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Experiência Mística e Filosofia Na Tradição Ocidental (Henrique C. de Lima Vaz)

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(1)

Submetido a uma deterioração semântica, o termo

místi-ca

acabou por designar uma espécie de fanatismo, com for-te confor-teúdo passional e larga dose de irracionalidade -fenômeno ilustrado pelas expressões "mística do partido político", "mística do clube esportivo" e outras semelhan-tes. Por outro lado, a captação da mística pela política ar-rastou para o campo da relatividade histórica a intenção do Absoluto própria da experiência mística e da experiência religiosa em geral.

Por meio de um estudo histórico-teórico rigoroso e erudi-to sobre as formas legítimas da experiência mística na tra-dição ocidental, em

Experiência mística e filosofia na

tradi-ção ocidental,

LIMA VAz resgata o sentido original do termo

mística-

uma forma superior de experiência, de natureza

religiosa ou religioso-filosófica, que se desenrola normal -mente num plano transracional, mas que mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do ser humano, elevando-o às mais altas formas de conhecimento e de amor que lhe é dado alcançar nessa vida- e apresenta a experiência mís-tica e a experiência polímís-tica como os dois pólos ordenadores do complexo e rico universo da experiência humana, tradu-zindo as duas formas mais altas de auto-realização da pes-soa humana: sua abertura para o Absoluto e sua abertura para o outro.

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a Vaz

na tradição

ocidental

Autor: Vaz, Henrique C. de Lima Título: Experiência mística e filosofia

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2573151

PUC Minas BH

Ac. 218752 N" Pat.:2006

(2)

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1.

A Palavra se fez livro

Johan Konings

2.

Cenários da Igreja, 2a

ed.

J.

B. Libanio

3.

Teologia da espiritualidade cristã

Danilo Mondoni

4.

Igreja contemporânea - encontro com a modernidade

J.

B. Libanio

5.

Conhecimento afetivo em Santo Tomás

Paulo Meneses

6.

Experiência mística e filosofia na tradição ocidental

Henrique C. de Lima Vaz

Henrique

C.

de Lima Vaz

Experiência Mística

e Filosofia

na Tradição Ocidental

X

(3)

Preparação Danilo Mondoni Revisão Cristina Peres Diagramação So Wai Tam Edições Loyola Rua 1822 no 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 04299-970 São Paulo, SP Çf) (0**11) 6914-1922 Fax: (0**11) 6163-4275

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SuMÁRIO

Advertência Preliminar ... 0 0 0 0 • • • 0 0 • • • 0 0 . 0 0 . 0 0 0 0 0 0 • • • 0 0 . 0 0 • • • • 0 0 o o · o o · 0 0 0 0 0 0 • • • • 0 0 7

Introdução . 0 0 0 0 . 0 0 • • • • • • 0 0 0 0 • • • • • • • 0 0 • • • • • • • • 0 0 • • • • 0 0 • • • • • • • 0 0 • • • • • • • 0 0 • • • 0 0 . 0 0 • • 0 0 0 0 • • 0 0 9

I

Antropologia da experiência mística 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 15

11

Formas da experiência mística na tradição ocidental 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 29

a. A mística especulativa o o o o o o o o o o o o o o O O o o o o o o O O O O o o o o o o o o o o o o o o o o O O o o o o o o o 30 b. A mística mistérica O O o o O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O 47 c. A mística profética 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 57 Conclusão a experiência mística na modernidade ocidental 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 . 77 Anexo Mística e Política 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 81

Biblioteca

Jornal

de Op!nif1o

(4)

ADVERTÊNCIA PRELIMINAR

O texto que aqui publicamos foi primeiramente apresentado

em um Seminário sobre Mística e Política promovido pelo !BRADES

e pelo Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (Rio de Janeiro,

outubro de 1992). Posteriormente foi publicado pela revista Síntese

59 (1992): 493-541. Aqui o reproduzimos com diversas modifica-ções, a começar pelo título, e com alguma atualização bibliográ-fica. Encontra-se anexo, com pequenas modificações, o editorial

"Mística e Política" [Síntese 42 ( 1988): 5-12], que versa sobre o

mesmo tema.

Belo Horizonte, setembro de 2000.

