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HARTOG, François. Evidência Da História

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Academic year: 2021

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III.IIIIIIII~III

126087.

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Coleção

HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA

Coordenação Eliana de Freilas Dulra

François Hartog

Evidência da história

o

que os historiadores veem

Tradução

Guilherme João de Freitas Teixeira

com a colaboração de Jaime Á. Clasen

1Qedição 1Q reimpressão

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1---.

i

Copyright ©2005 tditions deI'EHESS Copyright © 2011 Autêntica Editora

TITULO ORIGINAL

Évidencede /'histoire - ceque voient les historiens

COORDENADORA DA COLEÇÃO HISTORIA E HISTORIOGRAFIA Eliana de Freitas Outra

PROJETO GRÁFICO DE CAPA

Teco de Souza

EDITO RAÇÃO ELETRÓNICA Conrado Esteves Christiane Morais deOliveira REVISÃO TtCNICA VeraChacham REVISÃO Vera LúciaDeSimoni Castro Lira Córdova EDITORA RESPONSÁVEL Rejane Dias

Revisadoconforme oAcordo Ortográfico da LínguaPortuguesa de 1990,

emvigor no Brasil desdejaneirode2009.

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.Nenhumapartedesta publicação poderáserreproduzida, seja pormeios mecânicos, eletrônicos, sejavia cópiaxerográfica, sem a autorização préviadaEditora.

AUTÊNTICA EDITORA LTOA. Belo Horizonte

Rua Aimorés, 981, 8° andar. Funcionários 30140-071 .Belo Horizonte. MG Tel.: (55 31) 3214 5700

Televendas: 0800 283 1322

www.autenticaeditora.com.br

São Paulo

Av. Paulista, 2073 . Conjunto Nacional Horsa I . 23" andar. Canj. 2301 .Cerqueira César 01311-940. São Paulo. SP

Tel.: (55 11) 3034 4468

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hartog, François

Evidência da história: o que os historiadores veem / François Hartog; tradução Guilherme João de Freitas Teixeira com a colaboração de Jaime A. Clasen.-1. ed., 1. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica Editora,

2013.-(Coleção História&Historiografia / coordenação Eliana de Freitas Dutra,5)

Título original: Évidence de l'histoire : ce quevoient les historiens.

ISBN 978-85-7526-584-0

1.Historiografia. 2.História- Filosofia. I.Dutra, Eliana deFreitas.

11.Título. 111. Série.

11-10406 CDD-907.2

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Caroline Béraud, que mostrou tanta dedicação (e mais do que isso) por este livro. Minha gratidão também pela fidelidade dos primeiros leitores que, mais uma vez, continuam sendo Gérard Lenclud, Jacques Revel e Jean-Pierre Vernant. Meu obrigado, igualmente, a Pierre Nora, que me incentivou a olhar para a história contemporânea.

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SUMÁRIO

Prefácio... 11

PRIMEIRA PARTE Ver na Antiguidade Capítulo I - As primeiras escolhas... 19

Memória e história... 24

A evidência antes da evidência... 30

Capítulo 11- Oradores e historiadores...

37

Eloquência e cidade... 38

Palavras e ações... 41

Capítulo 111- Ver e dizer: a via grega da história (séculos VI-IV a.c.)... 45

Escrita e história... 47

Listase arquivos... 51

Epopeia e história: Heródoto... 56

Dokleosao ktema.......... 62

O século IV:tornar o passado visível... 68

Capítulo IV - O olhar de Tucídides e a história "verdadeira"...

77

Capítulo V - Ver a partir de Roma: Polibio e a primeira história universal... 93

Quem éPolíbio? 95 De que maneira escrever a história? . 101 Tornar-se historiador em Roma... 104

A Constituição Mista. 112 A história contínua... 115

Capítulo VI - Ver a partir de Roma: Dionísio de Halicarnasso e as origens gregas de Roma... 119

Gregos, bárbaros, romanos... 122 Dionísio de Halicarnasso entre os modernos...

127

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SEGUNDA PARTE

Evidências nos Tempos Modernos

Capítulo I - O olhar do historiador e a voz da história .

"Na poeira das crônicas " .

"A visibilidade invisível" .

Ovisível como ilusão .

Capítulo 11- Michelet, a vida, a história .

A "própria vida" .

"O o ICIO os mor os

f"

d t" .

Capítulo III - Disputas a respeito da narrativa .

História-narrativa .

História-Geschichte .

"U

ma vanave

.,

I d .

a m ngatri /I .

Capítulo IV - O olhar distanciado: Lévi-Strauss e a história .

Primeiro ato .

Continuação e intermédio .

Segundo ato e desfecho .

Capítulo V - A testemunha e o historiador .

A testemunha, de que modo e por quê? .

Da testemunha que escuta à testemunha que vê .

A autoridade da testemunha ocular .

Da testemunha dispensada ao retorno da testemunha .

Capítulo VI - Conjuntura do final

de secu o: a eVI encro em ques ao' I idênci t- 2 .

Arquivos e história

(1979-2001)

.

Julgar. .

A hi ,.istório se UZI a pe a episterno ogladuzid I . I' 2 .

143

145

149

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163

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192

198

203

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212

216

221

229

231

238

246

Epílogo - Michel de Certeau

253

A escrita da viagem...

256

APÊNDICES

Fontes

265

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Prefácio

Há muito tempo - para não dizer, desde anoite dos tempos -, a história não seráuma "evidência"? Ela é relatada, escrita,feita. A hi

s-tória, aqui e lá, ontem como hoje, é evidente. No entanto, dizer a "evidência da história" não será, por isso mesmo, suscitar uma dúvida, reservar espaço para um ponto de interrogação: será isso assim tão evidente? E depois, de qual história sefala?Daquela que a Europa Moderna pretendeu transformar, durante algum tempo, na medida de todas asoutras, aponto de decretar tranquilamente que certo número de sociedades não tinha história? Sem ser necessário avançar mais, esse enunciado por sisó instila apossibilidade de um questionamento, convidando a voltar, por exemplo, às primeiras escolhas efetuadas por uma coletividade humana, uma monarquia ou um Estado. O que significa dizer que se faz aescolha dahistória, que se adota ereivindica uma história? O que implica ofazer histó -ria e, em primeiro lugar, de que ede quem depende tal operação? Eis aí um primeiro emprego do termo e uma primeira pista. Existem ainda outras duas. "Evidência" éuma palavra que estámais associada à retórica e à filosofia do que à história. Se estivermos na França, vamos pensar de bom grado em Descartes e em uma evidência concebida como intuição, visão completa, que fornece a certeza de um conhecimento claro e distinto (DESCARTES,1953, p. 43-45). Se recuarmos ainda mais no tempo, até aAntiguidade e a etimologia, vamos encontrar osnomes de Cícero ede Quintiliano, além de Aristóteles. "Evidência" deriva, com efeito, de evidentia,

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EVIDÊNCIA DA HISTÓRIA - OQUE OS HISTORIADORES VEEM

palavra que entrou na língua latina graças a Cícero, o qual a havia forjado para traduzir o étimo grego: enargeía.

Em Homero, o adjetivo enarges qualifica a aparição de um deus que se mostra" em plena luz".' A palavra orienta para a visibilidade do invisível, uma epifania, o surgimento do invisível no visível. Para Aristóteles, é a visão que, "por excelência, é o sentido da evidência". Associada, com efeito, àvisão, a evidência dos filósofos é "critério de si, índex suí, ligada ao verdadeiro e necessariamente verdadeira. A enargeía está aí para garantir que o objeto é tal como ele apare-ce" (CASSIN,1997, p. 19). Desde então, é necessário, e suficiente, um dizer que diga o mais apropriadamente possível "o que se vê tal como isso é visto". É, em primeiro lugar, essa evidência que Cícero (Lucullus, 17) traduz por evidentia. Étotalmente diferente o que se passa com a evidência dos oradores: ela nunca é dada, mas impõe-se fazê-Ia surgir, produzi-Ia inteiramente pelo logos. Não estamos na visão, no primeiro sentido, mas no como se da visão, já que o verdadeiro trabalho do orador consiste em transformar,

como é sublinhado por Plutarco, o ouvinte em espectador. A força da enargeia permite justamente colocar sob os olhos (pro ommaton

tithenai; ante oculos ponere): ela mostra, ao criar um efeito ou uma

ilusão de presença. Pela potência da imagem, o ouvinte é afetado à

semelhança do que teria ocorrido se ele estivesse realmente presente. Entre essas duas formas de evidência, em que existe um nítido deslocamento de uma em relação à outra, mas em que tanto uma como a outra recorrem à potência do ver, onde situar a história? O historiador antigo não pode ter acesso àvisão do filósofo, mas também não poderia satisfazer-se com a visão (secundária) do orador. Surge então o problema, persistente até hoje, da história e da ficção, e mesmo da história "entre ciência e ficção". De que modo - para formulá-Io nos termos forjados na atualidade por Paul Ricceur

(2000, p. 306) - "manter a diferença de princípio entre a imagem do ausente como irreal e a imagem do anterior?".2

1 CHANTRAINE, s.», "cnarges" (claramente, visível, brilhante, evidente), 1968.

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PREFÁCIO

Existe um último sentido da palavra "evidência", aquele que

foi adotado pelo idioma inglês - evidence - como sinal, marca, prova, testemunho. De natureza principalmente jurídica ejudicial, mas também na área da medicina, esse registro tem sido utilizado pela história. Uma leitura dos primeiros capítulos de Tucídides é suficiente para fazer tal demonstração: não prescindindo, de modo algum, de indícios eprovas, ele define ahistória como pesquisa e investigação, busca da verdade. Mais amplamente, a associação en-tre história e justiça, ahistória como uma forma dejustiça, é uma velha questão da qual dãotestemunho, em seu próprio movimento, as Investigações de Heródoto; além disso, no século Il, Luciano de Samósata ainda vai adotá-Ia como a última palavra de seu texto -Como se deve escrevera história -, associando o verdadeiro, a visão em direção do futuro e uma história justa.

