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Frestas da cidade: um percurso

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Academic year: 2021

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ARQUITETURA? URBANISMO? Antes de adentrar a natureza das inquietações que me moveram através desse percurso de TCC é interessante apontar as percepções, construções e ideias emergentes durante o curso de arquitetura e urbanismo, bem como o significado e a pertinência desse ofício para mim e para os outros. Acredito o curso ser apenas a iniciação de um movimento, uma faísca que pode ser acesa e despertar vontades, expressões e construções dentro e fora de nós. E não que isso seja algo trivial e ordinário, muito pelo contrário, mas o curso na verdade é bastante moldado pelas nossas próprias buscas e intenções, e não é um meio neutro e passivo pelo qual todos nós estudantes passamos e saímos com as mesmas “bagagens”. A UFSC enquanto esse espaço de vivência e rotina do curso se mostrou como um intenso meio de trocas, experiências e aprendizados muito além dos conhecimentos de cátedra passados de acordo com as ementas programáticas. E se arquitetura trata de espaço, qual o maior trunfo para o aprendizado

senão a oportunidade de ele ser potencializado pelo espaço em que acontece? O curso então se desenvolveu completamente atrelado ao espaço físico, às suas virtudes, contradições e falhas, inserindo-nos enquanto alunos diretamente à discussão, proposição e construção do espaço. Acredito essa consonância de variáveis ter sido uma condição fundamental para a riqueza do processo pelo qual passei, pela profundidade e variedade de experiências que me guiaram através do aprendizado das dimensões da arquitetura e do urbanismo.

Talvez o mais estimulante disso tudo tenha sido a oportunidade de conviver com mestres bastante provocadores e assertivos que, sem hesitar, puxaram constantemente as fronteiras daquilo que se acredita ser o fazer e pensar da arquitetura enquanto disciplina humanitária e intrínseca à coletividade humana. Todas as chances de trocas e discussões foram de extrema importância para o constante desafio de se perguntar “de fato, o que é e para o que serve a arquitetura e o urbanismo?”. Talvez

nunca cheguemos a respostas categóricas e definitivas sobre isso, e talvez o grande ponto nem seja encontrá-las, mas possivelmente deixar viva a chama que as busca iluminar.

Felizmente muitos processos ao longo do curso foram progressivamente me provocando a diluir os limites que separam as esferas de atuação da arquitetura, e mais do que menosprezar os ritos e métodos tradicionais de concepção e representação, me estimular a talvez ir além destes e enxergá-los de fato enquanto meros meios. Em uma disciplina de estrondosa complexidade como a arquitetura é natural que nos fixemos naquilo que nos traz um norte e um prumo em meio ao caos que é o espaço urbano, os fenômenos naturais, as pessoas e tudo aquilo que talvez imaginemos poder “controlar” enquanto arquitetos. É muito gratificante perceber que não estamos sozinhos em nossos anseios e dúvidas sobre a abrangência e pertinência do nosso papel enquanto futuros profissionais, já que este talvez seja outro grande campo de discussão dentro da profissão ao longo dos

tempos.

É difícil e frustrante deparar-se com a real complexidade do mundo que nos compreende e o quanto nossos métodos historicamente ensinados para controlar, planificar e simplificar esse mundo tornam-se por vezes abstrações e representações de si mesmos. Plantas, cortes e fachadas que parecem somente referenciar a eles próprios, renders que buscam mimetizar e simular as nuances da realidade, e obras que são transcrições diretas do computador à realidade - como se a tela ou o papel fossem o visor através do qual compreendemos o mundo real. Dessas reflexões surge uma busca por entender quais outras possibilidades temos de interface com a realidade, e quais meios podem trazer abordagens mais sensíveis e honestas para a proposição de uma arquitetura que não só toma partido das concepções mentais que temos sobre ela, mas almeja uma profunda relação com o lugar e as variáveis onde se insere. O TCC talvez seja então esse meio através do qual me proponho a dar

vazão a esses processos e inquietações sobre a natureza contemporânea das cidades e arquiteturas que nos compreendem enquanto humanos. Que tipos de relações em potencial ainda podemos tecer entre nós e o nosso meio? Qual a verdadeira potência por trás das materialidades que concebemos e executamos enquanto arquitetos? No fim são reflexões, devaneios e proposições que buscam expandir as minhas próprias concepções sobre a arquitetura e o espaço urbano e estimular que outras pessoas também adentrem esse processo enquanto iguais protagonistas desta “rede” de interações e trocas.

IMPULSO.

Finalmente se apresenta o momento cronológico de encerramento do curso de arquitetura e urbanismo, e nele temos a chance de refletir sobre tudo o que durante esse tempo pensamos que ele poderia ser, ou como estaríamos, quais seriam os nossos motes, visões e sonhos. E é estranho então dar-se conta de que esse momento é um simples ponto no qual chegamos, apesar das nossas expectativas, relutâncias e elucubrações, e que ter vivido tudo o que vivemos, todas as nossas experiências, práticas, criações, erros e acertos não são necessariamente capazes de darem ignição a esse processo.

Tais vivências no máximo podem nos trazer ferramentas, abordagens e procedimentos familiares a nós, mas o processo é uma coisa inteiramente nova, que se manifesta naquele exato tempo cronológico e que deve ser criado através de uma nova energia, da verdade que se comunica através daquele dado espaço-tempo irreprodutível e ainda não vivenciado.

