual education for speakers of minority languages (MAHER, 2007a; MAHER, 2007b; GARCÍA, 2009, 2011, 2012, 2014), discusses the concept of translanguaging (GARCÍA, 2009, 2011, 2012, 2014 (2004), and discusses the concepts of "established" and "outsiders" (ELIAS, SCOTSON, 2000) through the relation of identity-alterity (MONTE MÓR, 2008, HALL, 2011) during language practices between Haitians-Brazilians and Haitians-Haitians. The data were categorized in five parts that present discussions about the cultural, identity and linguistic hybridity present in that cross-cultural context; the identity-otherness relation and its implication in the linguistic practices of the research participants; the issue of the linguistic ideology present in the discourse and the participants' attitudes and their relation to bilingual education; the issue of gender and religion and its relation with the linguistic practices of the participants of this research, and the language practices by the translanguaging perspective. The results indicate that Haitians recognize and use prior literacy in their mother tongue, use technologies to translate from Portuguese to Creole, and use translingual practices during their language practices to learn Portuguese as an additional language, even though the school evidences a monolingual ideology. Furthermore, it was noted that the school community and the Haitians themselves bring in their linguistic practices issues that influence the maintenance of hegemonic cultural and linguistic aspects. This maintenance of hegemonic cultural and linguistic aspects is (re) produced through the invisibilization of Portuguese-Haitian Creole bilingualism. The results of this work contribute to the literature on bilingual education, language practices in the school context and linguistic policies.

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Fotografia 1 - Composição de um rap em inglês, por Meki ... 89 Fotografia 2 - Playlist de Bárbara para gravação de CD ... 90 Fotografia 3 - Trabalho elaborado por Cristina para a disciplina de

Inglês ... 140 Fotografia 4 - Trabalho elaborado por Bárbara para a disciplina de

Inglês ... 140 Fotografia 5 - Trabalho elaborado por Guilherme para a disciplina de

Inglês ... 141 Fotografia 6 - Composição de um rap em crioulo por Meki ... 150 Fotografia 7 - Tradução do rap em crioulo para o português feita por

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(Baseadas nas convenções Jefferson, 2004)

. : entonação descendente

? : entonação ascendente

, : entonação de continuidade

palav- : marca de corte abrupto

pala::vra : prolongamento do som (maior duração) palavra : silaba ou palavra enfatizada

>palavra< : fala acelerada <palavra> : fala desacelerada

(.) : micropausa de ate 2/10 de segundo (palavra) : transcrição duvidosa

((olha para

baixo))

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1 INTRODUÇÃO ... 15

2 EDUCAÇÃO BILÍNGUE E SUAS INTERFACES ... 31

2.1 RELAÇÃO BRASIL-HAITI ... 31

2.2 A LINGUÍSTICA APLICADA E AS PRÁTICAS LINGUÍSTICAS NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO ... 39

2.3 BILINGUISMO E PRÁTICAS DE TRANSLINGUAGEM NA EDUCAÇÃO BILÍNGUE ... 47

2.4 POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E SUA INTERFACE COM O FENÔMENO DA SUPERDIVERSIDADE ... 53

2.5 IDENTIDADE E PODER ... 59

3 SITUANDO A PESQUISA: A ETNOGRAFIA ... 63

3.1 PRESSUPOSTOS DA ETNOGRAFIA ... 63

3.2 SITUANDO O CONTEXTO – A CIDADE, O BAIRRO E A ESCOLA ... 68

3.3 A ENTRADA EM CAMPO ... 77

3.4 GUILLHERME, MEKI, CRISTINA E BÁRBARA... 82

3.5 AS TURMAS DE MEKI, GUILHERME, CRISTINA e BÁRBARA ... 83

4 ANÁLISE DOS DADOS ... 85

4.1 UMA CONCEPÇÃO A SER ROMPIDA: “ZERO-SUM GAME” ... 85

4.2 O EU E O OUTRO ... 92

4.3 “O FUNDO DA PESSOA É FALAR ALGO” – A IDEOLOGIA LINGUÍSTICA PRESENTE NO DISCURSO E AS ATITUDES DOS PARTICIPANTES E SUA RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO BILÍNGUE ... 109

4.4 GÊNERO E RELIGIÃO E SUAS INTERFACES COM AS PRÁTICAS LINGUÍSTICAS DE GUILHERME, MEKI, BARBARA E CRISTINA... 122

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RELOCALIZAÇÃO E DE TRANSLINGUAGEM ... 132 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 155 6 REFERÊNCIAS ... 159

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1 INTRODUÇÃO

Diante do interesse de colonizar novas terras, em 1850, foi fundada a colônia Blumenau, no Vale do Itajaí em Santa Catarina. Esta colônia recebeu imigrantes vindos da Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, mas ganhou destaque como uma importante colônia alemã da América Latina (FRITZEN; RISTAU, 2013). Como Fritzen e Ristau (2013) mostram, os imigrantes alemães contribuíram com o sistema de ensino em razão das escolas públicas não darem conta da demanda de alunos. Desta forma, o alemão, torna-se presente em diversos contextos públicos (religião, imprensa, escolas e interações sociais), e até 1940 possui um status de língua de prestígio, mesmo nunca ter sido reconhecida como língua oficial. Cabe mencionar que as práticas de linguagem em italiano, polaco e línguas indígenas ainda hoje estão presentes em Blumenau - SC apesar de estarem em quantidade menor quando comparado às práticas de linguagem em alemão (FRITZEN, RISTAU, 2013).

Considerando os deslocamentos territoriais do período de colônia, e considerando os novos deslocamentos territoriais para Blumenau, principalmente dos imigrantes haitianos para o contexto de Blumenau, César (2015) aponta que há uma estimativa da Secretaria de Desenvolvimento Social de que em Blumenau já se encontram mais de 500 haitianos, número que provavelmente aumentou até 2017, ano em que estive em campo.

É neste contexto transcultural e multilíngue que esta pesquisa é desenvolvida. Meu interesse direciona-se para a aprendizagem de português como língua adicional para imigrantes haitianos matriculados em uma escola pública de Blumenau - SC. Além do contexto já contemplar um cenário multilíngue, outros questionamentos surgiram diante de situações a que fui exposta e que serão listadas a seguir. O primeiro motivo – o que mais provavelmente contribuiu com meu interesse para o desenvolvimento desta pesquisa – foi meu contato prévio com a língua alemã quando criança em uma escola em Pomerode/SC e com as línguas inglesa e espanhola em escolas de Blumenau/SC em cursos extracurriculares, na modalidade de línguas estrangeiras (LE1). Com tal experiência, notei como os diferentes contextos de ensino facilitaram ou dificultaram minha aprendizagem. Recordo-me de que, quando migrei de uma escola localizada na cidade

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Utilizo o termo LE (língua estrangeira) para me referir ao aprendizado fora do contexto de imersão.

