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Poesia toda - Herberto Helder.pdf

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Herberto Helder POESIA TODA

Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Serviço de Leitura Especial da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo.

leituraespecial@cm-viana-castelo.pt DO AUTOR O Amor em Visita — 1958 A Colher na Boca — 1961 Poemacto — 1961 Lugar — 1962 Os Passos em Volta — 1963

Electronioolírica (título posterior: A Máquina Lírica) — 1964 Húmus — 1967

Retrato em Movimento — 1967

Ofício Cantante (antologia, 1953-1963) — 1967 O Bebedor Nocturno — 1968

Vocação Animal — 1971

Poesia Toda, 1.= Vol. (antologia, 1953-1966) — 1973 Poesia Toda, 2.= Vol. (antologia, 1963-1971) — 1973 Cobra — 1977

O Corpo O Luxo A Obra — 1978 Photomaton & Vox — 1979

FLash — 1980

Poesia Toda (antologia, 1953-1980) — 1981 A Cabeça Entre as Mãos — 1982

Edoi LeLia Doura / Antologia das Vozes

Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa — 1985 As Magias — 1987; ed. acresc. — 1988

Última Ciência — 1988

Os Seios (in As Escadas Não Têm Degraus, n.3, março de 1990) HERBERTO HELDER

POESIA TODA

A COLHER NA BOCA PREFÁCIO

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder tão firme e silencioso como só houve

no tempo mais antigo.

Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer, sorrindo com ironia e doçura no fundo

de um alto segredo que os restitui à lama. De doces mãos irreprimíveis.

— Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,

as casas encontram seu inocente jeito de durar contra a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras. Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta do gosto, o entusiasmo do mundo.

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Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio admirável das fontes —

pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste como fogo exemplar.

Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas

um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores tenebrosas, e temos memória

e absorvente melancolia

e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos. Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos, espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos que não viram as torrentes infindáveis

das rosas, ou as águas permanentes,

ou um sinal de eternidade espalhado nos corações rápidos.

— Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam pelos muitos sentidos dos meses.

dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra, para que se faça uma ordem, uma duração,

uma beleza contra a força divina?

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha. Alguém viera do mar.

Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.

Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos, inspirações.

— Estas casas serão destruídas.

Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente no seu casamento solar, assim

se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,

vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos da terra

onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos múltiplas, as caras ardendo nas velozes

iluminações.

Falemos de casas. É verão, outono,

nome profuso entre as paisagens inclinadas. Traziam o sal, os construtores

da alma, comportavam em si

restituidores deslumbramentos em presença da suspensão de animais e estrelas,

imaginavam bem a pureza com homens e mulheres ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente, tocando uns nos outros —

comovidos, difíceis, dadivosos, ardendo devagar.

Só um instante em cada primavera se encontravam com o junquilho original,

arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres da inspiração.

— E as casas levantavam-se

sobre as águas ao comprido do céu.

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doce e obsessiva — tudo isso

está longe da canção que era preciso escrever. — E de tudo os espelhos são a invenção mais impura. Falemos de casas, da morte. Casas são rosas

para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança nos abandona para sempre.

Casas são rios diuturnos, nocturnos rios celestes que fulguram lentamente

até uma baía fria — que talvez não exista, como uma secreta eternidade.

Falemos de casas como quem fala da sua alma, entre um incêndio,

junto ao modelo das searas,

na aprendizagem da paciência de vê-las erguer e morrer com um pouco, um pouco

de beleza. TRÍPTICO I

«Transforma-se o amador na coisa amada» com seu feroz sorriso, os dentes,

as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído e silêncio. Traz o barulho das ondas frias e das ardentes pedras que tem dentro de si. E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado silêncio da sua última vida.

O amador transforma-se de instante para instante, e sente-se o espírito imortal do amor

criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro. E a coisa amada é uma baía estanque.

É o espaço de um castiçal, a coluna vertebral e o espírito das mulheres sentadas.

Transforma-se em noite extintora.

Porque o amador é tudo, e a coisa amada é uma cortina

onde o vento do amador bate no alto da janela aberta. O amador entra

por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate. O amador é um martelo que esmaga.

Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher que escuta

fica com aquele grito para sempre na cabeça a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve

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do amador.

Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador, dá-lhe o grito dele.

E o amador e a coisa amada são um único grito anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito de amador. E ela é batida, e bate-lhe

com o seu espírito de amada.

Então o mundo transforma-se neste ruído áspero do amor. Enquanto em cima

o silêncio do amador e da amada alimentam o imprevisto silêncio do mundo

e do amor. II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta.

Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso

e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima — eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros ao lado do espaço

e o coração é uma semente inventada

em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a casa ardesse pousada na noite. — E então não sei o que dizer

junto ã taça de pedra do teu tão jovem silêncio. Quando as crianças acordam nas luas espantadas que às vezes se despenham no meio do tempo — não sei como dizer-te que a pureza, dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a agua sobrenatural, o leve e abstracto correr do espaço —

e penso que vou dizer algo cheio de razão, mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me faltam

um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres que dentro de mim é o sol, o fruto,

a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor.

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III

Todas as coisas são mesa para os pensamentos onde faço minha vida de paz

num peso íntimo de alegria como um existir de mão fechada puramente sobre o ombro.

— Junto a coisas magnânimas de água e espíritos,

a casas e achas de manso consumindo-se,

ervas e barcos altos — meus pensamentos criam-se com um outrora lento, um sabor

de terra velha e pão diurno. E em cada minuto a criatura feliz do amor, a nua criatura da minha história de desejo,

inteiramente se abre em mim como um tempo, uma pedra simples,

ou um nascer de bichos num lugar de maio. Ela explica tudo, e o vir para mim — como se levantam paredes brancas

ou se dão festas nos dedos espantados das crianças — é a vida ser redonda

com seus ritmos sobressaltados e antigos. Tudo é trigo que se coma e ela

é o trigo das coisas,

o último sentido do que acontece pelos dias dentro. Espero cada momento seu

como se espera o rebentar das amoras e a suave loucura das uvas sobre o mundo. — E o resto é uma altura oculta,

um leite e uma vontade de cantar. O AMOR EM VISITA

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. Seus ombros beijarei, a pedra pequena do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade de dois seios, com o peso lúbrico e triste da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave o atravessar trespassada por um grito marítimo e o pão for invadido pelas ondas —

seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes. Ele — imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento

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de alegria e de impudor. Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água. Em cada mulher existe uma morte silenciosa. E enquanto o dorso imagina, sob os dedos, os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. — Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito, mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina e o cheiro da terra.

Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue, cantarei seu sorriso ardendo,

suas mamas de pura substância, a curva quente dos cabelos.

Beberei sua boca, para depois cantar a morte e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro pescoço de planta,

onde uma chama comece a florir o espírito. À tona da sua face se moverão as águas, dentro da sua face estará a pedra da noite. — Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela despenhada de sua órbita viva.

— Porém, tu sempre me incendeias.

Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite imagem pungente

com seu deus esmagado e ascendido.

— Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. Entontece meu hálito com a sombra,

tua boca penetra a minha voz como a espada se perde no arco.

E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo se desfibra — invento para ti a música, a loucura e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso, a inspiração.

E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa. Vou para ti com a beleza oculta,

o corpo iluminado pelas luzes longas.

Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos transfiguram-se, tuas mãos descobrem

a sombra da minha face. Agarro tua cabeça

áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou aquilo que se espera para as coisas, para o tempo —

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eu sou a beleza.

Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem

teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti que me vem o fogo.

Não há gesto ou verdade onde não dormissem tua noite e loucura,

não há vindima ou água

em que não estivesses pousando o silêncio criador. Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos

originais.

Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra a carne transcendente. E em ti

principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma o sinal e a vinha.

Plantas, bichos, águas cresceram como religião sobre a vida - e eu nisso demorei

meu frágil instante. Porém

teu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal, e tudo circula entre teu sopro e teu amor. As coisas nascem de ti

como as luas nascem dos campos fecundos, os instantes começam da tua oferenda

como as guitarras tiram seu início da música nocturna. Mais inocente que as árvores, mais vasta

que a pedra e a morte,

a carne cresce em seu espírito cego e abstracto, tinge a aurora pobre,

insiste de violência a imobilidade aquática. E os astros quebram-se em luz sobre

as casas, a cidade arrebata-se,

os bichos erguem seus olhos dementes, arde a madeira — para que tudo cante pelo teu poder fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza, eu sei quanto és o íntimo pudor

e a água inicial de outros sentidos. Começa o tempo onde a mulher começa, é sua carne que do minuto obscuro e morto se devolve à luz.

Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras com uma imagem.

Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade uma ideia de pedra e de brancura.

És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves, que te alimentas de desejos puros.

E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, a sombra canta baixo.

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Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua, onde a beleza que transportas como um peso árduo se quebra em glória junto ao meu flanco

martirizado e vivo.

— Para consagração da noite erguerei um violino, beijarei tuas mãos fecundas, e á madrugada

darei minha voz confundida com a tua. Oh teoria de instintos, dom de inocência, taça para beber junto à perturbada intimidade em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura com que te adivinho, o tempo onde

a vária dor envolve o barro e a estrela, onde o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida ingénua e cara, o que pressente o coração engasta seu contorno de lume ao longe. Bom será o tempo, bom será o espírito, boa será nossa carne presa e morosa. — Começa o tempo onde se une a vida á nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna salina, imagem fechada em sua força e pungência.

E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado em torno das violas, a morte que não beijo,

a erva incendiada que se derrama na íntima noite — o que se perde de ti, minha voz o renova

num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade inteira, eu estou no fruto como sol

e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada matriz de sumo e vivo gosto.

— E as aves morrem para nós, os luminosos cálices das nuvens florescem, a resina tinge

a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã. E estás em mim como a flor na ideia

e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento na cevada pura, de ti viriam cheias

minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses em minha espuma,

que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? — No entanto és tu que te moverás na matéria da minha boca, e serás uma árvore

dormindo e acordando onde existe o meu sangue. Beijar teus olhos será morrer pela esperança. Ver no aro de fogo de uma entrega

tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus será criar-te para luz dos meus pulsos e instante do meu perpétuo instante.

— Eu devo rasgar minha face para que a tua face se encha de um minuto sobrenatural,

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devo murmurar cada coisa do mundo até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne aspiram longamente

a nossa vida. As sombras que rodeiam

o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto seu bárbaro fulgor, o rosto divino

impresso no lodo, a casa morta, a montanha inspirada, o mar, os centauros

do crepúsculo

— aspiram longamente a nossa vida. Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro. Por isso é que

nos desfazemos no arco do verão, no pensamento da brisa, no sorriso, no peixe,

no cubo, no linho, no mosto aberto

— no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz o perfume da tua noite.

Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua e branca das mulheres. Correm em mim o lacre

e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca ao círculo de meu ardente pensamento.

Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam sobre o teu sorriso imenso.

Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente das urzes, um silêncio, uma palavra;

traz da montanha um pássaro de resina, uma lua vermelha.

Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos, casa de madeira do planalto,

rios imaginados,

espadas, danças, superstições, cânticos, coisas maravilhosas da noite. Ó meu amor,

em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe, o povo renasce,

o tempo ganha a alma. Meu desejo devora

a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome encanta pela noite equilibrada, imponderável — em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro da tua entrega. Bichos inclinam-se

para dentro do sono, levantam-se rosas respirando contra o ar. Tua voz canta

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o lento desejo do teu corpo.

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo eu morrerei contigo.

O POEMA I

Um poema cresce inseguramente na confusão da carne.

Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor,

rios, a grande paz exterior das coisas, folhas dormindo o silêncio

— a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único,

invade as casas deitadas nas noites e as luzes e as trevas em volta da mesa e a força sustida das coisas

e a redonda e livre harmonia do mundo. — Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra a carne e o tempo. II

A palavra erguia-se como um candelabro,

a voz ardia como um inesperado campo de giestas. E nós sustínhamos em nossos dois ombros o fulgor e a tristeza divina. Quando os arbustos

eram bichos iluminando as regiões do céu e ao rés da terra as pedras cantavam e os mitos davam a forma das coisas.

Quando colhíamos o espanto nas mãos dolorosas e em frente ao povo íamos cantando

a fábula e o próprio rosto do milagre.

Quem se assenta á nossa mesa? — dizíamos. — Quem sobre a mesa coloca um beijo sem peso s sem mácula? Nada existe que não seja inocente, e o hálito

perpassa á flor dos lábios,

a força da memória deu a alma ao vinho e o imponderável ao primeiro sorriso. Toda a casa

acaba a noite, cria a auréola

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de um poder obscuro.

A delicada taça partia-se nas mãos — sangue: um sinal, um símbolo. E cantar

era conceber uma estrela, um testemunho da mais alta loucura. Cantar era uma razão

de morte e de alegria.

Desfaziam-se as pálpebras na jovem carne, na esfera da luz, ou na ressonância e volúpia

do tempo. E a mão procurava o punhal, a boca beijava a laje nua. Do braço divino

sumia-se o fogo e o archote corria sobre as águas ou no coração da sementeira.

E era então o fogo aquilo a que o beijo, em sua graça, firmemente aspirava.

Nenhuma vida tanto se gastou

que não seja visitada, nenhum deus

é tão grande que se não perca na substância da sombra. — Uma flor e um grito,

um copo e um breve minuto, ou a aurora cortando o peito, ou o primeiro respirar de um pensamento.

Cantar onde a mão nos tocou,

o ombro se acendeu, onde se abriu o desejo. Cantar na mesa, na árvore

sorvida pelo êxtase.

Cantar sobre o corpo da morte, pedra a pedra, chama a chama — erguido, amado,

aprendido.

III

Às vezes estou à mesa: e como ou sonho ou estou somente imóvel entre a aérea

felicidade da noite. O sangue do mundo corre e brilha. Porque a minha carne se distrai entre as coisas altas da primavera nocturna. Ocupo-me nos símbolos, e gostaria

que meu coração

entontecesse lentamente, que meu coração

caísse numa espécie de extática e sagrada loucura. E enquanto estou só e o céu rodeado de lírios amarelos, e animais de luz, e fabulosos

órgãos de silêncio, descansa sobre os meus ombros

seu doce peso antigo — eu penso

que haveria uma palavra vingativa e pura, uma esfera com espinhos de fogo que me ferisse primeiro na voz ou na claridade

ou na tenebrosa

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na minha própria morte, sob a intensa profusão celeste.