Houve um impulso inicial muito forte em apreender uma ideia de TCC, um tema ou mote que assegurasse uma linha de pesquisa, experimentação e proposição, e aí me atinei a vasculhar entre as coisas e fenômenos que fizeram parte intensa da minha trajetória pelo curso. Escritos, croquis, desenhos, maquetes, e outras manifestações foram todos postos à mesa, mesmo que inicialmente de uma forma ansiosa, como se eu estivesse tentando retirar dali algo que não se deixava mostrar. Fiquei bastante preso à materialidade ou representação que essas coisas e processos tinham, tanto que os relacionei a um álbum de músicas, – uma coletânea das minhas melhores expressões e aptidões – e assim não me puderam incitar nada de novo e contemporâneo em relação àquilo que acontecia no pleno momento. Com o fenômeno “TCC” ainda pairando no ar busquei cada vez mais reservar espaços e momentos específicos para ele, momentos em que sentava para “pensar” o que de fato seria esse trabalho. Ao jogar perguntas e mais perguntas à minha mesa de trabalho nada além de coisas estáticas e enquadradas em

um tempo e espaço surgiam, mas curiosamente nos momentos em que deixei de perseguir e implorar por respostas vindas dessa mesa é que coisas interessantes começaram aparecer que estavam além do meu campo de visão e interesse. Justamente nas brechas de uma suposta “rotina de TCC” é que algo bastante forte e pertinente começava a surgir, e de nada tinha relação com essa primeira busca programada pelo trabalho. Ao caminhar, escrever, fotografar, desenhar e registrar as coisas do cotidiano inerentes à cidade de Florianópolis – lugar onde comecei e agora concluo o curso – e à minha experiência enquanto transeunte por esses espaços, memórias e expressões, é que percebi que talvez o TCC pudesse estar ali, nos movimentos do percurso. Algo bastante forte me instigava cada vez mais a registrar esse percurso, não enquanto algo cronológico, mas a partir de sinais, brechas e lampejos. É como se algo que se escondesse por entre aquela cidade tão ordinária que vinha passando os meus dias, esmaecida pelo tom frenético da rotina e da programação diária, de repente estivesse querendo vir à tona. Em um movimento cada vez mais atento e estimulado, o percorrer desse espaço corriqueiro tomou uma dimensão muito parecida com o andar

permitimos perceber. Assim, em lampejos se revela uma cidade que nos transporta a um estado para além daquilo que tomamos como dado e imutável, uma que nos oferece possibilidades e oportunidades de uma realidade outra escondida por entre-muros, entre-dois, e entranhada na opacidade e rigidez daquilo que tanto tomamos como constituinte exclusivo dessa “cidade”.

Na condição de viajantes por esses espaços o somatório das experiências vivenciadas e reveladas nos tantos percursos de nossa existência não configura somente uma linha cronológica e sequencial, como se cada experiência somasse à outra, mas sim uma espécie de movimento helicoidal. Ao mesmo tempo em que existe uma progressão temporal e linear em alguma direção também existe um movimento cíclico que relaciona fenômenos de natureza parecida ao longo dessa linha.

Espacialidades aparentemente antagônicas ou desconexas se tomadas a

partir de sua configuração material podem trazer qualidades bastante próximas quando vistas a partir das experiências e energias que podem suscitar em cada um. O valor que determinado lugar guarda nesse percurso então está intimamente ligado

de uma criança que descobre a cada beco e viela um universo de possibilidades latentes. Nas mais simples passagens e meandros, me encantava a possibilidade de algo se manifestar ali; novas relações, espacialidades e materialidades desenquadradas do movimento certeiro e calculado da rotina, mas que sempre estiveram ali esperando para serem encontradas.

Essa rara condição de viajante, uma que não encontra entraves na suposta “grade” horária regente dos nossos dias, ou que pode enxergar nas frestas desta as manifestações da realidade real pulsante, que talvez tenha se tornado o primeiro estalo disso tudo. É imperativo em nossa intensa rotina esquecermos as pequenas coisas que fogem à nossa programação e ao nosso entendimento. Elas não são apropriáveis pelo nosso senso de utilidade, de razão. São “perigosas”, não necessariamente porque nos oferecem real perigo, mas porque podem subverter tudo aquilo que acreditamos e passamos os dias buscando reforçar em nossas vidas. Tais “coisas” ou experiências não são meros confirmadores de nossas crenças e convicções, ou algo que esperamos encontrar pela cidade, mas aquilo que se deixa expressar quando também nos

às experiências que cada viajante teve ali, assim como a qualidade dessas experiências, aprendizados e reflexões que trouxeram consigo.

A cidade assim se apresenta enquanto um campo infinito de subjetividades e indeterminações a partir do momento em que não existe um só “juiz” capaz de congregar todas as vivências e experiências de todos os habitantes e transeuntes que nela tecem seus percursos diários. Não existem, se pensarmos em relação à concepção de cada indivíduo, dados totalizantes e implacáveis, nem verdades absolutas, mas sim valores em comum a esses indivíduos. Passagens e percursos que em muito se assemelham e às vezes parecem ser universais a todos, não se vistos apenas através de sua materialidade, mas quando compreendidos enquanto provocadores de sentimentos e vivências de mesma natureza.

OÁSIS.

A cidade e os espaços construídos enquanto receptáculos das nossas experiências, valores e interações tornam-se lugares prenhes de novos e antigos significados que vão se sobrepondo nesse espaço. Um simples ponto, um banco, uma marquise e uma alameda podem suscitar infinitas diferentes construções no imaginário das diferentes pessoas que por ali desenvolvem o seu dia-a-dia. O que são arquiteturas e estruturas básicas e triviais podem conter tantos rastros, rasuras e impressões (materiais ou não) que é bastante relativo atribuir valores categóricos a elas, ou julgá-las a partir de sua constituição material. Nesses multi-percursos que se desenvolvem pela cidade incontáveis reverberações podem ocorrer ao se relacionarem os espaços e as vivências que cada um carrega em si, e os significados que se formam de uma podem ser infinitos e mutáveis. Assim, não somente alteram o presente momento em relação às experiências contemporâneas e correntes, como podem ressignificar o passado e o futuro, trazendo-os de fato ao agora enquanto um apanhado de qualidades recorrentes.