(5)

INTRODUÇÃO

Uma das manifestações mais características da cultura ou, me-lhor dizendo, da incultura da nossa época é a aparentemente incontrolável deterioração semântica a que nela estão submetidos alguns do termos mais veneráveis e de mais rica significação da nossa linguagem tradicional. Lançados no jargão da mídia, e sem que seus usuários tenham condições de defini-los com um mínimo de rigor, acabam por não significar coisa alguma, servindo apenas para dar uma aparência de respeitabilidade a certas linguagens convencionais sobretudo no jornalismo e na política. Um caso exemplar desse esvaziamento semântico é o do termo "ética". Mas também ao termo "mística" coube a mesma infeliz sorte. Decaído de sua nobre significação original, acabou por designar uma espécie de fanatismo, com forte conteúdo passional e larga dose de irracionalidade. Assim o vemos nas expressões "mística do partido político", "mística do clube esportivo" e em outras semelhantes. Essas expressões seriam inocentes e não representa-riam mais do que impropriedades de linguagem se a elas não estivesse subjacente uma inversão profunda da ordem que deve reinar em nossa atividade psíquica e espiritual. Com efeito, o

sentido original, e que vigorou por longo tempo, do termo mística

e de seus derivados diz respeito a uma forma superior de expe-riência, de natureza religiosa, ou religioso-filosófica (Plotino), que se desenrola normalmente num plano transracional - não aquém, mas além da razão - , mas, por outro lado, mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do indivíduo. Orientadas pela inten-cionalidade própria dessa original experiência que aponta para uma realidade transcendente, essas energias elevam o ser humano

às mais altas formas de conhecimento e de amor que lhe é dado

(6)

ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

alcançar nessa vida. A utilização moderna do termo "mística" para designar convicções, comportamentos ou atitudes, cujo obje-to está circunscriobje-to aos limites do nosso ser-no-mundo e envolvido por uma nuvem passional que obscurece o claro olhar da razão, deve ser interpretada como indício de uma inversão radical na ordem de nossas prioridades espirituais, que inflete para o domí-nio da imanência o termo último da intencionalidade constitutiva do espírito. Essa inversão tem lugar em face de um amplo espec-tro de atividades e dos respectivos objetos, tendo como conse-qüência, na maior parte das vezes, ou apenas um injustificável desgaste psíquico do indivíduo, como nessas "místicas" banais que solicitam e aprisionam o homem desarvorado da nossa civilização

- tal a "mística" do esporte -, ou então uma notável perda de

objetividade no uso normal da razão, como nas sedutoras e am-biciosas "místicas" do progresso e do desenvolvimento.

O século XX conheceu, no entanto, uma captação do termo "mística" que acabou por designar talvez a mais profunda perver-são espiritual que a história conheceu, tendo dado origem a cruéis e devastadores efeitos sobre uma civilização que se orgulhava de seus incontestáveis êxitos em todos os campos. Referimo-nos à

captação da mística pela política (ver Anexo). É justamente a

ameaça permanente do retomo desse fenômeno teratológico na vida da civilização que justifica um estudo histórico-teórico sobre as formas legítimas da experiência mística na tradição ocidental, como o que aqui apresentamos em grandes linhas.

Em que sentido a captação pela política representa a mais grave perversão da mística? Uma primeira resposta pode ser dada pela simples consideração da natureza das duas experiências, a mística e a política, do ponto de vista respectivamente do sujeito e do objeto. Do ponto de vista do sujeito, a experiência mística tem lugar num plano transracional, ou seja, onde cessa o discurso da razão: inteligência e amor convergem na fina ponta do espírito - o apex mentis - numa experiência inefável do Absoluto, que arrasta consigo toda a energia pulsional da alma. Vale dizer que, da parte do sujeito, a experiência mística é absolutamente singular e, como tal, não pode ser partilhada. Já o sujeito da experiência

INTRODUÇÃO

política é, por definição, o indivíduo partilhando a vida de uma comunidade constituída pelo consenso racional em tomo de leis livremente aceitas e submetendo-se à equânime distribuição de direitos e deveres. Vê-se, portanto, que a experiência mística e a experiência política desenrolam-se em patamares distintos do es-pírito e supõem usos da razão inconfundíveis por natureza: na primeira, a razão transcendendo-se a si mesma e voltada toda para a intenção do Absoluto; na segunda, a razão empenhada numa tarefa dialogal, tendo em vista um consenso racional entre os indivíduos e guiada pela intenção da "melhor constituição" (Aristóteles) para a comunidade. Assim sendo, podemos concluir que a experiência mística, já agora considerada do ponto de vista do objeto, move-se na esfera de uma transcendência real, movi-mento que implica, num primeiro momovi-mento, a posição entre pa-rênteses do mundo. A experiência política, ao invés, desenrola-se na relatividade do mundo histórico e das suas contingências, e em nenhum momento deve transpor as fronteiras da imanência para

