• Nenhum resultado encontrado

Download/Open

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Download/Open"

Copied!
101
0
0

Texto

(1)

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU

EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PORCOS AO MAR

UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA SOCIAL, POLÍTICA, ECONÔMICA

E IDEOLÓGICA DE MARCOS 5,1-20

SILVIO ROGERIO ZURAWSKI

GOIÂNIA 2010

(2)

PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU

EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PORCOS AO MAR

UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA SOCIAL, POLÍTICA, ECONÔMICA

E IDEOLÓGICA DE MARCOS 5,1-20

SILVIO ROGERIO ZURAWSKI

Dissertação apresentada para o Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ciências da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, como requisito parcial para obten-ção do título de mestre.

Orientadora: Profª. Drª Ivoni Richter Reimer

GOIÂNIA 2010

(3)
(4)

Aos meus familiares, que apesar da distância sempre se mostram como um porto seguro.

Aos meus confrades, Cônegos Regulares da Imaculada Conceição, que me ensinam a cada dia o que é conviver e respeitar as diferenças. Agradeço aos professores, e demais colaboradores, ao Claude Detiene, pela tradução, especialmente Ivoni R. Reimer, pela paciência e dedicação na orientação e leitura deste trabalho

e pela forma como tem me ensinado a ler a Bíblia. Muito obrigado a todos!

(5)

RESUMO

ZURAWSKI, Silvio Rogerio. Porcos ao Mar: Uma interpretação crítica social, política, econômica e ideológica de Marcos 5,1-20. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2010.

Esse trabalho tem por objetivo a construção de uma exegese e hermenêutica do tex-to de Marcos 5,1-20, onde é narrada a libertação de um geraseno possesso em es-pírito impuro. Os evangelhos sinóticos, especialmente a tradição de Marcos, aprsentam uma grande quantidade de narrativas onde Jesus aparece em atividade e-xorcística. Ele liberta pessoas e comunidades da possessão de espíritos impuros e/ou demônios. A utilização do método histórico-crítico de leitura da bíblia permite perceber dois momentos históricos no texto de Marcos 5,1-20: a memória central da atividade exorcistica de Jesus e o contexto da comunidade de Marcos. Nos anos 66-70 a comunidade marcana sofre com a reocupação da Palestina por parte das legi-ões militares romanas e enfrenta uma crise interna com a aceitação e entrada de gentios na Igreja nascente e em sua organização. Na narrativa realista de exorcismo de Marcos 5,1-20, por meio da atuação de Jesus, no plano simbólico-ideológico, as forças do mal estariam sendo vencidas. Com o emprego de dados histórico-geográficos, imagens militares e símbolos, Gerasa, Decápole, legião e porcos, as estruturas sociais, econômicas, políticas e ideológicas do império romano parecem ser endemoninhadas. Com o afogamento dos porcos no mar e o envio de ex-endemoninhado geraseno, no plano das representações e do imaginário, a comuni-dade marcana venceria o mal e proporia a entrada e envio de gentios ainda no mi-nistério público de Jesus. A leitura fundamentalista dos textos bíblicos e o movimen-to de demimovimen-tologização deveriam manter as dimensões sociais, econômicas, políticas e ideológicas na exegese e interpretação das narrativas de exorcismos.

(6)

ABSTRACT

ZURAWSKI, Silvio Rogerio. Pigs into the Sea: Social, Political, Economic and Ideo-logical critical interpretation of Mark 5,1-20. Dissertation (Postgraduate program in Religious Sciences) – Pontifical Catholic University of Goiás, Goiânia, 2010.

This work aims to build an exegesis and hermeneutics of the text of Mark 5,1-20, which narrates the liberation of a Gerasene possessed by an unclean spirit. The syn-optic gospels, especially Mark’s tradition, have very many stories where Jesus ap-pears in exorcism activity. He frees people and communities from possession of un-clean spirits and/or demons. The use of the historical-critical method of reading of the Bible allows to see two historical moments in the text of Mark 5,1-20: the central memory of Jesus’ exorcism activity and the context of Mark’s community. In the years 66-70, the Markan community is suffering from the reoccupation of Palestine by the Roman military legions and faces an internal crisis with the acceptance and entry of Gentiles into the early Church and its organization. In the realistic exorcism narrative of Mark 5,1-20, through Jesus’ performance, on the symbolic and ideological plane, the forces of evil were being overcome. With the use of historical and geographical data, military images and symbols, Gerasa, Decapolis, legion and pigs, the social, economic, political and ideological structures of the Roman Empire seem to be de-mon-possessed. With the drowning of the pigs in the sea and the sending of the for-mer demon-possessed Gerasene, in terms of representations and imaginative uni-verse, the Markan community would overcome evil and propose the entry and send-ing of gentiles still in the public ministry of Jesus. The present work also demon-strates that a fundamentalist reading of the biblical texts, as well as some demytholo-gizing works, helped to keep the social, economic, political and ideological dimen-sions absent in the exegesis and interpretation of the exorcism narratives.

(7)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...8

2 O ENDEMONINHADO GERASENO: TEXTO...13

2.1 CRÍTICA TEXTUAL ...13

2.1.1 Texto ...14

2.1.2 As Principais Variantes Textuais ...15

2.2 CRÍTICA LITERÁRIA...16

2.2.1 Delimitação...17

2.2.2 Estrutura de Marcos 5,1-20 ...21

2.2.2.1 Jesus encontra o homem em espírito impuro (Mc 5,1-6) ...21

2.2.2.2 Jesus encontra a legião (5,7-10) ...22

2.2.2.3 Os espíritos impuros encontram a legião de porcos (5,11-13) ...22

2.2.2.4 A coletividade encontra Jesus (5,14-17) ...22

2.2.2.5 O ex-endemoninhado encontra Jesus (5,18-20) ...23

2.2.3 Integridade e Coesão do Texto ...25

2.2.4 Fontes e Tradições...29

2.2.5 Comparação Sinótica ...32

2.2.5.1 Elementos comuns às três narrativas (Mt 8, 28-34; Mc 5,1-20; Lc 8,26-39) ...32

2.2.5.2 Afinidades de Marcos e Lucas – (Mc 5,1-20; Lc 8,26-39) ...33

2.2.5.3 Específico de Mateus (Mt 8, 28-34)...34

(8)

2.2.5.5 Específico de Lucas (Lc 8,26-39) ...35

2.2.6 Tecendo a Análise Sinótica ...35

2.2.7 Estudando o Vocabulário ...37

2.3 CRÍTICA DA FORMA...43

2.3.1 Gênero Literário Exorcismo...43

2.3.2 Narrativa Realista e Ações Simbólias e ideológicas...47

3 PORCOS AO MAR: CRÍTICA DA HISTORICIDADE ...53

3.1 CRÍTICA DA HISTORICIDADE...53

3.2 UMA GEOGRAFIA SUSPEITA: A TERRA DOS GERASENOS... 54

3.3 IMAGENS MILITARES SUSPEITAS ...59

3.3.1 “Legião é Meu Nome”...59

3.3.2 Porcos ao Mar ...61

3.3.3 O Endemoninhado: Possuídos Pelo Demônio do Imperialismo ...66

3.4 RESUMINDO...69

4 POSSESSÃO E LIBERTAÇÃO! UMA BUSCA DE SENTIDO ...71

4.1 O JESUS EXORCISTA...71

4.2 MARCOS 5,1-20: POSSESSÃO E LIBERTAÇÃO ...78

4.3 A LEITURA DE EXORCISMOS HOJE ...85

5 CONCLUSÃO ...89

REFERÊNCIAS...94

(9)

1 INTRODUÇÃO

Nas performances de grupos religiosos a prática exorcistica de Jesus volta a ser acessada e propagada por meios de comunicação, como televisão e internet. O Jesus exorcista é utilizado para a libertação ou solução de inúmeros problemas, possessões demoníacas e encostos que prejudicariam a vida financeira, familiar e emocional dos fiéis. Faz-se necessário aprofundar as dimensões sociais, políticas e econômicas e ideológicas presentes nos exorcismos de Jesus, narrados nos Evan-gelhos, para propor novas leituras e acessos às narrativas de exorcismos, que vão além da esfera pessoal/individual e do âmbito religioso.

Com intuito de participar desse processo de construção de leituras das nar-rativas de exorcismos, deter-nos-emos no estudo do texto bíblico de Marcos 5,1-20, procurando perceber e aprofundar a crítica social, política, econômica e ideológico-simbólica que está presente neste texto bíblico. Trata-se da narrativa de um exor-cismo, ou da ação de Jesus de expulsar espíritos impuros que se apoderaram de uma pessoa, próximo à região de Gerasa (Mc 5,1). De forma geral, vamos construir uma exegese e propor uma interpretação para a referida passagem bíblica.

A narrativa de Marcos 5,1-20 nos fornece imagens, figuras, posturas e ações simbólico-ideológicas de Jesus que nos permitem captar e ordenar a crítica que ele faz à dominação romana na Galiléia e região. O problema é a tradição interpretativa deste texto que sempre ressaltou o confronto entre satanás/diabo e seus exércitos com Deus, atuando através de Jesus Cristo.

