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Palestra proferida na igreja de Nossa Senhora do
Carmo de Itu sobre o painel do forro da capela‐mor
pintado por Jesuíno Francisco de Paula Gusmão
Boa noite. Aqui temos uma pintura de Jesuíno, ou melhor poderíamos dizer: uma pintura atribuída a Jesuíno Francisco de Paula Gusmão. Como terei oportunidade de esclarecer, a pintura que ainda agora vemos não é a mesma que Jesuíno executou, pois que sofreu intervenções de outros pintores que, a título de ação corretiva ou restaurativa, sobrepuseram novas camadas de pintura sobre a original de fins do século XVIII. Mas, esta pintura que estamos vendo, se observarmos bem, também não está mais como foi vista pelo público e analisada pelos historiadores e especialistas em arte barroca colonial desde muito antes de Mário de Andrade – o escritor e poeta modernista que ajudou a fundar o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – dela se ocupar por mais de quatro anos, analisando‐a pormenorizadamente quando realizou o estudo mais amplo e profundo jamais realizado não apenas desta como também das demais pinturas de Jesuíno. Ela hoje apresenta “janelas” – esses buracos que se chamam tecnicamente de “prospecção” – por meio das quais já é possível ver outra pintura, mais antiga, a verdadeira de Jesuíno, até então permanecida aí escondida, e que parece querer sair por debaixo desta por nós já tão conhecida. É como se a “verdade” estivesse encoberta por uma ilusão, uma imagem distorcida, uma meia‐verdade, um sofisma, cuja falsidade mal começou a desmanchar, a desmistificar, revelando um pouquinho da verdadeira ainda oculta: a pintura original de Jesuíno.Fizemos isso há três, quatro anos atrás. E o fundamento para que assim procedêssemos foi o trabalho de restauração que realizamos entre 2007 e 2011 na Carmo de S. Paulo.
O resultado aqui colhido, porém, nos leva a uma situação problemática, para não dizer esdrúxulo, pois que alteramos profundamente o painel até então observado pelo público e tido como de autoria de Jesuíno Francisco de Paula Gusmão, mas que se revela não‐ser, e que, por isso mesmo, exige que se dê continuidade ao procedimento, iniciado a título de investigação, e desvendar o restante da pintura primitiva que está por debaixo.
E, assim, um dia, haveremos de proceder, pois se tratará de revelar e resgatar a pintura efetivamente executada por Jesuíno, desfazendo‐nos em definitivo dessa que a mascara e que nos ilude a crer seja pintura apenas “retocada” aqui ou ali. Em parte até pode ser; mas qualquer retoque, por menor que seja, por não ter obedecido à técnica restaurativa
2 moderna, adulterou irremediavelmente a pintura original, cujo resgate se impõe pelas modernas teoria e metodologia de restauro artístico (Cesare Brandi).
Mas, isso tudo tem uma história. E uma história bonita, a um só tempo real, mas também “inventada”, ou melhor seria dizer: “criada” por uma porção de pessoas ilustres, desde viajante estrangeiro que por aqui passou no início do século XIX (Saint‐Hilaire), depois por cronistas e historiadores e finalmente por Mário de Andrade que produziu um estudo que, a despeito do que viermos a colher do projeto de restauração que um dia haveremos de executar aqui, permanecerá como a obra mais bem elaborada até hoje jamais feita sobre as pinturas desse mulato santista que tanto interesse despertou no intelectual modernista.
E mesmo porque nenhum novo conhecimento se elabora a partir somente de uma só descoberta, de um só procedimento técnico. Pois nunca devemos menosprezar, muito menos descartar o conhecimento anterior que nos fez chegarmos até aqui. É por essa razão, que retomo o estudo intitulado Padre Jesuíno do Monte Carmelo – Vida e Obra, publicado há cerca de 70 anos pelo SPHAN, em 1945, como base da comunicação que faço agora. Como disse, sobre essa pintura foi elaborado esse amplo e pormenorizado estudo. Temos outro? Não que eu saiba. O que existe, ou o que foi produzido depois de Mário de Andrade, são textos que o citam abundantemente, sem acrescentar análises ou interpretações novas. Assim também não existe estudo que tenha criticado ou contestado as análises de Mário de Andrade. Nossos especialistas em Pintura Colonial, especialmente a paulista, nada tem feito senão citar repetidamente trechos desse estudo. Nada ou pouco acrescentaram. Em sua defesa há o que estamos agora a constatar: a verdadeira pintura permanece oculta.