absolutizar seus objetivos e suas práticas1

A experiência mística e a experiência política configuram os dois pólos ordenadores do complexo e extraordinariamente rico universo da experiência humana, traduzindo as duas formas mais altas de auto-realização do indivíduo na sua abertura para o Absoluto e para o Outro. A ordem desse universo repousa sobre uma identidade fundamental, a identidade reflexiva do Eu, capaz de diferenciar-se na multiplicidade de suas experiências - de suas

expressões - e assegurando sua unidade na referência às duas

formas mais altas dessas experiências: a relação com o Absoluto na mística, e a relação com o Outro na política. A mais grave, portanto, e a mais devastadora perturbação da ordem natural do nosso espírito tem lugar quando a política, numa iniciativa de suprema violência espiritual, arrasta para o campo da relatividade

1. Situando-nos no ponto de vista formal das categorias antropológicas,

pode-mos dizer que a experiência mística desenrola-se no espaço conceptual da categoria da transcendência., ao passo que a experiência política tem sua estrutura conceptual no âmbito da categoria da intersubjetividade. Ver, sobre essas categorias, H. C. DE LIMA

(7)

EXPERIÊNCIA MíSTICA E fiLOSOFIA NA TRADIÇÃO ÜCIDENTAL

histórica a intenção do Absoluto própria da experiência mística e da experiência religiosa em geral. Trata-se de uma desordem que revelou inequivocamente sua face após a descoberta grega da racionalidade política. Ela passou a assinalar o lado sombrio dos séculos cristãos após a aliança entre cristianismo e ideologia im-perial a partir do século IV. Ai, no entanto, estava preservado o espaço para o florescimento da experiência mística autenticamen-te cristã, que conheceu na Idade Média, e até o século XVII, sua idade de ouro. Mais profunda e realmente mortal foi a desordem nos espíritos implantada pelas religiões seculares da modernidade, que atingiu seu paroxismo no trágico século XX. A mística passou então a estar inteiramente a serviço da política, e a própria prática cristã foi tentada por formas de politização do religioso que reve-lavam uma desordem espiritual muito mais grave do que a sacralização medieval do poder político.

A ordem que deve reinar no mundo das experiências huma-nas supõe, evidentemente, a unidade na diferença do nosso ser, segundo a qual em cada uma das nossas operações está empenha-da a uniempenha-dade total do sujeito, segundo o princípio enunciado por Tomás de Aquino: "Não é o intelecto que entende, mas o homem

por meio do intelecto"2

• É essa implicação da unidade do sujeito

na diferença das experiências que torna possíveis tantas aberra-ções e permite tentar arrastar numa só direção a riqueza multifor-me do espírito, como aparece no exemplo emblemático da mís-tica captada pela polímís-tica.

A relação entre mística e política na atual situação espiritual e cultural do Ocidente aparece, na verdade, paradoxal. O político, como previra Hegel, acabou por penetrar e envolver todas as esferas da existência, canalizando para seus desígnios de poder as poderosas energias psíquico-espirituais despertadas no ser huma-no pelo apelo do Absoluto e que devem confluir huma-normalmente para a experiência mística. Mas o pseudoabsoluto do político

-d0 Estado - não é, por definição, capaz de acolher, e muito

2. SANTO ToMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia., q. 72, a. 2 ad lm; ver Antropologia Filosófica, I/, 37, nota 8.

12

INTRODUÇÃO

menos de satisfazer, a autêntica intenção do Absoluto constitutiva do nosso espírito. Outros pseudo-absolutos irão proliferar à som-bra desse primeiro, pois o ser humano, como já sentenciara Santo

Agostinho (De Véra Religione, XXXIX, PL, 34, 154), não pode

habitar este mundo sem a companhia de algum absoluto (o ver-dadeiro ou os falsos, a Verdade ou algum ídolo). Daqui a multi-plicação das "místicas" e das pseudo-"experiências místicas" à margem do dominante e opressivo "absoluto" do político. Nossa intenção no texto aqui apresentado tem em vista uma clarificação conceptual e histórica: pequena e modesta contribuição para res-gatar a natureza de uma autêntica experiência mística, na qual se exprime, como viu Bergson, a alma profunda de uma civilização. Nossa informação obriga-nos a nos limitar à tradição ocidental greco-cristã, embora reconhecendo a existência e a riqueza de outras tradições místicas como a judaica, a islãmica ou a hindu. Nosso texto será dividido em duas partes e uma conclusão:

1. Fundamentos antropológicos da experiência mística.

2. Formas da experiência mística na tradição ocidental. 3. Conclusão: experiência mística e modernidade ocidental

(8)

I

ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MÍSTICA

No ponto de partida das nossas reflexões convém traçar uma

primeira figura conceptual do que entendemos por experiência

mística. Evidentemente a fonte principal, e mesmo única, na qual podemos haurir uma informação segura sobre a natureza e o conteúdo desse tipo singular de experiência é o testemunho dos

próprios místicos. Na verdade, eles são os primeiros teóricos da

sua própria experiência, e é reconhecendo como autêntico seu

testemunho experiencial1 e aceitando, em princípio, a

interpreta-ção por eles proposta que os estudiosos da mística podem definir o objeto da sua própria investigação. Essa, por sua vez, é necessa-riamente pluridisciplinar, pois a experiência mística é um fenô-meno totalizante, no qual estão integrados todos os aspectos da complexa realidade humana. Como primeira aproximação, pode-mos dizer que a experiência mística tem lugar no terreno desse encontro com o Outro absoluto, cujo perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situações-limite da existência, e diante do qual acontece a experiência do Sagrado. No entanto, a experiência mística apresenta-se dentro da esfera do Sagrado caracterizada pela certeza de uma anulação da distância entre o sujeito e o

objeto imposta pela manifestação do Outro absoluto como

tre-1. A distinção entre experimental e experiencial, decisiva para o estudo da expe-riência religiosa no cristianismo e, em particular, da expeexpe-riência mística, deve-se a JEAN MouRoux, L'expérience chrétienne, Paris, Aubier, 1952, 19-24. O experiencial ê o campo de uma experiência estritamente pessoal, mas obedecendo a uma estrutura defmida, ao passo que o experimental é o domínio da experiência científica, com suas condições e regras. Ver igualmente L. GARDET, Théologie de la mystique,

&vue Thomiste 71 (1971): 571-588.

(9)

ExPERIÊNCIA MísTicA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

mendum (para usar a terminologia de R. Otto); ela é experiência

do Outro absoluto como fascinosum, mas o fascinium aqui é apelo

a uma forma de união na qual prevalece o aspecto participativo e fruitivo, tendendo dinamicamente a uma quase-identidade com o Absoluto e transformando radicalmente a existência daquele que se vê implicado nessa experiência. Desta sorte, podemos adotar

inicialmente a definição de

J.

Maritain, segundo a qual a

expe-riência mística consiste essencialmente numa "expeexpe-riência fruitiva

do Absoluto"2

• Como experiência fruitiva, ela se exerce através de

um tipo de conhecimento do seu objeto e de adesão afetivo-volitiva que transcendem o modo usual de operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer, e visa, em sua

inten-cionalidade objetiva, o Absoluto, ultrapassando a contingência e

relatividade dos objetos que se oferecem à nossa experiência

or-dinária. A imensa cadeia de testemunhos que corre ao longo das mais variadas tradições religiosas não deixa dúvidas quanto à realidade e à autenticidade dessa experiência, que se impõe, por isso mesmo, como um dado antropológico fundamental, tendo resistido vitoriosamente a todas as tentativas de reducionismo,

sobretudo psicologista3

, e oferecendo, por outro lado, campo à

conhecida interpretação do fato místico que H. Bergson propõe

na sua teoria das duas fontes da moral e da religião4A definição

maritainiana nos permite, assim, excluir desde logo do terreno da experiência mística toda uma série de fenômenos extraordinários ou anormais, espontâneos ou induzidos, que podem acompanhar os estados místicos, porém são dele não apenas distintos, mas

2. Ver o texto 'I1expérience mystique naturelle et !e vide', ap.

J.

MARITAIN, Oeuvres (7912-1939}, (éd. H. Bars), Paris, Desclée, 1975, 1125-1158. Sobre essa definição, ver O. LAcoMBE, Introduction, ap. L. GARDET-0. LACOMBE, L'expérience de soi: essai de mystique comparée, Paris, Desclée, 1981, 23.

3. A esse respeito, permanecem clássicos os estudos de

J.

MARÉCHAL, Science

empirique et psych~logie religieuse; Le sentiment de présence chez les profanes et les mystiques, ap. Etudes sur la psychologie des mystiques, 2, Bruxelas/Paris, VÉdition Universelle/Desclée de Brouwer, 21938, I, 3-168; ver igualmente A. MAGER, Mystik als seelische Wirklichkeit, Graz, A. Pustet, 1947, 205-266.