É possível tecer várias conexões entre

diferentes lugares, talvez distintos em sua materialidade mas muito próximos naquilo que incitam em nós, o que nos estimulam a fazer, quais lembranças nos trazem e como nos acolhem. Muitos desses lugares nos provocam, desafiam a criar junto deles, a talvez completá-los com nossa imaginação os seus “pontos em aberto”, e talvez por isso nos fascinem. Não buscam trazer resoluções e nem pontos de chegada, são “pontes” por excelência, pois as coisas podem acontecer através deles, quase que canalizadas por entre um portal aberto a novas interpretações e redefinições. Na cidade poucos e raros talvez sejam esses momentos de abertura onde podemos adentrar com as nossas concepções e ações e torná-los “nossos”, mesmo que por instantes. A pressão por definições, limites e fronteiras é cada vez maior conforme cresce a cidade e nela também crescem as suas contradições, diferenças e tensões. Nesse panorama aquilo que tangencia essa lógica são, em maior parte, aqueles espaços destituídos de uma clara noção de pertencimento a um ou outro ator, ou degenerados pelos próprios processos da cidade, tornados resíduo do próprio meio que os engloba ou sufoca. Instáveis demais para serem “algo” de fato, e abertos demais para não o serem, esses

espaços trazem consigo uma possibilidade latente de “vir-a-ser”. Uma dimensão marginal e desviante onde o intento humano ainda não conseguiu estancar seus pontos em aberto, ou sua fragmentação é tamanha que deturpa atividades programadas e previstas para ali. A possibilidade, e não imperatividade, de ser é o que traduz a condição de “por-fazer” dessas espacialidades, uma plataforma a ser completada por cada habitante em ressonância com suas condições, anseios e intenções.

Tais lugares podem ser trazidos à esfera do “vazio”, no sentido de contrapor o “cheio” e totalizante, mas em sua real constituição (se tomados para além de sua materialidade) talvez sejam a linha tênue entre o cheio e o vazio. Esvaziados o bastante de funções categóricas e pré-definidas para serem considerados “cheios”, mas carregados demais de energias e fluxos em potencial para serem encarados como “vazios”, no sentido de destituídos de possíveis apropriações. E isso traz uma grande dicotomia a esses lugares, pois eles vivem literalmente nas frestas e limites entre duas situações completamente distintas e antagônicas, entre o tudo e o nada. Sobrevivem, ou não, de um equilíbrio instável sujeito às mais

variadas ações e arbitrariedades da cidade que pulsa rítmica e agressivamente ao seu redor, e em um lapso podem esvair todo o seu potencial enquanto esses espaços de possibilidade. Por isso às vezes podem até ser vistos enquanto miragens, fugas de uma normatividade hegemônica no panorama da cidade que nos aparecem e logo em seguida são preenchidos, deturpados e suprimidos. A sua rara presença é um convite aberto ao desfrute de uma realidade completamente aberta a outras interações e contribuições, relações genuínas e espontâneas que se desenvolvem independentemente do valor de troca desse espaço. Enquanto possíveis articuladores de universos distintos que convivem paralelamente em um aparente mesmo espaço, esses lugares tomam quase que a característica de um portal de trocas e cruzamentos entre diferentes atores que nunca teriam a chance de esbarrar um com o outro. A consciência do outro junto a mim, de seus modos de vida, atitudes e valores é fundamental ao estabelecimento de plataformas de troca e comunicação através do espaço, o que traz a dimensão pública e compartilhada deste como seu maior trunfo.

MATÉRIA BRUTA, RÍGIDA.

A capacidade de permitir “contaminações” entre as pessoas, agentes e espacialidades talvez seja uma das mais nobres características de uma cidade por excelência. Mas quando esta mesma cidade passa a engendrar-se em seus crescentes muros e labirintos, mais raras se tornam essas oportunidades de alteridade, de enxergar o outro enquanto contemporâneo e conterrâneo meu. O imperativo é a separação dos territórios intra e extra-alguma coisa, a demarcação detalhada e implacável daquilo que é meu e teu, e a constante vigília sobre os desvios e violações desses limites por nós. A “exclusividade” começa a aparecer como um dos principais conceitos desses tempos, tão vulgar e corriqueira que seu cunho negativo já se diluiu por entre as muitas

virtudes vendidas pelos empreendimentos que a empregam em

seus outdoors.

Muitos dos espaços antes próprios à cidade agora se concentram em cada uma dessas novas arquiteturas autossuficientes, independentes e exclusivas. Quanto mais surgem e se afirmam no panorama urbano mais parecem convencer aqueles que provam

dos seus encantos de que de fato essa é a solução. Afastar para aproximar, fechar para abrir, fingir para ser. Nesses novos paraísos artificiais a realidade pode ser aumentada, manipulada e imitada a bel-prazer a fim de trazer à tona as qualidades perdidas daquela que algum dia foi uma cidade. E ainda tais qualidades são passíveis de serem exacerbadas para atingirem mais alcance e apelo, já que de uma cidade se fazem mil paraísos artificiais, cada um com sua “exclusividade” própria.

Uma disputa intrínseca a esses fragmentos de cidade surge enquanto forma de concentrar mais fluxos e recursos em uma parte em detrimento da outra, quase como em um organismo que compete consigo mesmo para sobreviver ao jogo predatório de se auto explorar. Na mesma medida em que uma parte se alimenta e é dependente da outra ela almeja a sua destruição e superação, um paradoxo que se torna cada vez mais forte e caracteriza o principal combustível à perpetuação desse processo. A competição e a expectativa então se estabelecem enquanto os principais atrativos aos potenciais “clientes” dessas arquiteturas. Uma relação inteiramente construída através do distanciamento entre “público” e “produto”, onde se

estabelece um terreno muito fértil de promessas, sonhos e troca de valores às vezes antes mesmo de existir qualquer traço material do espaço referenciado. Assim, a virtualidade dessas relações toma suma importância a partir do momento em que pode lidar diretamente com imagens, signos e arquétipos daquilo que se propõe a vender. Representações de valores que apelam instantaneamente às pessoas e as persuadem quase que na mesma dinâmica de um anúncio que busca fisgar o leitor em meio à correnteza veloz de informações que o guia. Um estado constante de alerta torna tudo visível e invisível ao mesmo tempo e, como tudo deseja saltar aos olhos, nada aparece em segundo plano, e assim a relação fundo-figura deixa de existir. Trabalho, lazer, construção e destruição compõem um sistema tão sincrônico e funcional que o bater dos ponteiros do relógio alinha perfeitamente os golpes de punhos e ferramentas a desmontar e remontar a cidade ao movimento rotineiro de cada cidadão. Praticamente não existem cruzamentos entre essas duas realidades paralelas, cada qual alimentando a outra sem tê-la em seu campo de visão e interação, mesmo que profundamente sincronizadas e interdependentes.

