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O RESTAURANTE LEITE E A CAPITAL PERNAMBUCANA

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Academic year: 2021

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O RESTAURANTE LEITE E A CAPITAL PERNAMBUCANA

Eliza Brito1

Resumo

O artigo se propõe a analisar a relação entre o Restaurante Leite, o mais antigo em funcionamento no estado, e as mudanças sociais e culturais sofridas na capital pernambucana, partindo do princípio de que a gastronomia é parte importante dos aspectos culturais e formadores de um sociedade.

Palavras-chave: História, Cultura, Gastronomia, Restaurante, Leite, Recife,

Pernambuco

O Recife da segunda metade do século XIX vivia um período de "modernização", o que, para a época, significava incorporar os valores europeus, mais especificamente ingleses e franceses. A paisagem urbana se modificava, com obras modernizantes que, na prática, tinham o objetivo de higienizar e branquear a cidade, afastando os pobres e os negros dos centros urbanos, colocando-os cada vez mais nas áreas periféricas, como explica Frederico Toscano:

O novo arranjo político e social clamava por intervenções na paisagem urbana, com os engenheiros como símbolos desse avanço pragmático, pondo em prática teorias higienistas que visavam a livrar as grandes cidades de uma insalubridade tanto física quanto moral. Buscava-se não apenas drenar, aterrar, derrubar e construir, mas também "branquear" a urbe, movendo os pobres, os desvalidos, os loucos, os boêmios, os bêbados, os pretos e outros personagens "perigosos" para uma crescente periferia, abrindo espaço para uma cidade verdadeiramente moderna. (TOSCANO, 2014, p.83)

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O Teatro de Santa Isabel, construído sob o comando do engenheiro francês Louis Léger Vauthier, é um dos poucos exemplares do genuíno neoclassicismo erguidos no Brasil, no período, e foi inaugurado em 18 de maio de 1850. Outra obra modernizante da cidade, também realizada por Vauthier, é o Mercado de São José. Inaugurado em setembro de 1875, o espaço tem arquitetura em ferro, típica do século XIX, e foi inspirada no mercado público de Grenelle, localizado em Paris, na França. Os dois prédios são importantes exemplos dos feitos “modernizantes” da cidade, na segunda metade do século XIX.

Politicamente, a capital pernambucana estava inserida num contexto de mudanças, já que o país vivia o fim do império, os movimentos abolicionista e republicano, e o crescimento da cultura cafeeira, no sudeste do país, em detrimento da economia açucareira, base da economia local.

O Brasil vivia os últimos momentos do II Império. Movimentos abolicionistas explodiam e se confirmavam em cada canto do país. O próprio período imperial ruía nas bases por conta dos ideais republicanos. O ciclo da cana-de-açúcar ainda vivia o seu apogeu, alimentado pela força do trabalho escravo, mas estava ameaçado pelos rumores abolicionistas. (SOARES, 2000, p.20)

Neste contexto, os recifenses ganham novos locais de sociabilidades, mais modernos e "adequados" ao novo tempo. A tecnologia, com a energia elétrica; as novidades na engenharia, com o uso de materiais como o ferro e a vinda de nomes como o engenheiro Vaulthier, tornam possível a instalação de estabelecimentos antes desconhecidos da sociedade pernambucana, entre eles o restaurante.

Essa invenção parisiense já podia ser encontrada no Recife mesmo em meados do século 19, mais precisamente em 1858, trazida pelo cozinheiro francês conhecido como Auguste, que abriu, na capital pernambucana, o seu Restaurant Français, no Cais da Lingueta, área da cidade onde se concentravam hotéis e casas de pasto francesas e inglesas. (TOSCANO, 2014, p.68)

A invenção parisiense do restaurante surgiu das ideias iluministas e cientificistas que faziam com que a sociedade se preocupasse cada vez mais com a saúde. Os caldos restauradores, os restaurants, que poderíamos classificar como consomês, são os responsáveis pelo surgimento de estabelecimentos que hoje conhecemos como restaurantes.

Frederico Toscano explica que, na França do século XV, uma das formas mais indicadas para se tratar doenças como indisposição, fraqueza, apatia, e também para nutrir

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estômagos sensíveis, era o consumo de caldos restauradores. As receitas incluíam carnes diversas, tais como presunto e vitela, além de alguma ave como capão, galinha, perdiz ou faisão, cozidos lentamente junto com improváveis pedras preciosas que o médico responsável pudesse, porventura, requerer no preparo do caldo. Os séculos XVII e XVIII barateariam as receitas, dispensando o uso de joias em sua cocção, mas mantendo o caráter medicinal da preparação.