4. H. BERGSON, Les deux sources de la Morale et de la Religion, ap. Oeuvres, éd. du Centenaire, Paris, PUF, 1959, 1159-1201.

16

ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA

separáveis, e que, em geral, são objeto de severo controle e crítica

por parte dos próprios místicos autênticos5

A singularidade da experiência mística como "experiência frui-tiva" e a unicidade do seu objeto como "absoluto" irão justamente conferir-lhe as caraterísticas que, na tradição ocidental, foram de-signadas por uma constelação semântica formada por um grupo

de vocábulos cuja significação abrange os dois pólos - subjetivo

e objetivo - da experiência e pode ser figurada pelo triângulo

"místico-mística-mistério"6

• A experiência mística, em seu teor

ori-ginal, situa-se justamente no interior desse triângulo: na

intencio-nalidade experiencial que une o místico como iniciado ao Absoluto

como mistério; e na linguagem com que, num segundo momento,

rememorativo e reflexivo, a experiência é dita como mística e se oferece como objeto a explicações teóricas de natureza diferente. Ora, é a própria originalidade da experiência mística que nos obriga a colocar o problema de uma concepção antropológica

adequada capaz de interpretá-la corretamente7

• Se percorrermos,

com efeito, as interpretações do fenômeno místico na literatura

5. Ver

J.

LoPEZ GAY, Le Phénomene mystique, ap. A. SoLIGNAC ET AL., Mystique, Dictionnaire de Spiritualité, X (1980), cais. 1893-1902 (aqui, cais. 1897-1898); A.

MA-GER, Mystik als seelische Wirklichkeit, 222-227. Com respeito à mística cristã, ver C!.

TRESMONTANT, La mystique chrétienne et l'avenir de l'homme, Paris, Seuil, 1977, 9-24.

6. Eis a figura desse triângulo: _ .

mtsttca

místico

L

mistério

O místico é o sujeito da experiência, o mistério, seu objeto, a mística, a reflexão sobre a relação místico-mistério. A derivação etimológica desses termos vem de myein (fechar os lábios ou os olhos), donde, por uma transposição metafórica, "iniciar-se", do qual deriva o complexo vocabular: mystes, iniciado, mystikós, o que diz respeito à iniciação, tà mystiká, os ritos de iniciação, mistikôs (advérbio), secre-tamente e, finalmente, mystérion, objeto da iniciação. Essa terminologia vem do culto grego dos mistérios, ao qual mais adiante nos referiremos. Ver L. BouYER, Mystique: essai sur l'histoire d'un mot, La Vie Spirituelle, Supplément 3 (1949): 3-23; In., Mystérion, La Vie Spirituelle, Supplément 6 (1952): 397-412; LIDELL-ScorrjoNES, Greek-English Lexikon, ed. 1951, s. v. myô.

7. A ausência de um definido pressuposto antropológico é responsável pela

equivocidade que afeta o termo mística na linguagem contemporânea.

(10)

ExPERIÊNCIA MísTicA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

moderna a respeito, não é difícil perceber que são guiadas por procedimentos reducionistas inspirados nas diversas ciências hu-manas8. Mas a incontestável originalidade da experiência mística que transluz nos testemunhos autênticos e irrecusáveis dos gran-des místicos mostra-se irredutível a estreitos pressupostos reducio-nistas. A experiência mística é um dado antropológico original. Sua interpretação exige, pois, uma concepção da estrutura do ser humano apta a dar razão dessa originalidade. De fato, todos os grandes textos, na tradição do Ocidente, que se podem considerar místicos, de Platão a São João da Cruz, transmitem-nos uma ima-gem do ser humano, traçada segundo invariantes fundamentais, que permanece ao longo dos dois grandes primeiros ciclos da nossa civilização, o greco-romano e o cristão-medievaJ!l. Essas in-variantes são representadas tradicionalmente pelas metáforas

es-paciais do inferior-superior e do interior-exterior. Elas designam, na

estrutura ontológica do ser humano, uma ordem hierárquica dos níveis do ser e do agir, segundo a qual o nível supremo representa igualmente o núcleo mais profundo da identidade ou, se

preferir-mos, da ipseidade humana. O superior-interior é designado com o

termo grego noús e com o latino mens. A ele refere-se Santo

Agos-tinho numa passagem célebre quando, dirigindo-se a Deus, assim

se exprime: Tu eras interior intimo meo et superior summo meo10

No

mais íntimo da mente-aditum mentis -,que é igualmente a sua

fina ponta - apex mentis -, o Absoluto está presente na sua

radical transcendência - superior summo - e na sua radical

ima-nência - interior intimo. A elucidação antropológico-filosófica da

experiência mística implica, pois, necessariamente, duas teses

fun-8. A situação da mística no universo cultural da modernidade é descrita por M.