Penso que deve existir para cada um

uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse virgem de sentido e que,

vinda de um ponto fogoso da treva, batesse como um raio

nos telhados de uma vida, e o céu com águas e astros

caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada exaltação.

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez de um instrumento antigo, um nome ligado à morte — veneno, punhal, rio

bárbaro onde

os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes luas impassíveis.

Um abstracto nome de mulher ou pássaro.

Quem sabe? — Espelho, Cotovia, ou a desconhecida palavra Amor.

Sei que minha vida estremeceria, que os braços sonâmbulos

iriam para o alto e queimariam a ligeira . noite de junho, ou que o meu

coração ficaria profundamente louco. E nessa loucura

cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito, e cada nome seria iluminado

por todos os outros nomes da terra, e tudo arderia num só fogo, entre o espaço violento do mês de primavera e a terra

baixa e magnífica.

Com grandes dedos eu tocaria as trémulas campânulas dos signos, e beijaria

as rodas excitadas do ar.

Ferveriam os pequenos vulcões dos frutos. Dentro dos tanques tombaria a água

infantil da aurora. Comer ou sonhar ou estar à mesa da fantasia nocturna

seria para um homem, sob a abóbada da cabeça, como o espírito caído dentro da forma

e a forma incrustada, como uma lâmpada, na inspiração da cabeça.

— Cada boca pousada sobre a terra pousaria

sobre a voz universal de outra boca. IV

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e intenso que conheço como um dom impossuído.

Do ouro terá a luz interior, terá

a graça desconhecida daquilo que mal pousa na mesa, no mundo.

— Passar nocturno da água que o sangue mudamente imita. Ilha cercada

de todos os lados

por uma inumerável, inominável sede humana.

Esta laranja lembra-me uma alta solidão

que nem pode ser nossa, de tão pura. Lembra-me ainda

uma urna fechada como gelo,

onde o ardor da criação guardado devagar se inspirasse numa fonte oculta. Onde

os veios amarelos, batidos ao longo do silêncio pelas pequenas espadas dos raios,

se movessem,

quem sabe até que inapercebido, louco, tão vivo coração de poema. Laranja

com facas e garfos em volta, ainda recebendo gota a gota a sua árvore — laranjeira de espírito desconhecido, irmão

de chuva, irmão de uma noite vagarosamente purificada. Laranja

encontrada entre dois momentos inimigos, ao meio como um grito

que bate em cheio entre os ossos e as veias fulminadas. Doada à poesia que esperava, entre a rigorosa visão e a experiência desmedida da carne.

Se a mão se atreve peia confluída laranja, sobe ao ombro o puro sentimento

de ligação ao mundo. São as manhãs impossíveis da terra, o subjacente e livre fogo

da noite, as águas a urdir

o peixe que vai nadando até se consumar em lento lírio.

Cerraria sobre esta laranja que aparta a inocência da treva

daquilo que o espírito caiou como luz indivisa — sobre ela cerraria a boca,

como se a sepultara num silêncio plantado de muitas presenças fortes

como sal.

— Talvez todo o enigma materno me fosse dado de inspiração

através da língua, por confusos órgãos, a todo um corpo tenso e apto aos segredos e às

delicadas subtilezas da terra.

Talvez esta laranja me dotasse de uma atenção vertiginosa,

e tudo fosse entrando como sabedoria pelo corpo evocativo, e cada gesto fosse depois

a íntima unidade deste Poema com as coisas. Laranja apaixonadamente.

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V

Existia alguma coisa para denominar no alto desta sombria masculinidade. Era talvez um cego escorrer

de sangue pelos anéis e flores do corpo.

Sei unicamente que era a força da tristeza, ou a força da alegria da minha vida.

Havia também outra coisa a que se deveria dar

um nome belo e lento. Algo que se cercava de lágrimas como uma árvore se vai cercando de folhas

inúmeras. Tudo isso começava

a aparecer nas vozes e inspirações como uma ardente confusão. Era primeiro uma virtude.

Depois, este vagaroso acender da noite. O sangue despenhava-se

nas lagoas e grutas da carne. Hoje eu sabia que era a tristeza, a tristeza — um poder

mais jovem que os demais. Esquecia de novo os nomes, e todo me circundava de uma torrente

silenciosa, de uma cítara fortemente anunciadora. Nunca se deve dizer que um rosto perde

as suas brasas quando se inclina sobre a penumbra de uma fonte, sobre um instrumento rápido.

Porque o rumor ressalta na noite parada, e pode-se enlouquecer eternamente. Ou porque a colher

pode ligar a terra á violência do espírito.

— Lá estariam sempre as grandes arcadas de fogo, as portas, a loucura das pontes celestes

aonde a invenção chega como um frio arrebatamento. Havia essa espécie de vocação implorativa, a doçura do corpo subtilmente preso por crateras e picos ao tumulto das sombras.

Eu abaixava-me e tomava como nos braços essa criança ignota.

E porões enchiam-se de água, eu seria em breve um afogado. Tudo me inspirava

nessa noite abrupta, entre o começo e o fim do mundo. Como pode um coração absorver tanta matéria, tanta inocência da terra? Se era uma criança, sua vida circulava indecisamente; se eram os mortos,

a distância tornava-se infinita. Apenas

a minha força se dobrava um pouco, e um novo calor corria nas palavras adormecidas

e degelava as mãos que se cobriam de um sentido impenetrável.

— Essa forma amparava-se no sexo repleto de espinhos e espelhos,

e era uma espécie de retrato sem névoas, um eixo, um grito, uma louca morte

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onde começassem a girar as inspirações misteriosas. VI

Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina a harpa e a loucura desperta a pura espada em pleno sangue. Ó vasto,

amargo e límpido mês interior onde a graça se toca do fogo e o corpo se torna o cândido e longo varão de música. Escada de seiva entre arbustos de estrelas

e cubos de sal perpetuamente ardendo. — Por ti, mês feliz de confusão e génio, eu levanto minha húmida boca

até ao ar e ao vinho, levanto

minha obscura pedra por vias de tormento e instinto até

ao barro vermelho do céu, ao espasmo violento e sagrado das palavras. Mês por onde subo fundamente agitado em meu coração de argila, em minhas veias de pequena infância espantada e grata. E subindo me incendeio e consumo. Mês das mãos purificadas.

Delicado mês para uma corola de nuvem, um vivo transporte entre coxas e mamas.

Em lama e areia se descobre

o pensamento, se perde a memória, se possui uma estreita palavra virgem

e extrema.

Arde, mesa. Arde, instrumento de profunda música. Arde, vinho. Carne,

ave, grande mar, grande estátua fria,

grande sorriso desfeito na face da solidão. Mês de onde nascem os bichos ébrios e a voz das catedrais de resina e o flanco

terrível e doce das montanhas

e o amor irmão da morte e da alegria. Mês do poema, substância de Deus servida como ceia e primeira pedra no espaço da minha angústia,

do meu encanto.

Mês da aliança, tempo

tremendo da inocência onde a lua desce suas raízes ferozes

e a morte anuncia seus primeiros sinais de glória.

— E eu dormia. O sangue atravessava a noite como cantando baixo.

Tecedeiras deixavam mãos sobre a atenção, flores começavam no linho com o tremor comprido das veias.

Mês, mês. Um beijo pensava-se em palavra, recolhia-se, renascia, vibrava na testa como o beijo da loucura.