Essa tarefa – restaurar a pintura original de Jesuíno – é, portanto, o que se impõe ao IPHAN tomar plenamente como encargo próprio de sua atribuição – que é cuidar do patrimônio artístico brasileiro – e autorizar a sua execução sem o que estará descuidando de sua missão.
Mas, estamos, pouco a pouco, caminhando.
E o que vimos conseguindo ultimamente foi, de um lado, encontrar um ou outro documento que altera um pouco a cronologia da execução das pinturas realizadas por Jesuíno [para o que devo assinalar a contribuição do Maestro e Professor Luís Roberto de Francisco, aqui presente – relativamente ao contrato de José Patrício da Silva Manso de 1786, que altera um pouco a cronologia da execução das obras e sugere um entendimento diverso do desenvolvimento de suas atividades artísticas juntamente com as de Jesuíno que terá iniciado sua produção pictórica com a execução de parte dos quadros da Matriz de Itu sob a orientação daquele] e, de outro lado, ao executarmos a restauração das pinturas da Carmo de S. Paulo, ação que abriu um caminho novo e auspicioso de investigação e resgate da obra pictórica de Jesuíno.
3 Todavia, ainda nenhuma nova análise, que eu saiba, foi feita sobre essa pintura restaurada na Carmo de S. Paulo, a despeito de ter sido amplamente noticiada. Análise no sentido mais rigoroso do termo.
Desse modo, o que temos ainda é o estudo de Mário de Andrade, publicado há sessenta e nove anos! Sou tendente a conjecturar que os especialistas estão aguardando o desenvolvimento da ação já anunciada pelo IPHAN aqui para a Carmo de Itu, o restauro deste painel, para aí sim, darem início aos estudos que deles se esperam.
Por enquanto o que a gente escuta é apenas um ou outro comentário, em tom de crítica p. ex. sobre a forma literária que Mário imprimiu ao estudo; mas desconheço que tenham sido tais comentários impressos em artigos, publicados em livro ou pela internet.
Todavia, podemos sim, apoiando‐nos também neste aspecto – o literário – dizer que Jesuíno é sim uma criação de Mário de Andrade. Jesuíno é, além do artista colonial analisado, também personagem de uma narração histórico‐literária. Sobre tudo o percurso de sua vida, desde Santos, seus relacionamentos com os frades carmelitas, sua devoção à santa do Carmelo, suas observações atentas sobre as imagens e pinturas que ornavam o interior das duas igrejas santistas, a música que ouvia entoada desde o Coro delas, acompanhadas por órgão e que Mário imagina ter Jesuíno aprendido a tocar as primeiras notas sob o auspício do frade mestre. E assim por diante, Mário de Andrade se utilizou da forma literária com o propósito de entender os fatos narrados e os juízos emitidos por aqueles que o antecederam (entre os quais se inclui o Padre Antonio Diogo Feijó), dando “sentido” não só narrativo à Vida como também conferindo às análises da Obra uma interpretação coerente e justa a Jesuíno.
Assim a defesa ou a crítica à forma literária seria levar em conta apenas um aspecto desse estudo; pois deixa de lado o que há de mais complexo nele e que consiste exatamente nas análises que Mário fez das pinturas executadas por Jesuíno. Análises iguais às que procedia para com as demais obras dos pintores nacionais de seu tempo – do tempo do modernismo – em que se valia igualmente (é bom frisar) de interpretações de natureza psicológica – outro importante viés da análise marioandradina.
O problema a se reconhecer, porém, é que as pinturas de Jesuíno – objeto da análise –, ao contrário das obras dos modernistas que analisava (Anita Malfatti, Lasar Segall, Cândido Portinari, Di Cavalcanti, especialmente), se encontravam já grandemente prejudicadas não somente pelo desgaste do tempo, mas intensamente retocadas e mesmo repintadas por uma, duas ou mais vezes, de forma a ocultar o que havia de mais original nelas – talvez com exceção das telas aqui da igreja do Patrocínio.
Mesmo assim, Mário de Andrade empreendeu estudo ambicioso, com grande profundidade técnica de cada uma das pinturas e dos conjuntos que formam, distinguindo‐ as a ponto de identificar traços característicos seus – o que tornou possível a sua identificação e justificou o seu tombamento.