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de Pomerode, onde a língua estrangeira era a alemã, para uma escola na cidade de Blumenau, onde a língua estrangeira era o inglês, fui por vezes ridicularizada pelos meus colegas em razão da minha pronúncia ser influenciada pelo alemão. Na época, não entendia como era possível que grafias tão parecidas para mim poderiam ter tamanha discrepância na pronúncia. Afinal, “come here” em inglês e “komm her” em alemão guardavam o mesmo significado em ambas as línguas – venha aqui! –, embora a pronúncia em alemão seja [kᴐm he:r] e em inglês, [kʌm hɪər]. Essa minha troca na pronúncia já revelava minha identidade bilíngue, que não era reconhecida pelos colegas e nem mesmo por mim. Eu era apenas apontada como uma falante com pronúncia “errada” de uma língua desprestigiada, o alemão, naquele contexto escolar – mesmo em uma cidade com um grande índice de descendentes alemães.

Outro motivo – talvez o mais impactante e incômodo – foi deflagrado recentemente, a partir de uma fala de um engenheiro referindo-se aos haitianos que trabalhavam em uma obra. “Eles não são bons trabalhadores”, disse-me o engenheiro em uma visita guiada2

a um apartamento em Rio do Sul, antes da minha entrada em campo, em setembro de 2016. Essa fala causou-me estranheza, mas foi melhor “digerida” quando o engenheiro se justificou, diante de meu espanto indisfarçado. Ele disse que a dificuldade mesmo era a comunicação com os haitianos, porque levava mais tempo para explicar o que tinha de ser feito, e não que eles não desempenhassem um bom trabalho.

E o último motivo deve-se a um fato ocorrido também recentemente, quando, dias depois desse evento na obra, fui abordada por um brasileiro que havia permanecido na Itália por alguns anos e que me pediu ajuda profissional para retomar seu sotaque brasileiro. Conforme me relatou, retornar ao Brasil com um sotaque italiano influenciou negativamente sua carreira de ator em peças de teatro, a qual foi quase encerrada. Como sou fonoaudióloga, mas entendendo que o sotaque é algo que revela muito das questões identitárias, como locais onde a pessoa esteve e seus interesses, expliquei a ele que não trabalhava com essa área da Fonoaudiologia, mas lhe indiquei outra fonoaudióloga, entendendo seu motivo e sua ansiedade.

A partir dessas experiências, questionei-me como seria para os haitianos imigrantes em Blumenau, inseridos em uma comunidade massivamente germânica, essa experiência de deslocamento territorial. Será que eles também precisariam reconstruir-se? Será que essa

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Utilizo o termo visita guiada para me referir a uma visita em que o engenheiro mostrou um apartamento que estava em construção.

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reconstrução seria desejada? Será que seria fácil? Como seriam as práticas linguísticas desses indivíduos?

Os questionamentos supracitados surgem mesmo eu tendo conhecimentos que alguns dos imigrantes haitianos passam por outros países latino-americanos antes de chegar ao Brasil (COTINGUIBA; PIMENTEL, 2013; COTINGUIBA; COTINGUIBA, 2014; CAZAROTTO; MEJÍA, 2017) e, com isso, já teriam algum contato com o espanhol, uma língua com proximidade do português e que poderia contribuir para a aprendizagem desta língua. Esses questionamentos surgem porque sei da realidade bilíngue presente no Haiti e porque entendo que essa aprendizagem de uma língua adicional envolverá questões socioculturais, identitárias e políticas.

O contexto bilíngue no Haiti data antes mesmo da revolução haitiana para o alcance da sua independência. Diante da realidade da escravatura dos índios que já habitavam o país e de negros, observava-se um número maior de escravos do que de colonos e, por essa razão, era possível ouvir as línguas africanas da Nigéria e do Congo, que se mantiveram até o início do século XIX (CAISSE, 2012). Após esse período, e com a diminuição do regime escravocrata, o uso dessas línguas (indígenas e de escravos africanos) diminuiu em solo haitiano.

Essa realidade da presença de escravos da África trouxe também a questão dos outsiders3, observada por Elias e Scotson (2000) em seu estudo. No caso do Haiti, é possível observar que, apesar da cor e a condição de escravo ser a mesma, o que muda é questão de ser escravo imigrante ou escravo nascido no país. Os “bossales” – aqueles escravos nascidos na África – são considerados os imigrantes de última hora, ao passo que os “créoles” são os escravos negros nascidos no Haiti. Estes últimos consideravam-se superiores àqueles pelo fato de serem nascidos no país e não imigrantes como os “bossales”.

Além da presença das línguas africanas, faladas pelos escravos, o francês, o inglês e o espanhol também já estiveram presentes no Haiti (CHARLES, 2015). O autor aponta que o país já foi palco de competição dessas outras línguas em razão da influência da Espanha e da Inglaterra nesse país (CHARLES, 2015).

A história do reconhecimento do crioulo haitiano, todavia, mostra uma verdadeira batalha pela igualdade nos direitos linguísticos. Após a

3

O termo outsiders é utilizado por Elias e Scotson (2000) para se referir às pessoas que vinham de outras regiões ou países e residiam na cidade que foi chamada por eles de Winston Parva.

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independência, Jean Jacques Dessalines4 decreta o francês como língua oficial da ilha. Porém, essa medida não inibiu o uso do crioulo haitiano entre a comunidade haitiana e, após várias lutas, houve, finalmente, a oficialização do crioulo haitiano em 1987 (COTINGUIBA; COTINGUIBA, 2014).

Apesar de atualmente o Haiti ser considerado um país oficialmente bilíngue, tendo como línguas oficiais o crioulo haitiano e francês, há um consenso de que a língua materna é o crioulo haitiano e a língua adicional é o francês, pois esta última língua é aprendida geralmente apenas no ambiente escolar (CAISSE, 2012). O autor mostra que, por ser o francês aprendido no ambiente escolar, um ambiente formal para a aprendizagem, há uma supervalorização dessa língua no território haitiano. Dessa forma, a identidade híbrida e o orgulho de ser negro vão existir apenas para os haitianos negros da elite, aqueles que tiveram acesso à escola e aprenderam o francês (CHARLES, 2015).

Caisse (2012) e Charles (2015) mostram que o uso do francês e/ou do crioulo haitiano no Haiti ocorre em determinado contexto social onde o uso de uma ou outra língua segue uma convenção do que é apropriado naquela situação. Exemplo disso é o fato de que o uso do francês é reconhecido como apropriado em situações com grau de formalidade maior ou que exijam um grau de conhecimento adquirido na escola, como no caso de discursos no parlamento, discursos políticos, palestras na universidade, noticiário e poesia. Já em casos de instruções para empregados e novelas no rádio, o uso do crioulo haitiano passa a ser apropriado (CAISSE, 2012). Essa concepção de haver um contexto em que o uso de determinada língua é apropriada mostra uma concepção de diglossia da língua. Ou seja, as línguas são vistas como sistemas fechados, e o falante bilíngue deve fazer uso separado dessas línguas, pois as mesmas não são reconhecidas como híbridas, mas totalmente separadas.

Dessa forma, parece ficar claro que, no Haiti, o francês possui um prestígio social maior quando comparado ao crioulo haitiano, uma vez que, se considera que o francês possui patrimônio literário e o crioulo haitiano não (CAISSE, 2012). Enquanto se convenciona que o francês é uma língua com gramática e léxico mais extensos, o crioulo haitiano, por sua vez, é visto como uma língua que possui gramática e léxico

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Assumiu a liderança do movimento de independência após a prisão e morte de Toussaint, que foi o líder inicial desse movimento. Dessalines, em 1804, conseguiu a proclamação da independência da colônia de Santo Domingo e escolheu o nome Haiti para chamar o país liberto (FREITAS, 2010).

