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Palestra proferida em Itu sobre a Pintura de Jesuíno em 7 nov 2014

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Academic year: 2021

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1     

Palestra proferida na igreja de Nossa Senhora do 

Carmo de Itu sobre o painel do forro da capela‐mor 

pintado por Jesuíno Francisco de Paula Gusmão 

    Boa noite.   Aqui temos uma pintura de Jesuíno, ou melhor poderíamos dizer: uma pintura atribuída a  Jesuíno Francisco de Paula Gusmão. Como terei oportunidade de esclarecer, a pintura que  ainda agora vemos não é a mesma que Jesuíno executou, pois que sofreu intervenções de  outros pintores que, a título de ação corretiva ou restaurativa, sobrepuseram novas camadas  de pintura sobre a original de fins do século XVIII.  Mas, esta pintura que estamos vendo, se observarmos bem, também não está mais como  foi vista pelo público e analisada pelos historiadores e especialistas em arte barroca colonial  desde  muito  antes  de  Mário  de  Andrade  –  o  escritor  e  poeta  modernista  que  ajudou  a  fundar o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – dela se ocupar por mais de  quatro  anos,  analisando‐a  pormenorizadamente  quando  realizou  o  estudo  mais  amplo  e  profundo jamais realizado não apenas desta como também das demais pinturas de Jesuíno.  Ela hoje apresenta “janelas” – esses buracos que se chamam tecnicamente de “prospecção”  – por meio das quais já é possível ver outra pintura, mais antiga, a verdadeira de Jesuíno, até  então permanecida aí escondida, e que parece querer sair por debaixo desta por nós já tão  conhecida.  É  como  se  a  “verdade”  estivesse  encoberta  por  uma  ilusão,  uma  imagem  distorcida,  uma  meia‐verdade,  um  sofisma,  cuja  falsidade  mal  começou  a  desmanchar,  a  desmistificar,  revelando  um  pouquinho  da  verdadeira  ainda  oculta:  a  pintura  original  de  Jesuíno.  

Fizemos isso há três, quatro anos atrás. E o fundamento para que assim procedêssemos  foi o trabalho de restauração que realizamos entre 2007 e 2011 na Carmo de S. Paulo.  

O  resultado  aqui  colhido,  porém,  nos  leva  a  uma  situação  problemática,  para  não  dizer  esdrúxulo, pois que alteramos profundamente o painel até então observado pelo público e  tido como de autoria de Jesuíno Francisco de Paula Gusmão, mas que se revela não‐ser, e  que,  por  isso  mesmo,  exige  que  se  dê  continuidade  ao  procedimento,  iniciado  a  título  de  investigação, e desvendar o restante da pintura primitiva que está por debaixo.  

E, assim, um dia, haveremos de proceder, pois se tratará de revelar e resgatar a pintura  efetivamente  executada  por  Jesuíno,  desfazendo‐nos  em  definitivo  dessa  que  a  mascara  e  que nos ilude a crer seja pintura apenas “retocada” aqui ou ali. Em parte até pode ser; mas  qualquer  retoque,  por  menor  que  seja,  por  não  ter  obedecido  à  técnica  restaurativa 

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2  moderna,  adulterou  irremediavelmente  a  pintura  original,  cujo  resgate  se  impõe  pelas  modernas teoria e metodologia de restauro artístico (Cesare Brandi).  

 

Mas, isso tudo tem uma história. E uma história bonita, a um só tempo real, mas também  “inventada”,  ou  melhor  seria  dizer:  “criada”  por  uma  porção  de  pessoas  ilustres,  desde  viajante  estrangeiro  que  por  aqui passou  no  início  do  século  XIX  (Saint‐Hilaire), depois  por  cronistas e historiadores e finalmente por Mário de Andrade que produziu um estudo que, a  despeito  do  que  viermos  a  colher  do  projeto  de  restauração  que  um  dia  haveremos  de  executar aqui, permanecerá como a obra mais bem elaborada até hoje jamais feita sobre as  pinturas desse mulato santista que tanto interesse despertou no intelectual modernista.  