De acordo com a visão apocalíptica, essa batalha entre o bem e o mal (Deus X satanás/diabo) se daria primeiramente, e de forma preponderante, na esfera celes-tial. A humanidade e a história do universo estariam à mercê desses seres

(10)

superio-res. Os enviados de satanás/diabo e de Deus estariam, inicialmente, disputando o domínio sobre as pessoas, seus corpos e grupos humanos, formando assim as grandes fileiras para o confronto escatológico. Com isso, o mal enraizado nas estru-turas sociais, políticas e econômicas e ideológicas ficam livres de toda e qualquer crítica por parte do Jesus exorcista.

A partir de Marcos 5,1-20, pretendemos participar da superação ou descons-trução dessas interpretações. Desconsdescons-trução e reconsdescons-trução são termos que carre-gam em si o objetivo de decompor teorias para recompô-las de forma mais dinâmica, a fim de ampliar seu potencial explicativo dentro de um determinado contexto históri-co-social.

Nesta pesquisa, primeiramente, apresentaremos o texto de Marcos 5,1-20, in-terligando-o com o todo da narrativa do Evangelho de Marcos, buscando distinguir e aprofundar o momento histórico da narrativa e o momento histórico do evangelista e de sua comunidade. Neste sentido, ganhará importância fundamental o acirramento do conflito Roma-Palestina entre os anos 66 e 70 e também os conflitos internos nos cristianismos originários entre judeus e gentios.

Dessa forma, teremos que entrar nas discussões em torno do Jesus Histórico. Ou seja, a ação de Jesus de expulsar demônios ou espíritos impuros narrada em Marcos 5,1-20 seria invenção da comunidade ou Igreja primitiva de Marcos ou foi parte integrante da atividade e do ministério histórico de Jesus? Existem razões para pensarmos que, pelo menos, o núcleo narrativo de Marcos 5,1-20 remonta ao minis-tério de Jesus? Qual ou quais partes teriam sido inseridas pela comunidade e com qual intenção?

A força das narrativas de exorcismos, e mesmo das demais narrativas evan-gélicas, está restrita à historicidade do evento ou á aproximação do seu sentido?

(11)

Que significado teológico possuíam os exorcismos no ministério de Jesus, para seus discípulos e discípulas, seguidores e seguidoras? E com os acréscimos feitos pelo evangelista, redator ou pela comunidade de Marcos, que significados teológicos, sociais, políticos, econômicos e ideológicos foram agregados?

Na busca de respostas para essas inúmeras questões, no primeiro capítulo, vamos utilizar alguns passos da metodologia exegética na análise do texto de Mar-cos 5,1-20. Lançaremos mão, mesmo que não de modo pleno, do método histórico-crítico ou análise diacrônica do texto. Entendemos por método exegético um conjun-to de procedimenconjun-tos científicos empregados para explicar e aprofundar determinado texto. Com esses recursos, esperamos elaborar alguns apontamentos de crítica tex-tual, literária e da redação, aproximando-nos mais do sentido do texto bíblico no seu contexto, percebendo e aprofundando a compreensão sobre o que poderia ser uma revelação divina na história. Esse primeiro passo pode ser nomeado de intra-textual, ou seja, aprofundar o texto apontando suas (in)coerências, delimitação, fontes e al-cance.

Inteirando-nos da construção narrativa de Marcos, vamos gradativamente to-mando posse do seu discurso simbólico-ideológico e do significado desse discurso para os ouvintes/leitores de sua comunidade. Para ressaltar o próprio da comunida-de marcana, ainda no primeiro capítulo, faremos uma comparação sinótica, icomunida-dentifi- identifi-cando os pontos comuns, as divergências e as particularidades das narrativas do mesmo episódio em Mateus, Marcos e Lucas. Trata-se de uma abordagem intertex-tual que favorece a percepção das diferenças entre as narrativas evangélicas, e mais ainda, que possa ressaltar o próprio de cada narrativa, especialmente os deta-lhes presentes no texto de Marcos 5,1-20.

(12)

Verificaremos como em Marcos 5,1-20 se concilia a dimensão realista da nar-rativa, com personagens e lugares reais, e o emprego da linguagem ideológica e simbólica. Logo, precisamos conceituar e aprofundar a relação entre narrativa realis-ta e ação simbólica/ideológica. A “guerra do céu”, que nós referíamos acima, parece ser trazida para a terra e mais especificamente para o contexto histórico do tempo de Marcos, ou seja, período de forte dominação romana no século I e crise da guerra judaica com a reocupação de Jerusalém.

Os dados geográficos e as imagens militares que aparecem na narrativa mar-cana servirão de base para que, no segundo capítulo, se aprofunde o significado simbólico/ideológico dessa ação exorcística de Jesus em particular, e como a comu-nidade ou o redator de Marcos insere nele a crítica social, política, econômica e ideológica às estruturas imperiais ou à pax romana. As conclusões nos permitirão entrar no debate sobre o local e a data de redação do Evangelho de Marcos, eviden-temente que de forma sucinta.

Numa breve indicação extratextual, com base no historiador judeu Flavio Jo-sefo, podemos encontrar elementos literários que possibilitam a leitura contextuali-zada de Marcos 5,1-20. Neste contexto, poderíamos entender que o evangelista pre-tendia apresentar a boa nova de Jesus Cristo, o Filho de Deus (Mc 1,1) também pa-ra o universo gentílico.

Finalizando, no terceiro capítulo, após nossa própria analise da narrativa, fa-remos duas indicações breves de hermenêuticas contemporâneas dos exorcismos ou da atividade exorcística de Jesus: hermenêutica fundamentalista e da demitologi-zação. Trata-se de uma abordagem literária das escrituras e uma compreensão ad-vinda, particularmente, da medicina e psicologia, que restringiriam a libertação e a cura dos endemoninhados à esfera religiosa e ou individual.

(13)

De forma sucinta, no primeiro capítulo faremos a abordagem literária de Mar-cos 5,1-20, nos alongando na definição de narrativas de exorcismos e na relação entre narrativa realista e discurso simbólico-ideológico. No segundo, pretendemos elaborar uma critica da historicidade dos eventos narrados, baseada nos avanços da analise exegética. E no terceiro capítulo, apontar possíveis interpretações para a prática exorcistica de Jesus em seu ministério, para a comunidade marcana que constrói a narrativa de exorcismo de Marocs 5,1-20, e por fim, apresentaremos inter-pretações contemporâneas, fundamentalista e da demitologização, que deveriam manter em suas análises as dimensões sociais, políticas, econômicas e ideológicas presentes nas narrativas de exorcismos.

Com essa pesquisa pretendemos contribuir com o processo de disseminação do emprego da metodologia exegética histórico-crítica e histórico-social na aborda-gem da Literatura Sagrada, especialmente no Programa de Mestrado em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Esse método permite fun-damentar novas leituras bíblicas e expandir a reserva de sentido ou dinamizar leitu-ras tradicionais, apontando novos agentes, práticas e aspectos das narrativas, mui-tas vezes esquecidos em processos exegéticos e hermenêuticos.

As reflexões elaboradas também permitem a avaliação das narrativas dos evangelhos sinóticos como fontes históricas. Suscitam discussões sobre a relação entre historicidade dos eventos narrados e a intencionalidade narrativa do narrador, redator ou comunidade de suporte das narrativas, que empregariam linguagem sim-bólico-ideológica. Além disso, retomamos no nosso trabalho o processo histórico de formação das narrativas de Mateus, Marcos e Lucas, em nosso caso, principalmente da narrativa marcana.

(14)

2 O ENDEMONINHADO GERASENO: TEXTO

Neste primeiro momento do trabalho empregaremos alguns passos exegéti-cos do método histórico critico1 na análise do texto de Marcos 5,1-20, incluindo a Crítica Textual, Crítica Literária e Crítica das Formas, eles nos ajudam a melhor compreender o texto em seu contexto literário, fornecendo bases para nos contra-pormos a modelos tradicionais de interpretação das narrativas de exorcismos, parti-cularmente a narrada em Marcos 5,1-20.2

2.1 CRÍTICA TEXTUAL

Não temos condições de elaborar ou construir uma tradução própria de Mar-cos 5,1-20, com a necessária e conseqüente leitura do aparato crítico.3 As traduções para o português deste texto de Marcos não apresentam grandes diferenças, pe-quenas variações na construção dos períodos e na escolha de termos ou sinôni-mos.4 Mesmo assim, precisávamos utilizar uma tradução mais literal. Para isso,

con-1 Definição de método retirada de Pontifícia Comissão Bíblica (2004, p. 36). Outras definições e

a-presentação dos métodos: Egger (1994, 238p); Wegner (2002 414p); Silva, (2000, 515p). O docu-mento da Pontifícia Comissão Bíblica também discute e apresenta os métodos exegéticos.