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muito reduzidos. A fonologia por sua vez, é considerada básica no francês e como um subsistema no crioulo haitiano (CAISSE, 2012). Essas diferenças, que são muito evidentes na comparação do crioulo haitiano com o francês, acentuam e influenciam o status sócio-político destas línguas no Haiti porque, como Altenhofen (2013) aponta, esse valor e status associado à língua variam de acordo com o contexto de uso e ponto de vista que se adota.

É por essa razão de status vinculado à língua que é possível compreender o posicionamento de Dejean nesse cenário com contexto oficialmente bilíngue no Haiti. Para Dejean (1983 apud CAISSE, 2012) – que segue uma linha nacionalista de língua – a diglossia linguística interfere na questão de identidade do falante. O francês é concebido como uma língua estrangeira no Haiti, seja para o haitiano analfabeto que vê essa língua como a língua dos brancos, seja para o haitiano que frequentou a escola e que vê essa língua como a língua de outro país (DEJEAN, 1983 apud CAISSE, 2012). Portanto, para esse autor, o francês é visto como uma característica de não-pertencimento à identidade haitiana (DEJEAN, 1983 apud CAISSE, 2012). Essa visão de identidade que Dejean (1983) defende difere da visão de identidade utilizada nesta pesquisa, que vê a identidade das pessoas como fluida e híbrida, afastando-se da questão de apagamento ou diminuição de integridade identitária, como será discutido na seção 2.5 – Identidade e poder.

Nessa visão nacionalista de língua, proposta por Dejean (1983), em um ambiente oficialmente bilíngue, como no caso do Haiti, uma comunidade linguística está contida na outra. Dessa forma, o autor defende que a comunidade linguística de francês estaria contida na comunidade linguística do crioulo haitiano, porque todos os haitianos falam crioulo, e um número reduzido, 5%, é bilíngue. Assim sendo, os falantes de francês são bilíngues, mas os falantes de crioulo são monolíngues (DEJEAN,1983 apud CAISSE, 2012). Revelando essa identidade, é possível perceber que, apesar de o Haiti ser reconhecido como país oficialmente bilíngue, uma pequena minoria de seus habitantes efetivamente são bilíngues.

Esse status de país oficialmente bilíngue do Haiti, como pode se observar, não põe fim às questões entre francófilos/crioulófilos e crioulófilos/crioulófonos que envolvem o uso do crioulo haitiano e do francês (CHARLES, 2015). A posição francófila, no ensino haitiano, diz respeito às classes dominantes, que adotam o francês como a única língua de ensino, desprezando o crioulo haitiano. Entretanto, essa posição vem perdendo adeptos. Os “defensores” do crioulo, os

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crioulófilos, por sua vez, adotam uma postura de ensino apenas do crioulo, mesmo reconhecendo que o francês poderia contribuir com ascensão social. O terceiro grupo – crioulófonos –, formado pelos promotores e defensores da reforma de 1979, defende um ensino misto, no qual as línguas, crioulo haitiano e francês, caminhariam juntas (CHARLES, 2015). Essa última proposta vai ao encontro das práticas de translinguagem defendidas no presente trabalho e que serão discutidas adiante.

A respeito da reforma na educação do Haiti, Caisse (2012) mostra que houve três tentativas de reforma nesse país. A primeira, com intervenção dos Estados Unidos, iniciou em 1915 e durou até 1934. Nessa intervenção, os Estados Unidos tinham por objetivo a instalação de programas de educação agrícola nas províncias. Entretanto, a participação americana nos assuntos políticos e econômicos do Haiti, associada a atitudes racistas, provocou desagrado nos haitianos, que expulsaram os norte-americanos de seu território (CAISSE, 2012).

O autor mostra que a segunda tentativa de reforma ocorreu, em 1941, pelo então Ministro da Educação. Essa proposta seguia os pressupostos do sistema francês e preconizava o uso exclusivo do francês como língua de instrução, associado a punições5 àqueles que utilizassem outra língua que não o francês em sala de aula (CAISSE, 2012). O autor revela ainda que os materiais tratavam da cultura francesa apenas, retomando o período colonial, o que também desagradou as massas.

A terceira tentativa ocorreu em 1979 e foi considerada a mais ampla da história desse país. Nela, Joseph C. Bernard propôs um sistema educacional público que alcançasse todas as crianças em idade escolar, tanto do meio urbano quanto do meio rural. A polêmica, desta vez, ocorreu pela proposta de se introduzir o crioulo haitiano como língua oficial de instrução (CAISSE, 2012). Tanto os ricos quanto os pobres discordaram da proposta, porque eles entendiam que o papel da

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A respeito das punições, é possível observar que, em alguns ambientes escolares, ela ainda se mantém, seja para falta de disciplina, seja pela lição esquecida, ou até mesmo pelas lições não aprendidas. Apesar da punição com agressão física já ter sido proibida pelo Ministério da Educação Nacional, a falta de fiscalização faz com que ela se perpetue nos dias atuais (CHARLES, 2015). Meki, um dos integrantes haitianos desta pesquisa, relata que as punições também se estendiam para quem não fazia a tarefa. Segundo ele: “(...) se, no Haiti, deram lá uma lição de casa e não fez a lição de casa, apanha do professor. O professor bate. [...] Eu ia apanhar do professor [...] ou ia apanhar do diretor” (DIÁRIO DE CAMPO, 03/03/2017).

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escola tradicional era ensinar o francês, a língua que contribuía – e contribui – com a divisão das classes (CAISSE, 2012). Os haitianos que discordavam da inserção do crioulo no sistema educacional público entendiam o bilinguismo como algo maléfico para a aprendizagem de uma língua adicional.

Atualmente, o sistema educacional tradicional é mantido e também permanecem os problemas iniciais, como a falta de recursos, falta de acesso à escola, falta de uniformes e materiais didáticos e altas taxas de desnutrição (CAISSE 2012). Associada a essa falta de recursos citada por Caisse (2012), Charles (2015) afirma que a aprendizagem do francês por parte dos haitianos é complexa e baseada na repetição, uma vez que os livros em francês acabam sendo muito caros para o poder de compra dos haitianos. Já o ensino do crioulo haitiano encontra dificuldades devido à falta de material didático de qualidade nessa língua (CHARLES, 2015).

O sistema tradicional de educação do Haiti, muito parecido com o modelo francês, é dividido em ensino pré-escolar, fundamental, secundário e superior. A educação pré-escolar é para crianças de três a cinco anos e é considerada opcional. Já o nível fundamental é para crianças de 6 a 14 anos. Para que o aluno passe para o ensino secundário, ele precisa passar em uma prova após o nono ano (CHARLES, 2015). O ensino secundário, por sua vez, possui duas modalidades: a clássica, que dá acesso à universidade, e a técnica, que prepara para bacharelados técnicos. Atualmente, no Haiti, funciona apenas a modalidade técnica (CHARLES, 2015). O autor mostra ainda que há 13 universidades (sendo uma pública) e 46 escolas/institutos (destes, apenas seis são públicos).