Criava-se assim um serviço altamente específico, que visava a restaurar, através da alimentação, as forças dos combalidos comensais. Essa nova modalidade de estabelecimento, que prezava pela manutenção física dos seus clientes, exigia ambiente e serviço diferenciados daqueles das ruidosas tavernas, coloridas sobreviventes dos tempos medievais, com mesas longas, bancos coletivos, conversas ao pé da lareira e escassas opções de alimentação. Ao redor de uma pequena xícara de concentrado semilíquido de carne, mudanças profundas se faziam sentir, inaugurando uma nova faceta da urbanidade parisiense. (TOSCANO, 2014, p.71)

O surgimento do estabelecimento restaurante foi vinculado a questões de saúde, mas, com o tempo, as casas foram se especializando de acordo com o alimento que serviam para atrair e garantir a fidelidade do seu público. O espaço passou a garantir sociabilidades distintas e o público feminino, antes aprisionado nas casas, começou a ter, nos restaurantes, um local de socialização.

Diminuiu-se a table, individualizou-se o serviço e valorizou-se a privacidade dos frequentadores, que em pouco tempo passaram a buscar nos restaurantes bem mais do que uma singela xícara de caldo ou mesmo a atenção instável de garçons munidos de complexos e variados cardápios. Os restaurantes, escudados pelas suas nobres intenções medicinais - ainda que cerca de vinte anos após a sua gênese poucos estabelecimentos ainda se dedicassem a elas -, destacavam-se como um lugar adequado para a socialização e convívio de mulheres. A table

d´hôte seria, obviamente, um cenário impensável para se encontrar uma

senhora de boa reputação, ao passo que mesmo os cafés, com seus espaços vastos e apinhados, onde políticos e escritores passavam horas discutindo e bebericando suas infusões estimulantes, eram também um local improvável para uma verdadeira dama francesa. Os restaurantes, contudo, evocavam uma espécie de "sociabilidade individualista", onde se comia em público, às vistas de outros frequentadores, porém cada um deles soberano em suas próprias mesas que, por alguns minutos ou horas, pareciam transmutar-se em extensões de suas próprias casas. O encanto da familiaridade e da privacidade passou a atrair aos restaurantes uma presença feminina cada vez maior. (TOSCANO, 2014, p.80)

No Recife da segunda metade dos oitocentos, os restaurantes passaram a ser uma realidade cada vez mais comum, já que a cidade crescia e a praticidade de fazer refeições sem precisar voltar para casa, nem cumprir horários tão rígidos, começou a ser uma

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necessidade cada vez mais frequente. O espaço também permitia sociabilidades diversas e muitos estabelecimentos prezavam pela necessidade de manter um ambiente adequado para toda a família.

Para o sociólogo francês Jean Baechler, sociabilidade é a “capacidade humana de estabelecer redes, através das quais as unidades de atividades, individuais ou coletivas, fazem circular gostos, paixões, opiniões, etc.” (1996). Neste sentido, os locais de gastronomia são privilegiados espaços de sociabilidades, onde as pessoas se encontram e, ao redor da mesa ou do balcão, conversam, discutem, se apaixonam e rompem relacionamentos.

Os cafés do Recife de meados dos oitocentos eram espaços eminentemente masculinos, nos quais havia discussões dos assuntos da ordem do dia, das notícias, das fofocas. Eram também os locais de divertimento e de bebedeira, integrando, juntos aos restaurantes - que eram espaços em que as mulheres e as famílias frequentavam os salões para verem, serem vistas e realizarem trocas sociais, ao contrário dos masculinos cafés - importantes espaços de sociabilidades da cidade. Nesta perspectiva, o conceito de sociabilidade é o defendido pelo sociólogo alemão, Georges Simmel, para o qual a sociabilidade não é, necessariamente, interessada, pois consiste na interação em si mesma. Para o intelectual alemão, a sociedade mesma é o produto das interações entre os indivíduos.

Os espaços de gastronomia, nos quais essas sociabilidades eram desenvolvidas, no Recife de meados dos oitocentos, faziam parte do processo de modernização da cidade, o que, para a época, conforme citado, significava incorporar os valores ingleses e franceses de vestuário, estética, gastronomia e comportamento.