E  mesmo  porque  nenhum  novo  conhecimento  se  elabora  a  partir  somente  de  uma  só  descoberta,  de  um  só  procedimento  técnico.  Pois  nunca  devemos  menosprezar,  muito  menos descartar o conhecimento anterior que nos fez chegarmos até aqui.  É por essa razão, que retomo o estudo intitulado Padre Jesuíno do Monte Carmelo – Vida  e Obra, publicado há cerca de 70 anos pelo SPHAN, em 1945, como base da comunicação  que faço agora.  Como disse, sobre essa pintura foi elaborado esse amplo e pormenorizado estudo. Temos  outro? Não que eu saiba. O que existe, ou o que foi produzido depois de Mário de Andrade,  são textos que o citam abundantemente, sem acrescentar análises ou interpretações novas.  Assim também não existe estudo que tenha criticado ou contestado as análises de Mário de  Andrade. Nossos especialistas em Pintura Colonial, especialmente a paulista, nada tem feito  senão  citar  repetidamente  trechos  desse  estudo.  Nada  ou  pouco  acrescentaram.  Em  sua  defesa há o que estamos agora a constatar: a verdadeira pintura permanece oculta. 

Essa  tarefa  –  restaurar  a  pintura  original  de  Jesuíno  –  é,  portanto,  o  que  se  impõe  ao  IPHAN  tomar  plenamente  como  encargo  próprio  de  sua  atribuição  –  que  é  cuidar  do  patrimônio artístico brasileiro – e autorizar a sua execução sem o que estará descuidando de  sua missão. 

Mas, estamos, pouco a pouco, caminhando. 

E  o  que  vimos  conseguindo  ultimamente  foi,  de  um  lado,  encontrar  um  ou  outro  documento  que  altera  um  pouco  a  cronologia  da  execução  das  pinturas  realizadas  por  Jesuíno  [para  o  que  devo  assinalar  a  contribuição  do  Maestro  e  Professor  Luís  Roberto  de  Francisco,  aqui  presente  –  relativamente  ao  contrato  de  José  Patrício  da  Silva  Manso  de  1786, que altera um pouco a cronologia da execução das obras e sugere um entendimento  diverso do desenvolvimento de suas atividades artísticas juntamente com as de Jesuíno que  terá iniciado sua produção pictórica com a execução de parte dos quadros da Matriz de Itu  sob a orientação daquele] e, de outro lado, ao executarmos a restauração das pinturas da  Carmo de S. Paulo, ação que abriu um caminho novo e auspicioso de investigação e resgate  da obra pictórica de Jesuíno.  

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3  Todavia,  ainda  nenhuma  nova  análise,  que  eu  saiba,  foi  feita  sobre  essa  pintura  restaurada na Carmo de S. Paulo, a despeito de ter sido amplamente noticiada. Análise no  sentido mais rigoroso do termo. 

Desse modo, o que temos ainda é o estudo de Mário de Andrade, publicado há sessenta e  nove  anos!  Sou  tendente  a  conjecturar  que  os  especialistas  estão  aguardando  o  desenvolvimento  da  ação  já  anunciada  pelo  IPHAN  aqui  para  a  Carmo  de  Itu,  o  restauro  deste painel, para aí sim, darem início aos estudos que deles se esperam. 

Por enquanto o que a gente escuta é apenas um ou outro comentário, em tom de crítica  p. ex. sobre a forma literária que Mário imprimiu ao estudo; mas desconheço que tenham  sido tais comentários impressos em artigos, publicados em livro ou pela internet.  