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— Pela terra adiante aumentava o trigo insensato do canto, o perdão nascia das formas,

e por todas as coisas corria o sopro alucinado e redentor

de um primeiro minuto de entre as mãos e a obra. VII

A manhã começa a bater no meu poema.

As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores líricas.

Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema. Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,

o rodopio das rosáceas do meu

poema batido peia revelação das coisas. Os finos ramos da cabeça cantam mexidos pelo sangue.

Talvez eu enlouqueça à beira desta treva rapidamente transfigurada.

Batem nas portas das palavras, sobem as escadas desta intimidade.

É como uma casa, é como os pés e as mãos das pessoas invasoras e quentes.

Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só, deitado de costas, com o nariz que aspira,

a boca que emudece,

o sexo negro no seu quieto pensamento. Batem, sobem, abrem, fecham,

gritam à volta da minha carne que é a complicada carne do poema.

Uma inspiração fende lírios na minha testa, fende-os ao meio

como os raios fendem as direitas taças de pedra. Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa, uma visita do sangue cheio de luzes interiores. Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem levitante,

as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias. É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados do poema. É Deus que rola e a morte

e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal à beira

do povo que até mim separa os espinhos das formas e traz sua pureza aguda e legítima.

— Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais pequenos cravos de ouro ou peixes delicados de música fria.

— Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos. O poema dói-me, faz-me feliz

(17)

do meu poema.

Eu acordo e grito, bato com os martelos dos dias da minha morte

a matéria secreta de que é feito o poema. — A manhã começa a colocar o poema na parte mais límpida da vida. E o povo canta-o enquanto crescem os campos levantados ao cume das seivas.

A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida do mundo.

FONTE I

Ela é a fonte. Eu posso saber que é a grande fonte

em que todos pensaram. Quando no campo se procurava o trevo, ou em silêncio se esperava a noite,

ou se ouvia algures na paz da terra o urdir do tempo —

cada um pensava na fonte. Era um manar secreto e pacífico.

Uma coisa milagrosa que acontecia ocultamente.

Ninguém falava dela, porque era imensa. Mas todos a sabiam como a teta. Como o odre. Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres suavemente. Meu pai lia.

Sorria dentro de mim uma aceitação do trevo, uma descoberta muito casta. Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente. A lua formava-se

com uma ponta subtil de ferocidade, e a maçã tomava um princípio

de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento perdeu-se e renasceu.

Hoje sei permanentemente que ela é a fonte.

II

No sorriso louco das mães batem as leves gotas de chuva. Nas amadas

(18)

caras loucas batem e batem os dedos amarelos das candeias. Que balouçam. Que são puras. Gotas e candeias puras. E as mães aproximam-se soprando os dedos frios. Seu corpo move-se

pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões e órgãos mergulhados,

e as calmas mães intrínsecas sentam-se nas cabeças filiais.

Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado, vendo tudo,

e queimando as imagens, alimentando as imagens, enquanto o amor é cada vez mais forte.

E bate-lhes nas caras, o amor leve. O amor feroz.

E as mães são cada vez mais belas. Pensam os filhos que elas levitam.

Flores violentas batem nas suas pálpebras. Elas respiram ao alto e em baixo. São silenciosas.

E a sua cara esta no meio das gotas particulares da chuva,

em volta das candeias. No contínuo escorrer dos filhos.

As mães são as mais altas coisas

que os filhos criam, porque se colocam na combustão dos filhos, porque

os filhos estão como invasores dentes-de-leão no terreno das mães.

E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, e atiram-se, através deles, como jactos

para fora da terra.

E os filhos mergulham em escafandros no interior de muitas águas,

e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos e na agudeza de toda a sua vida.

E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa, e através dele a mãe mexe aqui e ali,

nas chávenas e nos garfos. E através da mãe o filho pensa

que nenhuma morte é possível e as águas estão ligadas entre si

por meio da mão dele que toca a cara louca da mãe que toca a mão pressentida do filho. E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,

e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor. III

Ó mãe violada pela noite, deposta, disposta agora entre águas e silêncios.

Nada te acorda — nem as folhas dos ulmos, nem os rios, nem os girassóis,

(19)

— Espero do tempo novo todos os milagres, menos tu.

Corres somente no meu sangue memoriado e sobes, carne das palavras outra vez imperecíveis e virgens.

— Do tempo jovem espero o vinho e o pólen, outras mãos mais puras

e mais sagazes,

e outro sexo, outra voz, outro gosto, outra virtude inteligente.

— Espero cobrir-te novamente de júbilo, ó corola do canto. Mas tu estarás mais branca com a boca selada

pelas pedras lisas.

E sei que terei o amor e o pão e a água e o sangue e as palavras e os frutos. Mas tu, ó rosa fria,

ó odre das vinhas antigas e limpas? Do tempo novo espero

o sinal ardente e incorrupto,

mas levo os dedos ao teu nome prolongado, ó cerrada mãe, levo

os dedos vazios —

e a tua morte cresce por eles totalmente. IV

Mal se empina a cabra com as patas traseiras na lua, e o cheiro a trevo

no focinho puro, e os cornos no ar

arremetendo aos astros. E sobre a solidão das casas, entre o sono e o vinho derramado,

curvam-se os ágeis cascos de demónio.

E o sonâmbulo desejo do coração absorve tudo ao alto numa vertigem tenebrosa.

E quando o esplendor invade as bagas venenosas, o silêncio dos dedos docemente o procura.

Então as veias mudam a conjunção suspensa

do sangue que ascende e que mergulha.

Uma estreia feroz queima a fronte de apolo.

E as mandíbulas, os pés, a invenção, a loucura, o sono secreto, a beleza terrível

espalham sobre nós a branca luz violenta.

Um dia começa a alma, e um caçador atinge a cabra fremente no flanco

(20)

Cantamos devagar o espírito dos livros. E brilha toda a noite, no sangue espesso e maduro do bicho

maravilhoso,

o dardo do caçador.

Um dia começa o amor louco. Porque a cabra

é uma coisa materna e antiga. À noite o trigo irrompe da terra.

E sob a nossa boca roda a imagem do mundo, rosácea abstracta, ou rosa aglomerada

e ardente. Na penumbra das casas as mulheres respiram — surdas, lentas, cegas

de beleza. E no sono as palavras são mortalmente confusas.

— Mal se levanta a cabra sobre as letras puras, sobre a forma árdua e amarga da melancolia.

V

Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa, formosura inclinada sobre a cinza descerrada

e o frio dos retratos.

Espero que a seiva ascenda a um puro gosto de reaver tua grave cabeça de mãe

com platina entre a aragem. Que se inspire na seiva o vermelho de uma face

adormecendo no vinho, acordando para o início das primaveras.

Peço que os dedos não esqueçam o pão e a tristeza e a boca vibre como um pensamento

na substância de um instante carnal, irremovível.

E se morrer é a alta vocação das manhãs marcadas pelas uvas — peço, mãe um dia

composta sobre a veemente confusão das forças e dos números, que resguardes

entre as descuidadas dobras de pedra o fulgor de onde plátanos e aves recebiam a doce e dolorosa vida

da beleza.