Ainda no final do século XIX, mais especificamente no ano de 1882 surgia o restaurante Manoel Leite, hoje denominado apenas de Leite, o mais antigo em funcionamento do Estado. Fundado pelo português recém chegado ao Brasil, Manoel Leite, localizou-se, inicialmente, na Rua do Sol, próximo à Ponte da Boa Vista, mas logo foi transferido para um prédio maior, em frente à Praça da Concórdia, onde encontra-se até hoje.

Logo o português fez amigos entre a sociedade pernambucana e se tornou sócio do Clube Internacional que tinha como sede, o prédio de número 265 da Rua da Aurora, onde atualmente funciona o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães. Por isto, era comum ao final de cada festa no clube, grupos de personalidades impecavelmente vestidas, atravessarem a Ponte Duarte Coelho e serem vistos em grande animação no pequeno restaurante que se transformou em ponto

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badalado da cidade. Apesar da simplicidade do local, o bom atendimento e a boa comida, atraíram cada vez mais uma clientela especial. A casa começou a prosperar e os próprios fregueses começaram a exigir um local maior e mais adequado. Foi então que numa decisão acertada, Manoel Leite adquiriu através de cotrato de aluguel, os prédios números 147 e 153, que pertenciam ao Hospital Português e o de número 159, que pertencia à Santa Casa de Misericórdia. Estavam localizados um pouco mais adiante, em frente à Praça da Concórdia ou Major Codeceira. (SOARES, 2000, p.20)

O “Leite” passou a ser uma referência do bem comer na capital pernambucana, desde os primórdios do restaurante. Também era um local "adequado" para a elite recifense, com louça inglesa, taças, copos, talheres e toalhas franceses. No final do século XIX, o local era frequentado pelos senhores de engenho, suas famílias, além de autoridades políticas. A alta sociedade recifense vivia um período de forte influência inglesa e francesa, que podia ser percebida pelas vestimentas, principalmente femininas; pelos hábitos de leitura; e pelos espaços de sociabilidades, como o restaurante Leite, com arquitetura, móveis e serviço com o mais alto requinte europeu.

O Recife ganhava então, o seu primeiro restaurante à altura da sociedade da época e onde o escravo não podia sequer transpor os degraus. Os senhores de engenho, os políticos e as personalidades da época frequentavam o restaurante rigorosamente vestidos de paletó e gravata, as senhoras e senhoritas trajavam a mais requintada moda de Londres. (SOARES, 2000, p.20)

O restaurante conviveu com as transformações da sociedade pernambucana, já que o país passava por mudanças significativas, como a abolição da escravidão, em 1888, e a proclamação da República no ano seguinte. O café passou a ser o principal produto da economia brasileira e as questões políticas tomaram as mesas do Leite, que passou a ser frequentado pelos membros da República recém-inaugurada. Em 1910, o português Manoel Leite não conseguiu superar a crise financeira e voltou para Portugal, vendendo o restaurante para um funcionário da casa: Bernardino Wenceslau da Silva, que manteve o padrão dos negócios e fez a casa prosperar.

A gastronomia também foi se adaptando ao paladar pernambucano, mas sem perder o cosmopolitismo que sempre acompanhou o restaurante, referência também para os viajantes que passavam pelo Recife.

A tradição gastronômica do Restaurante Leite reflete com precisão a evolução da gastronomia do Estado, com a peculiaridade que caracterizou a mistura das raças no Brasil Colônia, acentuada inicialmente nos engenhos, quando imperava soberana a economia canavieira. (SOARES, 2000, p.114)

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Peixes, frutos do mar, carnes, frutas tropicais sempre foram uma constante no cardápio da casa, que evoluiu junto com a gastronomia pernambucana. Uma das sobremesas típicas do estado, a cartola, é uma especialidade do Leite e, até hoje, leva a fama de a melhor da cidade.

A banana cozida no açúcar e na canela, mais tarde se tornaria a famosa cartola, sobremesa genuinamente pernambucana e uma especialidade do Restaurante Leite, apreciada ainda hoje como a campeã de pedidos. (SOARES, 2000, p.114)

A tradição culinária de Pernambuco, a qual o restaurante Leite está vinculado, é estudada por sociólogos, historiadores e intelectuais, com destaque para Gilberto Freyre, que defende que a nossa gastronomia deve muito à tradição da monocultura da cana-de-açúcar e é um equilíbrio das influências formadoras da nossa sociedade: a indígena, a portuguesa e a africana.

O que se verificou em Pernambuco foi antes a contemporização das três tradições, sem sacrifício dos valores mais finos da minoria de origem europeia aos valores mais crus da maioria indígena ou africana. O resultado foi uma cozinha menos opulenta que a baiana porém mais equilibrada. (FREYRE, 1997, p.69).