DE CERTEAU no artigo Mystique da Encyclopédie Universalis, XI, 521-526; ver ainda, do mesmo autor, La fable mystique (XVI - XVII siécle), Paris, Gallimard, 1982, que tenta uma interpretação do destino da mística na aurora dos tempos modernos, a partir da nova estrutura da epistéme ocidental. Por outro lado, a incapacidade dos esquemas reducionistas para explicar o fato religioso em geral foi denunciada rc;centemente por L. DuPRÉ, L'autre dimension: essai de philosophie de la religion (tr. fr.), Paris, Cerf, 1977, 65-105.

18

9. Ver H. C. LIMA VAz, Antropologia Filosófica I, São Paulo, Loyola, 1991, 27-75. 10. SANTO AGosTINHO, Conftssiones, III, 6.

ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA

damentais: a) o espírito como nível ontológico mais elevado entre

os níveis estruturais do ser humano"; b) a dialética interior-exterior

e inferior-superior como constitutiva do espírito-no-mundo, e que se

articula segundo a figura de um quiasmo, ou seja, em que o

inte-rior é permutável com o superior e o exterior é permutável com o

inferior~. Vale dizer: o mais íntimo de nós mesmos é o nível

ontológico mais elevado do nosso espírito, e é no fundo d~sa

imanência (interior intimo) que o Absoluto se manifesta como

absoluta transcendência (superior summo). Aí pode ter lugar a

expe-riência mística. Ela é, em suma, a atividade mais alta da inteligência espiritua4 que é, por sua vez, a atividade mais elevada do

espíri-to~:'. Como atos da inteligência espiritua4 a contemplação metafísica e a contemplação mística podem exercer-se na sua plenitude. Portanto, somente o discurso antropológico que compreende em

si a categoria do espírito, e admite como atos espirituais mais

ele-vados os atos da inteligência espiritua4 é capaz de acolher e explicar

adequadamente a autêntica experiência mística.

A revolução antropocêntrica da filosofia moderna, invertendo

na direção do próprio sujeito o vetor ontológico do espírito~

trou-xe consigo a dissolução da inteligência espiritua4 provocando, em

conseqüência, o desaparecimento, no campo da conceptualidade filosófica, do espaço inteligível no qual contemplação metafísica e contemplação mística podem encontrar, do ponto de vista

antro-pológico, os princípios da sua explicação14

. Não obstante o esforço

de um Schelling ou de um Hegel no sentido de operar uma

trans-11. A categoria do espírito, denotando o nível estrutural mais elevado do ser humano, foi exposta em Antropologia Filosófica I, 201-237.

12. Essa dialética pode ser assim representada pela figura do "quiasmo"

interior superior

inferior exterior

Sobre a origem agostiniana dessa figura, ver Antropologia Filosófica I, 237, nota 106. Ver, a propósito, o excelente estudo de E. BoRNE, Pour une doctrine de l'intériorité, ap. lntériorité et vie spirituelle, Recherches et Débats 7 (1954): 8-74.

13. Ver o capítulo sobre a "inteligência espiritual" em Antropologia Filosófica I,

243-289.

14. Antropologia Filosófica I, 289, nota 166, e 288, nota 175.

(11)

ExPERIÊNCIA MíSTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

posição especulativa da experiência mística segundo os princípios de uma filosofia da imanência, ou de um Bergson para estabelecer o alcance heurístico dessa experiência na interpretação filosófica da moral e da religião, a filosofia moderna mostrou-se incapaz de oferecer um pressuposto antropológico adequado para a compreen-são do fenômeno místico na sua originalidade, e esse ficou aban-donado aos procedimentos reducionistas das ciências humanas. Um exemplo, entre todos o mais notável, da perda da significação autêntica da experiência mística que se segue à desconstrução da

Metafísica, ou à sua "superação", encontramos justamente no

filó-sofo que se celebrizou pelo anúncio do "fim da Metafísica". A experiência do Ser preconizada por M. Heidegger é, na verdade, uma experiência mística desfigurada que tenta exprimir-se numa linguagem poética e paraconceptual, na qual o que de fato se

significa é a pura presença do sujeito (ou do Dasein) a si mesmo

na sua mais radical imanência15

A teoria da experiência mística, seja a que está implícita no

próprio testemunho dos místicos1ü, seja a que é explicitada na

re-flexão filosófica e teológica, é construída, portanto, sobre um fun-damento antropológico, no qual a concepção do ser humano está aberta ao acolhimento de uma dupla dimensão de transcendência:

15. A experiência mística desfigurada apresenta certa analogia com a experiên-cia mística natural, descrita por MARITAIN como experiênexperiên-cia pura do esse substan-cial do espírito: Vexpérience mystique naturelle et le vide, cit. supra, nota 2. A interpretação mística do Sein heideggeriano foi brilhantemente exposta por um discípulo de Maritain: ver E.