Todavia,  podemos  sim,  apoiando‐nos  também  neste  aspecto  –  o  literário  –  dizer  que  Jesuíno  é  sim  uma  criação  de  Mário  de  Andrade.  Jesuíno  é,  além  do  artista  colonial  analisado, também personagem de uma narração histórico‐literária. Sobre tudo o percurso  de  sua  vida,  desde  Santos,  seus  relacionamentos  com  os  frades  carmelitas,  sua  devoção  à  santa  do  Carmelo,  suas  observações  atentas  sobre  as  imagens  e  pinturas  que  ornavam  o  interior  das  duas  igrejas  santistas,  a  música  que  ouvia  entoada  desde  o  Coro  delas,  acompanhadas  por  órgão  e  que  Mário  imagina  ter  Jesuíno  aprendido  a  tocar  as  primeiras  notas sob o auspício do frade mestre. E assim por diante, Mário de Andrade se utilizou da  forma  literária  com  o  propósito  de  entender  os  fatos  narrados  e  os  juízos  emitidos  por  aqueles  que  o  antecederam  (entre  os  quais  se  inclui  o  Padre  Antonio  Diogo  Feijó),  dando  “sentido”  não  só  narrativo  à  Vida  como  também  conferindo  às  análises  da  Obra  uma  interpretação coerente e justa a Jesuíno.  

Assim a defesa ou a crítica à forma literária seria levar em conta apenas um aspecto desse  estudo; pois deixa de lado o que há de mais complexo nele e que consiste exatamente nas  análises que Mário fez das pinturas executadas por Jesuíno. Análises iguais às que procedia  para com as demais obras dos pintores nacionais de seu tempo – do tempo do modernismo  –  em  que  se  valia  igualmente  (é  bom  frisar)  de  interpretações  de  natureza  psicológica  –  outro importante viés da análise marioandradina. 

O problema a se reconhecer, porém, é que as pinturas de Jesuíno – objeto da análise –,  ao contrário das obras dos modernistas que analisava (Anita Malfatti, Lasar Segall, Cândido  Portinari,  Di  Cavalcanti,  especialmente),  se  encontravam  já  grandemente  prejudicadas  não  somente  pelo  desgaste  do  tempo,  mas  intensamente  retocadas  e  mesmo  repintadas  por  uma, duas ou mais vezes, de forma a ocultar o que havia de mais original nelas – talvez com  exceção das telas aqui da igreja do Patrocínio.  

Mesmo  assim,  Mário  de  Andrade  empreendeu  estudo  ambicioso,  com  grande  profundidade técnica de cada uma das pinturas e dos conjuntos que formam, distinguindo‐ as  a  ponto  de  identificar  traços  característicos  seus  –  o  que  tornou  possível  a  sua  identificação e justificou o seu tombamento. 

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4  Assim,  podemos  dizer  que  o  estudo  de  Mário  de  Andrade  constitui  o  único  e  o  mais  completo  conhecimento  que  temos  sobre  as  pinturas  de  Jesuíno,  em  especial  este  painel  que aqui observamos, como disse, bastante alterado por repinturas.  

Esse conhecimento, por sua vez, apoiou‐se em pelo menos duas linhas de investigação:  1ª ‐ sobre o que já havia sido escrito sobre Jesuíno. E o que basicamente havia resumia‐se  aos  escritos  de  Padre  Paulo  Cavalheiro  Freire  (Um  artista  notável  –  Revista  do  IHGSP),  Oliveira  Cesar  (Notas  Históricas),  Azevedo  Marques  (Apontamentos  Históricos),  Francisco  Nardy Filho (A cidade de Itu). 

E  a  esses  escritos,  devemos  acrescentar  o  material  documental  colhido  pelo  próprio  Mário de Andrade que se resumiu a umas poucas descobertas, como a carta dirigida ao Prior  da Carmo de Santos acerca do “pecado” cometido por Jesuíno relativamente ao conserto do  órgão.  2ª linha de investigação foi a procedida unicamente por Mário de Andrade, que consistiu  nas análises das obras pictóricas que haviam restado de sua produção, reunidas em quatro  igrejas: 1. aqui em Itu, as telas que ornam as paredes laterais da Matriz, especialmente as  que  tem  representada  a  figura  de  JESUS  (as  Marianas  seriam  de  autoria  integral  de  José  Patrício da Silva Manso), 2. esta aqui do forro da capela‐mor da Carmo e o que restou das  pinturas da nave, restritas hoje à figura de Santa Teresa, também repintada como se pode  ver, 3. as pinturas que existem na igreja da Ordem Terceira do Carmo da cidade de S. Paulo  (incluindo‐se as sobre tabuado de madeira provenientes da igreja das Irmãs Carmelitas de S.  Paulo)  e,  4.  voltando  aqui  para  Itu,  as  telas  do  Patrocínio,  as  que  menor  intervenção  “restaurativa” apresentam. 