A tese de Freyre é defendida por muitos estudiosos brasileiros da alimentação, mas não é unanimidade. O sociólogo Carlos Alberto Dória defende que, no caso da influência indígena, são poucos os resquícios que ainda hoje fazem parte da alimentação brasileira, referentes à complexidade culinária dos povos dizimados pelo colonizador português.

“Em termos muito sintéticos, pode-se dizer que o longo período colonial foi de integração mundial dos ingredientes culinários, graças às dimensões globalizadas do sistema econômico montado pelos portugueses. Foi também o período de assimilação das técnicas culinárias europeias no mundo extraeuropeu, deixando em segundo plano as técnicas indígenas. Das culturas indígenas assimilou-se a enorme quantidade de frutas e ‘drogas do sertão’; as formas de transformação do milho e da mandioca (mais ricas no passado do que hoje, no tocante à produção do tucupi) e muito pouco além disso.” (DÓRIA, 2009, p.43)

Para Dória, da mesma forma que as técnicas culinárias indígenas foram deixadas em segundo plano, os escravos negros também não conseguiram influenciar na nossa cozinha da forma que a maioria dos estudiosos da alimentação defende.

“A escravidão constitui uma dissolução dramática dos modos alimentares dos povos africanos submetidos que, provenientes de sociedades tribais, não podiam conceber a alimentação em termos

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ocidentais – sem profunda imbricação nas instituições que lhe eram próprias. As linhas de ligação parentais entre os que comem juntos foram simplesmente esfaceladas, e a razão de comer resumida a aplacar a fome. O negro na América, reduzido à condição de coisa, antes de artífice de um estilo de comer, será alimentado segundo a diretriz do custo da sua alimentação e de idéias sobre sua força e longevidade. O que marca a dinâmica alimentar colonial é a fome, não o cenário idílico, paradisíaco, da oferta ilimitada, fundada numa natureza pródiga.” (DÓRIA, 2009, p.47)

O sociólogo defende, ainda, que a culinária africana encontrada na Bahia, principalmente na capital Salvador, não foi herança colonial, mas resultado de um processo mais recente, de fins do século XIX, possível apenas com a abolição.

“Já a chamada ‘culinária africana’ que se desenvolveu na cidade de Salvador teve um surgimento bastante tardio, não constituindo herança colonial. Ela só aconteceu no final do século 19, após a abolição, quando cessou a belicosidade contra os africanos no Recôncavo – o que marca o fim do longo período iniciado com o massacre dos islamizados negros malês, rebelados em 1835 e que chegaram a governar a cidade por alguns dias. Com o relaxamento do controle policial sobre os negros, o candomblé e sua culinária puderam emergir à luz do dia.” (DÓRIA, 2009, p.49)

Todo o relato feito até aqui mostra como o cenário gastronômico e as tradições alimentares estão atrelados à vida cultural, afetiva, social e até política e econômica de uma sociedade. É impossível conhecer um povo sem conhecer a sua cozinha, os seus hábitos e as suas preferências alimentares. Esta crença foi defendida, ainda na década de 1930, pelo sociólogo Gilberto Freyre.

Se este livro parecer demasiado frívolo ao leitor que não goste de doce, que ele se recorde daquele conceito de Eduardo Prado sobre o paladar, citado por Oliveira Lima nas suas Memórias. O paladar defende no homem a sua personalidade nacional. E dentro da personalidade nacional, a regional, que prende o indivíduo de modo tão íntimo às árvores, às águas, às igrejas velhas do lugar onde nasceu, onde brincou menino, onde comeu os primeiros frutos e os primeiros doces, inclusive os doces e os frutos proibidos. Os próprios judeus conservam a sua personalidade de nação, flutuante no espaço mas sólida através do tempo, guardando os pratos, os doces e os pasteis que mais lhes recordam as palmeiras e as oliveiras dos seus primeiros dias de povo e cujo preparo apresenta tanta coisa de ritual e de litúrgico. Por insistirem em comer alguns desses quitutes proibidos, vários judeus no Brasil colonial foram denunciados à Inquisição e presos. Mártires do paladar e ao mesmo tempo da fé. (FREYRE, 1997, p.64-65)

O italiano Massimo Montanari, um estudioso da alimentação, dedica-se a estudar a relação da comida com a cultura, defendendo que a própria noção de civilização está

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associada ao ato de cozinhar. Para ele, o sistema alimentar é um retrato da identidade de um povo.