Em cada intervalo entre destruição e construção da cidade rotineira surgem as suas vísceras e interstícios enquanto subprodutos da produção do espaço urbano, um fenômeno intrínseco à dinâmica da paisagem fugaz e cambiante da contemporaneidade. Como feridas escancaradas de um processo praticamente extrativista, essas pregas evidenciam um lado ainda bastante cru e primitivo da nossa relação com a construção do espaço. A distância entre o resíduo drenado do solo desnudo e o acabamento final do edifício futuro é tão ínfima e instável que os mesmos podem acabar juntos num piscar de olhos, ambos sujeitos às novas regras e tendências que regem a ocupação do solo. Destruição e construção parecem se tornar sinônimos ou forças

co-dependentes, engrenagens complementares de um sistema

complexo e estruturante que maquina as pessoas, os espaços e a matéria prima à execução de uma realidade urgente e irremediável. As mesmas mãos que constroem, destroem; e as mesmas bocas que condenam, absolvem.

Fazemos parte disso. Estamos atrelados a essas dinâmicas e elas a nós, queiramos ou não. Existem meios de contraponto e subversão? Quanto dessa cidade é de fato construída para nós e por nós?

DESENQUADRAMENTOS

No processo de me confrontar com essas indagações e constantes construções da cidade, muitas das minhas inquietações e motivações iniciais para o trabalho foram se diluindo e dando lugar à denuncia e exposição dessas materialidades e processos enquanto desqualificadores do espaço urbano. Não havia como imaginar outras possibilidades, brechas e faíscas se não a de contrapor os preponderantes mecanismos que transformam a cidade num espaço cada vez mais fechado e opaco às manifestações que fogem à sua régua. Com uma câmera na mão e um foco em mente me atinei simultaneamente a enquadrar e expor tais construções, bem como ainda procurar pelas frestas e entranhas que desde o começo tinham me instigado a mergulhar nesse percurso.

Nessa busca obstinada por arquiteturas e materialidades que exprimissem tais qualidades, justamente as expressões desviantes e não programadas que haviam me cativado desde o início foram ignoradas e suprimidas enquanto um desvio dos meus objetivos. Curiosamente, nos exatos momentos em que busquei enquadrar essas arquiteturas e materialidades almejadas,

uma série de atores externos cruzaram o meu caminho para subverter o meu ato de fotografar e apreender aquele espaço. Esbarrões, interjeições, apertos de mão e indagações não programadas se aproximaram de fora do meu campo de visão para dentro dele em um movimento provocador de questionamentos. O mesmo universo subversivo que vinha cruzando o meu caminho ao longo do percurso parecia estar se apresentando agora enquanto essas intervenções externas a desafiarem a minha postura e me trazerem possibilidades antes não percebidas em um espaço aparentemente “apreendido”.

Tais cruzamentos não serviram de fato para “mudar” as minhas crenças ou convicções sobre a condição daqueles espaços enquanto resíduos urbanos, palco de processos agressivos de construção e alienação das pessoas perante a cidade. Mais do que isso, essas oportunidades me trouxeram desenquadramentos, a expansão de uma realidade a princípio compreendida, mas ainda muito rica em nuances e fenômenos inapreensíveis em um só olhar.

REALIDADES OUTRAS

Muito do que essas experiências fizeram reverberar em mim foram construções outras em potencial de um mesmo espaço. Para além daquilo que é tido como fato e imutável, material e rígido, fluem energias, percursos e valores que imprimem qualidades positivas até nos lugares mais opressivos e desconcertantes. A cidade enquanto espaço gerador dos mais diversos encontros e entrelaçamentos ainda traz muito da coisa humana, das possibilidades de existirem novas relações e interfaces mesmo que os processos de produção do espaço sejam completamente avessos e limitantes a estes.

A questão aqui não é conceber as “desqualidades” das constantes e agressivas construções do meio urbano enquanto algo aceitável e fisicamente imutável, mas talvez resgatar a potência na energia humana em se apropriar de espaços desde os mais desqualificados. Se dadas as menores condições podem surgir belas manifestações de afeto, solidariedade e expressão de valores positivos, penso como poderiam ser esses espaços se pensados a partir do vazio, das indefinições e possibilidades latentes e estimuladas pelo lugar, e não tanto dos programas e definições espaciais tão costumeiros a nós.

Toca-me experimentar e partilhar dessas inquietações e expressões que vêm se manifestando por meio do TCC enquanto possibilidades de dar ainda mais ignição a esse processo e perceber como elas se configuram no universo do outro, com suas crenças, convicções e enquadramentos.

Da mesma forma que o trabalho não começou cronológica e conceitualmente com o TCC propriamente dito, acredito que não irá terminar com o seu encerramento temporal no curso de arquitetura e urbanismo. As inquietações e processos desenvolvidos aqui se relacionam tão fortemente com o meu fazer que não consigo imaginá-los estáticos e findados nesse processo de um ano. Espero que muitas outras reverberações, trocas e reflexões surjam ainda desse percurso e que os fenômenos e qualidades inerentes à arquitetura continuem trazendo estímulos dos mais diversos e instigantes à discussão e proposição das vivências, espaços, construções e cidades.