J.

KoRN (H. SCHMITZ), La question de l'être chez Heidegger, III: observations critiques concernant l'entreprise de Heidegger, Revue Thomiste 71(1971): 33-58; uma comparação entre o pensamento de He1degger e a mística hindu é proposta por L. GARDET, Expérience de sai et discours

philosophi-que: à propos de Heidegger, ap. L. GARDET-0. LAcoMBE, L'expérience de soi: essai de mystique comparée, 319-370.

16. Para um perfil dos grandes místicos cristãos na tradição ocidental, ver

CHAR-LES-ANDRÉ BERNARD, Le Dieu des mystiques, Paris, Cerf, 1998. Para distinguir o aspecto experiencial e o aspecto teórico da experiência mística, convém distinguir: a) mistica para designar o exercício da experiência mística; b) mistologia:· a refl:xão sobre a experiência e sua tradução em categorias teóricas; c) mistagogw: a prahca da direção espiritual no domínio da mística. Essas distinções são explicadas por H.

U. VON BALTHASAR, Zur Ortsbestimmung christlicher Mystik, ap. Grund.fragen der Mystik, 49-52.

20

ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA

a) de um lado, a transcendência da inteligência espiritua4 seja sobre

o entendimento discursivo e o livre-arbítrio, seja sobre as ativida-des próprias do psiquismo; b) de outro, a transcendência ontoló-gica do Absoluto sobre o sujeito finito que a ele se une na expe-riência mística. Não obstante as profundas diferenças que irão distinguir a mística cristã daquela que se convencionou denomi-nar mística pagã, e cuja expressão conceptual será recebida da

tradição platônica (ver infra), o traço comum que as une

encontra-se no mesmo modelo antropológico dotado de uma estrutura

vertical aberta coroada pela fina ponta do espírito (noús ou mens),

capaz de captar a universalidade formal do ser e de afirmar seu

existir real (Metafísica), ou de unir-se fruitivamente ao Absoluto

(Mística)17

• A concepção antropológica subjacente à experiência

mística - como também à contemplação metafísica - deve

ad-mitir, em conseqüência, o reconhecimento da capacidade do

es-, · h Pl - d · " Ih d I "18 E " Ih

pmto umano que atão enommou o o a a ma . sse o ar da alma" prolonga sua contemplação para além da multiplicidade sensível e imaginativa e da multiplicidade conceptual, e é intuição

simples da Idéia ou do Absoluto ideal19

A estrutura antropológica vertical apresenta-se, pois, na tradi-ção ocidental, como a conditradi-ção de possibilidade da experiência

mística - e, mais geralmente, do conhecimento natural de Deus,

17. Essa estrutura vertical é ilustrada por uma das mais célebres transposições metafóricas da literatura filosófica, aquela que estabelece uma proporção entre o olhar - coroando a estação vertical do ser humano, ver Antropologia Filosófica I, 30-31 e 51, notas 14 e 15 - e a faculdade superior do conhecimento (nous), que tem por objeto as realidades supra-sensíveis (eidos, idéa). Esse tema é tratado exaustiva-mente por L. PAQUET, Platon et la médiation du regard, Leiden, E.

J.

Brill; ver a Conclusão, 458-463.

18. A metãfora do "olhar da alma" (PLATÃO, República VI, 533 d 2) torna-se clãssica na literatura mística. Ver os textos de Alcher de Clairvaux e de Hugo de São Vítor citados por E. V. Iv&'IKA, Plato Christianus: Übernahme und Umgestaltung des Platonismus durch die Viiter, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1964, 317; 326-327; 333.

19. A intuição (nóesis) situa-se, portanto, no extremo superior dos modos do conhecimento, ordenados linearmente: pístis (sensação), eikasía (imaginação), diánoia (raciocínio matemático), nóesis (intuição); PLATÃO, República VI, 511 d-e. A essas operações do conhecimento correspondem as duas grandes ordens da realidade: sensível ou visível (tà orata} e inteligível (tà noeta).