4 Assim, podemos dizer que o estudo de Mário de Andrade constitui o único e o mais completo conhecimento que temos sobre as pinturas de Jesuíno, em especial este painel que aqui observamos, como disse, bastante alterado por repinturas.
Esse conhecimento, por sua vez, apoiou‐se em pelo menos duas linhas de investigação: 1ª ‐ sobre o que já havia sido escrito sobre Jesuíno. E o que basicamente havia resumia‐se aos escritos de Padre Paulo Cavalheiro Freire (Um artista notável – Revista do IHGSP), Oliveira Cesar (Notas Históricas), Azevedo Marques (Apontamentos Históricos), Francisco Nardy Filho (A cidade de Itu).
E a esses escritos, devemos acrescentar o material documental colhido pelo próprio Mário de Andrade que se resumiu a umas poucas descobertas, como a carta dirigida ao Prior da Carmo de Santos acerca do “pecado” cometido por Jesuíno relativamente ao conserto do órgão. 2ª linha de investigação foi a procedida unicamente por Mário de Andrade, que consistiu nas análises das obras pictóricas que haviam restado de sua produção, reunidas em quatro igrejas: 1. aqui em Itu, as telas que ornam as paredes laterais da Matriz, especialmente as que tem representada a figura de JESUS (as Marianas seriam de autoria integral de José Patrício da Silva Manso), 2. esta aqui do forro da capela‐mor da Carmo e o que restou das pinturas da nave, restritas hoje à figura de Santa Teresa, também repintada como se pode ver, 3. as pinturas que existem na igreja da Ordem Terceira do Carmo da cidade de S. Paulo (incluindo‐se as sobre tabuado de madeira provenientes da igreja das Irmãs Carmelitas de S. Paulo) e, 4. voltando aqui para Itu, as telas do Patrocínio, as que menor intervenção “restaurativa” apresentam.
Bem, estamos bem embaixo de uma de suas mais famosas pinturas, obra que Mário de Andrade tornou célebre tanto pelas qualidades e defeitos que nela soube observar como pelas implicações de ordem psicológicas e histórico‐sociais que nela percebeu por detrás da mão parda do pintor – o que nos remete também ao tempo histórico do próprio autor modernista, interessado em descobrir traços nas pinturas de Jesuíno que pudessem revelar algo de brasilidade e de identidade nacional como fizera nas análises que efetuara vinte anos antes nas obras de Aleijadinho. Esse propósito, como sabemos, vinha de encontro ao programa ideológico modernista de que foi o seu mais legítimo condutor e que se desdobrou amplamente nas atividades do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional por seus demais companheiros de trabalho.
Leio agora trecho da análise deste painel, que é o que restou de uma obra maior de pintura aqui realizada por Jesuíno. Mário inicia dando‐nos uma ideia de como Jesuíno concebeu esse painel, no qual percebe que se encontra em observância dos padrões então vigentes no Brasil Colonial, mas que já apresentava algo de novidade. Diz Mário:
5 A concepção de Jesuíno Francisco de Paula para esse teto de capela‐mor é ao mesmo tempo obediente ao tradicional que ele conhecia, e deliciosamente original pela intervenção do seu temperamento audaz. Percebemos que ele está querendo obedecer à tradição que viu, especialmente a capela‐mor de José Patrício na matriz, mas faz coisa diferente. O artista divide o teto em segmentos concêntricos, separados entre si por um elemento puramente decorativo que, lhes delimitando a leitura, ao mesmo tempo expõe com clareza o oval do painel central. Em cada segmento aparece uma figura venerável que se levanta do entablamento, facilitando o ilusionismo de maior elevação do teto. Em compensação o painel central abandona qualquer veleidade mais erudita dos tetos barrocos europeus, ... o medalhão central se encena bem de frente, sem nenhuma perspectiva de evasão, achatando e acentuando a curva natural do teto. Até aqui nada de originalidade, como está se vendo, Jesuíno Francisco repetia o princípio conceptivo do teto da matriz que tinha à vista.