Assim como a língua falada, o sistema alimentar contém e transporta a cultura de quem a pratica, é depositário das tradições e da identidade de um grupo. Constitui, portanto, um extraordinário veículo de auto-representação e de troca cultural: é instrumento de identidade, mas também o primeiro modo para entrar em contato com culturas diversas, uma vez que comer a comida de outros é mais fácil - pelo menos aparentemente - que decodificar sua língua. Mas ainda que a palavra, a comida se presta a mediar, entre culturas diversas e abrindo os sistemas de cozinha a todo tipo de invenções, cruzamentos e contaminações. (MONTANARI, 2008, p.183-184)

Dessa forma, a culinária pode ser apontada como um fator determinante de civilidade. "Animais se alimentam para providenciar sustento para seu corpo e assegurar sua existência. Já as pessoas ressignificam essa necessidade fisiológica, cercando-a de simbolismos e fazendo do ato de comer uma ação social, religiosa e, em alguns casos, até mesmo política." (TOSCANO, 2012). Ou seja, a alimentação pode ser apontada como uma das mais importantes vertentes de afirmação cultural de uma sociedade.

O componente civilizatório da alimentação é reforçado pelo componente cultural. Pela cozinha, passam os fundamentos culturais de uma sociedade. No livro Açúcar - uma

sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil (1997), Gilberto

Freyre afirma:

“A cultura regional do Nordeste está, assim, impregnada de sugestões do que nos seus vários frutos - e não apenas na cana-de-açúcar - é doce ou agradável o paladar. Sem açúcar - seja do mais refinado ao mascavo, ao bruto ou de rapadura - não se compreende o homem do Nordeste.” (FREYRE, 1997, p.40).

A partir do momento em que Gilberto Freyre coloca o açúcar como fator preponderante para o entendimento do homem nordestino, ele demarca o papel sociocultural da alimentação no estudo de um povo.

A mesma lógica norteia os estudos da seguidora do pensamento Freyriano, a socióloga Fátima Quintas, que defende que a alimentação possui dimensões sociológicas que não podem ser ignoradas.

O preparo do alimento retrata as variâncias de uma cultura. Nele se desenvolvem os gostos, os requintes, os desejos gastronômicos de cada grupo. Desvendam-se atitudes, comportamentos, formas de ser, preferências gustativas. A maneira pela qual se manifesta a liturgia da comida implica uma das maiores fontes de expressão de hábitos e de costumes no espaço e no tempo de gentes variadas. (QUINTAS, 2010, p.127)

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A comida tem uma importante conotação cultural que, muitas vezes, ultrapassa a importância de substância nutricional que lhe é primordial. O homem come como forma de confraternizar, de interagir. Pertencer a um grupo é, também, comer junto a esse grupo. “Em todos os níveis sociais, a participação na mesa comum é o primeiro sinal de pertencimento ao grupo. Esse pode ser a família, mas também uma comunidade mais ampla: toda confraria, corporação, associação reafirma à mesa a própria identidade coletiva; toda comunidade monástica se reconhece no refeitório, onde todos são obrigados a dividir a refeição (e somente os ‘excomungados’, aqueles que se mancharam com alguma culpa, são excluídos temporariamente)”. (MONTANARI, 2008, p.159)

Partido do princípio de que comida é cultura, defendemos que conhecer a história de um dos primeiros restaurantes do Recife, o "Leite", que é o mais antigo em funcionamento do Estado, é também conhecer a evolução política, econômica, social, gastronômica e, consequentemente cultural da capital pernambucana.

Referências Bibliográficas

ALENCAR, A. L. H. Estilo de vida e sociabilidade - Relações entre espaço, percepções e práticas de lazer na sociedade contemporânea. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2008.

DÓRIA, C. A. A Formação da Culinária Brasileira. São Paulo: Publifolha, 2009. FREYRE, G. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MONTANARI, M. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008. QUINTAS, F. A Saga do Açúcar. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2010.

SOARES, G. O. Leite ao Sabor do Tempo - A história de um restaurante. Recife: Editora Melhoramentos, 2000.

TOSCANO, F.O. Alimentação e cultura: caminhos para o estudo da Gastronomia. Contextos da Alimentação - Comportamento, Cultura e Sociedade, Vol. 1 nº 2, 2012. TOSCANO, F.O. À Francesa - A Belle Époque do comer e do beber no Recife. Recife: Cepe Editora, 2014.

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