2 Temos como modelos de interpretação tradicional o estudo de Dattler (1977, p. 25-26) que coloca

nitidamente uma leitura realista do texto: “sacrifício de vara de porcos” , “diálogo de Jesus e o demô-nio”, “A legião de demônios é obrigada a pedir favores”. No comentário Bíblico da Loyola, Philip Van Llinden (1999, p. 54) comenta sobre as possíveis visões do povo da cidade: além de ter visto o pos-sesso sentado e vestido: “É de presumir que também vejam dois mil porcos flutuando no mar”. Balan-cin (1991, p.71-73), embora reconheça a legião como as forças militares romanas, alude ao confronto Jesus e o demônio. O próprio Harrington (1997, p. 790), apesar de trazer muitas informações históri-cas e geográfihistóri-cas, constrói reflexões sobre o confronto real de Jesus com o demônio.

3 Aparato crítico são as notas explicativas colocadas na parte inferior do Novo Testamento grego, que

indicam as variantes do texto original para uma mesma passagem bíblica, conforme diferentes ma-nuscritos, cf. Wegner (2002, p. 39).

4 Traduções comparadas: BÍBLIA DE JERUSALÉM (1994). BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral

(1991). BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento (1993). BÍBLIA DO PEREGRINO. Novo Tes-tamento (2000).

(15)

frontamos a tradução feita por Luigi Schiavo5 com algumas traduções interlineares6 e elaboramos uma tradução literal do texto que será ponto de referência no decorrer das nossas reflexões. Manteremos o marco referencial de numeração em versículos.

2.1.1 Texto

1. E chegaram do outro lado do mar, na terra dos Gerasenos.

2. E tendo ele saído do barco, imediatamente veio dos sepulcros a ele uma pessoa em espírito impuro;

3. que tinha sua morada nos sepulcros, e nem mesmo com uma cadeia nin-guém podia prendê-lo,

4. por causa disso, muitas vezes com correntes e cadeias fora preso, e foram cortadas por ele as correntes e as cadeias foram quebradas, e ninguém era suficientemente forte para dominá-lo.

5. E sempre, noite e dia estava nos sepulcros e nas montanhas, gritando e fe-rindo a si mesmo com pedras.

6. E, vendo Jesus de longe, correu e prostrando-se, o adorou.

7. E gritando com voz alta, diz: “O que há entre mim e ti, Jesus filho do Deus o Altíssimo? Te imploro, por Deus, não me atormentes.”

8. Pois de fato havia dito a ele: “Sai, espírito imundo, desta pessoa.”

9. E o interrogava: “Qual o teu nome?” E respondeu-lhe: “Legião é o meu no-me, porque somos muitos”.

10. E lhe suplicava com insistência para que não os mandasse para fora da região.

11. Havia naquele lugar, perto da montanha, uma grande manada de porcos, pastando.

12. E suplicaram-lhe, dizendo: “manda-nos aos porcos, para que neles entre-mos”.

13. E permitiu-lhes. E tendo saído os espíritos imundos, entraram nos porcos e do abismo a manada lançou-se no mar, cerca de 2.000, e afogaram-se no mar.

14. E os que os apascentavam fugiram e foram contar na cidade e nos cam-pos. E saíram para ver o que tinha acontecido.

15. E chegam até Jesus, e eles vêem o endemoninhado sentado, vestido e só-brio, ele que tinha tido a legião, e ficaram com temor.

16. E os que viram contaram-lhes como aconteceu ao endemoninhado e sobre os porcos.

17. E começaram a suplicar-lhe para que saísse de suas fronteiras [limites, confins].

18. E entrando ele no barco, suplicava-lhe o que fora endemoninhado para que estivesse com ele.

5 Como se trata de uma obra inédita de Schiavo (1999, p. 236), a numeração de páginas citada

po-derá não corresponder. Observação válida para todas as citações dessa obra.

6 Luz (2003, p. 123-125) utiliza o texto grego de Nestle (26 ed.), ver ainda tradução interlinear de

(16)

19.E não o deixou, mas lhe diz: “Volta para tua casa, para com os teus e anun-cia a eles, quão grandes coisas o Senhor fez por ti, e como teve misericórdia de ti”.

20. E partiu, e começou a proclamar na Decápolis, as tão grandes coisas que Jesus fez por ele, e todos ficavam admirados.

2.1.2 As Principais Variantes Textuais

Luigi Schiavo (1999, p. 20) apresenta as diversas variantes ou pontos críticos do texto. Para nós, o principal problema está relacionado à localização geográfica da passagem: Gerasenos (Gerashnw/n) (Mc 5,1), Gergesa em alguns manuscritos (Gergej) (Lc 8,26) e Gadara, Gadar (Gadarhnw/n) (Mt 8,28). Como Jesus envia o ex-endemoninhado para a Decapóle (Mc 5,20), descarta-se Gergesa, por se localizar fora dessa grande região, como veremos em mapas no segundo capítulo (p. 53), embora, pela distância do mar da Galiléia, é a única variante que possibilitaria a “disparada” e o “afogamento” dos porcos. Entre Gerasa e Gadara, Schiavo (2000, p. 21) coloca a ainda associação de Gerasa com Garash, “expulsar”, “lançar fora”, que tem a ver com a história do exorcismo.7

John P. Meier (1998, p. 171) afirma que nos manuscritos antigos de Mateus, Marcos e Lucas aparece uma diversidade de topônimos ou locais colocados no inicio da narrativa desse episódio: gerasenos, gadarenos, gergesenos, gergesinos, gerse-senos e gersistenos. Ele leva em consideração a possibilidade do trecho da narrativa que conta o episódio da manada de porcos, que se afogam no mar/lago, ser um a-créscimo posterior. É com a introdução desse trecho que começam a surgir as di-vergências, já que Gerasa ou a terra dos gerasenos ficava distante do lago e mais ainda do mar mediterrâneo. Forçava-se, assim, aos redatores sinóticos, copistas e tradutores, a missão de tornar factível o afogamento dos porcos no mar ou no lago

(17)

da Galiléia, também chamado de Mar da Galiléia, colocando o episódio em Gedara, mais próxima do lago e ou Gergesa, situada á margem leste do lago.

Metzger (apud MEIER, 1998, p. 190, nota 17, cap. 20) cita três razões em preferir gerasenos: 1) as provas de textos ou códigos superiores da tradição alexan-drina e também da assim chamada tradição ocidental; 2) A probabilidade de garade-no, em alguns manuscritos marcanos, representar a assimilação à leitura original do texto paralelo em Mateus 8,28, pois segundo ele o evangelho de Mateus era o e-vangelho sinótico preponderante no período patrístico; 3) a probabilidade de gerge-senos ser uma correção, proposta inicialmente por Orígenes, e a forma própria do códice W “gergistenos” representar um idiossincrasia do escriba.

Acrescentamos a essas razões, em situar o exorcismo em Gerasa, como sendo algo diretamente vinculado ao contexto histórico da comunidade de Marcos, como veremos mais adiante.

2.2 CRÍTICA LITERÁRIA

A crítica literária procura estudar os textos como unidades literariamente for-muladas e acabadas (WEGNER, 2002, p.84)8, almejando definir a delimitação do texto, sua possível estruturação em partes menores, o nível de coesão interna do texto, a possível utilização e identificação de diferentes fontes.

8 Ver ainda Egger (1994, p. 52 e 158) que coloca a delimitação e a estruturação do texto em unidades

menores na fase preparatória ou na primeira orientação acerca do texto. Expediente semelhante em-prega Silva (2000, p. 67).

(18)

2.2.1 Delimitação

Precisamos estabelecer e justificar a exata extensão do texto que vamos e-xaminar, interligando-o com a estrutura maior do Evangelho de Marcos. Esse recorte na narrativa global é chamado de perícope, seguimento textual dotado de significa-do, sentido (EGGER, 1994, p. 53). Seguiremos indicativos de tempo, tema, e princi-palmente, de lugar ou topografia como critérios para estabelecer a delimitação tex-tual.

“E chegaram do outro lado do mar, na terra dos Gerasenos” (Mc 5,1). Jesus, em Mc 4,35-36, convida os discípulos para passarem para a outra margem do mar e deixando a multidão, partem de lugar indeterminado. Estão eles na barca, antes de chegar à outra margem, e são surpreendidos por fortes ventos e altas ondas no mar (4 37-38). Jesus é acordado e repreende os ventos, o mar e os discípulos pela falta de fé (4 39-40). Os discípulos ficaram possuídos de grande temor (Mc 4,41). Este é o contexto narrativo antecedente.

O único marco temporal encontra-se em Mc 4,35: “Naquele dia, sendo já tar-de”. Neste fim de tarde, início de noite, parece que acontecerão a passagem do mar (4,35-41), a libertação do “endemoninhado geraseno” (5,1-20), cura e constatação da cura da filha de Jairo (4,21-24. 35-43) e a cura da mulher com hemorragia (4,24b-34). Somente em 6,1 temos outro marco temporal e espacial: Jesus parte para sua terra, e quando chega dia de sábado começa a pregar na sinagoga (Mc 6,2).