Mas uma deliciosa manifestação de originalidade é a maneira inteiramente inventada com que ele traduz a segmentação do teto.Em vez das audaciosas perspectivas falsamente arquitetônicas de uma tradição europeia que ele talvez ignorasse, ou mesmo fingir molduras de talha barroca, como fizera José Patrício da Silva no teto da matriz, Jesuíno joga nos ares um interminável festão verde, ricamente recamada de rosas e possíveis margaridas. Essa concepção nos torna esse teto muito nosso familiar. Na verdade, Jesuíno está utilizando, senão criando, um “brasileirismo” de decoração. Esse é um jeito de enfeitar muito brasileiro, muito tradicional entre nós, aproveitando festões verdes e as flores com prodigalidade esbanjadora, tangente de ingenuidade e do mau‐gosto. É uma gostosura que só dá para esse teto uma aparência inusitada, como um sabor alegremente festa‐ de‐arraial”.
Delicioso não? E há quem, entre quatro paredes, condene a forma literária que Mário imprimiu ao estudo. O estilo aqui nada tem de diferente do Mário‐romancista, poeta, cronista e crítico de Arte. Podemos parar por aqui, contentar‐nos com esse belíssimo trecho do estudo deste painel que, como o próprio Mário admite, é o que restou de uma pintura mais ampla, que se estendia pelas paredes da capela‐mor, tal como hoje se descobre na igreja matriz pelas mãos habilidosas da equipe do restaurador Julio Moraes.
Esse trecho nos dá uma ideia de como Mário de Andrade tentou nos conduzir para uma concepção bastante generosa do artista, senão dotando‐o de uma genialidade artística como fizera com Aleijadinho, ao menos descobrindo em Jesuíno, já de saída, além da liberdade criativa, uma certa novidade conceptiva que logo relaciona com a alegria que entendia ser própria do povo brasileiro. Me permitam repetir as últimas frases do trecho lido a pouco, pois sintetiza muito bem o que acabo de dizer:
6 Na verdade, Jesuíno está utilizando, senão criando, um “brasileirismo” de decoração. Esse é um jeito de enfeitar muito brasileiro, muito tradicional entre nós, aproveitando festões verdes e as flores com prodigalidade esbanjadora, tangente de ingenuidade e do mau‐gosto. É uma gostosura que só dá para esse teto uma aparência inusitada, como um sabor alegremente festa‐de‐arraial”.
Há na análise de Mário de Andrade muitas outras coisas interessantes que observou em Jesuíno – como o retratismo:
Ele expõe os seus santos como se fossem retratos, com um mínimo de dramaticidade cênica, sem ambientes descrevedores, obrigando as figuras à imobilidade da pôse– diz Mário.
Essa mesma tendência ao retrato, vemos repetida na Carmo de São Paulo, seguindo a mesma disposição encontrada aqui, porém lá a pintura já ganha maior qualidade plástica e recursos decorativos bem mais elaborados do que simples arranjos de flores como aqui se verifica. Mas lá também existem flores; Jesuíno não abandona esse adorno. Porém lá sua pintura ganha outros adereços, de maior beleza e complexidade. E profundidade também, sem, todavia, valer‐se da perspectiva arquitetônica que não queria ou não sabia executar. Assim como revela pintor de maior destreza e aprimoramento técnico. Enfim, eu os convido a visitar a igreja dos Terceiros carmelitanos de S. Paulo, onde podem melhor observar e admirar Jesuíno na sua inteireza, na melhor expressão de sua arte de Pintor.
Mas, é exatamente esse o ponto que nos interessa ressaltar: verificamos nas prospecções aqui efetuadas que existe de fato um arranjo de flores, tanto na pintura visível como e sobre tudo nas “janelas”, nas prospecções que já nos permitem visualizar pedaços da pintura original: lá estão também as guirlandas de flores que Mário de Andrade irá relacionar ao colorido singular deste painel:
Cabe ainda salientar o colorido deste teto de capela‐mor, que é outra volúpia bastante original da pintura jesuínica. Pode‐se mesmo afirmar que é uma das curiosas contribuições pessoais deste painel.
Colorido que encanta Mário de Andrade e, ao mesmo tempo, o coloca em dúvida, perguntando‐se se não teria alguma “contribuição” do restaurador Peri Blackman que, todavia, lhe garantiu não ter modificado nada da pintura que encontrou já desgastada neste teto. Diz Mário a respeito:
Pelo depoimento do restaurador, ele insistia em garantir que fez questão de honestidade. “Não modificou nada”.
Hoje, diante dessas prospecções, nos perguntamos se terá mesmo feito questão de honestidade o senhor Peri Blackman frente a Mário de Andrade?