A primeira maneira, entre outras, de questionar a evidência consiste em recuarmos a montante, em direção das primeiras es -colhas, em épocas justamente em que a história não era (ainda) uma evidência. Em seguida, após essa abertura tendo como pano de fundo o horizonte comparatista, chegaremos às escolhas gregas. A histeria, como se sabe, emerge da epopeia. Vem dela e a a ban-dona. O mundo mudou. Os deuses deixaram de aparecer; aMusa desapareceu e ficou em silêncio;' além de seter fixado aseparação entre o visível e o invisível. Passar daepopeia para ahistória s igni-fica, em particular, trocar a evidência da visão divina - aquela que é possuída, justamente, pela Musa que vê e apreende tudo - pela visão (aestabelecer) do historiador. Aliás,éinclusive estaúltima que o levará aser reconhecido como historiador. Tal como é proposta epraticada por Heródoto, ela seapresenta como um análogo à- e

um substituto da - visão de que se beneficiava o aedo inspirado. Adquirida pelo investigador às próprias custas, mistura de vista e de ouvido, ela é, com efeito, forçosamente incompleta e sempre

precária. Em breve, Tucídides torna ainda mais rígidas as condições

de seu exercício, apostando tudo na autópsia (o fato de ver por si

3 No original: "s'est tue". Valelembrar que,além departicípio do verbo setaire[calar-se], Otermo

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EVIDÊNCIA DA HISTÓRIA - OQUE OS HISTORIADORES VEEM

mesmo), a única capaz de produzir um conhecimento claro e dis-tinto (saphos eidenaii. Mas, para ser validada, essa autópsia, seja ela direta (a do historiador) ou indireta (a de uma testemunha), deve ainda passar pelo filtro da crítica dos testemunhos. Esses são os pri-meiros passos, ou seja, a via grega, do que se pode designar como a evidência antes da evidência.

Quando, na sequência, ahistoria se torna cada vez menos uma investigação, no sentido herodotiano, e cada vez mais a narrativa do que aconteceu, quando a formulação em narrativa ocupa o primei-ro lugar, a questão da evidência se desloca do ver para o fazer ver. Preocupado, antes de tudo, não em relação ao que dizer - os fatos existem -, mas ao como (a maneira de dizer), o historiador tem, neste caso, de lidar com a enargeia do orador que, entrementes, se tornou um conceito operatório. Chega-se, então, à definição ca-nônica da história como narratiogesto: rei:expressão de que Isidoro de Sevilha se serve no século VII, mas já posta em prática muito antes, amplamente em Roma, assim como na Grécia e, muito de-pois, durante toda a Idade Média até a Época Moderna (GUENÉE,

1980, p. 18-19). Não é verdade que Aristóteles tinha afirmado que o historiador se limitava a dizer (legein) o que tinha acontecido, ao passo que o poeta trágico, encarregado do que poderia acontecer, era um "criador de narrativas"? Um diz (legei), enquanto o outro faz(poiei). Idealizador de uma história nova - a história universal, a do mundo conquistado por Roma -, Políbio se esforça por escapar, nem bem nem mal, dessa camisa de força.

Para La Popeliniere, ainda no século XVI, a história é entendida como "o narrado das coisas feitas"; por sua vez, Fénelon, ao refletir sobre a maneira de escrever a história, continua apoiando-se, como veremos, na divisão entre retórica e poética. Dedicada à historio-grafia moderna, a segunda parte deste livro acompanha, de fato, o mesmo questionamento, essas mesmas pistas da evidência, através de algumas de suas reformulações modernas. De qualquer modo, é exatamente essa fronteira entre res gestce e historia rerum gestarum que constitui o alvo das questões formuladas pelos historiadores modernos, os quais, por sua vez, pretendem deslocá-Ia, superá-Ia, até mesmo suprimi-Ia ou fazer com que seja esquecida. Para eles,

(11)

PREfÁCIO

também, a história é uma questão de olhar e de visão: ver em me-lhores condições, de forma mais abrangente e profunda, além de ver em termos de verdade, trazer àluz o que tinha permanecido invisível, mas também fazer ver. Eis o que é testemunhado, por exemplo, mediante as reflexões sobre a cor local (CESAR, 2004), por volta de 1820, e muito mais ainda, mediante todos os esforços despendidos por Michelet, durante quarenta anos, para reencontrar a vida e "fazer algo de vivo". Mais amplamente, eis o que serve de inspiração ao movimento da história que, recusando a arte (a retórica), pretende atingir a visão real das coisas e penetrar na via da ciência, apartir do modelo das ciências naturais.

Por outros expedientes, os questionamentos dos últimos trinta anos sobre a narrativa e sobre a escrita da história reencontram (sem terem conhecimento disso ou, muitas vezes, de maneira confusa)

algo da problemática da evidência (no sentido de enargeia). Meu objetivo não é certamente dar a entender que a questão teria sido resolvida, há muito tempo, pelos antigos (entre Aristóteles e Quin-tiliano) e que, portanto, só nos restaria passar para outro assunto. Pelas idas e vindas que meu trabalho propõe entre os antigos e os modernos, ele sugere, ao contrário, que esses percursos ajudam a compreender melhor tanto uns como os outros: os desafios de seus debates respectivos, ou seja,também seus não ditos, os impasses aos quais eles conduzem, além das evidências em que estão apoiados.

A conjuntura do final do século XX poderia ser analisada como um questionamento daevidência da história (no primeiro sentido). No momento em que ela parecia triunfar, tendo conseguido conter a ameaça estruturalista eenvolver-se em novas "frentes pioneiras", eisque surge o "desafio narrativista" - de acordo com a

denomina-ção que, às vezes, lhe tem sido atribuída - com Hayden White no papel de arauto. O tumulto [trouble] suscitado em torno da narrativa (sobretudo quando o período em questão corresponde ao dos "anos tumultuados" ["années troubles"]; cf LABORIE, 2001) redundou,

pouco apouco, em indagações referentes ao papel do historiador nos dias de hoje: o historiador e os arquivos, seu lugar em relação

à testemunha, ao juiz e, de qualquer modo, sua responsabilidade. Assim, os últimos capítulos deste livro dedicam-se a circunscrever

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EVIDÊNCIA DA HISTÓRIA - OQUE OS HISTORIADORES VEEM

algumas das características dessa conjuntura, no momento em que a divisão entre visível e invisível passava por uma profunda desesta-bilização, e em que deveria ser repensada a definição a respeito da evidência: o que há para ver quando se pode ver tudo? Um epílogo, enfim, evoca Michel de Certeau, grande questionado r da história; na verdade, trata-se de um autor que, de acordo com a observação de Jacques Revel, "não se satisfazia com um regime de evidência fragmentada, nem com um regime de suspeita generalizada" (CIARD; MARTIN; REVEL, 1991, p. 114).

Os capítulos seguintes constituem pontos de referência e de passagem: sem terem a pretensão de acompanhar cada um dos re-gistros da evidência - marcando as diferenças nos usos, rigorosos ou não, adotados pela história a seu propósito -, menos ainda de se envolver em uma pesquisa continuada de seus diferentes intrinca-mentos ou interferências com as reformulações e os retornos desde a Antiguidade até a Época Contemporânea. Eis o que equivaleria a escrever, visando o cerne de sua epistemologia, uma história da historiografia ocidental. A evidência é, aqui, o fio condutor e um motivo que atravessa, trabalha, reúne estas páginas ao abri-Ias para o mesmo questionamento: ver e dizer, verdade e visão, dizer e fazer ver. Se a indagação incide sobre o estatuto da narrativa histórica e sobre a escrita da história, ela traz em seu bojo outra questão, exa-tamente aquela que Moses Finley (1981, p. 251) havia formulado ao terminar sua aula inaugural, em Cambridge: "Qual é o efeito do estudo da história? Cui bono?Quem escuta? Por quê? Por que nào?"."