GABRIEL DE MORAES LUNARDI PROF. DR. ALCIMIR JOSÉ DE PARIS Trabalho de Conclusão do Curso de Arquitetura e Urbanismo - UFSC Florianópolis,

Fevereiro de 2020

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ARQUITETURA? URBANISMO? Antes de adentrar a natureza das inquietações que me moveram através desse percurso de TCC é interessante apontar as percepções, construções e ideias emergentes durante o curso de arquitetura e urbanismo, bem como o significado e a pertinência desse ofício para mim e para os outros. Acredito o curso ser apenas a iniciação de um movimento, uma faísca que pode ser acesa e despertar vontades, expressões e construções dentro e fora de nós. E não que isso seja algo trivial e ordinário, muito pelo contrário, mas o curso na verdade é bastante moldado pelas nossas próprias buscas e intenções, e não é um meio neutro e passivo pelo qual todos nós estudantes passamos e saímos com as mesmas “bagagens”. A UFSC enquanto esse espaço de vivência e rotina do curso se mostrou como um intenso meio de trocas, experiências e aprendizados muito além dos conhecimentos de cátedra passados de acordo com as ementas programáticas. E se arquitetura trata de espaço, qual o maior trunfo para o aprendizado

senão a oportunidade de ele ser potencializado pelo espaço em que acontece? O curso então se desenvolveu completamente atrelado ao espaço físico, às suas virtudes, contradições e falhas, inserindo-nos enquanto alunos diretamente à discussão, proposição e construção do espaço. Acredito essa consonância de variáveis ter sido uma condição fundamental para a riqueza do processo pelo qual passei, pela profundidade e variedade de experiências que me guiaram através do aprendizado das dimensões da arquitetura e do urbanismo.

Talvez o mais estimulante disso tudo tenha sido a oportunidade de conviver com mestres bastante provocadores e assertivos que, sem hesitar, puxaram constantemente as fronteiras daquilo que se acredita ser o fazer e pensar da arquitetura enquanto disciplina humanitária e intrínseca à coletividade humana. Todas as chances de trocas e discussões foram de extrema importância para o constante desafio de se perguntar “de fato, o que é e para o que serve a arquitetura e o urbanismo?”. Talvez

nunca cheguemos a respostas categóricas e definitivas sobre isso, e talvez o grande ponto nem seja encontrá-las, mas possivelmente deixar viva a chama que as busca iluminar.

Felizmente muitos processos ao longo do curso foram progressivamente me provocando a diluir os limites que separam as esferas de atuação da arquitetura, e mais do que menosprezar os ritos e métodos tradicionais de concepção e representação, me estimular a talvez ir além destes e enxergá-los de fato enquanto meros meios. Em uma disciplina de estrondosa complexidade como a arquitetura é natural que nos fixemos naquilo que nos traz um norte e um prumo em meio ao caos que é o espaço urbano, os fenômenos naturais, as pessoas e tudo aquilo que talvez imaginemos poder “controlar” enquanto arquitetos. É muito gratificante perceber que não estamos sozinhos em nossos anseios e dúvidas sobre a abrangência e pertinência do nosso papel enquanto futuros profissionais, já que este talvez seja outro grande campo de discussão dentro da profissão ao longo dos

tempos.

É difícil e frustrante deparar-se com a real complexidade do mundo que nos compreende e o quanto nossos métodos historicamente ensinados para controlar, planificar e simplificar esse mundo tornam-se por vezes abstrações e representações de si mesmos. Plantas, cortes e fachadas que parecem somente referenciar a eles próprios, renders que buscam mimetizar e simular as nuances da realidade, e obras que são transcrições diretas do computador à realidade - como se a tela ou o papel fossem o visor através do qual compreendemos o mundo real. Dessas reflexões surge uma busca por entender quais outras possibilidades temos de interface com a realidade, e quais meios podem trazer abordagens mais sensíveis e honestas para a proposição de uma arquitetura que não só toma partido das concepções mentais que temos sobre ela, mas almeja uma profunda relação com o lugar e as variáveis onde se insere. O TCC talvez seja então esse meio através do qual me proponho a dar

vazão a esses processos e inquietações sobre a natureza contemporânea das cidades e arquiteturas que nos compreendem enquanto humanos. Que tipos de relações em potencial ainda podemos tecer entre nós e o nosso meio? Qual a verdadeira potência por trás das materialidades que concebemos e executamos enquanto arquitetos? No fim são reflexões, devaneios e proposições que buscam expandir as minhas próprias concepções sobre a arquitetura e o espaço urbano e estimular que outras pessoas também adentrem esse processo enquanto iguais protagonistas desta “rede” de interações e trocas.

IMPULSO.

Finalmente se apresenta o momento cronológico de encerramento do curso de arquitetura e urbanismo, e nele temos a chance de refletir sobre tudo o que durante esse tempo pensamos que ele poderia ser, ou como estaríamos, quais seriam os nossos motes, visões e sonhos. E é estranho então dar-se conta de que esse momento é um simples ponto no qual chegamos, apesar das nossas expectativas, relutâncias e elucubrações, e que ter vivido tudo o que vivemos, todas as nossas experiências, práticas, criações, erros e acertos não são necessariamente capazes de darem ignição a esse processo.

Tais vivências no máximo podem nos trazer ferramentas, abordagens e procedimentos familiares a nós, mas o processo é uma coisa inteiramente nova, que se manifesta naquele exato tempo cronológico e que deve ser criado através de uma nova energia, da verdade que se comunica através daquele dado espaço-tempo irreprodutível e ainda não vivenciado.