Diante da realidade exposta, percebe-se que os haitianos, ao emigrarem de seu país, já saem de um contexto oficialmente bilíngue conturbado, onde o conhecimento de determinada língua garante status social e trazem consigo a questão da lógica diglóssica para o uso do crioulo e francês arraigada em sua identidade sociocultural. Essa identidade influenciada pela lógica diglóssica, pelo conhecimento de uma língua de colonizadores obtido apenas no ambiente escolar, aparece nos dados encontrados por Takashima (2015) quando o autor traz que muitos haitianos se interessavam pelo estudo, não propriamente pela escolaridade oficial, sistematizada, que precisa ser comprovada, mas por uma escolaridade que lhes garanta adquirir o domínio do português. Visam a comunicar-se eficientemente nessa língua, uma das qualidades exigidas para um emprego satisfatório. Ou seja, os haitianos já trazem

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em suas práticas de linguagem reflexões sobre a aprendizagem de uma língua adicional.

Pensando-se nesse conhecimento do português, que pode garantir

cargos melhores nas empresas em Blumenau, os Centros de Referência

da Assistência Social (CRAS) da cidade realizaram uma parceria com a Escola de Educação Básica (EEB) Christoph Augenstein, no bairro Salto Weissbach, onde são oferecidas aulas de português gratuitas para os haitianos, com o objetivo de auxiliar na aprendizagem do português (CÉSAR, 2015).

Além dessa parceria do CRAS e da escola EEB Cristoph Augenstein, houve, em 2015, mobilização – por parte de alguns haitianos e de alguns blumenauenses voluntários de diferentes profissões, sem necessariamente estarem associados a associações de bairro e/ou à educação – para a criação da Associação Brahaitianos Unidos. Essa associação foi criada com o objetivo de fornecer aulas de português para esses haitianos e auxiliar no estreitamento de relações entre os imigrantes e a população local, por meio de encontros e reuniões presenciais e também por meio virtual, através de uma página

criada na rede social virtual Facebook6. Entretanto, a única

blumenauense que vinha participando de forma ativa dos encontros era a professora de línguas que ensina português de forma voluntária aos domingos, das 14h30 às 17h para esses imigrantes, com apoio de intérpretes haitianos que já estão em solo brasileiro há mais tempo e que traduzem para o crioulo o que a professora explica em português. Diante dessa realidade, a diretoria – composta pelos próprios haitianos - teve uma nova ideia: os haitianos que frequentam esta associação com conhecimento de inglês, alemão e francês iriam ensinar estas línguas para os blumenauenses a partir do segundo semestre de 2017. Com isso, blumenauenses e haitianos partilhariam do mesmo espaço físico, o que permitiria maior contato entre essas comunidades. Entretanto, em razão dos horários oferecidos serem limitados, foram poucas as matrículas realizadas, conforme as informações colhidas.

Um dos materiais utilizados por essa professora de português nessa associação é a Cartilha Pode entrar: português do Brasil para

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https://www.facebook.com/ABHUBlumenau/?fref=ts. Essa página de Facebook, criada em 2016, é seguida por 186 pessoas.

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refugiados e refugiadas7, além de outros materiais encontrados na internet. Esses materiais e as aulas de português são fornecidos gratuitamente a esses alunos pela associação.

A criação dessa associação vai ao encontro do que Vertovec (2007) aponta quando diz que é por meio do trabalho de associações e de atividades culturais que incentivem a promoção do respeito pelas diversidades que as políticas multiculturais podem ser construídas e fortalecidas. Logo, ainda que as oportunidades disponibilizadas pelo Brasil e, mais especificamente, em Blumenau/SC sejam tímidas, há algumas iniciativas que tendem a estimular esses imigrantes a trazer suas famílias para solo brasileiro. No ambiente escolar, é importante considerar a questão do ensino e aprendizagem e, para tanto, é necessário considerar que esse sujeito bilíngue apresentará questões próprias associadas aos aspectos identitários e culturais de seu país de origem.

Exemplo dessa realidade bilíngue vivida pelos antilhanos, mais especificamente pelos nascidos na ilha de Martinica, é problematizada por Fanon (2008) em seu livro Pele negra máscaras brancas. O autor mostra como o conhecimento da língua francesa garante um status de nobreza e como o seu uso em práticas linguísticas “embranquece” o negro. Em ambientes escolares nessa ilha, por exemplo, onde o francês é aprendido, há uma construção quase de um panóptico8 para que o crioulo não seja utilizado (FANON, 2008). Ou seja, segundo o autor, os alunos são vigiados constantemente e punidos caso utilizem o crioulo haitiano. No Haiti, que também está localizado nas Antilhas e já é reconhecido como um país oficialmente bilíngue onde o crioulo haitiano é considerado como língua materna e o francês como língua adicional, a situação não é muito diferente. O francês também é uma língua de status como já discutido anteriormente.

7

Esta cartilha, dividida em 12 capítulos, traz temáticas do cotidiano a que esses imigrantes poderão ser expostos, como, por exemplo, ida ao médico, entrevista de emprego e receber e fornecer troco durante uma compra. Nela consta ainda um glossário em português, espanhol, francês, inglês e árabe (FEITOSA et al, 2015). A cartilha completa pode ser encontrada em http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2015/ Pode_Entrar.pdf

8

O panóptico, para Foucault (1987), em seu livro “Vigiar e punir: nascimento

da prisão,” diz respeito a um dispositivo de vigilância para se alcançar a

(26)

Como o contexto desta pesquisa envolve a migração de um grupo, há que se considerar também a questão proposta por Elias e Scotson (2000) em Os estabelecidos e os outsiders, livro no qual os autores mostram a realidade de uma cidade em que se estruturou em três bairros diferentes, sendo que os moradores do bairro mais antigo, que eram chamados “estabelecidos”, eram vistos como melhores quando comparados àqueles que vieram depois. Eram os estabelecidos que detinham o poder, pois eram eles que votavam e decidiam as mudanças da cidade. Os “outsiders” eram os outros. Neste caso, os que chegaram depois. Esse grupo, os outsiders, era heterogêneo e possuía laços sociais menos intensos quando comparado aos estabelecidos (ELIAS; SCOTSON, 2000). No contexto desta pesquisa com imigrantes haitianos, questiono-me se o fator língua também apareceria como um aspecto que incidiria na construção identitária de estabelecidos e outsiders, como em Elias e Scotson (2000).

Para aprofundar estas questões que envolvem um contexto transcultural e multilíngue, e, buscando ampliar discussões presentes em meu trabalho de conclusão de curso na graduação de Fonoaudiologia, em que realizei um estudo sobre a interface entre o ensino da Língua Portuguesa para estrangeiros no município de Blumenau e a Fonoaudiologia9, busquei reflexões e conceitos presentes na Linguística Aplicada Crítica.