Os textos reproduzidos neste livro - artigos e textos publicados em outras obras - se inscrevem em um percurso de grande amplitude. O fato de reuni-los me levou a corrigi-los, às vezes, emendá-los - além de tornar, sempre que me foi possível, a expressão mais precisa -, mas sem reescrevê-Ias como se tivessem sido concebidos todos em um só momento. Inscreve-se aí, igualmente, a marca de um trabalho conti-nuado, portanto, do tempo.

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PRIMEIRA PARTE

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CAPíTULO I

As primeiras escolhas

Ao pronunciar uma conferência, em Oxford, sobre a escrita da história na Grécia, Ulrich von Wilamowitz, o grande filólogo

alemão, acentuava que tal assunto nunca tinha sido tratado na Antiguidade, mesmo que, é claro, se tivesse escrito história nessa

época e mesmo que o historiador setivesse tomado um personagem bastante familiar (WILAMOWITZ, 1908). Ora, prosseguia Wilamowitz, no mundo oriental - mesopotâmico, egípcio ou judaico -, tinha aparecido muito cedo uma literatura incontestavelmente histórica, mas sem historiadores. Com efeito, o historiador, como figura "subjetiva", está ausente dessas historiografias, diferentemente da Grécia, país em que Heródoto - narrado r-autor, presente desde as primeiras palavras daprimeira frasede suasHistórias - foi designado justamente como "o pai" da história. Mas, acrescentava ele ainda,

se os gregos haviam conseguido praticar, desde o século V a.c., uma história com historiadores, elasnão chegaram a conceber uma história científica que, em resumo, teve deesperar atéoséculo XIX (ogrande Edward Gibbon, 1737-1794, era ainda bastante tributário de Plutarco). Os antigos permaneceram bem distantes dessahistória, considerando que os postulados da reflexão jônica poderiam ter culminado maisdiretamente em uma ciência danatureza, enão pro -priamente conduzir para uma ciência dahistória. E seé exato que, durante algum tempo, Atenas soube criar, sob osigno daliberdade, condições favoráveis à constituição de tal ciência, o fracasso final da democracia, incapaz de fundar um verdadeiro Estado nacional, deslocou esse quadro e sufocou tais germes. A busca da verdade

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EVIDÊNCIA DA HISTÓRIA - OQUE OS HISTORIADORES VEEM

desapareceu: a sofistica e a retórica acabaram impondo sem reserva seu predomínio, e lá se foi a história. Estamos em 1908, e a palavra está com o professor da Universidade de Berlim.

Iniciar estas reflexões sobre a evidência da história com Wila-mowitz apresenta uma tripla vantagem: para começar, lembra-nos que a historiografia é sempre história da história da história (no caso concreto, da Grécia àAlemanha e vice-versa); o que não implica, no entanto, produzir um comentário sobre a conferência de Wilamo-witz! Em seguida, delimita claramente que, se ninguém na Antigui-dade se tinha dedicado ao exercício ao qual o sábio de Berlim - no período, pelo menos, de uma visita a Oxford - se tinha prestado, não é por incapacidade, mas porque simplesmente a questão não se formulava nesses termos. Escreviam-se histórias: conforme o caso, explicava-se em um prefácio como convinha proceder (em regra geral, denunciando os erros e as mentiras dos outros), mas nunca ocorria o questionamento sobre a história enquanto tal (HARTOG, 1999). Sua evidência não era questionada.

De fato, são raríssimas as observações dos gregos, nem que fosse apenas a respeito das condições de possibilidade de sua prática. Esta, por exemplo: "A mitologia e a investigação sobre os tempos anti-gos só aparecem nas cidades? com o lazer e quando alguns cidadãos constatam que haviam conseguido juntar tudo o que é necessário para a vida. Nunca antes" (PLATÃO,Crltias, 110a). Além disso, essa proposição - que, para concluir, associa preocupação em relação ao passado, àarqueologia, àpesquisa mitológica eàvida em sociedade-é apresentada não por um historiador "titular", mas por Platão, que, por sua vez, a coloca na boca de Crítias citando Sólon, que, por seu turno, se fazia o eco de afirmações proferidas pelos sacerdotes egípcios! O texto - Como se deve escrever a história - de Luciano de Samósata, no século II de nossa era, não constitui uma exceção ao silêncio dos historiadores sobre os fundamentos de sua escrita, visto que Luciano era tudo, menos um historiador. E, em terceiro lugar, essas reflexões

No original, cites - plural de cité -, termo utilizado correntemente neste livro e que foi traduzido

por "cidade" com o sentido de "forma específicade organização social"; aliás, tal como ésugerido

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AsPRIMEIRASESCOlHAS

de Wilamowitz nospropõem um critério de divisão entre aGrécia e o Oriente que nosfazescapar da busca, tão estéril quanto enfadonha, do que os sábios gregos daAntiguidade designavam como "primeiro inventor". Não será verdade que os escribasmesopotâmicos se tinham antecipado amplamente ao jovem Heródoto? A história começa, eis o que é sobejamente conhecido por todo o mundo, na Sumêria] A não ser que sedeva deixar o papel principal, por impossibilidade de atribuir o primeiro lugar, à Bíblia.

Vamos inscrever, assim, aquestão em um horizonte compar a-tista. Em vez de desdobrar oprograma de uma comparação perf ei-ta, trata-se de mostrar uma atenção comparatista (como se fala de atenção flutuante), preocupada em se referir aos mais importantes regimes de historicidade, às formas de história, a seus usose a suasdi -ferenças. Como ocorre com maior frequência, ostempos relevantes do questionamento surgem por ocasião de momentos de encontro ou de choque entre duas culturas e duas formas de história: como sepode verificar em relação ao mundo mesopotâmico e ao antigo Israel ou, muito mais tarde, como é testemunhado pela aventura intelectual de um Flávio Josefo, hesitante entre as concepções ju -daicas da história eahistoriografia helenística. No âmbito do mesmo regime histórico, ostempos de crise são osmais eloquentes, sempre que setoma urgente retomar, "revisitar" uma tradição, para estab e-lecer alegitimidade de um poder e fixar novos pontos dereferência. Assim, entre um grande número de exemplos possíveis, é viável pensar no estabelecimento de uma lista de reis sumérios, no final do terceiro milênio; nas novas redações deuteronomistas daBíblia; ou nas narrativas produzidas por cidades gregas, preocupadas s ubi-tamente com seu passado, no exato momento em que elassaem do abalo representado pela Guerra do Peloponeso. Nessa perspectiva de longo alcance, onde situar os primórdios da história em Roma? Será que eles vêm seinscrever simplesmente nasformas de história abertas com aGrécia, como um novo exemplo ou, na melhor das hipóteses, uma variante da"história local", daforma como elahavia sido inaugurada por Helânico de Lesbos no século V?Ou não se deixam reduzir completamente a essemodelo, dando testemunho talvez de outra relação com amemória, a escrita e a instituição?

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EVIDÊNCIA DAHISTÓRIA- OQUE OSHISTORIADORES VEEM

Essa primeira forma de atenção comparatista pode ser com -binada com outra que, por sua vez, viria tirar partido da distância entre antigo e moderno. Evidentemente, não setrata de repetir, na esteira de Wilamowitz e de um grande número de outros autores, que ahistória como ciência é uma conquista do século XIX. Mas, servindo-nos das reflexões sobre a escrita da história na época mo der-na, deveríamos sercapazes de circunscrever, em melhores condições, o que elanão era e, acima de tudo, não podia ser, no Mediterrâneo da Antiguidade. Tal operação teria a vantagem de enriquecer econferir maior precisão ao questionário, além de fornecer melhor elucidação a alguns dos pressupostos constitutivos daprática moderna.

Aoperação historiográfica moderna, deacordo com a observação de Michel de Certeau, está colocada, em primeiro lugar, sob o signo da separação entre o passado e o presente. Concebida desde o final do século XVIII como desenvolvimento ou processo, a história pre s-supõe - para que sua escrita sejapossível - um corte entre o passado e o presente, entre ela e seu objeto, entre os vivos e os mortos. Ela "enuncia" amorte e "nega" aperda (DECERTEAU,1975, p. 12). Uma pesquisa sobre asmaneiras deescrever ahistória encontraria, portanto, rapidamente oproblema dasmaneiras de aculturar amorte. Que tipo de relação uma sociedade mantém com os seusmortos? Com a morte? Em que aspecto e como a história éum discurso de imortalidade que vem - por exemplo, na Grécia - substituir o canto épico que celebra a "glória imperecível" dos heróis mortos em combate, forjando algo de memorável para uma nova memória social do grupo?