 

Bem, estamos bem embaixo de uma de suas mais famosas pinturas, obra que Mário de  Andrade  tornou  célebre  tanto  pelas  qualidades  e  defeitos  que  nela  soube  observar  como  pelas implicações de ordem psicológicas e histórico‐sociais que nela percebeu por detrás da  mão  parda  do  pintor  –  o  que  nos  remete  também  ao  tempo  histórico  do  próprio  autor  modernista, interessado em descobrir traços nas pinturas de Jesuíno que pudessem revelar  algo  de  brasilidade  e  de  identidade  nacional  como  fizera  nas  análises  que  efetuara  vinte  anos antes nas obras de Aleijadinho. Esse propósito, como sabemos, vinha de encontro ao  programa  ideológico  modernista  de  que  foi  o  seu  mais  legítimo  condutor  e  que  se  desdobrou  amplamente  nas  atividades  do  Serviço  do  Patrimônio  Histórico  e  Artístico  Nacional por seus demais companheiros de trabalho. 

 

Leio  agora  trecho  da  análise  deste  painel,  que  é  o  que  restou  de  uma  obra  maior  de  pintura  aqui  realizada  por  Jesuíno.  Mário  inicia  dando‐nos  uma  ideia  de  como  Jesuíno  concebeu esse painel, no qual percebe que se encontra em observância dos padrões então  vigentes no Brasil Colonial, mas que já apresentava algo de novidade.  Diz Mário: 

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5  A  concepção  de  Jesuíno  Francisco  de  Paula  para  esse  teto  de  capela‐mor  é  ao  mesmo  tempo  obediente  ao  tradicional  que ele  conhecia, e  deliciosamente  original  pela  intervenção do seu temperamento audaz. Percebemos que ele está querendo obedecer à  tradição  que  viu,  especialmente  a  capela‐mor  de  José  Patrício  na  matriz,  mas  faz  coisa  diferente. O artista divide o teto em segmentos concêntricos, separados entre si por um  elemento puramente decorativo que, lhes delimitando a leitura, ao mesmo tempo expõe  com clareza o oval do painel central.  Em cada segmento aparece uma figura venerável  que se levanta do entablamento, facilitando o ilusionismo de maior elevação do teto. Em  compensação  o  painel  central  abandona  qualquer  veleidade  mais  erudita  dos  tetos  barrocos  europeus,  ...  o  medalhão  central  se  encena  bem  de  frente,  sem  nenhuma  perspectiva de evasão, achatando e acentuando a curva natural do teto. Até aqui nada de  originalidade, como está se vendo, Jesuíno Francisco repetia o princípio conceptivo do teto  da matriz que tinha à vista. 

Mas  uma  deliciosa  manifestação  de  originalidade  é  a  maneira  inteiramente  inventada com que ele traduz a segmentação do teto.Em vez das audaciosas perspectivas  falsamente arquitetônicas de uma tradição europeia que ele talvez ignorasse, ou mesmo  fingir  molduras  de  talha  barroca,  como  fizera  José  Patrício  da  Silva  no  teto  da  matriz,  Jesuíno  joga  nos  ares  um  interminável  festão  verde,  ricamente  recamada  de  rosas  e  possíveis  margaridas.  Essa  concepção  nos  torna  esse  teto  muito nosso familiar. Na verdade, Jesuíno está utilizando,  senão criando, um “brasileirismo” de decoração. Esse é um  jeito  de  enfeitar  muito  brasileiro,  muito  tradicional  entre  nós,  aproveitando  festões  verdes  e  as  flores  com  prodigalidade esbanjadora, tangente de ingenuidade e do  mau‐gosto. É uma gostosura que só dá para esse teto uma  aparência  inusitada,  como  um  sabor  alegremente  festa‐ de‐arraial”. 