Rente ao tempo que nos cobria de previsão e silêncio,

arrefecem os sentidos sobre o teu rosto selado. Pequena e imensa coisa no alto das águas,

no fundo de sementes desmemoriadas — mãe engolfada no leite renascente,

para ti se elevam os lábios tocados pelo sumo incompleto, o sono da próxima

(21)

Tudo o que se diga está vivo na frescura de um coração novo. Por isso o ouro, o inseguro passo

de um dia que traz a morte em sua intensa juventude, roça a forma do espírito

em que tu mesma te buscavas — quente e rápida em nós, no equilibrado idioma

de fomes e sorrisos que nunca se decifram.

Num lugar onde a sombra é gémea do fogo irrevelado, não há

morte que se não destine a um escarlate de rosa. Nunca se adormece

que não seja para ler um estuante anúncio nas pálpebras que se apagam.

Nasces da melancolia, e arrebatas-te.

Como os bichos nascem da matéria dos seus dias, como os frutos vacilam no bojo das auroras e se embebem até que o tempo os faz

violentos, cerrados, palpáveis. VI

Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo onde rolam os cálices transparentes da primavera

de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras ou descubro o teu nome como uma paisagem,

só há grutas virgens onde os candelabros se apagam. Mãe, pouco resta de ti na exaltação do mundo. Às vezes misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me, vertiginosa e triste, através

das palavras.

No outro lado da mesa estás inteiramente morta. Parece que sorris de leve no meu pensamento, mas sei que é apenas

a solidão espantada. Como pudeste morrer tão violenta e fria,

quando os meus dedos começavam a agarrar-te a cabeça inclinada dentro

das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos onde procuro afogar-me como uma criança

nocturna. E não atravessaremos juntos as cidades redentoras, perdidos um no outro, sorrindo

como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna. Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa

da cidade da minha infância. Tu desapareceste. É um erro

das musas distraídas. Não há guindaste que te levante do coração das águas

onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível, ou recolhida na tua carne rápida, ou

(22)

ligeiramente tocada pelo ardor

de uma existência pura. Conheço grandes casas onde não habitas, flores que cheiro, tarefas silenciosas que cumpro humildemente, e luzes, instrumentos de música,

laranjas que devoro sentindo o gosto da vida desde a garganta às mais finas raízes das vísceras. Tu

desapareceste.

Imagino que seria possível tocares porventura

a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente que eu estremecesse nas traves

da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus ombros até que as lágrimas

na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza dos teus dedos, e eu me sentisse

perdido entre os pilares e os túneis das cidades ressoantes.

Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira, e os olhos delicados de mulher restituída,

e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado — talvez

pudesses salvar-me como uma palavra pode salvar um pensamento, ou uma

breve música pode acordar do abismo inocente da noite

um instrumento encerrado nas cordas extenuadas. ELEGIA MÚLTIPLA

I

Como se poderia desfazer em mim tua nobre cabeça, essa torre deslumbrada pelo mudo calor dos dias, pelo

brilhante gelo nocturno? É pela cabeça que os mortos maravilhosamente pesam

no nosso coração. Essas flores intangíveis para as quais temos medo de sorrir, as armas

lavradas, as liras que estremecem e pendem

sobre os rios agitados das coisas. Só o amor as abre e vê sua confusa e grave geografia, as fontes

livres de onde os pensamentos crescem

como a folhagem iluminada das antigas idades do ouro.

Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo, procuro colocar-me num ponto irradiante

da terra, olhar de frente

com toda a inspiração do meu passado, e estar à altura dos mortos, na zona

esplêndida e vasta

da sua nobreza — receber essa espécie de força indestrutível

que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias, de que as rosas bebem o jeito aéreo e a boca

(23)

a delicadeza misteriosa.

Existem árvores cercando os animais sonhadores, o grande arco das eras com os fogos rápidos

presos como campânulas, e a fixa vontade do homem ardendo e gelando

no tempo. À beira dos rios canta-se ou deixa-se que as mãos corram, deslumbradas

da sua grande luz

nas águas. Existe um nome suspenso sobre as estações do ano. Essa cabeça

dos mortos — a tua cabeça antiga como o verde nas pedras ou o movimento

das corolas frias,

essa cabeça sumptuosa rodeada de estreitas víboras —

sobe do meu coração até que a minha cabeça seja a possessiva, doce cabeça

dos mortos. II

Sobre o meu coração ainda vibram seus pés: a alta formosura do ouro. E se acordo e me agito,

minha mão entreabre o subtil arbusto de fogo — e eu estou imensamente vivo. Se com a neve e o mosto dei ao tempo a medida secreta, na minha vida tumultuam os rostos mais antigos. Não sei

o que é a morte. Enchia com meu desejo

o vestíbulo da primavera, eu próprio me tornava uma árvore abismada e cantante. E a beleza é uma chama

solitária, um dardo que atravessa o sono doloroso. Nada sei dos mortos. Deixaram em mim os pés sombrios, um súbito fulgor de ausência. — De mim, vivo e ofegante, sei uma flor de coral: delicada, vermelha. Porque morrem assim no interior do vinho quando

se extasiam e cantam? Porque escurecem os ombros onde as videiras se derramavam e subiam as escadas?

Um a um vão nascendo meus pensamentos nocturnos, e eu digo: porque morrem

os que tinham a carne com seu peso e milagre e sorriam sobre a mesa

como seres imortais?

E agora é a minha vida que assombrada se fecha. A vida funda e selvagem. Porque um dia,

como se apaga a labareda de um cacho.

o brilho se apagará onde estava a minha letra. Dançarei uma só vez em redor da taça,

festejando a última estação. Hoje

nada sei. Correm em mim os mortos, como água — com o murmúrio gelado da sua incalculável ausência. E digo: não refulgia a carne quando

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a primavera inclinava a cabeça sobre a sua confusão? Não dormiam junto ao mosto com lírios no pensamento? Ei-los em mim, os mortos longos, e digo: se havia tanto ouro dentro e fora deles, porque

se extinguiram? Nada sei dos mortos.

Um dia hei-de ser como espuma absorta em volta

de um coração, e dele se erguerá uma onda de púrpura, um amor terrível.

— Porque era de ouro firme, e ressoava. III

Havia um homem que corria pelo orvalho dentro. O orvalho da muita manhã.

Corria de noite, como no meio da alegria, pelo orvalho parado da noite.

Luzia no orvalho. Levava uma flecha

pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado loucamente

por um caçador de que nada se sabia. E era pelo orvalho dentro.

Brilhava.

Não havia animal que no seu pêlo brilhasse assim na morte,

batendo nas ervas extasiadas por uma morte tão bela.

Porque as ervas têm pálpebras abertas sobre estas imagens tremendamente puras. Pelo orvalho dentro.

De dia. De noite.

A sua cara batia nas candeias. Batia nas coisas gerais da manhã.

Havia um homem que ia admiravelmente perseguido. Tomava alegria no pensamento

do orvalho. Corria.

Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas. Que têm os olhos cegos como sangue.

Este corria, assombrado. Os mortos devem ser puros. Ouvi dizer que respiram.

Correm pelo orvalho dentro, e depois estendem-se. Ajudam os vivos.

São doces equivalências, luzes, ideias puras.

Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar — a morte ê passar, como rompendo uma palavra, através da porta,

para uma nova palavra. E vejo

o mesmo ritmo geral. Como morte e ressurreição através das portas de outros corpos.