A obsessão da morte transformou o historiador ocidental moderno em homem da dívida. À exigência de ser verdadeiro, veio acrescentar-se uma dívida, nunca completamente solvável, em relação aos mortos ou de alguns mortos. Ninguém, além de Michelet, conseguiu exprimir melhor essa concepção do historiador como pontifice: ninguém, além dele, viveu mais intensamente esse sacerdócio do historiador (ver il1Jra, p. 171-172). O que se passa, atualmente, com ele? Mas o que sepassava, antes de mais nada, com seu longínquo "colega" da Antiguidade? Será que ele estava em débito" relativamente às gerações do passado? Será que atravessava

(, No original,débiteur, termofrancêsque admite várias acepções, entre outras,aquele quedivulga

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AsPRIMEIRAS ESCO~AS

também o rio dos mortos, àsemelhança de Ulisses ou de Eneias, ou então acampava resolutamente namargem do presente, tendo como primeira, senão única, preocupação "dizer o que havia acontecido"?

Quem é esse historiador? E, antes de tudo, será que ele existe realmente? Qual seria a existência, de fato, desses escribas com O

encargo de se tornarem os "porta-vozes" e os "porta-cálamos"

(porte-plume) do rei ou do deus? Enquanto, no mundo grego, o historiador, rival e sucessor do aedo inspirado pela Musa, assinasua narrativa com seu nome próprio e diz "eu". Mas é também nesse ponto, pelo fato precisamente de que o historiador reivindica um lugar, que surge - talvez, pela primeira vez - a distinção, a alte r-nativa entre fazer a história e fazer história, sob a dupla figura do historiador e do político. Tratando-se de Tucídides e de Políbio,

eles foram sucessivamente: homens de ação, envolvidos napolítica; e, em seguida, historiadores ao começar para ambos o tempo do exílio. Mas elesacabaram por conceber e apresentar ahistória como um análogodapolítica, para não dizer, inclusive, como uma política de categoria superior, simultaneamente retrospectiva e pros pecti-va, destinada em prioridade aos políticos do presente e do futuro. Com a questão do político e do historiador, consolida-se uma das encarnações recorrentes dasrelações entre a história eo poder. Qual é, então, aautoridade da história? Quem a autoriza, mas também de que autoridade é portadora ao ser produzida e depois de sua produção? Cui bano?

Ao longo dosséculos, tornou-se evidente para nós que ahistó -ria se escrevia, que um poder, um grupo, uma sociedade, segundo modalidades e protocolos diversos, tinha o cuidado, o encargo,

para não dizer, o dever de registrar sua memória e de escrever sua história. Seráque foi sempre assim? Ninguém estáem condições de fazer tal afirmação. Pode-se vislumbrar vários cenários possíveis de seu desaparecimento; eis o que poderia ser outra maneira de refle -tir sobre suas condições de possibilidade. Terá sido sempre assim? Todos sabem muito bem que a resposta é negativa. Sob asformas pelas quais temos conseguido conhecê-Ia, ela teria aparecido, de preferência, como uma singularidade ocidental, ou seja, como o

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EVIDÊNCIA DAHISTÓRIA- OQUEOS HISTORIADORES VEEM

vestígio ea expressão de uma relação particular à escrita, à memória e ao tempo, assim como à morte. Ainda recentemente, Marshall Sahlins - ao pesquisar a partir das ilhas do Pacífico que haviam entrado tardiamente em nossa história - trabalhou o axioma: "outro tempo, outros costumes, outra história". Por outro tempo, convém entender outra relação com o tempo, outras formas de temporalidade; outro

regime de historicidade (SAHLINS,1989; HARTOG,2003, p. 38-42).

Memória e história

Vou apresentar dois exemplos: o primeiro - o da Índia - vai

além do horizonte do Mediterrâneo na Antiguidade; o outro nos

reconduz completamente a esse horizonte, o do antigo Israel. Ao chamar a atenção para o "problema da história" na Índia, Louis Dumont se tinha dedicado, outrora, a mostrar a necessidade de

"construir os dados indianos em suas próprias coordenadas em vez de projetá-Ios nas nossas" (DUMONT, 1964, p. 33); caso contrário,

torna-se impossível escapar àsconsiderações, mais ou menos s

ofisti-cadas, sobre um mundo indiano sem história. Essa era, por exemplo, aposição de Wilamowitz em sua conferência.

Quando falamos dehistória - escreviaDumont -, alémde uma

cronologia absoluta ou relativa, temos em vista uma cadeia causal,ou, melhor ainda, um conjunto demudanças significa

-tivas, um desenvolvimento. [...]Vivemos na história no sentido

em que concebemos aexistência doshomens, dassociedades e das civilizações como seelanão aparecesse deforma verdadeira

e completa anão ser em seu desenvolvimento no tempo. [...]

Por pouco chegaríamos acrer que osentido é algo exclusivo damudança eque apermanência não o tem, enquanto amaior

parte das sociedades acreditaram o contrário (DUMONT,p.32, grifo do autor)."

Essa concepção do tempo como vetor e fator de progresso é

recente. Datando da Europa do Iluminismo, ainda de acordo com

a evocação desse autor, ela é ao mesmo tempo afirmação nova e retomada, laicizada, de uma visão cristã escandida pela criação, pela

Sobreestasquestões,ver aobraesclarecedorade: RAO; SHULMAN; SUBRAHMANYAM,

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AsPRIMEIRASESCOlHAS

encarnação e pelo fim dos tempos. Ela encontra suaplena realização na filosofia hegeliana da história e no materialismo histórico de Marx. A verdade já não está em um livro ou, de preferência - para

retomar uma fórmula de Herder -, ahistória se apresenta como o verdadeiro livro "da alma humana nos tempos e nas nações", em

que épossível decifrar a imortalidade (pelo menos, potencial) não

dos indivíduos, mas da humanidade. Daí em diante, a história é

para os homens o que a espécie é para os animais; em relação ao

historiador, o mais importante aspecto de sua tarefa é, portanto,

tornar-se historiador da espécie.

Do ponto de vistada prática dahistória, talapreensão do tempo

pode levar àsuainstrumentalização. Otempo éacronologia, ea cro -nologia é o princípio de classificação dosobjetos históricos. O anacro-nismo se torna, portanto, o principal pecado. Mas, naevidência dasua

onipresença, o tempo corre, então, o risco de setornar o impensado

deuma disciplinaque se proclama o maisrigoroso de seus contadores.

Ao lado dessa perspectiva moderna e ocidental, na qual pre -domina a lei da sucessão, há motivo, portanto, para reservar lugar a outras maneiras que privilegiem o "empilhamento", a "s

uperpo-sição", a "imitação", a "coexistência" e a "reabsorção". Assim, na

Índia bramânica, a memória não se preocupava com oencadeamento

daslembranças, nem com suadistribuição segundo uma cronologia.

Procurava-se inutilmente, escreve Charles Malamoud, a ideia de

um "mundo da memória". "Bem longe de desenhar os contornos

de uma biografia, as lembranças transformam os limites da pessoa

em uma zona fora de foco e um circuito não fechado".

A tal ponto que, "se consegui dominar astécnicas apropriadas

e,sobretudo, se ganhei os méritos necessários, posso, como sesabe,

me lembrar de minhas vidas anteriores" (MALAMOUD,1989, p. 303).

Essasbreves citações são suficientes para nos levar a apreender a in-terdependência dessestrês termos problemáticos (tempo, memória,

indivíduo) e para lançar, durante um instante, um clarão sobre sua configuração singular.

Ao lado dessa memória comum, voltada para a rememoração,

existeoutra, trabalhada,reservadae controlada estreitamente, que tende inteiramente para a memorização, na qual se apoia a aprendizagem

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EVIDENCIA DA HISTÓRIA- OQUE OSHISTORJADORES VEEM

decorada do texto sagrado do Veda. Se ele já se encontra escrito, no núnimo, desde o século Ill antes da nossa era, esse livro serve-se, como suporte para sua transmissão, não da escrita, mas, em primeiro lugar, da memória e da voz. Por uma verdadeira série de técnicas bastante elaboradas, que levam a"desarticular" o texto, osbrâmanes garantem, de fato, sua progressiva "incorporação" àpessoa do aluno. Até que a recitação possa ser feitasemfaltas: um erro seriaum pecado e, ao mesmo tempo, uma catástrofe no plano ritual. Malamoud explica como, no termo dessaascese, o texto se apresenta como um objeto desprendido de qualquer contexto eatemporal.

Ele impõe sua presença fixa, amadurecendo no espírito que o acolhe sem que asetapas damaturação sejam perceptíveis à consciência. Além disso, no saber assim incorporado, apaga-se a percepção daquilo que une esse texto ao mundo dos fatos ex-tratextuais noqualele havia surgido (MALAMOUD, 1989,p.305).