 

Delicioso  não?  E  há  quem,  entre  quatro  paredes,  condene a forma literária que Mário imprimiu ao estudo.  O estilo aqui nada tem de diferente do Mário‐romancista,  poeta, cronista e crítico de Arte. Podemos parar por aqui,  contentar‐nos com esse belíssimo trecho do estudo deste  painel que, como o próprio Mário admite, é o que restou de uma pintura mais ampla, que se  estendia  pelas  paredes  da  capela‐mor,  tal  como  hoje  se  descobre  na  igreja  matriz  pelas  mãos habilidosas da equipe do restaurador Julio Moraes.  

Esse trecho nos dá uma ideia de como Mário de Andrade tentou nos conduzir para uma  concepção bastante generosa do artista, senão dotando‐o de uma genialidade artística como  fizera  com  Aleijadinho,  ao  menos  descobrindo  em  Jesuíno,  já  de  saída,  além  da  liberdade  criativa, uma certa novidade conceptiva que logo relaciona com a alegria que entendia ser  própria  do  povo  brasileiro.  Me  permitam  repetir  as  últimas  frases  do  trecho  lido  a  pouco,  pois sintetiza muito bem o que acabo de dizer: 

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6  Na  verdade,  Jesuíno  está  utilizando,  senão  criando,  um  “brasileirismo”  de  decoração.  Esse  é  um  jeito  de  enfeitar  muito  brasileiro,  muito  tradicional  entre  nós,  aproveitando  festões  verdes  e  as  flores  com  prodigalidade  esbanjadora,  tangente  de  ingenuidade e do mau‐gosto. É uma gostosura que só dá para esse teto uma aparência  inusitada, como um sabor alegremente festa‐de‐arraial”. 

Há na análise de Mário de Andrade muitas outras coisas interessantes que observou em  Jesuíno – como o retratismo: 

Ele expõe os seus santos como se fossem retratos, com um mínimo de dramaticidade  cênica,  sem  ambientes  descrevedores,  obrigando  as  figuras  à  imobilidade  da  pôse–  diz  Mário.  

Essa  mesma  tendência  ao  retrato,  vemos  repetida  na  Carmo  de  São  Paulo,  seguindo  a  mesma disposição encontrada aqui, porém lá a pintura já ganha maior qualidade plástica e  recursos decorativos bem mais elaborados do que simples arranjos de flores como aqui se  verifica.  Mas  lá  também  existem  flores;  Jesuíno  não  abandona  esse  adorno.  Porém  lá  sua  pintura ganha outros adereços, de maior beleza e complexidade. E profundidade também,  sem,  todavia,  valer‐se  da  perspectiva  arquitetônica  que  não  queria  ou  não  sabia  executar.  Assim como revela pintor de maior destreza e aprimoramento técnico. Enfim, eu os convido  a  visitar  a  igreja  dos  Terceiros  carmelitanos  de  S.  Paulo,  onde  podem  melhor  observar  e  admirar Jesuíno na sua inteireza, na melhor expressão de sua arte de Pintor.  

Mas, é exatamente esse o ponto que nos interessa ressaltar: verificamos nas prospecções  aqui efetuadas que existe de fato um arranjo de flores, tanto na pintura visível como e sobre  tudo  nas  “janelas”,  nas  prospecções  que  já  nos  permitem  visualizar  pedaços  da  pintura  original:  lá  estão  também  as  guirlandas  de  flores  que  Mário  de  Andrade  irá  relacionar  ao  colorido singular deste painel: 

Cabe  ainda  salientar  o  colorido  deste  teto  de  capela‐mor,  que  é  outra  volúpia  bastante  original  da  pintura  jesuínica.  Pode‐se  mesmo  afirmar  que  é  uma  das  curiosas  contribuições pessoais deste painel. 