(25)

Como uma qualidade ardente de uma coisa para outra coisa, como os dedos passam fogo

à criação inteira, e o pensamento pára e escurece

— como no meio do orvalho o amor é total. Havia um homem que ficou deitado

com uma flecha na fantasia. A sua água era antiga. Estava tão morto que vivia unicamente.

Dentro dele batiam as portas, e ele corria pelas portas dentro, de dia, de noite. Passava para todos os corpos.

Como em alegria, batia nos olhos das ervas que fixam estas coisas puras.

Renascia. IV

A colher de súbito cai no silêncio da língua. Paro com a gelada imagem do tempo nos sentidos puros. E sei que não é uma flor aberta

ou a noite cercada de águas extremas. Paro por esta monstruosa,

ingénua força da morte.

— A colher envolvida pelo silêncio extenuante da minha boca, da minha vida.

Que faço? Bem sei como se alimenta um homem, e tímido e arguto

alimenta a sua irónica inspiração solar, a inocente astronomia

de ossos e estrelas, veias e flores e órgãos genitais —

para que tudo se construa docemente,

com as mulheres sentadas nos seus vestidos coalhados, sorrindo fixamente como as crianças na lírica,

tenebrosa densidade da carne.

A colher cheia de alimento. Era um jogo vivo, manso, ponderado — uma

beleza evocativa e confusa.

Eis: sou um homem que instante a instante ganhava um sabor de perene

sentido, uma duração de sombra extasiada, laboriosa, inclinada no grave centro da primavera — a sombra

das minhas mãos.

A colher subia como um instrumento da criação, firme subia nos dedos

como que invocando, unindo os fragmentos do espírito,

a mímica na sugerida integridade da pessoa

(26)

Mas paro. Cai no silêncio da língua a colher que era — quem sabe? — música, intimidade, sinal fortuito

de uma essência, um génio interior. O puro roer devagar roerá

a colher na mão e a boca na colher,

e no sangue imóvel o pudor da imagem onde

coagulava a leve espessura das casas. Essas que ardiam na assimetria festiva e sagaz das invenções.

— Cai no silêncio da língua a colher tão brusca. V

Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam sobre a minha vida.

Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites do mundo.

Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção devastadora. Oh feroz mundo puro,

oh vida incomparável. Cantam, cantam.

Abro os olhos debaixo das águas silenciosas, e vejo que a minha lembrança é mais remota que tudo. Cantam friamente.

Não posso ouvir cantar.

Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê como bebe no anónimo da estação.

O sangue escorrega por ti quando é altura de rosas. Ouve: não te maravilha

a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas? — Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico de um nome extremo.

Não cantem, não floresçam.

Não posso sentir encher-se assim a vida como uma canção fria e uma roseira tão espalhada em mim.

Pode ser que fosse ilesa esta época do ano, e minha existência de repente se tomasse por todo esse fervor.

Vejo minha ardente agudeza escoar-se até ã maturidade confluente

de um minuto de verão. — Estaria eu completo para a morte?

Não, não cantem essa lembrança de tudo. Nem roseira na sangrenta delicadeza da carne, nem o verão com seus símbolos de feroz plenitude.

Gostaria de pensar cada um dos meus dedos, esta cítara descida dentro da obra.

Toda a tristeza como uma vida admirável enchendo a eternidade.

As frias canções despovoam-me, e as roseiras tornam desavindas as rosas

(27)

recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme alui-se-me o uno sangue.

Eu próprio poderia cantar um nome masculino, a minha vida inteira

tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio do que se não sabe.

Não se canta e floresce. Ninguém amadurece no meio da sua vida.

Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo, e a alta tristeza purifica os dedos.

Porque um homem não é uma canção fria ou uma roseira. Não

é um fruto como entre folhas inspiradoras.

Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha sobre ele, mas onde o corpo

arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro como um sacrifício antigo.

— Por sobre frias canções e roseiras aterradoras, minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso de uma grande vida.

Pode ser que tudo esteja bem no plural de um mundo intenso. Mas

o amor é outro poder, a carne

vive de sua absorta permanência. Esta vida de que falo

não se escoa, não alimenta os superlativos diários. É única

e perene sobre a escondida fluência dos movimentos.

— Uma roseira, mesmo

incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha. Por detrás da noite de pendidas

rosas, a carne é triste e perfeita como um livro.

VI

São claras as crianças como candeias sem vento, seu coração quebra o mundo cegamente.

E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema, pelo terror dos dias, quando

em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param junto à eternidade.

As crianças criam. São esses os espaços onde nascem as suas árvores.

Enquanto as campânulas se purificam no cimo do fogo, as crianças esmigalham-se.

Seu sangue evoca

a tristeza, tristeza, a tristeza primordial.

— Enlouquecem depressa caídas no milagre. Entram pelos séculos

(28)

entre cardumes frios, com o corpo espetado nas luzes e o olhar infinito de quem não possui alma.

Seu grito remonta ao verão. Inspira-as a velocidade da terra.

As crianças enlouquecem em coisas de poesia. Escutai um instante como ficam presas

no alto desse grito, como a eternidade as acolhe enquanto gritam e gritam.

— É-lhes dado o pequeno tempo de um sono de onde saem

assombradas e altas. Tudo nelas se alimenta. Dali a vida de um poema tira

por um lado apaixonadamente; por outro, purificação.

Nelas se festeja a imensidade

dos meses, a melancolia, a silenciosa pureza do mundo.

Quem há-de pensar para as crianças, sem ter espinhos nas vozes desertas

até ao fundo? É vendo-se aos espelhos, no seguimento da noite,

que as crianças aparecem com o horror

da sua candura, as crianças fundamentais, as grandes crianças vigiadoras —

cantando, pensando, dormindo loucamente. Não há laranjas ou brasas ou facas iluminadas que a vingança não afaste.

As crianças invasoras percorrem os nomes — enchem de uma fria loucura inteligente

as raízes e as folhas da garganta.

Aprendemos com elas os corredores do ar, a iluminação, o mistério

da carne. Partem depois, sangrentas, inomináveis. Partem de noite

noite — extremas e únicas.

— E nada mais somos do que o Poema onde as crianças se distanciam loucamente.

Loucamente. VII

Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,

amanhã morrerei.

Talvez eu comece a morrer na tua mão direita, alterosa e quente na minha mão

sufocada. Agora mesmo na europa

começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida percorrida por um álcool penetrante, é a imediata

atenção ao misterioso trabalho da idade.

(29)

sombrios da carne, sobre um vasto segredo. Será apenas isto, um ponto móvel

da eternidade, isto — a sufocação veloz e profunda da vida inteira na minha garganta? E depois

o acender das luzes, bruxelas como uma câmara de archotes e ao alto as ameias

enevoadas dos astros? Devo olhar com uma grande memória aquilo que acaba na violência triste do poema.

Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilónia partem rios. Por detrás das cortinas,

despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho vinte e nove bocas urdindo

a falsa doçura da confusão. Os países constroem a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão

pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante a loucura masculina

da minha vida. Pensa um pouco na beleza

ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível das pessoas ou o seu respirar

que arde e brilha e se apaga à superfície

das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso rapidíssimo

que jamais desaparece do silêncio, na candeia que cobre com agulhas de ouro os escombros dos lírios. E por cima de tudo estende a tua pequena mão eterna. Cai

tu própria na treva quente da minha cega mão masculina de vinte

e nove

anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda

inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta cheia de sangue actual — amanhã morrerei.

Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas velozes, pedras que pareciam

imortais. Eram casas que se levantavam sobre o meu coração. Vi que tomavam

animais feridos, flores imaturas, objectos breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam alguma coisa eterna. Era gente

de vinte e nove anos que se despedia dolorosa pormenorizada

violentamente de uma parte da sua carne, a parte mais iluminada da sua

carne de vinte e nove anos. Amanhã morrerei.

AS MUSAS CEGAS I

Bruxelas, um mês. De pé sob as luzes encantadas. Em noites assim eu extinguiria minha alma

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sob os anéis dos astros, e entre os violinos e os fortes poços da noite descobriria

a ardente ideia da minha vida. Em noites assim amaria o fogo

da minha idade. Cantaria como um louco este grande silêncio do mundo, vendo queimarem-se nas trevas as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos e a cândida e ligeira arquitectura

de uma vida.

Bruxelas com as traves da minha cabeça

e uma grinalda de carvões em torno dos testículos de um homem

bêbado da sua idade. Cantaria com esses testículos negros, as lágrimas, o coração ao meio do nevoeiro derramando o seu baixo e aéreo sangue,

a sua dor, o lírico

fervor, o fogo de porta entre os símbolos nocturnos. Era tão pura a ideia de que o tempo começava

depois do verde e fértil e exaltado

mês da carne. Vergada sobre o livro onde o meu rosto ardia,

a vida esperava com suas torres vibrantes, seus grandes lagos límpidos. E eu adormecia

e sonhava um homem em voz alta, um vidro incandescente, uma fina flor

vermelha colocada sobre a mesa. Era tão violenta a ideia de cantar sem fim,

até que a voz consumisse esta garganta sombreada de estreitos vasos puros.

— Cantar fixa e fria e intensamente sobre a minha rasa

luminosa vida, ou sobre os campos transparentes e sombrios de bruxelas do mundo.

II

Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada pelas vozes.

E enquanto dorme o leite, a minha casa pousa no silêncio e arde pouco a pouco.

No círculo de pétalas veementes cai a cabeça — e as palavras nascem.

— Límpidas, amargas.

Eis um tempo que começa; este é o tempo.

E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas, é o pensamento que verga de flores actuais e frias.

A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro. E estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado de seivas, para a noite que estremece

fundamente.

(31)

com maçãs dobradas à sombra do rubor.

Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando com a primeira música de água.

Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído, com esta coroa recente de ideias, esta mão

que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa onde o coração se consome devagar.

Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras

antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera de minúsculas folhas eternas como uma árvore.

Degrau a degrau devorei a alegria —

eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas desvairadas, entre jarros transbordando

húmidos astros.

Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer com os olhos queimados pelo poder da lua.

Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe procuro no meu silêncio uma outra forma

dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é a casa ligeira colocada num espaço

de profundo fogo.

E apagaram-se as luzes.

— Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente

para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra, espécie de boca recolhida no começo?

E é tão certo o dia que se elabora.

Então eu beijo, degrau a degrau, a escadaria daquele corpo. E não chames mais por mim,

pensamento agachado nas ogivas da noite. É primavera. Arde além rodeada pelo sal, por inúmeras laranjas.

Hoje descubro as grandes razões da loucura,

os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas. Há lugares onde esperar a primavera

como tendo na alma o corpo todo nu. Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego

que principia. — É preciso cantar como se alguém soubesse como cantar.

III

Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio poço dos sons. Ela não dormia, estava

a meu lado, era uma gruta onde a música um instante se torna imensa.

Durante um mês viveu em mim, e não dormia. Foi o mês das musas, a penumbra da sua vida

estava coberta de ervas puras. Não dormia. Durante

o espantoso mês das musas, eu despertava como um espelho onde as brasas da cabeça principiam a girar.

(32)

Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas.

Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento, eu era profundo e fecundo. O sangue

passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos ardiam em mim, nessa monstruosa

noite da criação.

Sinto que tocaria esse intenso violino, e a vida mudaria, as grandes estações do ano passariam devagar na minha confusão. Eu era um homem

e tinha na boca o ofício de sorrir o fluxo encantado

das imagens. E tinha as palavras que um homem tem para acender, como fogueiras,

nas margens cantantes e frias das aguas do mundo.

Vejo a minha vida agitada, as pequenas faúlhas do rosto, minha dor e idade

de homem,

debruçadas sobre esse objecto misterioso e triste, e poderoso e vazio

como uma guitarra, uma coluna de obscuridade que dormia, que não podia jamais dormir

entre uma onda que vem do céu e da terra e uma noite que iria e viria sobre a paisagem

de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos e ocos.

Às vezes eu levantava um braço que deixava arder ou pensava como era forte

a torrente do meu silêncio. Pensava

como poderia desfazer-se a carne sem que eu gritasse. A minha voz era esplêndida.

Os mortos poderiam erguer os corpos submersos na grande ideia

universal, poderiam ouvir a minha voz tão límpida de terrível

alegria.

A meu lado aquele ser levitava, e por ele passavam as aves, os montes atingiam

as corolas celestes, nunca deixavam de correr

as aguas que atravessam os povos mais puros do mundo. Era tenebroso e doce que a loucura me viesse

deste lugar, que fosse uma arvore sustentando a minha idade.

Chegava um dia em que ela devia ser obscura, e o meu coração ressoava. Minha dor de homem de novo se inclinava sobre as formas mudas. Porque a terra trabalhava para acender

aquela cidade, porque ela mesma cantaria então, iluminada e humilde

(33)

debaixo da noite rolante, da estupenda noite inspiradora. Mas somente para mim

o vento circulava com seus archotes rápidos rápidos.

Minha cabeça estremecia contra a almofada de fogo, e o sangue despedaçava as portas,

e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se batidos pelos raios.

Sabia-se agora

como havia razão no oculto

movimento da fantasia, como essa força

chegava de nada e era força no próprio e puro enigma da minha vida. Porque a obra era então —

mais que o mundo e as fontes e os leitos dos poderes —

eu, um homem disposto sobre si como a luz se dispõe sobre a luz

e as palavras são em si mesmas dispostas no renovo das palavras.

Sobre a sombra de um mês confuso e rápido, eu era um homem —

e um homem beija a sua própria boca. IV

Mulher, casa e gato.

Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça da casa, uma luz violenta.

Anda um peixe comprido pela cabeça do gato. A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia pensa-a, enquanto

o gato imagina a elevada casa.

Eternamente a mulher da mão passa a mão pelo gato abstracto,

e a casa e o homem que eu vou ser são minuto a minuto mais concretos. A pedra cai na cabeça do gato e o peixe gira e pára no sorriso

da mulher da luz. Dentro da casa,

o movimento obscuro destas coisas que não encontram palavras.

Eu próprio caio na mulher, o gato adormece na palavra, e a mulher toma a palavra do gato no regaço.

Eu olho, e a mulher é a palavra.

Palavra abstracta que arrefeceu no gato e agora aquece na carne

concreta da mulher.

A luz ilumina a pedra que está

na cabeça da casa, e o peixe corre cheio de originalidade por dentro da palavra.

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Se toco (e é apaixonante)

a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra. Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra. Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher com seu gato, pedra, peixe, luz e casa. A mulher da palavra. A Palavra.

Deito-me e amo a mulher. E amo

o amor na mulher. E na palavra, o amor. Amo, com o amor do amor,

não só a palavra mas

cada coisa que invade cada coisa que invade a palavra.