Segundo Myers (1992, p. 234. 240), os dois lados do mar da Galiléia simboli-zam um território judaico e um território gentílico. O lado gentílico, o outro lado do mar, representa o desconhecido, o estrangeiro, o caos; ele está descrito na viagem

(19)

pelo mar na noite, nas duas tempestades que Jesus acalma (Mc 4,37; 6,48) e na situação do endemoninhado (Mc 5,3-5) que Jesus liberta.

Outros elementos caracterizam o lado gentílico: homem em espírito impuro (ánthropos em pnéumati akathárto Mc 5,2), a sua morada nos sepulcros (mnémasin Mc 5,2-3), a definição de Jesus por parte do endemoninhado: Jesus, Filho de Deus o Altíssimo, (Iesú huié tu theú tu hypsístu Mc 5,7). Este último é um “título que se encontra na linguagem helenística para designar a divindade” (DELORME, 1982, p. 27) e segundo Richter Reimer (2011, p.115 ) a expressão ‘Deus Altíssimo’ (theu hypsistos) é conhecida no mundo greco-romano e se refere ao Deus de Israel. Temos ainda a criaçao de porcos, (chóiron 5,11-13) e a identificação de “legião” (le-gión) como o nome dos espíritos impuros completam a apresentação de Gerasa co-mo cidade gentílica.

Assim, as travessias do mar (Mc 4,35-36; 5,1.18; 6,45; 8,10) representam o esforço, a luta para unir os mundos judeu e gentio. Freyne (1996, p. 55) julga propo-sital a utilização por Marcos do termo “mar” (thálassan) para indicar o lago de Gene-saré, pois ele proporcionaria um padrão simbólico e mítico bem mais rico. Represen-taria o caos e também o Mar Mediterrâneo por onde vieram as forças de ocupação romana.

Na narrativa marcana, Jesus se mostra como senhor do mar, e as diversas travessias colocam a reconciliação entre o lado judaico e gentílico diretamente no ministério de Jesus. Contudo será que ele pretendia, na sua atividade, ligar o univer-so judaico com o gentílico? Esse é um dos elementos que apontam para um possí-vel processo de construção da narrativa de Marcos 5,1-20 a partir de fontes e ne-cessidades diversas.

(20)

Temos, em Mc 5,2 – “E tendo ele saído do barco” – o início da narrativa da perícope; e em 5,18 – “E entrando ele no barco”–, o final. Por outro lado, Mc 5,1 faz a ligação com todo o Evangelho de Marcos: “Chegaram à outra margem” Em 5,21 a continuação ou retomada da narrativa da atividade messiânica de Jesus: ”Tendo voltado para o outro lado do mar”. Este parece ser o momento histórico da narrativa: Jesus na sua atuação ou atividade messiânica está a sós com os discípulos, apro-fundando em que consiste a sua messianidade, reconhecida depois por Pedro (Mc 8,29: “Tu és o Cristo”), e também pelo centurião romano após a morte de Jesus na Cruz (“Verdadeiramente este homem era o filho de Deus,” Mc 15,39).

Portanto, as delimitações assinalam que Marcos 5,1-20 compõe uma unidade textual completa dotada de sentido, com “porta de entrada e de saída”, expressão utilizada na metodologia popular de leitura bíblica.9 Wegner (2002, p. 85) fala que uma perícope tem “pé e cabeça”, ou seja, forma um todo orgânico com inicio e fim perfeitamente identificados. Mesmo interligado no contexto narrativo de Marcos, nosso texto apresenta um tema próprio e independente das narrativas anteriores e posteriores.

Há muitas estruturas gerais propostas para o Evangelho de Marcos, geral-mente divididas em três grupos, conforme a escolha do critério de divisão: uns op-tam pela questão geográfica, outros autores preferem o tema do drama gerado em torno do segredo messiânico, e ainda aqueles que utilizam como referencial a rela-ção de Jesus com seus discípulos (DELORME, 1982, p. 13).

Seguindo de forma breve o critério geográfico, os autores dividem o Evange-lho de Marcos em duas grandes partes, embora possam introduzir outras divisões e subdivisões: a primeira apresenta a atividade de Jesus na Galiléia e região (1,14–

(21)

9,50) e a segunda grande parte (10,1–16,8) mostra a subida e o ministério de Jesus em Jerusalém. Além disso, temos uma pequena introdução (1,1-13) e um acréscimo posterior (16,9-20).10 Logo, nossa perícope está localizada na primeira parte do e-vangelho. Ched Myers (1992, p. 232ss), coloca nosso texto numa subdivisão que chama de “a construção que Jesus faz de uma nova ordem social” (Mc 4,36–8,9).

O surgimento do texto marcano está relacionado a três fatos importantes, se-gundo o comentário ao Evangelho de Marcos de Sebastião Armando Gameleira So-ares e João Luiz Correia Júnior (2002, p. 13): 1) o desaparecimento da primeira ge-ração de discípulos e discípulas de Jesus; 2) as comunidades já acolhiam gentios, pessoas que não conheciam a cultura judaica, e isso é motivo de crise e conflito; 3) o judaísmo está em guerra com Roma: o texto sem dúvida está em relação com a guerra, quer tenha sido escrito imediatamente antes da guerra, quer durante ou logo depois.

Neste sentido, no texto de Marcos 5,1-20 aparece dois desses fatores, a atu-ação de Jesus em região pagã ou gentílica, com a cura, acolhida e envio de um ge-raseno como aparece ao final da pericope e também todo o conflito com as forças imperiais romanas, presente nos termos legião, porcos e na condição do possuído. Portanto, temos reflexos de duas grandes crises dos cristianismos originários: a crise ou conflito externo (Roma – Palestina) e a profunda crise ou conflito interno (judeus – gentios).

10 Ver formas de estrutura do evangelho de Marcos em Delorme (1982, p.13); Harrington (1997, 778);

Myers, (1992, p.147); Balancin (1991, p.7). Cássio Murilo Dias da Silva (2000, p. 275) aplica a meto-dologia de Exegese bíblica em um texto de Marcos (Mc 4,35-41), por isso cita diversas estruturas, formuladas por inúmeros autores. Veja ainda Kümmel (1982, p. 103) e Richter Reimer (2011, p. 80)

(22)

2.2.2 Estrutura de Marcos 5,1-20

Para estudo de nossa perícope, temos poucas estruturas de referência. Har-rington (1997, p. 778) propõe uma divisão em quatro partes, seguindo o conteúdo: 1) o endemoninhado (5,1-10); 2) o bando de porcos (11-13); 3) as pessoas da região (14-17); e 4) o homem libertado (18-20). Fossion (apud SCHIAVO, 1999, p. 40) divi-de o texto em dois grandivi-des blocos, marcados por inúmeros paralelismos: 5,1-13 e 5,14-20.

Schiavo (1999, p. 34) estrutura a perícope em cinco partes. Propõe uma or-ganização concêntrica em todo o texto, construída em torno de versículo 13: “E per-mitiu-lhes”, mostrando Jesus como o Senhor! Essa lógica concêntrica ou quiásmica pode ser encontrada em todas as subdivisões da perícope, segundo o estudo de Schiavo.

A estrutura que propomos não abarca tantas pretensões. Dividiremos o texto também em cinco partes, ressaltando a seqüência narrativa, o conteúdo e a utiliza-ção constante do verbo suplicar/exortar (parekalei)11, o poderio ou autoridade de Jesus e, numa formação concêntrica, a identificação, por parte de Evangelista ou redator, dos espíritos impuros com as legiões romanas e destas com os porcos. Esta estrutura está assim representada:

2.2.2.1 Jesus encontra o homem em espírito impuro (Mc 5,1-6)

O poder (dynamis) de Jesus é ressaltado pela gravidade e dramatici-dade da cena e das condições da pessoa. Diversas vezes tinham tentado detê-lo 11 Myers (1992, p. 238) chama a atenção para a repetição do verbo parakelein, empregado em

diver-sas pessoas verbais e sempre seguido da expressão autón, porém não faz referência dessa recor-rência com a estrutura da perícope.

(23)

(5,3), no entanto, “ninguém podia prendê-lo”, ou “ninguém era suficientemente forte para dominá-lo” (5,4) e, apesar disso, “vendo Jesus, correu e prostrou-se” (5,6). Es-sa descrição é comovente (MEIER, 1998, p. 174), mas deve-se contar com a possi-bilidade de ser argumento narrativo e também teológico: a chegada da mensagem de libertação e cura aos gentios, executada pelo próprio Jesus, e caracterizada tam-bém pelo envio, em 5,19.

2.2.2.2 Jesus encontra a legião (5,7-10)

A partir desse momento, passa a ser recorrente o verbo suplicar/exortar (pa-rekalein), marcando fortemente a autoridade de Jesus, a qual é ressaltada neste bloco pelo reconhecimento de seu nome e de sua condição divina por parte do espí-rito impuro (5,7), pela ordem que ele dá ao espíespí-rito (5,8), e ainda no modo como Je-sus consegue arrancar o nome da “legião” (5,9). Por fim, a “legião” lhe suplicava (pa-rekálei autón) para que não a mandasse para fora da região (5,10).