Colorido  que  encanta  Mário  de  Andrade  e,  ao  mesmo  tempo,  o  coloca  em  dúvida,  perguntando‐se  se  não  teria  alguma  “contribuição”  do  restaurador  Peri  Blackman  que,  todavia, lhe garantiu não ter modificado nada da pintura que encontrou já desgastada neste  teto. Diz Mário a respeito: 

Pelo  depoimento  do  restaurador,  ele  insistia  em  garantir  que  fez  questão  de  honestidade. “Não modificou nada”.  

Hoje,  diante  dessas  prospecções,  nos  perguntamos  se  terá  mesmo  feito  questão  de  honestidade o senhor Peri Blackman frente a Mário de Andrade? 

Mas devo confessar que há algum tempo carrego comigo uma suspeita que talvez isente  Peri  Blackmann  de  uma  culpa  injusta:  quem  sabe  bem  antes  já  se  houvesse  alterado  a  pintura  original.  Houve  um  momento,  ao  que parece em meados  do  século  XIX, em  que  o  tabuado  que  revestia  as  paredes  foi  retirado, atacado  e  destruído  por  cupins,  retirando‐se 

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7  com ele a própria pintura que o adornava também executada por Jesuíno. Quem sabe não  terá  sido  neste  momento  que  foi  necessária  uma  correção,  fazer‐se  o  reequilíbrio  dos  elementos da concepção inicial conferida por Jesuíno, de maneira a que as guirlandas deste  lado  da  capela‐mor  mudassem  de  lugar?  Somente  executando  o  restauro  é  que  viremos  saber. 

 

       

Detalhes das prospecções. 

Voltemos à interpretação de Mário de Andrade e em especial a certa rebeldia do pintor  mulato,  que  encontra  meio  de  expressar  caprichosamente  a  sua  revolta  à  condição  de  inferioridade  vivida  como  pardo  que  era,  de  perceber  a  aceitação  social  apenas  parcial  na  sociedade  escravocrata  em  que  vivia  e  o  reflexo  que  essa  interpretação  pode  ser  por  nós  observada em relação ao próprio analista: este Jesuíno que se insubordina pintando um anjo  mulatinho,  com  cabelos  pixaim,  dentre  dezenas  de  outros  branquinhos  nos  céus  carmelitanos, que porém aos olhos de Mário de Andrade não deixa de ser um mulato bem  comportado,  muito  embora  não  o  tenha  colocado  como  propriamente  entre  os  conformistas. Dirá Mário de Andrade nas Conclusões do estudo que Jesuíno era um místico  individualista;  mas  também,  é  bom  lembrar,  um  aglutinador  que  ousou  e  conseguiu  até  certo  momento  formar  e  liderar  o  grupo  dos  Padres  do  Patrocínio,  quase  conseguindo  oficializar  uma  corporação  de  mulatos  ascéticos  no  dizer  do  maestro  e  professor  Régis  Duprat. 

  Fotos: Carlos Gutierrez Cerqueira. 2010 

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8  Daí vermos não somente o que Maria Sílvia Ianni Barsalini – uma ituana de nascimento  como  nos  informa  Álvaro  Kassab  em  resenha  sobre  sua  tese,  onde  ressalta  Maria  Silvia  analisa que Mário de Andrade defendia a ideia de que da mestiçagem havia brotado a arte  colonial brasileira – com o que concordamos inteiramente – mas onde Eu também vejo algo  no  Jesuíno  de  Mário  de  Andrade  um  pouco  mais  do  interior  do  mesmo  Mário  –  talvez  relacionado menos com a sua personalidade, sempre crítica e independente, ou mesmo com  a cor da pele, porém mais ainda com o produto final da sua atuação de intelectual militante. 