O meu direcionamento atual para as reflexões da Linguística Aplicada Crítica faz-me questionar as formas positivistas e colonialistas da construção do conhecimento na contemporaneidade (CANAGARAJAH, 1999; PENNYCOOK, 2010). A LA me permitiu enxergar as práticas linguísticas em contextos situados e contemplar os aspectos socioculturais (MONTE MÓR, 2002; CANAGARAJAH, 2006; CAVALCANTI, 2006; MOITA LOPES, 2006) e identitários (MONTE MÓR, 2008; HALL, 2011) desses participantes. Além disso, ela me permite utilizar conhecimentos de outras disciplinas, por se reconhecer como uma disciplina indisciplinar (MOITA LOPES, 2006) e inter/transdisciplinar (SIGNORINI, 1998), por contemplar as problematizações mais adequadas a respeito da educação bilíngue para falantes de línguas minoritárias10 (MAHER, 2007a; MAHER, 2007b; GARCÍA, 2009, 2011, 2012, 2014) e por reconhecer os fenômenos que estão atrelados e imbricados nessa “mistura linguística” que é defendida

9

Ver Terçariol, Grüdtner e Greuel (2015)

10

“(...) a modalidade de línguas ou variedades usadas à margem ou ao lado de uma língua (majoritária) dominante” (ALTENHOFEN, 2013, p. 94).

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como translinguagem (GARCÍA, 2009, 2011, 2012, 2014; FLORES; GARCÍA, 2013; GARCÍA; WEI, 2014) – que será discutida mais a frente.

Nessa linha contemporânea da Linguística Aplicada, também está contemplada a discussão acerca da diversidade linguística em solo brasileiro, ou seja, revelar-se mais e mais o multilinguismo visando garantir direitos iguais ao uso das línguas utilizadas no Brasil. O interesse por esse multilinguismo se dá por se reconhecer que o Brasil é um país multicultural e multilíngue, onde coexistem muitos diferentes idiomas e variedades do português, fenômeno que até hoje se tenta ignorar, pelo fato de existir ainda o preconceito contra formas consideradas não padrão, desprestigiadas (OLIVEIRA, 2009).

García (2014) aponta todo o histórico e as razões de se pensar, até o século passado, uma educação bilíngue que tinha por objetivo a assimilação de formas linguísticas prestigiadas, ou seja, a assimilação da norma culta de determinada língua. Exemplo disso é o inglês da norma culta no contexto dos Estados Unidos para imigrantes e para norte-americanos das periferias/margens. Essa ideia de assimilação estava atrelada a um discurso político em que se queria homogeneizar a língua, o inglês. Dessa forma, até o século passado, o ensino bilíngue nos Estados Unidos acontecia com o objetivo de subtrair a língua materna dos imigrantes e apagar as formas desprestigiadas do inglês (GARCÍA, 2014).

Atualmente, a educação bilíngue proposta por García (2009, 2011, 2012 e 2014) diverge da concepção anterior de assimilação e direciona-se para uma concepção aditiva. Nessa nova perspectiva, a fluidez multilíngue e transcultural do mundo atual é reconhecida no discurso desses bilíngues como algo positivo e não mais como algo a ser apagado, subtraído.

A educação bilíngue discutida e defendida nesta pesquisa considera que os falantes bilíngues utilizam todo seu repertório linguístico para fazer sentido em suas vidas e nos contextos complexos a que estão expostos, e são essas práticas de linguagem de falantes bilíngues que são reconhecidas como translinguagem11 (GARCÍA, 2011). Ao se entender esse uso de todo repertório linguístico pela

11

Importa registrar que outros termos similares como “práticas translíngues” (CANAGARAJAH, 2013) “transidioma” ou “práticas transidiomáticas” (JACQUEMET, 2005; 2016) são igualmente utilizados para referenciar as práticas bilíngues na contemporaneidade de modo semelhante ao modo como a translinguagem é aqui entendida.

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prática de translinguagem, reconhece-se que o bilíngue não possui dois sistemas com línguas separadas, mas sim um repertório linguístico único e fluido. (GARCÍA, 2014a). Dessa forma, a translinguagem entende a língua como uma prática, como ação, e não apenas como um sistema de estruturas fechado.

Essa mudança que ocorreu na educação bilíngue e o advento da translinguagem em reconhecer a língua como um processo fluido e inacabado acompanham e se interligam ao contexto atual de diásporas provocadas pelo fenômeno da globalização. E é a partir desses deslocamentos territoriais promovidos pela globalização que surge o conceito de superdiversidade, o qual se refere a

[...] uma condição que se distingue por uma interação dinâmica das variáveis entre o aumento do número de novas, pequenas e dispersas múltiplas origens dos imigrantes, transnacionalmente conectados, socioeconomicamente diferenciados e legalmente estratificados que chegaram ao longo da última década (VERTOVEC, 2007, p. 1024, tradução minha)12.

Logo, Vertovec (2007) defende a ideia de que a superdiversidade deve ser analisada por meio das relações entre os aspectos de diferenças nos status de imigração em que entraria a questão da legalização do imigrante, diferenças em suas experiências no mercado de trabalho, sexo, idade e padrões de distribuição no assentamento espacial (locais por onde passam e onde se estabelecessem) e não mais só pelo fator da etnia (VERTOVEC, 2007). O autor defende que esses termos raramente poderão ser discutidos paralelamente, senão interligados, intercruzados. Cabe aqui mencionar que o termo superdiversidade gera bastante divergências no meio acadêmico. Oliveira (2014) considera que é um equívoco a aplicação do termo a apenas imigrantes e seus descendentes, uma vez que isso não representa toda a dimensão da vida social que o termo deveria abranger. Reconhecendo a influência da internet nesse processo de interseccionalidade de diferentes fatores que influenciariam

12

Such a condition is distinguished by a dynamic interplay of variables among an increased number of new, small and scattered, multiple-origin, transnationally connected, socio-economically differentiated and legally stratified immigrants who have arrived over the last decade (VERTOVEC, 2007, p. 1024).

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na questão de hibridez destes fatores, não faria sentido, portanto, associar o termo superdiversidade apenas aos imigrantes num novo espaço transcultural (OLIVEIRA, 2014). De outra forma, o autor defende que a superdiversidade pode ser compreendida como uma condição individual nesse cenário pós-moderno. Apesar dessa crítica ao termo superdiversidade, faço uso deste termo neste trabalho porque entendo que ele envolve a questão do deslocamento territorial que esses haitianos enfrentaram e que isto trará consequências para suas práticas linguísticas.

Entretanto, Hall (2011) defende que a globalização, termo que ele associa ao período da modernidade tardia, também é responsável pelos deslocamentos e “descentração” do sujeito. Ao afirmar isso, o autor se afasta da concepção de identidade do sujeito cartesiano, aquele que é racional com identidade fixa e estável, em direção a uma identidade de sujeito híbrida e fluida. Ou seja, as identidades estão sendo deslocadas e fragmentadas. Esses deslocamentos ocorrem porque a identidade é “definida historicamente, e não biologicamente” (HALL, 2011, 13). Logo, é possível observar que, ao longo dos anos, o indivíduo apresente identidades divergentes, e são essas divergências entre as identidades que irão promover esses deslocamentos. É por essa razão o autor sugere o termo identificação, por entender que esse termo garante uma ideia de “estar em processo”.

Por meio dos conceitos apresentados de forma sucinta até o momento (educação bilíngue, translinguagem, superdiversidade e identidade) e, que serão retomados na próxima seção, observa-se que há um entrelaçamento e uma congruência entre todos eles: a concepção de fluidez, hibridez e o “estar em processo”. Reconhecendo essa congruência nos termos supracitados, utilizo aqui o conceito de língua como um “caleidoscópio”13

com base em César e Cavalcanti (2007), por acreditar que a prática de uso da linguagem exige um conceito como esse visto que contempla os aspectos de fluidez e hibridez das práticas sociais situadas.