Sem visar à apreensão de um indivíduo por si mesmo, em e através deuma cronologia, essamemória-rememoração não funciona absolutamente como uma memória biográfica. Pelo recurso a essa forma codificada de aprendizagem decorada, ela mantém a distância qualquer possível historicização da tradição.

Com essa impressionante cultura da memória, estamos posic iona-dos nos antípodas do que sehavia estabelecido, durante muito tempo apartir de um modo crítico, entre amemória e ahistória no mundo europeu. Para prolongar as observações de Sahlins, seriapossível propor: "Outra memória, outra temporalidade, outra historicidade". Desde o início de suasHistórias, Heródoto, o pai da história ocidental, esta be-lece, de fato, que elepretende salvar do esquecimento asmarcas (pelo menos, as "grandes") da atividade dos homens (ergamegala). Diante da imutabilidade da natureza eà imortalidade dos deuses, apalavra/fà.la [parole]do historiador assume o encargo dessesvestígios fundamental-mente efêrneros, osquais sãofixados por sua escrita. Sucessor do aedo épico, ele aspira a se apresentar como "senhor" da imortalidade.

Mas se história ememória tiveram, de saída,um projeto comum,

suasrelações efetivas foram complexas, mutáveis e conflitantes. Assim, em sua pretensão de comprovar que só a história do presente pode ser" científica", Tucídides concluía que a história sefaz amplamente contra a memória (sempre falível). E seus longínquos colegas do

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As PRIMEIRASESCOLHAS

século XIX são, por sua vez, favoráveis a uma estrita separação entre história e memória, mas desta vez em nome do ideal de uma história no passado e apenas no passado: a história termina onde começa a memória. Somente há pouco tempo é que ocorreu uma reviravolta: a invasão do campo da história pela memória. Daí, a obrigação de repensar a articulação das duas. Como será possível, a propósito do Shoah [Holocausto], conciliar aexigência de memória com a necessária história? Essa situação nova, que coincidiu com a crise da década de 1970, foi testemunhada pela enorme onda das comemorações, com suas liturgias e encenações: para quais crentes ou espectadores? Ao passo que, entre os historiadores, amemória,

até então considerada uma fonte impura, transformou-se em um objeto de história de pleno direito, com sua história.

Zakhor, "Lembra-te!", em hebraico, é a injunção que vem escandir a narrativa bíblica etodo o judaísmo: eis o nosso segundo exemplo. Israel recebe, incessantemente, a ordem de lembrar-se,

de não ceder ao esquecimento. "Recordarás todo o caminho que Javé, teu Deus, te fez percorrer durante os quarenta anos no deserto. [...] Presta atenção para não esqueceres teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa dos escravos". Zakhor é, obvia -mente, o título do livro de Y osef Yerushalmi que seapoia nesse imperativo de memória para estudar a relação dos judeus com seu passado. Texto sagrado, texto escrito, a Bíblia é, em primeiro lugar, um texto revelado: como o Veda, deve-se estudar a Torah,

aprendê-Ia e memorizá-la; mas a maneira de fazer é totalmente diferente daquela que é adotada em relação com o Veda. Nada leva a desarticular ea descontextualizar o texto. Pelo contrário, é importante o que se passou, o próprio acontecimento e amaneira

como ele ocorreu: a começar pela revelação divina (MALAMOUD,

p. 305-306). "Vai, reunirás os anciãos de Israel- eis a ordem de Javé a Moisés - e tu lhes dirás: Javé, Deus de vossos pais, apareceu

a mim, ele, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, para dizer: Eu vos visitei realmente e sei o que vos foi feito no Egito". Israel aprende e ensina a aprender "quem é Deus pelo que ele fez na

história" (YERUSHALMI,1984, p. 25). A revelação é história, e, desde a saída do paraíso, o tempo das origens transformou-se em tempo histórico. Assim, a narrativa bíblica - histórica em sua economia profunda - deve ser a memória dessa marcha do

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E~DÊNCIA DA HISTÓRIA- OQUEOS HISTORIADORESVEEM

tempo e dos homens. Ela é memória da história ou, igualmente, história-memória. Dando testemunho das transgressões em relação

àAliança, elaémemória dos esquecimentos e, ao mesmo tempo, recurso para lutar contra o esquecimento. De modo diferente da Índia, a injunção a se lembrar é válida não, em primeiro lugar ou exclusivamente, para um grupo ou para uma casta, mas para todo o povo judeu. Longe de ser "saída" fora do tempo, essa memória, que memoriza e não cessa de se lembrar, é inscrição em uma tem-poralidade: no tempo em que é relatada, mas também no tempo daquele que relata. Neste aspecto, indica-se uma configuração totalmente diferente do tempo, da memória e da história.

Mas a exigência de memória não implica nenhuma curiosi-dade em relação ao passado enquanto tal. Nem a ideia de que se deve, de acordo com Heródoto, salvar do esquecimento os erga,

as marcas e os vestígios de valor relacionados com a atividade dos homens. Israel "recebe a ordem de se tornar uma dinastia de sacerdotes e uma nação santa; em nenhum lugar, é sugerido que se torne uma nação de historiadores" (Ibíd., 1984, p. 26).

De Manassés, por exemplo, rei poderoso de Judá, nada sabemos além de que "praticou más ações diante de J avé". O único

pas-sado importante é o das intervenções de Deus na história, assim como o das reações humanas que lhes são inerentes; deste modo,

o único esquecimento que se deve ter sempre na memória, ou nunca esquecer, seria o "esquecimento" deJavé.

Ora, se os judeus nunca renunciaram ao imperativo de me mó-ria, chegou o momento em que eles deixaram de escrever a história; talvezelestivessemse tomado de tal modo um "povo-memória" que

cessou essa escrita. Memória e história, até então reunidas, davam

aimpressão de sesepararem. De fato, "os rabinos nunca chegaram

a escrever a história que aconteceu depois da Bíblia": a literatura rabínica nada tem de historiográfico, em nenhum sentido do termo (YERUSHALMI, 1984, p. 36).8

• Na sequência, arespostadeAmos Funkenstein (1993), paraquem osjudeus não cessaram de compartilhar uma consciência históricaentre Yavne [cf parágrafoseguinte eúltima frasedeste

subcapítulo]eo séculoXIX. Ver, daquiemdiante,apesquisadelongoalcanceempreendida por Sylvie-Anne Goldberg (2000 e 2004)sobre a noçãode temporalidade no mundo judaico, a qual permite sairdaoposição,demasiadosimples,entreamemória e ahistória.

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As PRIMEIRAS ESCOlHAS

A linha divisória coincide, como já tem sido observado, com o Sínodo de Yavne (c. 100 d.C.), que fixou o cânon definitivo da Bíbliajudaica. Como a exceção acaba confirmando aregra, erg ue--se, do lado da historiografia, afigura de Flávio Josefo, sacerdote e historiador: "Atualmente, sabemos que, entre osjudeus, o futuro pertencia aos rabinos, não aJosefo. Sua obra não teve nenhuma posteridade entre os judeus, e foi necessário esperar quase quinze séculospara que outro judeu sedeclarassecomo verdadeiro his toria-dor" (YERUSHALMI, 1984,p. 32). No entanto, prossegue Yerushalmi,

seriafalso tirar a conclusão de que a história não suscitava ointeresse dos rabinos; pelo contrário, sua atitude é mais compreensível se lhes for atribuída uma "impregnação absoluta" pela história. Livro da história já ocorrida, a Bíblia fornece também a trama de toda a história presente e futura. Seu sentido é claro, todo o resto é apenas contingência sem verdadeiro interesse. Em 70 d.C. (com ades trui-ção do Templo de Jerusalém por Tito) , como em 587 a.c. (com a tomada deJerusalém por Nabucodonosor), encontra-se o pecado.

Nos tempos daBíblia, o sentido dos acontecimentos históricos

particulares eradesvendado pelo olhar em profundidade lançado pelaprofecia. Masessestempos eram passados.Se osrabinos eram os sucessores dos Profetas, eles mesmos não reivindicavam tal função. Asidase vindas dos procuradores romanos, as questões

dinásticas dosimperadores romanos, as guerras eas conquistas dos

partos edos sassânidas não forneciam aparentemente nenhuma

revelação nova, nem útil, aoquejá se sabia (Ibid., 1984, p. 40).

Tampouco as lutas entre os próprios judeus. Já não havia

necessidade de profetas, nem havia necessidade de historiadores;

daí o drama, talvez, o dilema e, para nós, o lugar excepcional de Flávio Josefo.