2.2.2.3 Os espíritos impuros encontram a legião de porcos (5,11-13)

A súplica (parekálei autón) dos espíritos impuros para entrarem nos porcos (5,12) continua dando intensidade à força de Jesus, que tem seu ápice na permissão para que os espíritos impuros entrem nos porcos (5,13), como também indica Schia-vo (1999, p. 36).

(24)

A atuação de Jesus foi grandiosa, provocou fuga e morte da “legião” de por-cos com os espíritos impuros, incluindo a fuga dos porqueiros (5,14) e a repercussão de suas ações nos campos e cidade, tanto que saíram para ver o acontecido. A no-va condição do que fora endemoninhado - sentado, vestido e sóbrio – desperta te-mor, bem como a concretização do poderio (dynamis) de Jesus, como instaurador de uma nova ordem (5,15). As pessoas da região passam a suplicar-lhe (parekálei autón) para que deixe as fronteiras da região de Gerasa (5,17).

2.2.2.5 O ex-endemoninhado encontra Jesus (5,18-20)

A transformação da pessoa que fora endemoninhada é completa. Ela começa a suplicar para que possa continuar com Jesus (5,18), mas este não o permite, envi-ando-lhe em missão para anunciar (apángueilon) na região o que Jesus fizera por ela (5,19). O sucesso de sua empreitada, e conseqüentemente a de Jesus, é garan-tido pelo espanto de todos (5,20). Enquanto os porqueiros anunciaram (apéngueilan) a morte dos porcos (5,14), o que fora endemoninhado passa a anunciar (keryssein) – típico verbo de envio ou missionário que aparece também em Mc 1,45; 3,14 – o que Jesus, na sua misericórdia, fez por ele (5,20).

Numa visão global da perícope como veremos abaixo, percebemos a forma-ção de uma estrutura concêntrica com dois paralelismos antitéticos, ou seja, dois membros ou grupos de expressões equivalentes em alguns traços, mas que indicam uma contradição ou um sentido contrário (WEGNER, 2002, p. 91).

No centro estão à conexão dos espíritos impuros com as ‘legiões’ e estas se entrelaçam com os porcos. Os paralelismos mostram a mudança no ser do geraseno que fora endemoninhado, e também apresentam as posturas convergentes das

(25)

pes-soas e da ‘legião’, isto é, recusa e conflito com Jesus. Vejamos a estrutura concên-trica e os paralelismos:

a - Jesus encontra o homem em espírito impuro b - Jesus encontra a legião

c - Os espíritos impuros encontram a legião de porcos b’- A coletividade encontra Jesus

a’- O que fora endemoninhado encontra Jesus

Por esta estrutura deduzimos que a condição inicial do homem em espírito impuro é de possuído (a) e a final é de pessoa libertada e libertadora (a’); a legião suplica a Jesus para não sair da região (b) e a coletividade suplica para que Jesus saia (b’). O centro aponta para a identificação dos espíritos impuros com as legiões romanas (c), aspecto que aprofundaremos mais a diante.

Embora seja uma estrutura não tão bem elaborada, ela permite duas afirma-ções: o contexto geral do texto de Marcos 5,1-20 segue a intencionalidade de mani-festar o poder e autoridade de Jesus (dynamis, exousia) com um exorcismo em regi-ão gentílica. Nregi-ão seria essa uma memória central do ministério de Jesus?

Por outro lado, a estrutura narrativa final aponta um trabalho redacional do evangelista, redator ou da comunidade de Marcos, no sentido de vincular os espíri-tos impuros, ou forças demoníacas, com as forças militares de dominação do impé-rio romano, por meio da utilização dos termos “legião” (legion) e porcos (choiron).

Além disso, chama atenção o envio de um missionário gentio em região gentí-lica para anunciar o Evangelho (apangueilon, keryssein). Vamos aprofundar essas

(26)

discussões no estudo da coesão textual, do vocabulário e na abordagem das possí-veis fontes de nosso texto.

2.2.3 Integridade e Coesão do Texto

A apreciação da integridade e da coesão do texto nos ajuda a identificar pos-síveis alterações e o alcance da formulação originária que se manteve no texto, a-proximando-nos o máximo possível de sua forma primitiva.12

Sabemos que a falta de coesão pode ser verificada nas duplicações, contra-dições, quebras na linha argumentativa, mudanças abruptas de conteúdo ou estilo, glosas ou adendos explicativos. Portanto, como nos diz Egger (1994, p. 160), esse passo da crítica literária está baseado em critérios de incoerência. Vamos procurar alguns elementos indicadores de incoerência narrativa em Marcos 5,1-20, que apon-tem para um possível processo de redação, realizado em diversos momentos e con-textos.

O versículo Mc 5,1 parece um elemento redacional ou ao menos sugere mu-dança de conteúdo: “E chegaram do outro lado do mar”, indica a presença dos dis-cípulos, mas estes não aparecem em momento algum na perícope. Somente Jesus retorna ao barco em 5,18.

Em 5,2 temos uma palavra mencionada uma única vez no evangelho de Mar-cos, “veio ao seu encontro” (hypéntesen).13 Este mesmo versículo indica para a exis-tência de um espírito impuro, impressão retomada no versículo 7, “o que há entre 12 Ver definições e aprofundamentos em torno da coesão e integridade em Wegner (2002, p.99); Silva

(2000, p.174); e Egger (1994, p.160).

13 Detalhes da narração, como quantidade de citações de palavras, presença de hapax legómena,

veja Schiavo (2000, p. 24) e Programa Bible Works, Versão 5.0 em CD-ROM. Veja também a Con-cordância (1994)

(27)

mim e ti” e no comentário do verso 8. A partir de 5,9 passam a “ser muitos”, abrindo possibilidade literária para a identificação deles com a “legião” e o episódio da ma-nada dos porcos no em Mc 5,11.

Encontramos diversos hapax legómena, palavra ou expressão que aparecem uma única vez no Novo Testamento: nos versículos 3 e 4: “tinha sua morada” (katoi-kesin); “fora preso” (dedésthai), “foram cortadas” (diespásathi), “foram quebradas” (syntetrífthai) (CONCORDÂNCIA, 1994, p. 433).

Além disso, ocorre uma descrição minuciosa da situação do homem em espí-rito impuro, como se o narrador tivesse presenciado um longo processo de sofrimen-tos, ferimensofrimen-tos, loucuras e tentativas de prisão. Por exemplo, a utilização do termo “muitas vezes” (pollákis) e a dupla indicação temporal do versículo 5: “todo o tempo, de noite e de dia” (kai dia pantós nyktós kai heméras). Encontramos também repeti-ções dos vocábulos “correntes” e “cadeias” e o uso da expressão “ferindo a si mes-mo com pedras” (katakópton heautón líthois), utilizada somente em Mc 5,5.

Em Marcos 5,6, a pessoa em espírito imundo está tranqüila, numa atitude de submissão a Jesus: “prostrou-se e o adorou”. Já no versículo 7, o clima de tensão retorna e passa-se do estilo narrativo para o dialógico (5,7-10). Porém, no meio do diálogo e no embate pela descoberta mútua dos nomes, temos uma glosa ou co-mentário do narrador em Mc 5,8: “Pois de fato havia dito a ele: ’sai espírito imundo deste homem”, único indício de ação exorcística de Jesus. O termo “sai” (exélthe) também é utilizado em Mc 1,25, na sinagoga de Cafarnaum, e em Mc 9,25, na cu-ra/exorcismo do filho com espírito mudo.

A definição do nome do espírito impuro como ‘legião’ (legión), em 5,9, aponta uso de latinismo (MYERS, 1992, p. 238), termo derivado da língua latina. Volta-se à narração descritiva a partir do versículo 11, com a entrada em cena da vara de

(28)

por-cos pastando (boskoménen), expressão somente utilizada nos textos paralelos de Mt 8,30 e Lc 8,32.

Ocorrem várias imagens militares em Mc 5,11-13, como veremos a seguir nas características lexicais. Os espíritos impuros não querem sair da região (5,10), entre-tanto, somente entram nos porcos precipitam-se no abismo, morrendo afogados no mar. Outro comentário do redator identifica a quantidade de porcos: aproximada-mente dois mil (5,13). Trata-se de muitos porcos a serem contados em tão pouco tempo! Gundry (apud SCHIAVO, 1999, p. 30) afirma que uma vara de porcos não superaria a 150-200 unidades, extraordinariamente 300.

Em 5 14-17 narra-se a fuga dos porqueiros a anunciar pelos campos e cidade o que acontecera aos porcos e ao endemoninhado, bem como a saída das pessoas. Por hipótese consideraremos que saíram da cidade, pois as pessoas dos campos já estavam fora.

Em 5,15 utiliza-se o vocábulo endemoninhado (daimonizdómenon), aludindo à atuação do demônio simultaneamente com o espírito impuro, ou que possuam o mesmo significado. Jesus promove uma positiva libertação, tirando o perigo de vio-lência do endemoninhado, mesmo assim, pedem para que Jesus saia da região. Mais adiante, teceremos uma hipótese sobre quem e por que teriam pedido para que Jesus saísse.