Mas devo confessar que há algum tempo carrego comigo uma suspeita que talvez isente Peri Blackmann de uma culpa injusta: quem sabe bem antes já se houvesse alterado a pintura original. Houve um momento, ao que parece em meados do século XIX, em que o tabuado que revestia as paredes foi retirado, atacado e destruído por cupins, retirando‐se
7 com ele a própria pintura que o adornava também executada por Jesuíno. Quem sabe não terá sido neste momento que foi necessária uma correção, fazer‐se o reequilíbrio dos elementos da concepção inicial conferida por Jesuíno, de maneira a que as guirlandas deste lado da capela‐mor mudassem de lugar? Somente executando o restauro é que viremos saber.
Detalhes das prospecções.
Voltemos à interpretação de Mário de Andrade e em especial a certa rebeldia do pintor mulato, que encontra meio de expressar caprichosamente a sua revolta à condição de inferioridade vivida como pardo que era, de perceber a aceitação social apenas parcial na sociedade escravocrata em que vivia e o reflexo que essa interpretação pode ser por nós observada em relação ao próprio analista: este Jesuíno que se insubordina pintando um anjo mulatinho, com cabelos pixaim, dentre dezenas de outros branquinhos nos céus carmelitanos, que porém aos olhos de Mário de Andrade não deixa de ser um mulato bem comportado, muito embora não o tenha colocado como propriamente entre os conformistas. Dirá Mário de Andrade nas Conclusões do estudo que Jesuíno era um místico individualista; mas também, é bom lembrar, um aglutinador que ousou e conseguiu até certo momento formar e liderar o grupo dos Padres do Patrocínio, quase conseguindo oficializar uma corporação de mulatos ascéticos no dizer do maestro e professor Régis Duprat.
Fotos: Carlos Gutierrez Cerqueira. 2010
8 Daí vermos não somente o que Maria Sílvia Ianni Barsalini – uma ituana de nascimento como nos informa Álvaro Kassab em resenha sobre sua tese, onde ressalta Maria Silvia analisa que Mário de Andrade defendia a ideia de que da mestiçagem havia brotado a arte colonial brasileira – com o que concordamos inteiramente – mas onde Eu também vejo algo no Jesuíno de Mário de Andrade um pouco mais do interior do mesmo Mário – talvez relacionado menos com a sua personalidade, sempre crítica e independente, ou mesmo com a cor da pele, porém mais ainda com o produto final da sua atuação de intelectual militante.
Vemos um Jesuíno à sua semelhança, como personagem de seu tempo – como bem percebeu Maria Silvia –, porém não identificado somente pela cor das mãos que Jesuíno via ao pintar assim como Mário via ao escrever, mas à condição comum de mulatos, que cada qual viveu no seu tempo, numa sociedade estratificada e profundamente estigmatizada pela cor, somente superada por ambos pela atividade criativa – artística e literária –, mas também por saberem que não terão lutado o bastante para alterar o status quo em que viviam, embora tenham‐no questionado pelas próprias atividades que desenvolveram, e por terem permanecido indivíduos relativamente bem comportados, que não se rebelaram mas que souberam assinalar na obra artística inconformismo e revolta. Mário de Andrade declarou‐se insatisfeito relativamente ao alcance que o próprio movimento modernista obtivera, do qual era o comandante maior, e que, a seu ver, não conseguiu superar, pois que nascera sob o patrocínio da aristocracia paulista e se comportara sempre dentro de certos limites digamos próprios do gosto e da maneira de viver dessa aristocracia, sem alcançar maior amplitude social. A consciência dessa dimensão Mário a traduz em sua famosa análise sobre o Modernismo, quando já mais suscetível ao pensamento marxista. Por não estar satisfeito com o alcance do movimento que liderou, exigente e crítico para com seus companheiros e consigo próprio, de forma semelhante é ácido na crítica a Jesuíno e no juízo de valor da obra pictórica por ele produzida. A despeito de todas as suas realizações como Pintor, Mário não o reconhece como figura maior entre os artistas do período. É só ler as Conclusões do estudo sobre a Vida e Obra de Padre Jesuíno do Monte Carmelo para se certificar disso.
Faço aqui agora um paralelo com a conhecida poesia do também modernista Carlos Drumond de Andrade sobre o Operário – intitulado O OPERÁRIO NO MAR, onde lemos a seguinte passagem:
Para onde vai o operário? Teria vergonha de chama‐lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entendemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará‐lo ...
E mais adiante finaliza, questionando‐se:
Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?