Houve um impulso inicial muito forte em apreender uma ideia de TCC, um tema ou mote que assegurasse uma linha de pesquisa, experimentação e proposição, e aí me atinei a vasculhar entre as coisas e fenômenos que fizeram parte intensa da minha trajetória pelo curso. Escritos, croquis, desenhos, maquetes, e outras manifestações foram todos postos à mesa, mesmo que inicialmente de uma forma ansiosa, como se eu estivesse tentando retirar dali algo que não se deixava mostrar. Fiquei bastante preso à materialidade ou representação que essas coisas e processos tinham, tanto que os relacionei a um álbum de músicas, – uma coletânea das minhas melhores expressões e aptidões – e assim não me puderam incitar nada de novo e contemporâneo em relação àquilo que acontecia no pleno momento. Com o fenômeno “TCC” ainda pairando no ar busquei cada vez mais reservar espaços e momentos específicos para ele, momentos em que sentava para “pensar” o que de fato seria esse trabalho. Ao jogar perguntas e mais perguntas à minha mesa de trabalho nada além de coisas estáticas e enquadradas em

um tempo e espaço surgiam, mas curiosamente nos momentos em que deixei de perseguir e implorar por respostas vindas dessa mesa é que coisas interessantes começaram aparecer que estavam além do meu campo de visão e interesse. Justamente nas brechas de uma suposta “rotina de TCC” é que algo bastante forte e pertinente começava a surgir, e de nada tinha relação com essa primeira busca programada pelo trabalho. Ao caminhar, escrever, fotografar, desenhar e registrar as coisas do cotidiano inerentes à cidade de Florianópolis – lugar onde comecei e agora concluo o curso – e à minha experiência enquanto transeunte por esses espaços, memórias e expressões, é que percebi que talvez o TCC pudesse estar ali, nos movimentos do percurso. Algo bastante forte me instigava cada vez mais a registrar esse percurso, não enquanto algo cronológico, mas a partir de sinais, brechas e lampejos. É como se algo que se escondesse por entre aquela cidade tão ordinária que vinha passando os meus dias, esmaecida pelo tom frenético da rotina e da programação diária, de repente estivesse querendo vir à tona. Em um movimento cada vez mais atento e estimulado, o percorrer desse espaço corriqueiro tomou uma dimensão muito parecida com o andar

permitimos perceber. Assim, em lampejos se revela uma cidade que nos transporta a um estado para além daquilo que tomamos como dado e imutável, uma que nos oferece possibilidades e oportunidades de uma realidade outra escondida por entre-muros, entre-dois, e entranhada na opacidade e rigidez daquilo que tanto tomamos como constituinte exclusivo dessa “cidade”.

Na condição de viajantes por esses espaços o somatório das experiências vivenciadas e reveladas nos tantos percursos de nossa existência não configura somente uma linha cronológica e sequencial, como se cada experiência somasse à outra, mas sim uma espécie de movimento helicoidal. Ao mesmo tempo em que existe uma progressão temporal e linear em alguma direção também existe um movimento cíclico que relaciona fenômenos de natureza parecida ao longo dessa linha.

Espacialidades aparentemente antagônicas ou desconexas se tomadas a

partir de sua configuração material podem trazer qualidades bastante próximas quando vistas a partir das experiências e energias que podem suscitar em cada um. O valor que determinado lugar guarda nesse percurso então está intimamente ligado

de uma criança que descobre a cada beco e viela um universo de possibilidades latentes. Nas mais simples passagens e meandros, me encantava a possibilidade de algo se manifestar ali; novas relações, espacialidades e materialidades desenquadradas do movimento certeiro e calculado da rotina, mas que sempre estiveram ali esperando para serem encontradas.

Essa rara condição de viajante, uma que não encontra entraves na suposta “grade” horária regente dos nossos dias, ou que pode enxergar nas frestas desta as manifestações da realidade real pulsante, que talvez tenha se tornado o primeiro estalo disso tudo. É imperativo em nossa intensa rotina esquecermos as pequenas coisas que fogem à nossa programação e ao nosso entendimento. Elas não são apropriáveis pelo nosso senso de utilidade, de razão. São “perigosas”, não necessariamente porque nos oferecem real perigo, mas porque podem subverter tudo aquilo que acreditamos e passamos os dias buscando reforçar em nossas vidas. Tais “coisas” ou experiências não são meros confirmadores de nossas crenças e convicções, ou algo que esperamos encontrar pela cidade, mas aquilo que se deixa expressar quando também nos

às experiências que cada viajante teve ali, assim como a qualidade dessas experiências, aprendizados e reflexões que trouxeram consigo.

A cidade assim se apresenta enquanto um campo infinito de subjetividades e indeterminações a partir do momento em que não existe um só “juiz” capaz de congregar todas as vivências e experiências de todos os habitantes e transeuntes que nela tecem seus percursos diários. Não existem, se pensarmos em relação à concepção de cada indivíduo, dados totalizantes e implacáveis, nem verdades absolutas, mas sim valores em comum a esses indivíduos. Passagens e percursos que em muito se assemelham e às vezes parecem ser universais a todos, não se vistos apenas através de sua materialidade, mas quando compreendidos enquanto provocadores de sentimentos e vivências de mesma natureza.

OÁSIS.

A cidade e os espaços construídos enquanto receptáculos das nossas experiências, valores e interações tornam-se lugares prenhes de novos e antigos significados que vão se sobrepondo nesse espaço. Um simples ponto, um banco, uma marquise e uma alameda podem suscitar infinitas diferentes construções no imaginário das diferentes pessoas que por ali desenvolvem o seu dia-a-dia. O que são arquiteturas e estruturas básicas e triviais podem conter tantos rastros, rasuras e impressões (materiais ou não) que é bastante relativo atribuir valores categóricos a elas, ou julgá-las a partir de sua constituição material. Nesses multi-percursos que se desenvolvem pela cidade incontáveis reverberações podem ocorrer ao se relacionarem os espaços e as vivências que cada um carrega em si, e os significados que se formam de uma podem ser infinitos e mutáveis. Assim, não somente alteram o presente momento em relação às experiências contemporâneas e correntes, como podem ressignificar o passado e o futuro, trazendo-os de fato ao agora enquanto um apanhado de qualidades recorrentes.