Foi por meio deste referencial teórico inserido na área da Linguística Aplicada e afins que passei a entender acerca da necessidade de elaboração de políticas linguísticas específicas junto aos órgãos reguladores de ensino, objetivando uma intervenção didática particular

13

A metáfora da língua como caleidoscópio é usada para se referir à língua constituída por “um conjunto de variáveis, interseções, conflitos, contradições, socialmente constituídos ao longo da trajetória de qualquer falante” (CÉSAR; CAVALCANTI, p. 61).

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para um processo de aprendizagem de português como língua adicional para os alunos estrangeiros (ANDRADE; SANTOS, 2010). Em resumo, acredito que, a partir de uma investigação detalhada da forma como os imigrantes haitianos lidam com as práticas linguísticas no contexto escolar, novos questionamentos e discussões poderão ser trazidas para a agenda da Linguística Aplicada. Acredito também que é necessário observar e discutir a forma como os discursos sobre a aprendizagem do português como língua adicional para imigrantes se constituem no ambiente escolar. Além disso, penso que os dados aqui analisados poderão fornecer subsídios para a discussão de políticas linguísticas no que tange ao ensino de línguas adicionais em ambientes multilíngues e transculturais.

Referentemente à política linguística adotada pelos documentos municipais e escolares, há que se entendê-la pela compreensão da língua em três formas distintas: língua como problema, língua como direito e língua como recurso (RUIZ, 1994). O autor aponta que a concepção de língua como problema implica o ensino da língua majoritária, porque seu desconhecimento determina uma limitação linguística e esta acaba por se transformar num problema social. A concepção de língua como direito traz a ideia de que a falta do conhecimento linguístico limita o acesso a instituições públicas. Dessa forma, o ensino da língua majoritária possibilitaria sucesso no novo país, no caso de imigrantes. A terceira concepção, língua como recurso, associa o bilinguismo a um valor social ao desenvolver as habilidades linguísticas das minorias e, ao mesmo tempo, pretende preservar as línguas maternas dessas minorias. Apesar disso, todas as concepções trazem implicitamente a noção de necessidade do acesso à língua majoritária para a participação social. De outra forma, as três concepções – mesmo a última, que valoriza a língua materna e busca preservá-la – trazem implícita a necessidade de as minorias terem o objetivo de alcançar o modelo dominante. Assim sendo, ao se adotar determinada concepção de língua, já se espera determinada prática metodológica para o alcance dos objetivos predeterminados e imbricados nessas concepções de língua.

Reconhecendo essas questões envolvidas no ensino de línguas adicionais, entendo, alinhada com Altenhofen (2013), que a política linguística para as minorias linguísticas deve englobar a maioria, no sentido de desenvolver o interesse pelo bilinguismo e, assim, alcançar um respeito e incentivo à diversidade linguística.

Diante do exposto até agora sobre educação bilíngue e translinguagem no contexto de práticas discursivas em cenários multilíngues, esta pesquisa objetiva conhecer as práticas linguísticas de

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imigrantes haitianos no contexto escolar em uma escola pública em Blumenau/SC, de modo que venha a contribuir com a comunidade envolvida nessas práticas linguísticas, tanto no ensino de português como língua adicional para imigrantes, quanto na aprendizagem de uma língua adicional para imigrantes.

Esta pesquisa será norteada pela pergunta: “Como os imigrantes haitianos lidam com as práticas linguísticas durante suas experiências sociais no contexto da Escola Básica Municipal Joseph Prinz14 em Blumenau – SC?”.

Com base nesta pergunta, busco entender e explorar as seguintes perguntas específicas:

1.Como os imigrantes haitianos bilíngues lidam com a aprendizagem de uma nova língua?

2.Como os imigrantes haitianos se constituem e são constituídos como estabelecidos ou outsiders por meio das interações discursivas?

3.Como a escola e seus integrantes lidam com o bilinguismo desses haitianos no contexto escolar da Escola Básica Municipal Joseph Prinz em Blumenau/SC?

4.As políticas linguísticas e educacionais locais reafirmam políticas linguísticas e educacionais oficiais?

Desse modo, ao tentar responder as perguntas acima, trato de problematizar e discutir as práticas linguísticas de imigrantes haitianos em sala de aula e fazer uma relação com as políticas de educação vigentes. Assim sendo, este trabalho contribui com trabalhos direcionados para essa mesma perspectiva de práticas linguísticas em contexto transculturais e com trabalhos dos demais pesquisadores do grupo de pesquisa do CNPq “Educação linguística e Pós-colonialidade”

A fim de contextualizar a vinda desses haitianos para solo brasileiro, trago, no capítulo 1, algumas razões pela escolha do Brasil por esses haitianos. No que diz respeito à abordagem inter/transdisciplinar (SIGNORINI, 1998) em que a Linguística Aplicada se constitui, apresento uma seção que traz considerações da Linguística Aplicada pertinentes aos objetivos dessa pesquisa. Trago, ainda, considerações da área de Políticas Linguísticas referentes ao ensino de língua estrangeira nas escolas brasileiras (FRITZEN, 2011; PREUSS; ÁLVARES, 2014; SOUSA, 2015), discussões sobre a

14

Joseph Prinz é pseudônimo do nome verdadeiro da escola e será utilizado a fim de garantir sigilo aos participantes e à escola. A escolha desse pseudônimo respeita o traço germânico do nome original.

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educação bilíngue (MAHER, 2007a; MAHER, 2007b; GARCÍA, 2009, 2011, 2012; GARCÍA; WEI, 2014). Essas discussões teóricas nortearão este trabalho. No capítulo 2, discorro sobre os princípios metodológicos de pesquisas de cunho etnográfico e os desafios encontrados durante o percurso investigativo. Discuto a respeito da pesquisa de campo como contribuinte de políticas educacionais mais adequadas e reais para determinadas populações. Ao final, descrevo minha entrada em campo e as técnicas utilizadas para a geração de dados, discorro sobre o contexto da pesquisa e apresento os participantes. Com o intuito de identificar e descrever as práticas de translinguagem, no capítulo 3, analiso os dados gerados, com base na teoria apresentada na revisão de literatura, para embasar os dados gerados da observação participante na Escola Básica Municipal Joseph Prinz15. No capítulo 4, apresento minhas considerações finais, apontando para implicações e futuros direcionamentos para pesquisas.

15

Joseph Prinz é pseudônimo do nome verdadeiro da escola e será utilizado a fim de garantir sigilo aos participantes e à escola. A escolha desse pseudônimo respeita o traço germânico do nome original.

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2 EDUCAÇÃO BILÍNGUE E SUAS INTERFACES

Neste primeiro capítulo, articulo os pressupostos teóricos que subsidiam a construção e as análises do objeto de estudo desta pesquisa de mestrado. Em sintonia com o objetivo mais geral de conhecer as práticas de linguagem dos imigrantes haitianos no contexto escolar, inicio o capítulo relatando um pouco sobre a história do Haiti. Trago ainda algumas das motivações dos haitianos ao escolherem o Brasil como destino de migração. Diferencio o status em ser considerado um imigrante ou um refugiado e como os haitianos vêm sendo associados à categoria de imigrante.