Por fim, em 5,18-20 Jesus dialoga com aquele que fora endemoninhado e o envia, empregando termos missionários (apángueilon, keryssein). Este proclamaria na Decápole as grandes coisas que o Senhor, em sua misericórdia, fez por ele (pe-póieken kai eléesen). Aqui (Mc 5,19) Jesus é chamado de “senhor” (kyrios) e as o-bras que fez (epóiesen) são retomadas no final do texto (5,20).

(29)

Schiavo (1999, p. 46) chama atenção para a presença constante de comentá-rios ou adendos ao texto de Marcos 5,1-20. Aparecem muitos comentácomentá-rios que pro-vocam uma interrupção no curso da narrativa. Como por exemplo, no versículo 4 o narrador passa e explicar a informação dada no versículo 3 que nem mesmo com cadeias podiam prender o homem em espírito impuro. E por isso, muitas vezes ti-nham tentado prendê-lo, mas em vão porque o endemoninhado quebrava as corren-tes e ninguém era suficientemente forte para dominá-lo, porque era muito forte, a-brindo assim caminho narrativo para a introdução de onde vinha tanta força, dos 2.000 demônios.

Em 5,8 aparece outro comentário explicativo ou como justificativa das súpli-cas e reclamações da pessoa possuída em espírito impuro para que Jesus não a atormentasse, narradas no versículo 7. Temos o comentário que volta atrás e justifi-ca tal postura, afirmando a expulsão do espírito: “De fato Jesus havia dito: Sai, espí-rito imundo, dessa pessoa”!

Em 5,11 interrompe-se bruscamente o diálogo-embate entre Jesus e a pes-soa possessa em espírito impuro, para contar a existência da manada de porcos que se alimentava nas proximidades, perto da montanha, permitindo a continuidade da narrativa com o episódio da entrada do espírito impuro nos porcos nos versículos 12 e 13.

E por fim, em 5,20 encontramos o comentário: e todos ficaram admirados, marcando a autoridade/força de Jesus na total transformação da situação, segundo os olhares, sentimentos e reconhecimentos de muitos espectadores.

Feitas essas observações, percebemos a força do redator/autor que adentra na narrativa, como alguém que tivesse presenciado os acontecimentos e sabe de eventos e fatos precedentes. Além disso, ele enriquece a narrativa com detalhes,

(30)

comentários explicativos que envolvem o leitor na manifestação do poder das pala-vras e ações realizadas por Jesus.

Podemos concluir, de forma geral, que há no texto de Marcos 5,1-20 diversas repetições, duplicações, uso de estilos literários diversos, adendos ou comentários do redator e a utilização de alguns hapax legómena. Trata-se de um texto com coe-são de conteúdo, mas que sofreu longo processo de construção, aparentemente com uso de diferentes fontes. Meier (1998, p. 172) define Mc 5,1-20 como uma des-conexa, às vezes incoerente, porém concreta e bizarra narrativa:

Os muitos problemas, conflitos e mesmo as contradições dessa história sem dúvida refletem uma evolução complicada, ao longo de décadas, de uma narrativa mais simples para o relato barroco que Mc 5,1-20 nos apre-senta.

2.2.4 Fontes e Tradições

Aceitando-se a teoria das duas fontes (Marcos e a fonte Q) como base para Mateus e Lucas, é muito difícil chegar às possíveis bases literárias de Marcos. Além disto, as tradições orais e memórias precedentes ao processo de redação são fontes frágeis e hipoteticamente levantadas pelos estudiosos contemporâneos.14 Marcos seria o primeiro Evangelho, marcado por essas tradições orais e memórias. Ao lado de Marcos haveria uma fonte independente que contém uma coleção de ditos (logia) de Jesus (Mt 8,11-12, cf. Lc 13, 28s; Mt 6,9-13, cf. Lc 11,2-4) sugerida pela primeira vez por Schleiermacher em 1832, chamada de Q do alemão Quelle, fonte.

14 Sobre as teorias das fontes, ver Wegner (2002, p. 106); Theissen e Merz (2002, p. 45). Estes

auto-res chegam a propor algumas coleções de materiais tradicionais, orais e escritos, que o redator de Marcos teria colecionado. Entre eles estaria o bloco de narrativas de milagres de Mc 4-6, no qual está inserido nosso texto. Veja também Kümmel (1982, p. 36); Meier (1992, p. 50), entre outras inúmeras obras que tratam do tema das fontes.

(31)

Portanto, a maior dificuldade para se efetuar o estudo da redação está nos textos de Marcos, pois não possuímos as fontes que lhe serviram de base e em que medida ou como essas fontes foram conservadas e modificadas pelo redator (SOA-RES e CORREIA, 2002, p. 15).

Assim sendo, Marcos é o mais antigo evangelho canônico escrito, e quando tratamos das fontes de passagens particulares da narrativa marcana, lidamos com hipóteses. É nas reflexões sobre as fontes que vamos incluir alguns indícios do que se chama de crítica da tradição e da redação (EGGER, 1994, p. 166; WEGNER, 1998, p. 122).

Meier (1998, p. 173; p. 175) chama a atenção para o fato de que o “exorcis-mo” do endemoninhado geraseno é o único e genuíno relato de exorcismo ligado a uma cidade pagã e o único milagre de Jesus vinculado concretamente a uma cidade da Decápole. Isso o leva a afirmar que Jesus realmente teria realizado um exorcismo nesta região, informação conservada na tradição oral.

Se a imaginação cristã primitiva quisesse criar uma história fictícia para o exorcismo de Jesus, é estranho que tenha acertado com a dupla raridade fi-lológica de território dos gerasenos na Decápole. A absoluta originalidade da designação geográfica – sem paralelo na bíblia e na primitiva tradição cristã – talvez reflita um evento histórico singular (MEIER, 1998 p. 175).

Por outro lado, os detalhes da narrativa, como o episódio dos porcos e a iden-tificação do espírito impuro com a “legião”, segundo ele pertenceriam ao nível de redação de Marcos, ou seja, seriam acréscimos posteriores (MEIER, 1998, p. 174).

Mais adiante vamos tentar aprofundar esse evento histórico particular não como um milagre de exorcismo de Jesus realizado na Decápole ou especificamente em Gerasa, e sim como um evento marcante para a comunidade de Marcos, ou se-ja, a retomada violenta de Jerusalém pelas tropas romanas entre os anos de 66-70 d.C., compartilhamos assim a teoria de Myers (1992, p. 237):

(32)

A conclusão é irresistível: a de que encontramos imagens que visam recor-dar a ocupação militar romana da Palestina. Tendo sido enfrentado pela classe dirigente judaica na sinagoga controlada pelos escribas, Jesus ai en-contra a “outra metade” do condomínio colonial: o demônio agora represen-ta o poder milirepresen-tar romano.

O processo de elaboração de Marcos 5,1-20, como vimos, tem sua trajetória marcada pela tradição oral mesmo que frágil e hipotética, que por sua vez é profun-damente influenciada pelos textos veterotestamentários.

Meier (1998, p. 192, nota 28) aponta para o texto de Is 65,1-5, especialmente o versículo 4: “que mora entre as sepulturas e passa as noites em lugares misterio-sos; come carne de porco e tem no seu prato ensopado de carne abominável”. No contexto do profeta Isaias trata de ritos e costumes de povos estrangeiros que

O afogamento da “legião” de porcos no mar (Mc 5,13) evoca Ex 14,15ss, on-de é narrada a morte dos cavalos e do exército do faraó do Egito no mar dos juncos (RABUSKE, 2001, p. 262). Nesta direção podemos acrescentar também Ne 2,3-5 e sua preocupação com os sepulcros/memorial de seus pais em Judá (mneméion) e com a cidade desolada e as portas comidas pelo fogo, que poderia bem ser a des-crição da tomada de cidade de Gerasa por parte das forças militares romanas, como veremos na crítica da historicidade de Marcos 5,1-20.

Além dessas tradições veterotestamentárias, Schiavo (1999, p.70) enumera supostos ambientes de origem de nosso texto e marcas deixadas por seus autores. Apresenta a possibilidade da existência de um núcleo advindo da atividade de Je-sus. Poderia ser uma lenda popular conservada na memória e tradição oral dos dis-cípulos. A identificação dos porcos com a ocupação militar romana com seus legio-nários indicaria que o texto foi influenciado e construído no período da guerra judai-ca. Além disso, Marcos 5,1-20 conteria indícios da coerção promovida por Herodes

(33)

Antipas para que judeus povoassem Tiberíades, cidade construída por ele nas mar-gens do lago de Genesaré, sobre um antigo cemitério.

E ainda, a comunidade de Marcos teria deixado sua marca missionária nos versículos 18-20, colocando em Jesus o início na missão cristã na Decápole. De qualquer forma, o nosso texto contém uma diversidade de pequenas tradições e memórias que, agrupadas, constituíram uma densa narrativa.