O importante, aqui, é somente esse fim da história - pelo menos, de sua escrita -, ao passo que o caráter fundamentalmente histórico do judaísmo permanecia imutável. Tal abordagem suscita questões difíceis. Em primeiro lugar, onde e quando seria seu " iní-cio"? Será que é suficiente fazê-lo coincidir com Yavne e afixação do cânon? Será impensável fazê-lo recuar mais longe, até a volta do Exílio, ou até o Exílio propriamente dito? Ou, outra maneira

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EVlD~NCIA DA HISTÓRIA- OQUE OS HISTORIADORESVEEM

de formular a mesma questão (à qual não sou capaz de responder): na Bíblia, onde seinterrompe a escrita e onde começa areescrita? E

ainda: como considerar o profetismo e a apocalíptica? Qual seria o tipo de objetivo histórico visado por um e pela outra? Enfim, que

vínculo seestabelece entre ahistória e o lugar? Na ausência delugar,

com adestruição do segundo Templo, aescrita dahistória será(ainda)

possível? De novo, seria possível recorrer ao testemunho de Flávio Josefo, que sublinha com vigor o vínculo entre a historiografia, em

suaprópria possibilidade eseuexercício, por um lado, e,por outro, o Templo, que é o único acredenciar eautorizar "o historiador". Nos antípodas da "cacofonia" grega em que cadaum, autoproclamando-se historiador, começa por autorizar-se a si mesmo. Quanto aYavne, a escola abertapor Yohanan ben Zakkai, no momento da destruição do Templo, foi um "lugar de memória" ("uma fortaleza erguida contra

oesquecimento"; YERUSHALM19I,88, p. 3),masnão uma oficina de história. Eis o que, em 1938, Freud diz de modo admirável:

A desventura política da nação (judaica) ensinou-Ihes a apre

-ciar,em seu devido valor, aúnica propriedade quelhesrestara, sua Escritura. Imediatamente após adestruição do Templo de Jerusalém por Tito, o rabino Yohanan ben Zakkai solicita a

autorização para abrir, em Yavne, a primeira escola em que havia de serensinada a Torah. A partir dessemomento, a Es

-critura Sagrada e ointeresse espiritual éque mantiveram junto

opovo disperso (FREUD, 1986,p. 214).

A

evidência antes da evidência

Ao falar das artes da Índia e da China, Maurice Merleau-Ponty sugeria "avaliar as possibilidades de que nos havíamos privado ao nos tornarmos ocidentais". A proposição poderia ser válida ig ual-mente para refletir sobre os primórdios da história. Não se trata de um gosto particular da minha parte pelas origens, mas porque

assim é possível dispor de uma espécie de situação experimental;

deste modo, verifica-se apossibilidade de apreender configurações apartir dasquais se efetuaram bifurcações ou escolhas que poderiam

não ter existido ou terem sido diferentes; em seguida, tinham sido esquecidas ou se tornaram tão evidentes que se deixou de pensar em

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AsPRIMEIRASESCOLHAS

questioná-Ias. Avalia-se também a verdadeira distância que há entre um "interesse civilizado: o passado" e a emergência de um "pen-samento histórico", sempre movido pela preocupação do presente. Voltemo-nos durante um instante para a Mesopotâmia já evocada, região em que, no final do terceiro milênio, a monarquia de Akkad - a primeira que havia conseguido unificar o país sob sua autoridade - recorreu a escribas para escrever "sua" história, ou seja, legitimar seu poder no presente. Mas, sem me deter nesse primeiro modelo de historiografia régia e monumental, tão incontes-tável quanto simples no seu procedimento, eu gostaria de chamar a atenção para os intercâmbios que, segundo parece, se estabeleceram entre a adivinhação e a história. Sabemos que, na antiga Mesopotâ -mia, a adivinhação tinha muita importância na tomada de decisões

(BOTTERO, 1974; GLASSNER, 1993). De que maneira trabalhavam os adivinhos? Eles acumulavam, classificavam casos, elaboravam listas e compilavam, de modo que chegavam a constituir verdadeiras bi-bliotecas. Eles eram orientados por um ideal de exaustividade que, por sua vez, era regulado pela lógica do precedente. Tal atividade nos aponta para o saber do juiz e a prática do tribunal; ou, dito por outras palavras, antes de perscrutar o futuro, a adivinhação é, em primeiro lugar, uma ciência do passado.

Ora, em Mari, foi encontrada uma série de oráculos (datados do começo do II milênio) aos quais os eruditos modernos atribuíram a denominação de "oráculos históricos" .Em vez de enunciar segundo o modelo canônico - "Se o fígado do animal (sacrificado) se apre-senta assim, é sinal de que o rei tomará a cidade de tal maneira" -,

eles dizem: "Se o fígado do animal se apresenta desse modo, ésinal de que o rei tomou a cidade de tal maneira". Essa passagem do futuro para o fato consumado tem algo de surpreendente e, talvez, tanto mais que os acontecimentos a que fazem referência são considerados pelos modernos como eventos realmente ocorridos. Assim, alguns autores pretenderam descobrir nesse material o verdadeiro início da historiografia mesopotâmica. Em primeiro lugar, a adivinhação e,

em seguida, a história. Sinólogos, tais como Léon Vandermeersch, têm defendido o mesmo ponto de vista a propósito da historiografia chinesa (VANDERMEERSCH, 1994, p. 108).

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EVIDÊNCIA DA HISTÓRIA- OGlUEOS HISTORIADORES VEEM

Minha incompetência no assunto me impede de tomar partido, mas o único ponto que me interessa neste caso é o seguinte: os dois procedimentos, o divinatório e o historiográfico, parecem depender do mesmo espaço intelectual. Do ponto de vista do consulente, em regra geral, o rei: ele vem procurar uma ajuda para a decisão. Do ponto de vista dos especialistas consultados, os escribas: anotar um oráculo "histórico", transcrevê-Io e estudá-Io é acrescentar uma configuração oracular às suas listas e aumentar seu estoque de pre-cedentes. Pode-se imaginar também que o trabalho se faz, então, no outro sentido, partindo do acontecimento (o anúncio da tomada da cidade) para decifrar (verificar) os sinais inscritos no figado. Ou, outra possibilidade: não será que eles podem copiar inscrições régias históricas que relatam essa ou aquela ação do rei? Em seguida, com base nas listas de oráculos já devidamente repertoriadas, eles tentam levá-l o a corresponder à prótase (o estado do figado) implicada ou que deveria implicar normalmente esse acontecimento.

Tal investigação poderia ser prolongada até Roma, levando em conta os famosos Anais pontiJicais, inclusive, tanto mais famosos pelo fato de terem desaparecido. Ésabido que, em cada ano, o soberano pontífice redigia uma crônica (tabula) que ele afixava na frente da sua residência. Cícero fez dessa transcrição o ponto de partida, ainda desajeitado e sem afetação, da historiografia romana. Ao retomar esse dossiê, John Scheid mostrou que devia tratar-se de um documento que, no final de cada ano, fazia o balanço do estado das relações da cidade com os deuses (SCHEID,1994). Competia ao pontijex maximus compilá-lo, em função do poder que recebera para "fixar em suatabula a memória dos acontecimentos". Quais acontecimentos? As vitórias, as

calamidades, os prodígios, mas coletados e tratados unicamente como outros tantos sinais que permitem manter em dia a contabilidade da piedade. Em particular, o que convinha receber como prodígios e de que maneira deveriam ser "expiados". História "oficial" de Roma, se preferirmos, ou história "religiosa", mas dividida segundo o ritmo do calendário da cidade, essa compilação respondia às perguntas: em que situação nos encontramos em relação aos deuses? Teríamos feito o que convinha? Quem está em débito? O que se deve fazer? E o pontífice era, por sua vez, um homem de arquivos, orientado

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AsPRIMEIRAS ESCOLHAS

pela investigação de precedentes (particularmente, em matéria de prodígios), mas sobretudo preocupado com o presente. Competia-lhe fornecer, em cada ano, aos novos cônsules, no momento de sua tomada de posse, um relatório sobre a situação religiosa da Cidade.

Outras, certamente, foram as escolhas da cidade grega. A adi-vinhação estava também presente, e existiam coletâneas de oráculos. Mas a historiografia - o que já para os gregos e, em seguida, para os modernos, se tomou a "história" - procedeu de outra maneira. Ela pressupunha a epopeia. Heródoto pretendeu rivalizar com Homero e, como já escrevi, ele tomou-se finalmente Heródoto, tendo decidido fazer - em relação às recentes guerras contra os persas - o que Homero tinha feito relativamente à guerra de Troia. Escrever a história será, desde então, tomar como ponto de partida o conflito e relatar uma grande guerra, fixando sua "origem" (designação de seu responsável - aitios - para Heródoto, ou dedução da "causa mais verdadeira" para Tucídides (DARBo-PESCHANSKI,2004, p. 28). De modo diferente da Bíblia, que pretende ser uma história contínua desde o começo dos tempos, os primeiros historiadores gregos se fixam um ponto de partida e se restringem à narrativa de uma sequência limitada (o que não im-pede, ao contrário, para Heródoto, o retomo a episódios do passado).