E penso que sou total no minuto em que a mulher eternamente passa a mão da mulher no gato dentro da casa.

No mundo tão concreto. V

Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira e a eternidade das mãos.

Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas lâmpadas, todas as coisas.

As coisas que são uma só no plural dos nomes. — E nós estamos dentro, subtis, e tensos na música.

Esta linguagem era o disposto verão das musas, o meu único verão.

A profundidade das águas onde uma mulher mergulha os dedos, e morre.

Onde ela ressuscita indefinidamente. — Porque uma mulher toma-me

em suas mãos livres e faz de mim um dardo que atira. — Sou amado,

multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto — e doado ás coisas mínimas.

Na treva de uma carne batida como um búzio pelas cítaras, sou uma onda.

Escorre minha vida imemorial pelos meandros

cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.

E de repente eu sou uma torre queimada pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.

E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra. — Porque me amam até se despedaçarem todas as portas, e por detrás de tudo, num lugar muito puro,

todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio. Essa mulher cercou-me com as duas mãos.

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acendo-lhe as falangetas,

faço um ruído tombado na harmonia das vísceras. Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente. Sou eterno, amado, análogo.

Destruo as coisas.

Toda a água descendo é fria, fria.

Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes sóis que se quebram entre os dedos,

as pedras caídas sobre as partes mais trémulas da carne,

tudo o que é húmido, e quente, e fecundo, e terrivelmente belo

— não é nada que se diga com um nome.

Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.

E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo lírio a lírio todo o sangue interior,

e a vida que se toca de uma escoada recordação.

Toda a juventude é vingativa.

Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura. Um dia acorda com toda a ciência, e canta

ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe pelos frutos,

ou a lenta iluminação da morte como espírito nas paisagens de uma inspiração.

A mulher pega nessa pedra tão jovem, e atira-a para o espaço.

Sou amado. — E é uma pedra celeste.

Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se

desse quente silêncio.

Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive. Depois levanta-se com os olhos imensos

e incendeia as casas, grita abertamente as giestas, aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado. Amam-me, multiplicam-me.

Só assim eu sou eterno. VI

É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto à terra nocturna. Junto à terra transfigurada. Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis. Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo sem fim circunda suas raízes leves.

É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina os meus espinhos frios,

a lua que inclina meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna.

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bate os seus martelos contra um milhão de estrelas. É uma coisa estupenda a primavera que trabalha nas caveiras dos cavalos enterrados.

E os cavalos ressuscitam pela noite adiante. Inspiro-me na primavera com suas grutas de água atenta, e amo a loucura —

a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror. Tenho medo de erguer a voz mais alto

que o meu coração onde uma candeia concentra um grande silêncio.

A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato. Que a tristeza me ajude, que me ajudem

os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos, todos os mortos, todos os que amam

entre sangue no mundo, entre as águas das noites eternas.

Sinto os ossos ascenderem às cobras na cabeça — e a obra está nas mãos.

Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem, fundo-me no verbo interior da primavera

como o vermelho se funde na flor futura.

Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte. Cantavas o que já se não quebra com o uso

das vozes. Porque tu eras a minha água salgada.

Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam e a rutilação ascende pelas veias.

Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos. Primavera, como cresces.

Desespero ou alegria, como correm nos membros reaparecidos.

Dizer devagar na humidade da carne, evocar tuas colinas de sal, mistério. Tudo em volta da primavera e da noite com uma porta no coração para passar num tremendo silêncio.

Ressuscitar uma vez com a cara extrema junto a líquenes inocentes.

Entre os meses saber de um só que pede a mudez aterradora.

A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras evaporam-se, reaparecem em espírito

mastigando giestas. Primavera é uma palavra numa língua demasiado estrangeira.

Uma coisa enorme, sem música. Falo tão devagar que mal distingo a noite sobre a terra

da minha garganta onde os animais passam lentamente inspirados.

Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes, e o sangue alimenta a loucura

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devagar, devagar — como quem ressuscita. VII

Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar.

Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois, ressoando violentamente pelos corredores

e paredes e pátios desta própria casa

que eu sou. Que eu serei até não sei quando. É uma doce pancada à porta, alguma coisa que desfaz e refaz um homem. Uma pancada breve, breve —

e eu estremeço como um archote. Eu diria que cantam, depois de baterem, que a noite

se move um pouco para a frente, para a eternidade. Eu diria que sangra um ponto secreto

do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente ou se queima como uma face. Escuta:

que a noite vagarosamente se queima como a minha face.

Essa criança tem boca, há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. Um novo instrumento, uma taça situou-se na terra, e há tantas

finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia, uma flor, uma pequena lira,

podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo — um novo instrumento rodeado pelas campânulas

inclinadas, por ligeiras pedras húmidas,

pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo as grandes cabeças sonhadoras.

Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva. Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me tantas vezes dos mistérios dessa porta.

Porque então é muito estreita com seus espelhos detrás, com o vestíbulo frio.

Mas é tão belo uma criança ainda enevoada, uma criança que ascende como uma

grande música

desta rede de ossos, deste espinho do sexo, da confusa pungência, escuta: da pungente confusão

de um homem restrito com a sua vida tão lenta. Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos.

Às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens, e as virilhas em chama.

É a minha vida. Mas essa criança

é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta o meu coração.

No outono eu olhava as águas lentas, ou as pistas deixadas na neve

de fevereiro, ou a cor feroz,

ou a arcada do céu com um silêncio completo. Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se

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a ciência na minha carne

atónita. Escuta: cada vez a minha vida é mais hermética.

Essa criança tem os pés na minha boca dolorosa.

Se ela um dia adormecer com cerejas junto ao pequeno respirar, e sonhar

estes imensos arcos que os séculos vão colocando sob os astros — e se de tudo

a sua cabeça estremecer como numa loucura, com altos picos em volta, com enormes faróis acendendo e apagando — escuta: se essa criança imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente para que ela invente o seu próprio rio

sem nome —

será ainda que do meu sangue se erguem finas raízes, e o tenebroso tumulto

das minhas sombras

está no fundo, no fundo da sua ingénua vida, da sua terrível vida sem remédio.

Se ela morrer, escuta, será que a minha boca diz lá em baixo

essas majestosas e violentas palavras dos poemas.

Essa criança que aperta as veias que iluminam a minha garganta. Ela dorme. Escuta:

a sua vida estala como uma brasa, a sua vida deslumbrante estala e aumenta.

Se um dia os archotes incendiarem essa boca, e as faúlhas cercarem

o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta: a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo. VIII

Ingoro quem dorme, a minha boca ressoa.

Despedir-se dos meses é uma nova tarefa, um ofício inquieto. Às vezes na noite

vejo as casas pequenas, as rosas que se voltam para o subterrâneo e subtil

ruído da seiva. Penso nas mulheres de pálpebras descidas, no seu espírito

expansivo que repousa. Nas crianças que enlouquecem silenciosamente dentro da sua inocência.

Às vezes na noite ainda jovem, mas que principia a engolfar-se no seu doce hermetismo — tantas vezes

penso na chuva, e nos corpos, e nas pontes onde se encontra alguém

com as cegas mãos escorrendo para o fundo o sangue de uma imensa

inspiração. Eu sei: despedir-se dos meses é um ofício inquieto.

Referências

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