Vemos  um  Jesuíno  à  sua  semelhança,  como  personagem  de  seu  tempo  –  como  bem  percebeu Maria Silvia –, porém não identificado somente pela cor das mãos que Jesuíno via  ao pintar assim como Mário via ao escrever, mas à condição comum de mulatos, que cada  qual viveu no seu tempo, numa sociedade estratificada e profundamente estigmatizada pela  cor,  somente  superada  por  ambos  pela  atividade  criativa  –  artística  e  literária  –,  mas  também  por  saberem  que  não  terão  lutado  o  bastante  para  alterar  o  status  quo  em  que  viviam, embora tenham‐no questionado pelas próprias atividades que desenvolveram, e por  terem permanecido indivíduos relativamente bem comportados, que não se rebelaram mas  que  souberam  assinalar  na  obra  artística  inconformismo  e  revolta.  Mário  de  Andrade  declarou‐se  insatisfeito  relativamente  ao  alcance  que  o  próprio  movimento  modernista  obtivera, do qual era o comandante maior, e que, a seu ver, não conseguiu superar, pois que  nascera sob o patrocínio da aristocracia paulista e se comportara sempre dentro de certos  limites  digamos  próprios  do  gosto  e  da  maneira  de  viver  dessa  aristocracia,  sem  alcançar  maior amplitude social. A consciência dessa dimensão Mário a traduz em sua famosa análise  sobre  o  Modernismo,  quando  já  mais  suscetível  ao  pensamento  marxista.  Por  não  estar  satisfeito  com  o  alcance  do  movimento  que  liderou,  exigente  e  crítico  para  com  seus  companheiros e consigo próprio, de forma semelhante é ácido na crítica a Jesuíno e no juízo  de valor da obra pictórica por ele produzida. A despeito de todas as suas realizações como  Pintor,  Mário  não  o  reconhece  como  figura  maior  entre  os  artistas  do  período.  É  só  ler  as  Conclusões  do  estudo  sobre  a  Vida  e  Obra  de  Padre  Jesuíno  do  Monte  Carmelo  para  se  certificar disso.   

Faço  aqui  agora  um  paralelo  com  a  conhecida  poesia  do  também  modernista  Carlos  Drumond  de  Andrade  sobre  o  Operário  –  intitulado  O  OPERÁRIO  NO  MAR,  onde  lemos  a  seguinte passagem: 

Para  onde  vai  o  operário?  Teria  vergonha  de  chama‐lo  meu  irmão.  Ele  sabe  que  não  é,  nunca foi meu irmão, que não nos entendemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu  próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará‐lo ... 

E mais adiante finaliza, questionando‐se: 

Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?  

A distância entre Carlos Drumond de Andrade e o Operário seria talvez equivalente à de  Mário  de  Andrade  e  Jesuíno,  a  despeito  das  simpatias  que  ambos  nutrem  pelos  protagonistas, e guardadas também certas distinções que os caracterizam. Do lado de Mário  de  Andrade  há  que  se  considerar  o  tempo  histórico,  a  época  de  Jesuíno  a  distanciá‐los,  a  separá‐los,  e  que  não  permite  a  Mario  de  Andrade  compreendê‐lo  na  sua  inteireza.  Coisa 