2.2.5 Comparação Sinótica

Na comparação sinótica pretendemos olhar de forma conjunta, ou simultânea, a narrativa da ação exorcistica de Jesus em Gerasa/Gedara nos três evangelhos: Mateus, Marcos e Lucas (Ver Anexo 1, p. 100). O problema sinótico consiste em a-veriguar a simultaneidade narrativa dos três primeiros Evangelhos, destacando as afinidades, semelhanças ou concordâncias, detalhes comuns e as divergências ou ainda o material particular de cada narrativa Com isso, daremos seguimento às dis-cussões acerca das fontes do texto de Marcos 5,1-20, como também abordaremos elementos do universo vivencial do texto, percebendo no próprio da narrativa marca-na elementos que caracterizavam o momento e o contexto históricos, necessidades e objetivos em reconstruir essa narrativa.

2.2.5.1 Elementos comuns às três narrativas (Mt 8, 28-34; Mc 5,1-20; Lc 8,26-39)

- Travessia de barco e chegada do outro lado.

- Endemoninhado ou endemoninhados que veem ao encontro de Jesus. - Túmulos como morada do endemoninhado (os).

(34)

- Descrição breve ou mais longa da condição do endemoninhado e dramaticidade da situação.

- Grita (gritam) a Jesus em alta voz.

- Jesus representa em todas as narrativas uma ameaça de tormentos. - Havia ali, não muito longe, uma manada de porcos.

- O rogo para que Jesus mandasse demônios, espíritos impuros, para manada de porcos.

- Permissão de Jesus.

- Saída dos espíritos/demônios e entrada deles nos porcos.

- Manada de porcos se precipita precipício abaixo e morrem afogados na água (mar, lago).

- Fuga dos porqueiros para contar na cidade o acontecido. - As pessoas saíram para ver o acontecido.

- Testemunho: os porqueiros contam o que aconteceu com o que fora endemoni-nhado e com a manada de porcos.

- Pedido para que Jesus saísse do território.

2.2.5.2 Afinidades de Marcos e Lucas – (Mc 5,1-20; Lc 8,26-39)

- O episódio acontece na região dos gerasenos.

- A pessoa possuída chama a Jesus de filho do Deus altíssimo.

- Narram o processo de conquista do nome do espírito impuro por parte de Jesus – eles se definem como Legião, porque são muitos.

(35)

- O endemoninhado pede para ficar com Jesus. Jesus não aceita que o ex-endemoninhado entre no barco com ele.

- Apresentam o envio para casa daquele que fora endemoninhado para anunciar o que o senhor fez por ele.

- A pessoa sai a proclamar, em Marcos e Lucas, tudo que o senhor fez por ele.

2.2.5.3 Específico de Mateus (Mt 8, 28-34)

- O episodio acontece no território dos gadarenos. - Mateus apresenta dois endemoninhados.

- Ninguém podia passar pelo caminho onde estavam os endemoninhados. - Os possessos gritam Jesus Filho de Deus.

- Jesus é apresentado como aquele que pode atormentar fora do tempo.

- Omite o noticiário do fato nos campos, somente na cidade se faz o anúncio do que aconteceu com o porcos e os endemoninhados.

- Não descreve a situação dramática dos dois endemoninhados e não usa o termo legião.

- Não aparece o envio missionário na região.

2.2.5.4 Específico de Marcos (Mc 5,1-20)

- O homem em espírito impuro é descrito com muitos detalhes e, no fim, o espírito impuro se torna uma legião, porque são muitos.

- Aparece três vezes o termo “espírito impuro” em relação à força de posses-são/dominação, e três vezes comenta a nova situação daquele que fora

(36)

endemoni-nhado: eles vêem o endemoninhado sentado, vestido e sóbrio, ele que tinha tido a legião, e ficaram com temor (Mc 5, 15).

- Situação de pesar e sofrimentos do possuído de espírito impuro. - O número de 2.000 porcos que morrem afogados no mar.

- Aparece o envio do que fora endemoninhado para casa e para os seus e para pro-clamar o que o senhor fizera por ele; o envio é feito especificamente para a Decápo-le.

2.2.5.5 Específico de Lucas (Lc 8,26-39)

- O homem possesso por demônios é identificado como sendo da cidade.

- O possesso andava sem roupas e era possuído com freqüência e impelido para lugares desertos.

- Comentário em seguida ao termo “legião”: porque eram muitos demônios que havi-am entrado nele. Mas não específica a quantidade como faz Marcos.

- Os demônios pedem que Jesus não os mande para os abismos.

2.2.6

Tecendo a Análise

Sinótica

Mateus constrói uma narrativa mais simples e objetiva. Aparecem dois ende-moninhados furiosos que impediam que as pessoas passassem por aquele caminho. Chamam a Jesus de Filho de Deus que veio para atormentá-los antes do tempo. A fuga dos porqueiros se dá para a cidade, de onde saem todas as pessoas exclusi-vamente para rogar a Jesus que se retire do território deles. Trata-se simplesmente da ação de Jesus de expulsar demônios (Mt 8,30) ou de libertar endemoninhados (Mt 8,28).

(37)

Sobre a narrativa de Mateus podemos concluir com Schiavo (1999, p. 57): Não se fala nada a respeito da situação dos dois possuídos, nem da Legião, nem do anúncio missionário do homem libertado à região da Decápole. A impressão é que para Mt a localização geográfica e a Decápole não interessa muito: este milagre po-dia ser situado em qualquer lugar geográfico!

A narrativa de Marcos é rica em detalhes, descrição pormenorizada da situa-ção do possesso em espírito impuro, que mais adiante é nomeado de legião. É muito presente o aspecto militar de opressão, dominação. A cidade de Gerasa tem muita importância, como também o anúncio do evangelho de Jesus Junto aos gentios. A notícia se espalha tanto nos campos como na cidade, de onde saem as pessoas, que por causa do temor, suplicam para que Jesus deixe o seu território.

Na narrativa de Lucas encontramos muitos elementos comuns com o texto marcano. De particular na narrativa lucana percebemos a necessidade de Lucas em dizer que a terra dos gerasenos estava do lado oposto da Galiléia. Ressalta-se que o homem possesso em espírito impuro é da cidade, andava sem roupas e não habi-tava em casa alguma e constantemente era impelido pelo demônio para lugares de-sertos. Lucas mantém o termo “legião”, indicando que eram muitos demônios que entravam na pessoa, mas não específica o seu número, 2.000, como faz Marcos. O afogamento dos porcos com a legião se dá no lago, e por fim, Jesus insiste com a pessoa liberta para que volte a sua casa e conte tudo o que Deus fizera por ele ou em seu favor como em Marcos.

Schiavo (1999, p. 58) afirma que casa e deserto são temas típicos da teologia lucana: o deserto é o lugar da tentação, e a morada do diabo (Lc 4,1-13), a casa é o lugar da comunhão, do pão repartido, da fraternidade, da missão, onde nasce a co-munidade e se faz presente Jesus ressuscitado (Lc 24,13-49). A pessoa, para ser

(38)

libertada tem que refazer o caminho do povo antigo (Êxodo), de João Batista e de Jesus: ir para o deserto, se libertar das amarras do diabo, fazer a experiência do en-contro com Jesus, para voltar para a cidade e nas casas anunciar tudo isso. É muito presente neste esquema a experiência das primeiras comunidades cristãs, assim como são descritas em Lucas e nos Atos dos Apóstolos.

Levando em consideração a teoria das duas fontes (Mc e Q) que comporiam os evangelhos sinóticos, mais o material específico ou próprio das Fontes M (Ma-teus) e L (Lucas) conclui-se:

O texto de Mc 5,1-20 não aparece na fonte Q, que é uma fonte de sentenças e ditos e não de milagres, curas e exorcismos de Jesus. Assim, a fonte primeira é Marcos, que foi utilizado por Mateus e Lucas. Mateus reconstruiu de forma mais bre-ve, enquanto Lucas repete muito elementos da narrativa marcana, embora ambos introduzam temas caros a cada um (SCHIAVO, 1999, p 48).

2.2.7 Estudando o Vocabulário

Com a aproximação ao vocabulário e seu significado, passamos a conectar a estrutura narrativa e o ambiente externo ou vital da comunidade marcana. No texto de Mc 5,1-20, encontramos três grupos maiores de palavras, um ligado ao âmbito da pessoa do endemoninhado, outro que aponta para imagens militares e um terceiro que indicam Jesus e seu poder e autoridade.

Entre os termos ligados à pessoa podemos citar: “homem em espírito impuro’” (ánthropos em pnéumati akathárto), “morada em sepulcros” (katóikesin éichen em tois mnémasin) “cortar e quebrar as cadeias, gritar” (kradzon) “ferir-se com pedras”

(39)

(katakópton heautón líthois) “sentado, vestido, são juízo” (kathémenon himatisménon kai sofronúnta) e “enviado a anunciar” (apángueilon, keryssein).

Myers (1998, p. 238) chama atenção para o fato de que a narrativa de Mc 5,1-20 está repleta de imagens ou termos militares, a começar por “legião” (legión) . Ou-tras importantes são: “correntes ou grilhões”, possivelmente postas nos pés (pedais), “cadeia” (halyseis), “dominar, domar, prender, subjugar” (dédesthai, damásai), “ma-nada/vara de porcos” também compreendida como bando de recrutas (anguéle chói-ron), “mandar, enviar, escoltar” (pémpson) “permitir, dispensar, ordem para batalha” (enétrepsen, hórmesen) (PEREIRA, 1984, p.443).