A distância entre Carlos Drumond de Andrade e o Operário seria talvez equivalente à de Mário de Andrade e Jesuíno, a despeito das simpatias que ambos nutrem pelos protagonistas, e guardadas também certas distinções que os caracterizam. Do lado de Mário de Andrade há que se considerar o tempo histórico, a época de Jesuíno a distanciá‐los, a separá‐los, e que não permite a Mario de Andrade compreendê‐lo na sua inteireza. Coisa
9 que não ocorre com Drumond, pois a distância para com o Operário é digamos cultural, e antes de tudo sociológica. Há tanto em Drumond como em Mário, e sobre tudo neste, a pretensão da aproximação por meio da compreensão psicocultural dos protagonistas. Por outro lado Mário, a facilitar‐lhe a tarefa, conta também com a cor da pele e o estigma que carrega igualmente a aproximá‐lo de Jesuíno, a compreender os sentimentos, o sofrimento de quem vive sob os mesmos imperativos da injusta separação social, impondo‐lhes limites, por vezes sutis por outras descaradas, às condutas e ao relacionamento social. Assim vemos o Jesuíno de Mário de Andrade rebelar‐se através de sua arte, afirmando‐se em sua individualidade e em sua liberdade criativa (tal qual Mário de Andrade), porém ainda assim conformado com sua situação algo diferenciada, em parte por ter sido aceito pela corporação dos frades carmelitas, pela elite colonial, pela sociedade branca que o admira pelas suas qualidades de artista, enfim que o admitiam mas dentro dos limites estabelecidos pelo costume e pelas garantias jurídicas conferidas aos libertos, sejam os alforriados sejam os de nascimento como ele próprio – limites intransponíveis a negar‐lhe o ingresso à restrita corporação religiosa carmelitana, à despeito da proximidade com os frades desde a infância e do acesso, após a viuvez, à ordem secular que lhe abre a perspectiva de um caminho novo, não mais apenas pessoal, pois que o leva a se propor a uma obra comunitária mais efetiva, ascética porém de marcado cunho social, se não político‐racial.
Ao que eu gostaria de acrescentar aqui uma suspeita minha – e que discorda relativamente da leitura de Mário de Andrade – a de que Jesuíno contara, desde o berço, com a proteção da poderosa família Gusmão que lhe terá possibilitado ir pouco além daqueles que pertenciam à sua condição, conferindo‐lhe uma educação senão erudita, porém diferenciada entre os mulatos, iniciando‐o desde cedo, ainda em Santos, nas Letras e no aprendizado da Música e das Artes. Essa diferenciação de origem (família Gusmão + educação) lhe terá facilitado à vida social desde cedo, possibilitando‐lhe desenvolver uma ou mais profissões (pintor, músico, e por fim o sacerdócio), ganhar notoriedade, e casar‐se com uma mulher branca em Itu, e por fim ser enterrado entre Frades e Irmãos Terceiros carmelitanos, mesmo que provisoriamente nesta igreja branca de Nossa Senhora do Carmo, até poder ser recolhido à sua igreja de Nossa Senhora do Patrocínio.
‐ Terá sido este um caso único na história dos mulatos livres daqueles tempos?
Mas talvez esses aspectos ou essas suspeitas minhas sejam o que menos interessa a partir de agora. O IPHAN iniciou em S. Paulo algo que para mim é irreversível. Abriu um novo e necessário caminho que deverá ser trilhado. Entretanto, pelo andar da carruagem, parece que vai demorar a se completar. Há também que se restaurar os quadros pintados por Jesuíno que decoravam a capela‐mor da igreja das Irmãs Carmelitas de S. Paulo. E olha que temos nos empenhado para isso, sem sucesso ainda.
Da mesma forma, aguardamos, ansiosamente, pela autorização e verba que permita desvendar por completo o pouco que de original já podemos ver por debaixo dessa enorme repintura.
Repito, para terminar, o que tive oportunidade de dizer há três ou quatro anos atrás aqui mesmo em Itu: o que foi desvendado na Carmo de S. Paulo é produto de um
10 artista que acredito surpreenderia o próprio Mário de Andrade, pois que revela nuances de sua técnica que, mesmo para um leigo como eu, o eleva a uma categoria de artista superior. Ainda teremos oportunidade de ver esse mesmo artista revelado na Carmo da Capital também aqui na Carmo de Itu. É a minha esperança.
Obrigado.