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9  que  não  ocorre  com  Drumond,  pois  a  distância  para  com o  Operário é  digamos  cultural, e  antes  de  tudo  sociológica.  Há  tanto  em  Drumond  como  em  Mário,  e  sobre  tudo  neste,  a  pretensão  da  aproximação  por  meio  da  compreensão  psicocultural  dos  protagonistas.  Por  outro lado Mário, a facilitar‐lhe a tarefa, conta também com a cor da pele e o estigma que  carrega igualmente a aproximá‐lo de Jesuíno, a compreender os sentimentos, o sofrimento  de quem vive sob os mesmos imperativos da injusta separação social, impondo‐lhes limites,  por vezes sutis por outras descaradas, às condutas e ao relacionamento social.  Assim vemos o Jesuíno de Mário de Andrade rebelar‐se através de sua arte, afirmando‐se  em sua individualidade e em sua liberdade criativa (tal qual Mário de Andrade), porém ainda  assim  conformado  com  sua  situação  algo  diferenciada,  em  parte  por  ter  sido  aceito  pela  corporação  dos  frades  carmelitas,  pela  elite  colonial,  pela  sociedade  branca  que  o  admira  pelas suas qualidades de artista, enfim que o admitiam mas dentro dos limites estabelecidos  pelo costume e pelas garantias jurídicas conferidas aos libertos, sejam os alforriados sejam  os de nascimento como ele próprio – limites intransponíveis a negar‐lhe o ingresso à restrita  corporação religiosa carmelitana, à despeito da proximidade com os frades desde a infância  e do acesso, após a viuvez, à ordem secular que lhe abre a perspectiva de um caminho novo,  não mais apenas pessoal, pois que o leva a se propor a uma obra comunitária mais efetiva,  ascética porém de marcado cunho social, se não político‐racial. 

Ao  que  eu  gostaria  de  acrescentar  aqui  uma  suspeita  minha  –  e  que  discorda  relativamente  da  leitura  de  Mário  de  Andrade  –  a  de  que  Jesuíno  contara,  desde  o  berço,  com  a  proteção  da  poderosa  família  Gusmão  que  lhe  terá  possibilitado  ir  pouco  além  daqueles  que  pertenciam  à  sua  condição,  conferindo‐lhe  uma  educação  senão  erudita,  porém diferenciada entre os mulatos, iniciando‐o desde cedo, ainda em Santos, nas Letras e  no  aprendizado  da  Música  e  das  Artes.  Essa  diferenciação  de  origem  (família  Gusmão  +  educação) lhe terá facilitado à vida social desde cedo, possibilitando‐lhe desenvolver uma ou  mais profissões (pintor, músico, e por fim o sacerdócio), ganhar notoriedade, e casar‐se com  uma  mulher  branca  em  Itu,  e  por  fim  ser  enterrado  entre  Frades  e  Irmãos  Terceiros  carmelitanos, mesmo que provisoriamente nesta igreja branca de Nossa Senhora do Carmo,  até poder ser recolhido à sua igreja de Nossa Senhora do Patrocínio. 

‐ Terá sido este um caso único na história dos mulatos livres daqueles tempos? 

Mas talvez esses aspectos ou essas suspeitas minhas sejam o que menos interessa  a partir de agora. O IPHAN iniciou em S. Paulo algo que para mim é irreversível. Abriu um  novo  e  necessário  caminho  que  deverá  ser  trilhado.  Entretanto,  pelo  andar  da  carruagem,  parece que vai demorar a se completar. Há também que se restaurar os quadros pintados  por Jesuíno que decoravam a capela‐mor da igreja das Irmãs Carmelitas de S. Paulo. E olha  que temos nos empenhado para isso, sem sucesso ainda.  

Da  mesma  forma,  aguardamos,  ansiosamente,  pela  autorização  e  verba  que  permita desvendar por completo o pouco que de original já podemos ver por debaixo dessa  enorme repintura. 

Repito,  para  terminar,  o  que  tive  oportunidade  de  dizer  há  três  ou  quatro  anos  atrás  aqui  mesmo  em  Itu:  o  que  foi  desvendado  na  Carmo  de  S.  Paulo  é  produto  de  um 

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10  artista que acredito surpreenderia o próprio Mário de Andrade, pois que revela nuances de  sua técnica que, mesmo para um leigo como eu, o eleva a uma categoria de artista superior.  Ainda  teremos  oportunidade  de  ver  esse  mesmo  artista  revelado  na  Carmo  da  Capital  também aqui na Carmo de Itu. É a minha esperança. 

Obrigado.

 

   

 

 

 

 

 

 

Itu, 7 de novembro de 2014. 

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