Podemos concluir os dois primeiros grupos de palavras ou vocábulos com as afirmações de Schiavo (1999, p. 43):

Há uma forte acentuação na opressão física, no corpo machucado e corta-do, no desespero da pessoa, que beira a loucura. Isso pode estar ligado à questão militar e social. A ação de Jesus visa restabelecer o indivíduo na sua dignidade de pessoa e na liberdade de suas ações.

Os termos cadeias, grilhões e correntes em outras passagens bíblicas estão diretamente vinculados a experiências de prisão, algumas efetuadas pelos represen-tantes oficiais do Império Romano. Isso pode ser verificado em At 12,6-7; 21,33; 28,20; Ef 6,20; 2 Tm 1,16; Ap 20,1.

No primeiro Testamento grilhões, ferros e correntes são utilizados especial-mente em prisioneiros de guerra: prisão de Sansão por parte dos filisteus (Jz 16, 21); o rei Davi relatando como morreu Abner sem se defender, embora não estivessem amarradas suas mãos e nem seus pés presos em grilhões (2 Sm 3,34); prisão do reis Sedecias por parte dos Babilônios (2 Rs 25,7); Generais Assírios puseram ferros e cadeias em Manassés (2Cr 33, 11); No Salmo 105,18 louva a ação de Deus na história da aliança, mesmo com José que teve os pés afligidos com grilhões e ferros

(40)

ao pescoço; e por fim em Jeremias 52, 11 que retoma a prisão de Sedecias que foi atado com cadeias de bronze (MAGGI, 2003, p. 136). Em muitas dessas prisões de guerra acompanhava o uso das cadeias, grilhões e correntes, o hábito de vazar o olho do inimigo.

Deste modo, na região de Gerasa na Decápolis, onde Marcos situa este exor-cismo de Jesus, havia uma situação ou contexto de aprisionamento. Devido à forte presença de termos militares, provavelmente as forças de ocupação, dominação e aprisionamento dos gerasenos eram as tropas romanas.

Outro campo semântico faz referência a Jesus, mesmo que de forma indireta ou com referência a ele. O texto de Mc 5,1-20 não faz qualquer apresentação de Jesus, somente o titulo dado pelo espírito impuro: Filho do Deus altíssimo. Não são citados os termos que caracterizam o agir e o ser de Jesus: dynamis, exousia. A descrição da gravidade do cenário, cenas, da personagem possessa, do confronto entre Jesus e o espírito impuro, e ainda a força dos verbos, demonstram a grandeza de Jesus e de sua atuação no território gentílico de Gerasa na Decápole.

Soares e Correia (2002, p. 221) descrevem bem a situação da pessoa em es-pírito impuro e o grau de tensão que envolve todo o cenário de Mc 5,1-20. Trata-se do outro lado do mar, lugar do desconhecido, do caos. Local de impureza radical. A pessoa em espírito impuro irrompe do mundo da morte, dos sepulcros. Tem aspecto amedrontador e ninguém pode prendê-lo. Num quadro pintado com cores tão vivas e dramáticas a atuação de Jesus será grandiosa.

Observamos que o verbo ordenar, epitimao, encontrado nas narrativas de exorcismos em Marcos (1,25; 9,25), para caracterizar a expulsão de espíritos impu-ros, demônios, não aparece na narrativa de Mc 5,1-20. Além de ser usado nas narra-tivas de exorcismo, epitimao, ordenar, repreender é empregado em muitas

(41)

passa-gens do novo testamento, especialmente nos sinóticos, com o sentido de desapro-vação, censura. Às vezes, como vimos, para repreender quando Jesus expulsa os demônios (Mc 1,25; 9,25), dissipar a febre (Lc 4,39); silenciar a tempestade (Mc 4,39). Jesus Censura também discípulos, doentes, ex-endemoninhados para que não anunciem ou publiquem o que Jesus fizera por eles. E ainda, epitimao se refere a censuras ou castigos administrados pela igreja na discíplina congregacional, no sentido de exortar/exortação, repreensão (ANGEL, 2000, p. 769).

Assim em Mc 5,6-10, onde se dá o confronto/embate/diálogo de Jesus com o(s) espírito(s) impuro(s), não encontramos o verbo epitimao. Especificamente, quando Jesus ordena a saída do espírito impuro (Mc 5,8) é empregado unicamente o verbo no imperativo sai (exelthe), que se encontra também em Mc 1,25, quando ele expulsa o espírito impuro da sinagoga. Jesus ordena a saída do espírito impuro da pessoa unicamente com a sua palavra de ordem.

Em Mateus e Lucas, nos comentários sobre a autoridade/poder de Jesus em expulsar demônios, é empregado o termo ekballo, lançar fora, expulsar, enviar para fora. Essa palavra tem significância teológica tão-somente com a expulsão dos de-mônios. Jesus com a autoridade de Deus (Mc 1,24; Mt 12,28, Lc 11,20), mostrou que era mais forte que os demônios/espíritos impuros. Eles tinham que se render e se curvar diante de Jesus (BIETENHARD, 2000, p. 518).

Em Mc 5,6 diz que assim que a pessoa possessa em espírito impuro viu Je-sus, mesmo de longe, correu e prostrou-se diante dele. Trata-se do termo grego proskyneoque expressa o sentido de adorar, prestar homenagem, prostrar-se, fazer reverência. Nos evangelhos sinóticos, quando se faz qualquer reverência a Jesus, é o reconhecimento de sua divindade, aquele que pode agir com onipotência divina. E denota adoração exclusiva que se dirige a Deus ou a Jesus Cristo (SCHÖNWEISS e

(42)

BROWN; 2000, p. 1455). Portanto, no contexto de Marcos 5,1-20 refere-se ao reco-nhecimento da divindade de Jesus Cristo (5,7). Com reverência e humildade o pos-sesso em espírito impuro solicita, esconjura, horkídzo, para que Jesus não o ator-mente, basanises, basanos. O encontro com Jesus é causa de tormentos para os demônios (MUNDLE, 1980, 1256), indicando assim seu poderio contra as forças do mal.

Em Marcos 5,1-20 aparece por 4 vezes o verbo suplicar, parakaleo, e em to-das elas a súplica, pedido, rogo, apelo, é dirigido a Jesus e por diversas persona-gens no decorrer da narrativa. Duas vezes a legião súplica a Jesus: que não a mandes para fora da região (5,10), e outra vez, a legião implora para que Jesus a envie para dentro dos porcos. As pessoas que saíram da cidade, depois do anúncio feito pelos que guardavam os porcos, pedem a Jesus que ele deixe os seus confins, fronteiras, limites (5,17). E por fim, aquele que fora endemoninhado solicita para que possa partir junto com Jesus, mas este não o permite. Em todas as partes dos sinó-ticos parakaleo significa pedir, implorar, em contexto de pessoas necessitadas que chegam diante de Jesus com os seus pedidos (BRAUMANN, 2000, p. 768).

Depois de dirigidas as súplicas, indicando a capacidade ou condições de Je-sus em atendê-las, ocorrem as respostas. JeJe-sus permite que a legião vá para os porcos e depois eles partem em disparada para o mar. Ele sai da região conforme a súplica das pessoas que vieram até ele depois de terem ouvido o anúncio dos por-queiros. E terminando, Jesus não permite que o ex-endemoninhado o acompanhe ao entrar na barca.

Jesus é o centro das atenções, do possesso em espírito impuro, da legião que se aloja nos porcos, das pessoas que veem o que ele fizera com os porcos e com o que fora endemoninhado. Além, é claro, da nova condição daquele que fora

Referências

Documentos relacionados

MATRÍCULA nº 4.540 do 1º CRI de Piracicaba/SP: 01 (UMA) GLEBA DE TERRAS, situada no imóvel denominado “Algodoal”, contendo a área de 53.982,00m², desta cidade, que assim

Com base no trabalho desenvolvido, o Laboratório Antidoping do Jockey Club Brasileiro (LAD/JCB) passou a ter acesso a um método validado para detecção da substância cafeína, à

desenvolvido e aplicado por Torres (2009), que permitiu recolher informação, de modo auto-reportado, acerca da sintomatologia musculoesquelética associada ao desempenho

A Escala de Práticas Docentes para a Criatividade na Educação Superior foi originalmente construído por Alencar e Fleith (2004a), em três versões: uma a ser

Acreditamos que o estágio supervisionado na formação de professores é uma oportunidade de reflexão sobre a prática docente, pois os estudantes têm contato

O Conselho Deliberativo da CELOS decidiu pela aplicação dos novos valores das Contribuições Extraordinárias para o déficit 2016 do Plano Misto e deliberou também sobre o reajuste

AC AC TROMBONE II a VIII JLA JLA METAIS 4. AC AC

libras ou pedagogia com especialização e proficiência em libras 40h 3 Imediato 0821FLET03 FLET Curso de Letras - Língua e Literatura Portuguesa. Estudos literários