É possível tecer várias conexões entre

diferentes lugares, talvez distintos em sua materialidade mas muito próximos naquilo que incitam em nós, o que nos estimulam a fazer, quais lembranças nos trazem e como nos acolhem. Muitos desses lugares nos provocam, desafiam a criar junto deles, a talvez completá-los com nossa imaginação os seus “pontos em aberto”, e talvez por isso nos fascinem. Não buscam trazer resoluções e nem pontos de chegada, são “pontes” por excelência, pois as coisas podem acontecer através deles, quase que canalizadas por entre um portal aberto a novas interpretações e redefinições. Na cidade poucos e raros talvez sejam esses momentos de abertura onde podemos adentrar com as nossas concepções e ações e torná-los “nossos”, mesmo que por instantes. A pressão por definições, limites e fronteiras é cada vez maior conforme cresce a cidade e nela também crescem as suas contradições, diferenças e tensões. Nesse panorama aquilo que tangencia essa lógica são, em maior parte, aqueles espaços destituídos de uma clara noção de pertencimento a um ou outro ator, ou degenerados pelos próprios processos da cidade, tornados resíduo do próprio meio que os engloba ou sufoca. Instáveis demais para serem “algo” de fato, e abertos demais para não o serem, esses

espaços trazem consigo uma possibilidade latente de “vir-a-ser”. Uma dimensão marginal e desviante onde o intento humano ainda não conseguiu estancar seus pontos em aberto, ou sua fragmentação é tamanha que deturpa atividades programadas e previstas para ali. A possibilidade, e não imperatividade, de ser é o que traduz a condição de “por-fazer” dessas espacialidades, uma plataforma a ser completada por cada habitante em ressonância com suas condições, anseios e intenções.

Tais lugares podem ser trazidos à esfera do “vazio”, no sentido de contrapor o “cheio” e totalizante, mas em sua real constituição (se tomados para além de sua materialidade) talvez sejam a linha tênue entre o cheio e o vazio. Esvaziados o bastante de funções categóricas e pré-definidas para serem considerados “cheios”, mas carregados demais de energias e fluxos em potencial para serem encarados como “vazios”, no sentido de destituídos de possíveis apropriações. E isso traz uma grande dicotomia a esses lugares, pois eles vivem literalmente nas frestas e limites entre duas situações completamente distintas e antagônicas, entre o tudo e o nada. Sobrevivem, ou não, de um equilíbrio instável sujeito às mais

variadas ações e arbitrariedades da cidade que pulsa rítmica e agressivamente ao seu redor, e em um lapso podem esvair todo o seu potencial enquanto esses espaços de possibilidade. Por isso às vezes podem até ser vistos enquanto miragens, fugas de uma normatividade hegemônica no panorama da cidade que nos aparecem e logo em seguida são preenchidos, deturpados e suprimidos. A sua rara presença é um convite aberto ao desfrute de uma realidade completamente aberta a outras interações e contribuições, relações genuínas e espontâneas que se desenvolvem independentemente do valor de troca desse espaço. Enquanto possíveis articuladores de universos distintos que convivem paralelamente em um aparente mesmo espaço, esses lugares tomam quase que a característica de um portal de trocas e cruzamentos entre diferentes atores que nunca teriam a chance de esbarrar um com o outro. A consciência do outro junto a mim, de seus modos de vida, atitudes e valores é fundamental ao estabelecimento de plataformas de troca e comunicação através do espaço, o que traz a dimensão pública e compartilhada deste como seu maior trunfo.

MATÉRIA BRUTA, RÍGIDA.

A capacidade de permitir “contaminações” entre as pessoas, agentes e espacialidades talvez seja uma das mais nobres características de uma cidade por excelência. Mas quando esta mesma cidade passa a engendrar-se em seus crescentes muros e labirintos, mais raras se tornam essas oportunidades de alteridade, de enxergar o outro enquanto contemporâneo e conterrâneo meu. O imperativo é a separação dos territórios intra e extra-alguma coisa, a demarcação detalhada e implacável daquilo que é meu e teu, e a constante vigília sobre os desvios e violações desses limites por nós. A “exclusividade” começa a aparecer como um dos principais conceitos desses tempos, tão vulgar e corriqueira que seu cunho negativo já se diluiu por entre as muitas

virtudes vendidas pelos empreendimentos que a empregam em

seus outdoors.

Muitos dos espaços antes próprios à cidade agora se concentram em cada uma dessas novas arquiteturas autossuficientes, independentes e exclusivas. Quanto mais surgem e se afirmam no panorama urbano mais parecem convencer aqueles que provam

dos seus encantos de que de fato essa é a solução. Afastar para aproximar, fechar para abrir, fingir para ser. Nesses novos paraísos artificiais a realidade pode ser aumentada, manipulada e imitada a bel-prazer a fim de trazer à tona as qualidades perdidas daquela que algum dia foi uma cidade. E ainda tais qualidades são passíveis de serem exacerbadas para atingirem mais alcance e apelo, já que de uma cidade se fazem mil paraísos artificiais, cada um com sua “exclusividade” própria.

Uma disputa intrínseca a esses fragmentos de cidade surge enquanto forma de concentrar mais fluxos e recursos em uma parte em detrimento da outra, quase como em um organismo que compete consigo mesmo para sobreviver ao jogo predatório de se auto explorar. Na mesma medida em que uma parte se alimenta e é dependente da outra ela almeja a sua destruição e superação, um paradoxo que se torna cada vez mais forte e caracteriza o principal combustível à perpetuação desse processo. A competição e a expectativa então se estabelecem enquanto os principais atrativos aos potenciais “clientes” dessas arquiteturas. Uma relação inteiramente construída através do distanciamento entre “público” e “produto”, onde se

estabelece um terreno muito fértil de promessas, sonhos e troca de valores às vezes antes mesmo de existir qualquer traço material do espaço referenciado. Assim, a virtualidade dessas relações toma suma importância a partir do momento em que pode lidar diretamente com imagens, signos e arquétipos daquilo que se propõe a vender. Representações de valores que apelam instantaneamente às pessoas e as persuadem quase que na mesma dinâmica de um anúncio que busca fisgar o leitor em meio à correnteza veloz de informações que o guia. Um estado constante de alerta torna tudo visível e invisível ao mesmo tempo e, como tudo deseja saltar aos olhos, nada aparece em segundo plano, e assim a relação fundo-figura deixa de existir. Trabalho, lazer, construção e destruição compõem um sistema tão sincrônico e funcional que o bater dos ponteiros do relógio alinha perfeitamente os golpes de punhos e ferramentas a desmontar e remontar a cidade ao movimento rotineiro de cada cidadão. Praticamente não existem cruzamentos entre essas duas realidades paralelas, cada qual alimentando a outra sem tê-la em seu campo de visão e interação, mesmo que profundamente sincronizadas e interdependentes.