Ao celebrar as façanhas dos heróis, o aedo da epopeia tinha a ver com a memória, com o esquecimento e com a morte. Do mesmo modo, Heródoto pretende impedir que as marcas da atividade dos homens se apaguem, ao deixarem de ser relatadas. Mas ele se limita ao que aconteceu "por obra dos homens", em função do que ele "sabe" e em um tempo definido, igualmente, como "tempo dos homens". Enquanto o aedo recebia seu saber da Musa, a qual, tendo o privilégio de estar sempre presente, via tudo, o historiador não terá outra escolha além de recorrer à historia: espécie de substituto destinado a fornecer-lhe, dentro de certos limites, uma "visão" análoga àquela, daí em diante inacessível, prodigalizada pela Musa (HARTOG, 2001, p. 31). Essa primeira "operação" historiográfica encontra e fortalece a primazia concedida pelos gregos ao sentido da visão como instrumento de conhecimento. A partir daí, a história da historiografia ocidental poderia ser escrita em contraponto de uma história do olhar e da visão.

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EVIDÊNCIA DA HISTÓRIA - OQUEOSHISTORIADORES VEEM

Se, em relação às historiografias orientais, os gregos são retar-datários, é com eles - justamente, com Heródoto - que surge o historiador como figura "subjetiva". Sem estar diretamente comis-sionado por um poder político, desde suas primeiríssimas palavras, ele vem marcar a narrativa que começa pela inscrição de um nome próprio: o seu. De saída, reivindicado, esse lugar de saber deve ser, no entanto, inteiramente construído: ele corresponde, ev idente-mente, à obra em si. Deste modo, os gregos seriam os inventores não tanto da história, mas do historiador como sujeito que escreve. Tal modo de afirmação de si e de produção de um discurso não foi absolutamente a realização apenas da historiografia; pelo contrário, ele é a marca, propriamente falando, a assinatura dessa época da his-tória intelectual grega (entre os séculos VI e V a.c.) que, no mesmo período, assistiu ao ascendente do "egotismo" entre os artistas, os filósofos da natureza e os médicos (LLOYD,1987, p. 58-70).

Figura nova no cenário dos saberes, mas não surgida do nada, o historiador não tardará, no entanto, a inclinar-se diante do filósofo que, a partir do século IV, há de tomar-se a referência principal e, por assim dizer, o padrão do intelectuaL Ofilósofo vai tomar-se um homem de escola, o que não ocorrerá com o historiador; mas, daí em diante, a questão de seu lugar, de sua relação com a instituição não cessará de ser formulada. Desde o momento em que a história deixará de pretender a ser a ciência política tal como Tucídides desejava ou teria desejado que ela fosse, restará ao historiador esforçar-se por convencer que a história é também filosófica e pode ser agradável e útiL Eis o que será, finalmente, a apresentação da história como magístra vitce e filosofia moral: pregando por meio de exemplos, ela pretende ser não tanto uma ciência da ação, mas a ação sobre si. No entanto, em relação às escolhas de Tucídides, restará este ponto, sublinhado frequentemente por Arnaldo Momigliano: a história verdadeira será, antes de tudo e durante um longo período de tempo, a história política, deixando de lado todo o campo das Antiguidades ou da erudição. Ésomente na época moderna, com Gibbon, que há de verificar-se a associação entre investigações de acervos antigos e história (MOMIGLIANO,1983, p. 334).

Uma das freadas, com graves consequências, impostas às ambi-ções da história tucididiana foi certamente o que Aristóteles havia

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AsPRIMEIRAS ESCOLHAS

formulado no capítulo IX da Poética. Tucídides tivera a ambição de transformar sua obra, segundo a fórmula célebre, em um ktema (uma aquisição valiosa) para sempre: ao invés de se limitar a evitar que as realizações notáveis fossem atingidas pelo esquecimento, cuja ação nada faz além de apagar, sua finalidade consistia em transmitir aos homens do futuro um instrumento de inteligibilidade dos próprios presentes. Ao avançar assim do presente (e não do passado) para o futuro, o objetivo não era o de uma previsão, mas antes o de uma decifração dos presentes por vir, porque, considerando o que são os homens, outras crises - não as mesmas, mas análogas - não deixarão de se desencadear no futuro. A permanência da natureza humana serve de fundamento à exemplaridade (ideal-típica) desse conflito, designado (para sempre) por seu historiador, como "a" guerra do Peloponeso.

Ora, opondo-a à poesia, Aristóteles, como se sabe, instala a história do lado do "particular", ao que Alcibíades fez ou lhe aconteceu. Por sua vez, o "geral", por definição, está fora de seu alcance. Daí, segue-se que a poesia é mais "filosófica" do que a história. Na sequência, Políbio, por exemplo, tentou contradizer a argumentação de Aristóteles, ao demonstrar que a história é mais filosófica que a poesia porque ela é uma tragédia verdadeira, mas seus esforços não chegaram a ser realmente coroados de sucesso. A posteridade não lhe reconheceu grande importância, embora os humanistas tivessem retomado os termos do debate (ver infra, p. 109-112). Em compensação, a divisão aristotélica permanecerá uma das principais escansões da historiografia ocidental e há de alimentar questionamentos recorrentes. Se as maneiras de formulá-los passaram por consideráveis modificações - tratando-se, por exemplo, das indagações sobre as partes respectivas do individual e do coletivo, da história concebida como ideográfica ou nomoté-tica, ou dos debates em torno de ficção e história, etc. -, elas não deixam de remontar, em resumo, a esse primeiro abalo. Temos aí o início de uma configuração de duração muito longa referente ao problema da evidência da história.

Essas observações não visavam, de modo algum, defender que tudo se encontra ou tudo se decide nos primórdios, mas convidavam

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EVIDÊNCIA DAHISTÓRIA- OQUEOSHISTORIADORES VEEM

apenas a considerá-los como um espaço experimental em que se comunicam ainda experiências históricas divergentes, iniciam-se divisões, formulam-se escolhas positivas, esboçam-se rupturas, em suma, constrói-se um "pensamento histórico ocidental"."

9 Essaexpressão reproduz otitulo de um texto dePeter Burke: "La pensée historique occidentale

dans une perspective globale" [O pensamento histórico ocidental em uma perspectiva global].

Por iniciativa deJom Rüsen, envolvido em uma reflexão coletiva, delongo alcance, sobre o sentido da história, considerado como construção (historische Sinnbildung), o historiador britânico,

professor de História Cultural em Cambridge, tinha sido solicitado aesboçar oque podia sera

especificidade dahistória ocidental em reiação aoutras práticas ea outras formas de consciência

histórica. Emseguida, Rüsen haviaconvidado uma quinzena dehistoriadores para reagir ao texto

deBurke. Aspáginasprecedentes retomam, em parte, minha própria contribuição (RÜSEN, 1999;

2002). Segundo Burke, a especificidade do pensamento histórico ocidental - ou, para retomar Otítulo dolivro de Bemard Guenée (1980), de sua"cultura histórica" - deve serprocurada não propriamente emcadaum doselementos que acompõem, masna combinação detodoseles.Os

ingredientes se encontram alhures, apenasa preparação ésingular. Além disso,esse"pensamento" é, emsi mesmo, heterogêneo. Ele é formado porumconjunto de proposições: cada uma temsua

história ea própria cronologia. Sem seharmonizarem forçosamente entre si.elas coexistem, em

maior ou menor grau, umas com asoutras. Há espaço para ainteração epara oconflito. Com

estaconsequência, entre outras: adistância entre essa"cultura histórica" e as outrashistoriografias,

longe detersido constante, passou por variações no decorrer dos séculos, aumentando nitida

-mente apartir daRenascença e diminuindo no século XIX. Aoretomar Heródoto como ponto

de partida, Burke pretende mostrar, em um longo período de tempo, esse"pensamento" que

se faze se transforma, reformula ecritica proposições anteriores. Ao historicizar com nitidez o modelo ocidental, talabordagem temomérito de relativizá-lo; ao recusar, desaída,qualquer ideia deuma grande Divisão, ela visa apenas fornecer certo número de entradas paraum "inventário descritivo dasdiferenças". Segue-se um rastreamento em dezpontos: cada um suscita discussões ou constrói tensões nopróprio âmagoda tradição ocidental em que setinha formado. Emres

u-mo, essespontos formam um sistema ou, pelo menos, uns remetem aos outros, elaborando no decorrer dosséculos ostermos de um debate feitode acordos, desacordos e,atémesmo, deopções

opostas. Burke chega asugerir quese considere essa proposição como um "sistema deconflitos"

(àimagem, talvez, doespaço dademocracia?). A fórmula éengenhosa, esclarecedora, inclusive, sedutora. Serásuficiente para convencer? Ela propõe, nomínimo, um rastreamento que visa uma etapa ulterior dapesquisa, aqual haveria deseempenhar em encontrar acausa dasdiferenças.