Na sequência do capítulo, apresento as práticas linguísticas no cenário contemporâneo pelo viés da Linguística Aplicada. Na seção 2.3, discuto os termos bilinguismo e práticas de translinguagem na educação bilíngue pelo viés do ensino colaborativo. Em seguida, apresento a discussão, ressaltando a importância de as políticas linguísticas acompanharem as mudanças na educação bilíngue em razão do fenômeno da superdiversidade. Concluo o capítulo apontando os conceitos de identidade e poder utilizados e defendidos nesta pesquisa e como estes se relacionam com as práticas linguísticas.

2.1 RELAÇÃO BRASIL-HAITI

Inicio o presente capítulo fazendo uma breve introdução da história do Haiti, contemplando aspectos do período colonial até sua independência da França. Em seguida, apresento uma contextualização da relação entre o Brasil e o Haiti, intensificada pela MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti), na qual as tropas do exército brasileiro permaneceram no Haiti até setembro de 2017 para ajudar a controlar a violência naquele país.

Nos primeiros anos após a chegada de Cristóvão Colombo ao Haiti16, os índios taíno, que habitavam a ilha, foram escravizados para a extração de ouro. Após a extração do ouro, iniciou-se, no século XVI, o cultivo de cana-de-açúcar com escravos trazidos da África (MATIJASCIC, 2010). Matijascic mostra que foi devido ao interesse pelo açúcar que a França, na disputa com a Inglaterra pelas terras na

16

Inicialmente o Haiti foi chamado de “La Española”. Vale ressaltar que menos da metade da ilha corresponde ao que hoje se chama Haiti sendo que o restante corresponde ao que hoje se chama República Dominicana.

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América, optou por manter para si as ilhas do Caribe, dentre elas La Española. Dessa forma, a França deixou o Canadá para a Inglaterra.

Nesse período colonial, Saint-Domingue – que hoje é chamado de Haiti – tinha sua sociedade dividida em cinco grupos: os “grandes brancos”, que eram os proprietários e comerciantes que estavam no topo; logo abaixo, os funcionários da monarquia francesa; no terceiro grupo, os “brancos pobres”, homens que possuíam baixa remuneração; no quarto grupo, os mulatos (que eram livres, mas não desfrutavam de todos os direitos dos brancos); e, por último, os negros (não livres) (MATIJASCIC, 2010).

Segundo Fanon (2008), as más condições de vida dos negros e mulatos associada ao complexo de inferioridade em relação aos colonizadores brancos provocou-lhes insatisfação. Para o autor, essa inferioridade se dá no aspecto cultural e linguístico, como no caso do surgimento do crioulo, que se dá a partir da exposição à língua dos colonizadores. Dessa forma, quanto mais o negro assimila os valores culturais da nação civilizadora, mais ele se torna “branco”, afastando-se de sua negritude. (FANON, 2008).

Buscando romper com os ideais brancos, o haitiano Boukman, em 1791, conduziu uma cerimônia do rito sevitè17 que contribuiu com a eclosão da luta contra a metrópole francesa, que pretendia também combater os senhores brancos (FIGUEIREDO, 2006). Aproximadamente 300 a 400 negros participaram dessa insurgência de liderança mulata, porém a mesma foi controlada pela polícia colonial (MATIJASCIC, 2010). Apesar da ação da polícia colonial, Toussaint18 assumiu a liderança. Toussaint tinha como proposta a substituição da mão de obra escrava pela remunerada e, por essa razão, conseguiu o apoio dos negros. Entretanto, Napoleão em 1801 ordenou que suas tropas capturassem Toussaint e o levassem para a França, onde ele ficou preso. Anos depois, Toussaint morreu na prisão e Dessalines assumiu a liderança da insurgência. (MATIJASCIC, 2010).

17

O termo sevitè refere-se à religião dos haitianos. No entanto, esta prática foi disseminada pelos norte-americanos como a prática de “vodu” com a intenção de desumanizar seus praticantes.

18

Toussaint Louverture foi um dos líderes revolucionários para o alcance da independência do Haiti (CAISSE, 2012). Toussaint foi governador geral e, um ano antes de sua morte, criou o 1º sistema educacional, que tornou o francês a língua oficial do então chamado Saint Domingue, que anos depois foi nomeado Haiti (CHARLES, 2015). O líder acabou sendo sequestrado pelas tropas francesas e morreu em uma prisão francesa em janeiro de 1802 (CAISSE, 2012).

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Com a eclosão da Revolução Francesa e com o enfraquecimento das tropas francesas, os haitianos alcançaram vitória contra as tropas de Napoleão e, em 1804, o Haiti conseguiu sua independência. Após a independência do Haiti, os brancos da América escravista tinham medo de que seus escravos se revoltassem contra eles, como no Haiti (FIGUEIREDO, 2006). O Haiti foi o primeiro país latino-americano e a primeira República negra a conquistar independência, porém essa conquista veio acompanhada também de pobreza (MATHIAS; PEPE, 2006). Além disso, tanto a antiga metrópole quanto os Estados Unidos não reconheceram essa independência prontamente (FIGUEIREDO, 2006).

Há que se dizer que, mesmo após a independência declarada, o Haiti preservou o modelo francês de economia (FIGUEIREDO, 2006) e da estrutura social. Ou seja, o poder permaneceu centralizado na minoria mulata – aqueles que possuíam terras e os próprios líderes da insurgência – e o trabalho nas lavouras continuou sendo obrigação dos escravos negros (MATIJASCIC, 2010). Isso frustrou muito os ex-escravos que lutaram ao lado dos mulatos pela emancipação do país e acreditaram que este seria o primeiro passo para se libertarem da condição na qual se encontravam durante o período colonial. Como não houve um consenso nos interesses entre mulatos e negros, iniciou-se um período de disputas internas pelo poder do país (MATIJASCIC, 2010).

Essas disputas internas pelo poder fizeram com que o Haiti ficasse vulnerável a interesses externos. Aqueles que assumiam o poder no Haiti solicitaram diversas vezes intervenção de outros países como França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, a fim de combater as revoltas populares (MATIJASCIC, 2010).

Os Estados Unidos, com interesse em possuir mais terras, intervém militarmente no Haiti de 1915 até 1934. Nesse período de intervenção dos Estados Unidos, a elite mulata foi escolhida para exercer funções policiais, a fim de controlar as rebeliões internas. Dessa forma, o Haiti deixou de ser dependente economicamente da França para ser dependente dos Estados Unidos, principalmente para melhorar a infraestrutura do país por meio de construção de novas estradas, pontes, serviços de saneamento básico, hospitais e escolas (MATIJASCIC, 2010). Cabe ressaltar que o Haiti continuou dependente dos Estados Unidos até a década de 1970, mesmo após a intervenção o término da intervenção militar desse país.

Após a saída dos Estados Unidos, os haitianos mulatos, que exerciam as funções policiais, não alcançaram o objetivo de controlar as rebeliões. Em 1956, François Duvalier assumiu a presidência do Haiti,

(36)

com a meta de minimizar as revoltas populares. Seis anos depois, Duvalier instalou um regime autoritário de governo, no qual proibiu oposição política, e garantiu que seu filho, Jean-Claude Duvalier, fosse o sucessor de seu cargo em 1971. Em razão de uma política muito centralizada em seu poder, o governo de Jean-Claude acabou em 1986 (CAISSE, 2012). Em razão da violência pela troca de poder, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) designou, em 30 de abril de 2004, a MINUSTAH (FELIU; MIRANDA, 2011), da qual o Brasil participou com papel de liderança.