Em cada intervalo entre destruição e construção da cidade rotineira surgem as suas vísceras e interstícios enquanto subprodutos da produção do espaço urbano, um fenômeno intrínseco à dinâmica da paisagem fugaz e cambiante da contemporaneidade. Como feridas escancaradas de um processo praticamente extrativista, essas pregas evidenciam um lado ainda bastante cru e primitivo da nossa relação com a construção do espaço. A distância entre o resíduo drenado do solo desnudo e o acabamento final do edifício futuro é tão ínfima e instável que os mesmos podem acabar juntos num piscar de olhos, ambos sujeitos às novas regras e tendências que regem a ocupação do solo. Destruição e construção parecem se tornar sinônimos ou forças

co-dependentes, engrenagens complementares de um sistema

complexo e estruturante que maquina as pessoas, os espaços e a matéria prima à execução de uma realidade urgente e irremediável. As mesmas mãos que constroem, destroem; e as mesmas bocas que condenam, absolvem.

Fazemos parte disso. Estamos atrelados a essas dinâmicas e elas a nós, queiramos ou não. Existem meios de contraponto e subversão? Quanto dessa cidade é de fato construída para nós e por nós?

DESENQUADRAMENTOS

No processo de me confrontar com essas indagações e constantes construções da cidade, muitas das minhas inquietações e motivações iniciais para o trabalho foram se diluindo e dando lugar à denuncia e exposição dessas materialidades e processos enquanto desqualificadores do espaço urbano. Não havia como imaginar outras possibilidades, brechas e faíscas se não a de contrapor os preponderantes mecanismos que transformam a cidade num espaço cada vez mais fechado e opaco às manifestações que fogem à sua régua. Com uma câmera na mão e um foco em mente me atinei simultaneamente a enquadrar e expor tais construções, bem como ainda procurar pelas frestas e entranhas que desde o começo tinham me instigado a mergulhar nesse percurso.

Nessa busca obstinada por arquiteturas e materialidades que exprimissem tais qualidades, justamente as expressões desviantes e não programadas que haviam me cativado desde o início foram ignoradas e suprimidas enquanto um desvio dos meus objetivos. Curiosamente, nos exatos momentos em que busquei enquadrar essas arquiteturas e materialidades almejadas,

uma série de atores externos cruzaram o meu caminho para subverter o meu ato de fotografar e apreender aquele espaço. Esbarrões, interjeições, apertos de mão e indagações não programadas se aproximaram de fora do meu campo de visão para dentro dele em um movimento provocador de questionamentos. O mesmo universo subversivo que vinha cruzando o meu caminho ao longo do percurso parecia estar se apresentando agora enquanto essas intervenções externas a desafiarem a minha postura e me trazerem possibilidades antes não percebidas em um espaço aparentemente “apreendido”.

Tais cruzamentos não serviram de fato para “mudar” as minhas crenças ou convicções sobre a condição daqueles espaços enquanto resíduos urbanos, palco de processos agressivos de construção e alienação das pessoas perante a cidade. Mais do que isso, essas oportunidades me trouxeram desenquadramentos, a expansão de uma realidade a princípio compreendida, mas ainda muito rica em nuances e fenômenos inapreensíveis em um só olhar.

REALIDADES OUTRAS

Muito do que essas experiências fizeram reverberar em mim foram construções outras em potencial de um mesmo espaço. Para além daquilo que é tido como fato e imutável, material e rígido, fluem energias, percursos e valores que imprimem qualidades positivas até nos lugares mais opressivos e desconcertantes. A cidade enquanto espaço gerador dos mais diversos encontros e entrelaçamentos ainda traz muito da coisa humana, das possibilidades de existirem novas relações e interfaces mesmo que os processos de produção do espaço sejam completamente avessos e limitantes a estes.

A questão aqui não é conceber as “desqualidades” das constantes e agressivas construções do meio urbano enquanto algo aceitável e fisicamente imutável, mas talvez resgatar a potência na energia humana em se apropriar de espaços desde os mais desqualificados. Se dadas as menores condições podem surgir belas manifestações de afeto, solidariedade e expressão de valores positivos, penso como poderiam ser esses espaços se pensados a partir do vazio, das indefinições e possibilidades latentes e estimuladas pelo lugar, e não tanto dos programas e definições espaciais tão costumeiros a nós.

Toca-me experimentar e partilhar dessas inquietações e expressões que vêm se manifestando por meio do TCC enquanto possibilidades de dar ainda mais ignição a esse processo e perceber como elas se configuram no universo do outro, com suas crenças, convicções e enquadramentos.

Da mesma forma que o trabalho não começou cronológica e conceitualmente com o TCC propriamente dito, acredito que não irá terminar com o seu encerramento temporal no curso de arquitetura e urbanismo. As inquietações e processos desenvolvidos aqui se relacionam tão fortemente com o meu fazer que não consigo imaginá-los estáticos e findados nesse processo de um ano. Espero que muitas outras reverberações, trocas e reflexões surjam ainda desse percurso e que os fenômenos e qualidades inerentes à arquitetura continuem trazendo estímulos dos mais diversos e instigantes à discussão e proposição das vivências, espaços, construções e cidades.

Referências

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