Ocorre, no entanto, queesse"modelo" ocidental- em parte, àsemelhança de um quadro em que sedestacam eavaliamausências epresenças - é,mesmo assim, aquele que "compreende" as

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CAPíTULO 11

Oradores e historiadores

"Pelo fato de que nós [seres humanos] recebemos o poder de nos convencer mutuamente e de fazer aparecer claramente a nós próprios o objeto de nossas decisões, não somente nos libertamos da vida selvagem, mas também nos reunimos para construir cidades; estabelecemos leis; descobrimos as artes (technai)" (IsócRATEs,

Nlco-eles,5-9; cf. MACIEL DE BARROS, 1993). Assim começa o elogio da

linguagem (logos)como aptidão para falar e, ao mesmo tempo, para falar bem, atribuído a Isócrates, o mestre da eloquência atenien-se; elogio semelhante encontra-se em Cícero, mestre não menos incontestado da eloquência latina, que o coloca nos discursos do orador Crasso. "Que outra força [além da energia da palavra] teria conseguido reunir no mesmo lugar os homens dispersos, tirá-los de sua vida grosseira e selvagem, para levá-los a nosso grau atual de civilização, construir as cidades e fazer reinar as leis, os tribunais e o direito?" (Cícero, Do orador 1, 8, 33) Próprio do homem, o logos - como capacidade de falar e de se falar, de convencer e de se convencer - é colocado, portanto, no fundamento da vida civilizada, ou seja, da vida em sociedade. O cidadão será, então, orador, e o melhor cidadão será o melhor orador.

De Isócrates a Cícero, o mesmo elogio soa afinado na medida em que exprime uma característica essencial e de longa duração da civilização antiga e, ao mesmo tempo, desafinado por estar amplamente defasado em relação às realidades políticas dos séculos

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EVIDÊNCIA DA HISTÓRIA - OQUE OS HISTORIADORES VEEM

e, logo depois, Filipe da Macedônia triunfará sobre Demóstenes e toda a sua eloquência. Em Roma, a República está moribunda, e, contrariamente às teses ciceronianas, os generais são mais impor-tantes que o orador. A toga cede às armas: Crasso, Pompeu, César dividem entre si o poder, ao passo que, proscrito, Cícero acabará assassinado no ano 43.

Eloquência e cidade

"Bom para dar opiniões" e "bom para realizar façanhas" (erga): esse deve ser o herói homérico. Duplamente excelente: em palavras e em ações, tanto na guerra como na assembleia. Seja diante de Troia, a assembleia dos chefes aqueus, em que cada um, alternadamente, é convidado a fazer prevalecer sua opinião e em que, passando de mão em mão, o cetro régio marca a inviolabilidade do orador e torna visível o primeiro modelo de circulação regulada de uma fala quase "política"; seja em Esquéria ou em Ítaca, territórios em que a assembleia, convocada em princípio por iniciativa do rei, reúne os membros (o demos) da comunidade. Nessa ocasião, Telêmaco exige até ser tratado como "orador de ágora".

Quase dez séculos mais tarde, em sua obra Preceitos políticos, dirigidos a um jovem desejoso de fazer carreira, Plutarco apoia-se na mesma fórmula homérica, como a melhor definição do "polí-tico", ou seja, aquele que daí em diante, personalidade importante entre as personalidades importantes, é visto como o "chefe natural" da cidade. Mas estamos, pelo menos parcialmente, no registro da metáfora: com efeito, desde que se estendeu o reinado da "paz romana", deixava de ser questão tratar de guerras e de combates. Em compensação, sua fala é, ao mesmo tempo, lagos e ergon, fala e ação, porque é unicamente com esse "instrumento" que ele "mo-dela" a cidade.

Com a cidade clássica, da qual Atenas permanece como o tipo ideal, a fala se torna, segundo a fórmula de jean-Pierre Vernant, "o instrumento político por excelência. [...] Elajá não é a palavra ritual, a fórmula exata, mas o debate contraditório, a discussão e a argumentação. Ela supõe um público ao qual se dirige como a

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ORADORES EHISTORIADORES

um juiz que decide em última instância, com as mãos levantadas, entre as duas propostas que lhe são apresentadas; é essa escolha pu-ramente humana que avalia a respectiva força de persuasão dos dois discursos, garantindo a vitória de um dos oradores em relação a seu adversário" (VERNANT, 1962, p. 45). Está nitidamente marcado o vínculo essencial existente entre a cidade como tal e a fala persuasiva: é impossível a existência de uma sem a outra. Mas, imediatamente depois, se introduzem uma ambiguidade e um risco inelutável. A persuasão (peitho) não é, nem pode ser, unívoca. Ao lado da boa persuasão, preocupada com a verdade, há outra que, para conven-cer, adula, desencaminha, engana o interIocutor; no alvorecer da civilização grega, Ulisses surge já como mestre de eloquência e como mestre velhaco.

Até aqui, trata-se apenas de oralidade, mas, entre o século VII e o final do século V a.C., a cidade se põe a escrever suas leis, seus decretos, seus regulamentos; imprimindo e exprimindo sobre seus muros a mesma exigência de publicidade que já manifestava, àsua maneira, a circulação da palavra entre os cidadãos. Movimento de grande consequência: a importância reconhecida àfala (como ins-trumento político) e a prática da escrita (pelo poder de objetivação que ela implica) levaram ao desenvolvimento das reflexões sobre o logos,sobre seus poderes e sua influência: com a retórica - cuja lenda pretende que ela tenha aparecido na Sicília justamente após a derrubada dos tiranos (únicos senhores da palavra, especialmente em matéria de justiça) - e a sofistica, escola do "falar bem", portanto, escola do poder na cidade. Se as grandes figuras de Atenas do século V, Temístocles ou Péricles, não deixaram nenhum discurso escrito (de certa maneira, suas obras, embora anônimas, são os decretos votados e expostos sobre os muros da cidade), Demóstenes, por sua vez, redigia-os (pelo menos, parcialmente) e, no século I, Cícero afirmará que o melhor treino para o orador é a escrita; quanto a Isócrates, sabe-se que ele nunca compôs senão discursos fictícios, em estilo trabalhado pacientemente e de forma esmerada.

No mundo homérico, o aedo estava encarregado da memória social do grupo. Ele celebrava a gesta dos heróis que, para escapa-rem do anonimato dos mortos comuns, tinham preferido morrer

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EVlD~NCIA DAHISTÓRIA- OQUEOS HISTORIADORES VEEM

na primeira fileira da batalha, garantindo assim uma glória (kleos)

imortal para eles:talcomo ocorreu com Aquiles, acima dequalquer outro. A Musa era a sua inspiradora; todo o seu saber havia sido adquirido por intermédio dela. O aedo era declamado r ou porta-voz, mas não "autor".

Em compensação, quando, bem no começo do século V, He-cateu de Mileto inicia suasHistórias com estaspalavras - "Hecateu de Mileto falaassim" -, ele se apresenta como autor, assinando sua obra, enquanto Hecateu, cidadão de Mileto. Depois, na frase se guin-te, a assinatura se reduplica e se desloca (aprimeira pessoa sucede à terceira): "Eu escreviessasnarrativas, como elas me parecem ser verdadeiras. Com efeito, asnarrativas dos gregos, de acordo com a minha impressão, são múltiplas e risíveis". O narrador transforma-se em um sujeito de enunciação que se constrói e sereconhece como "eu" que escreve; além disso, pela escrita, ele mantém distância das narrativas dos gregos, cuja multiplicidade se torna de repente visível. Daí, o riso que ele não consegue conter (DETIENNE,1981, p. 137-145). Nesse novo espaço político e intelectual, há condições para o começo da historiografia e para que o historiador venha substituir o aedo.

Mas, enquanto o aedo inspirado via,imediatamente, pelos olhos da Musa, o historiador não tem outro recurso além de investigar

(historein) para tentar ver mais longe e aumentar seu saber. Se o aedo era o porta-voz da Musa, o historiador, que recorre à escrita, reivindica-se como escritor. Preocupado com os mortos e senhor da imortalidade, seu desejo seria o de conservar tal prerrogativa, mas a imortalidade que ele proclama ou consigna já não é a dos heróis individuais, mas a da cidade. Os cidadãos mortos na guerra sópodem, de fato, exigir a glória da lembrança porque cumpriram seu dever, obedecendo às ordens da cidade. Tal como Tucídides leva Péricles a expor na famosa Oração fúnebre pronunciada no des-fecho do primeiro ano da Guerra do Peloponeso (TUCÍDIDES,2, 34-47; LORAUX,1981, p. 183-204). Daí em diante, aimortalidade é questão da cidade; no entanto, em breve, Atenas vai descobrir que ela mesma é mortal.

Referências

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