A participação do Brasil em missões de paz, ainda que em missões muito diferentes em termos de políticas de cooperação internacional como esta realizada no Haiti, já data do mandato de 1959-1960 de Juscelino Kubitschek. Naquela época, o então Presidente, colocou o Brasil no cenário internacional por meio da Operação Pan-Americana19. Seus sucessores, Jânio Quadros (janeiro-agosto de 1961) e João Goulart (1961-1964) seguiram essa linha de envolvimento em questões da agenda internacional (MATHIAS; PEPE, 2006). Mathias e Pepe mostram ainda que, nos últimos vinte anos, o Brasil tem atuado em vários países da Europa, África, Ásia e América Latina. É sobre a atuação do Brasil na missão de paz da ONU no Haiti, a MINUSTAH, que direciono meu olhar daqui para frente.

Inicialmente, o Brasil negou-se a participar da Força Multinacional Interina (MIF) no Haiti, porque entendia que ela representava uma operação de imposição de paz20. Entretanto, quando a França e a ONU ofereceram a liderança na MINUSTAH, o Brasil aceitou prontamente (FELIU; MIRANDA, 2011).

De acordo com Pacheco e Migon (2013, p. 133), as missões de paz, que também contemplam as missões de manutenção de paz, possuem como objetivos:

19

A operação Pan-Americana solicitava uma “revisão das relações interamericanas, o que fez a partir da percepção de crescimento do sentimento anti-norte-americano nos países da América Latina e de ampla insatisfação com as linhas de cooperação para o desenvolvimento tocadas pelos Estados Unidos” (LESSA, 2008, p.5).

20

O Brasil entendia que a MIF pertencia às ações vinculadas ao

peace-enforcement. Nessas ações era permitido o uso de violência se assim fosse

necessário (FELIU; MIRANDA, 2011). Pacheco e Migon (2013) mostram que além do peace enforcement há outras quatro formas de atuações possíveis:

preventive diplomacy (diplomacia preventiva); peacemaking (promoção da

paz); peacekeeping (operação de manutenção da paz) e peace-building (operação de construção da paz no pós-conflito).

(37)

apoiar a promoção da paz e as negociações políticas; prover um ambiente seguro; observação e monitoramento; interposição; desdobramento preventivo; desarmamento; desmobilização e reintegração; desminagem; imposição de sanções; treinamento e reforma no setor de segurança; restabelecimento e manutenção da lei e da ordem; monitoramento dos direitos humanos; apoio às atividades humanitárias; e proteção de civis (PACHECO; MIGON, 2013, p. 133).

Mathias e Pepe (2006) e também Feliu e Miranda (2011) apontam que os interesses do Brasil na MINUSTAH eram a conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança da Nações Unidas (CSNU) e a uma atualização das forças militares brasileiras por meio de trocas de experiências com as forças armadas de outros países. Apesar desses interesses apresentados, a votação dos parlamentares para a aceitação do envio de tropas brasileiras ao Haiti provocou muito debate e divergências (FELIU; MIRANDA, 2011).

Do total de votos, 266 parlamentares votaram a favor, 118 contra, e um deles absteve-se (FELIU; MIRANDA, 2011). Os parlamentares contrários entendiam que o envio das tropas brasileiras para o Haiti serviria para apoiar um golpe de Estado que já havia sido apoiado pelos Estados Unidos e, por essa razão, acreditavam que seria mais coerente o envio de ajuda humanitária ao Haiti ao invés de tropas (FELIU; MIRANDA, 2011). Os autores mostram que outros parlamentares entendiam que seria incoerente enviar tropas a outro país diante da violência nacional e outros lamentavam a permuta do envio de tropas por um assento no Conselho de Segurança da ONU. Os favoráveis, por sua vez, entendiam que a participação na MINUSTAH serviria para manter a tradição brasileira na participação de missões de paz e para a construção da liderança brasileira (FELIU; MIRANDA, 2011). O resultado da votação mostra a realidade do presidencialismo de coalizão, tanto no Brasil quanto na Argentina e no Chile, pois se observou que o presidente é capaz de garantir seus interesses mesmo com as divergências multipartidárias (FELIU; MIRANDA, 2011).

Apesar do interesse aparente do Brasil em conseguir um assento no CSNU, os países mais fortes desse conselho ainda não abriram mão de parte do seu poder. Dessa forma, ao lado do Brasil, estão a Alemanha, Japão e Índia, que também buscam essa vaga (MATHIAS; PEPE, 2006).

(38)

A MINUSTAH foi criada e prevista para durar seis meses, porém foi prorrogada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas devido ao alto índice de violência quando as eleições se aproximavam. Há, entretanto, denúncias de que esse aumento da permanência da missão se deu devido a um desvio na ação das forças de paz, ou seja, de uma operação de manutenção da paz (peace keeping) para forças de imposição da paz (peace enforcement) (MATHIAS; PEPE, 2006).

Se de fato houve a atuação por meio de imposição de paz, é necessário refletir sobre a visão que esses haitianos moldaram desses estrangeiros integrantes das tropas dos exércitos, principalmente dos brasileiros, porque pode influenciar na forma como os imigrantes haitianos se relacionam e desenvolvem suas práticas de linguagem com os brasileiros no Brasil. De um lado, o Haiti é o primeiro país latino-americano a conseguir sua independência; de outro, o país que continua a ser controlado por outros países, entre os quais o Brasil, por meio da MINUSTAH.

Alessi (2013) relata que, durante a missão, em 2010, o Haiti foi atingido por um terremoto de 5,9 graus na escala Richter, que provocou muitos estragos. A atuação da MINUSTAH foi intensificada após o terremoto, o que contribuiu para o estreitamento das relações entre os brasileiros e os haitianos (ALESSI, 2013). A autora revela ainda que os haitianos aproximaram-se dos oficiais do exército brasileiro na MINUSTAH, e alguns deles aprenderam o português (ALESSI, 2013).

O foco da pesquisa de Alessi (2013) não era a língua. Mas o fato de alguns haitianos terem aprendido o português, como aponta a autora, também gera algumas possibilidades de análise. Primeiramente, é possível analisar do ponto de vista do vulnerável. Quando se está no meio de violência e há tropas estrangeiras “impondo a paz”, conforme Mathias e Pepe (2006) pontuam, pode ser útil aprender a língua do outro para poder negociar ou manter práticas linguísticas com o estrangeiro. É possível pensar ainda que o haitiano, reconhecendo esse cenário de violência opte por buscar melhores condições de qualidade de vida e, se esse haitiano aprender a língua dos soldados das tropas dos exércitos estrangeiros, isso pode facilitar sua adaptação à migração para alguns dos países que utilizem essa língua. De uma visão mais positiva, o haitiano pode considerar necessária essa intervenção de tropas estrangeiras para sentir-se seguro em seu país e, estabelecendo uma conexão de empatia, interessa-se pela língua do outro, pensando em acolhê-lo melhor.

Há uma visão mais positiva de que o aumento no índice da migração dos haitianos para o território brasileiro se dá com vistas a um

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