(12)

ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

bem como da recepção da revelação divina na Fé. A transcrição conceptual dessa estrutura se fará segundo dois esquemas clássi-cos, obedecendo a dois procedimentos metodológicos distintos de ordenação da complexa realidade do ser humano: a) o esquema

dual corpo-alma20, construído segundo um procedimento analítico

- análise da substância "ser humano" em seus princípios

consti-tutivos; b) e o esquema trial corpo-alma-espírito21, construído

se-gundo um procedimento dialético - articulação do movimento de

auto-expressão do ser humano na passagem da natureza dada à

forma manifestada22

A teoria da mística, implícita no testemunho dos místicos ou explicitada pela reflexão filosófico-teológica, apóia-se, portanto,

num substrato antropológico, que é a natureza do espírito

enquan-to este é capaz de elevar-se por suas próprias forças - mística

natural - ou pela graça divina - mística sobrenatural - à

expe-riência fruitiva do Absoluto em si mesmo ou em alguma de suas

manifestações23

• A investigação desse substrato antropológico, que

reúne motivos platônicos, estóicos e cristãos, constitui um capítulo importante da antropologia cristã depois de Orígenes, vindo final-mente integrar-se no edifício conceptual da mística cristã

medie-val e de seus prolongamentos modernos24. Sua sistematização

dás-20. Dual aqui não significa dualista. O dualismo antropológico é um caso-limite do esquema dual que, no entanto, não o implica necessariamente, como mostra a doutrina hilemórfica na antropologia aristotélica. Sob a antropologia subjacente à

experiência mística, ver MAX HuOT DE LONGCHAMP, Mystique, Dictionnaire critique de la Théologie, (dir. J.-Y. Lacoste), Paris, PUF, 1998, cols. 774-778 (v. 777) [ed. br.: Edições Loyola-Paulinas, no prelo].

21. Sobre a chamada "antropologia tripartida", ver H. DE LUBAC, Anthropologie

tripartite, ap. Théologie dans l'histoire: L La lumiere du Christ, Paris, Desclée, 1990, 113-199. 22. Para o sentido do termo dialética nesse contexto, ver Antropologia Filosófica L 165-167; H. C. LIMA V AZ, Antropologia tripartida e exercícios inacianos, Perspec-tiva Teológica 23 (1991): 349-358 (v. 351-352).

23. A distinção entre mística sobrenatural e mística natural, objeto de longas discussões, pressupõe, evidentemente, uma teologia da graça subjacente ao concei-t'l de "mística sobrenatural". Além do clássico artigo de Maritain (supra, nota 2), ver O. LAcoMBE, Introduction, ap. GARDET-LAcoMBE, L'expérience de soi, 26-29.

24. Esse edifício significa a estrutura ontológica do espírito, a partir do seu fun-damento - designado pelo conceito estóico de hegemonikón, traduzido pelos latinos como principale cordis - até o seu cimo ou o apex mentis, ver, a respeito, E. VON

ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA

sica será levada a cabo por Tomás de Aquino, ao reelaborar

filo-soficamente a teoria agostiniana da menf-5

, ou, segundo a

termino-logia acima adotada, da inteligência espiritual.

Por conseguinte, desde que nos disponhamos, acolhendo o testemunho irrecusável dos místicos, a atribuir à experiência mís-tica, tal como se nos apresenta na tradição espiritual do Ocidente, uma forma e um conteúdo originais, somos forçados igualmente a

admitir que essa experiência só pode exercer-se num lugar

antro-pológico próprio. A determinação conceptual desse lugar cabe, então,

à reflexão filosófico-teológica como parte integrante de uma teoria

da mística. Essa teoria deve, portanto, como tarefa preliminar, mostrar que o lugar antropológico no qual a experiência mística pode acontecer a torna irredutível, na sua essência, aos condicio-namentos psicológicos, sociológicos ou culturais que normalmente

a acompanham26

Recorrendo ao sistema de categorias exposto em nossa

Antro-pologia Filosófica27

, propomos situar o lugar antropológico da

expe-riência mística exatamente no espaço intencional onde se dá a

passagem dialética das categorias de estrutura para as categorias de

relação, ou do sujeito no seu ser-em-si ao sujeito no seu ser-para-o-outro. Essa passagem, que articula ontologicamente o ser humano

ao seu mundo, torna-se possível pela "suprassunção" (Aujhebung, ou

elevação que conserva) das estruturas do corpo próprio e do

psiquis-IVANKA, Plato Christianus, 315-351 (v. 325-326), que distingue um modelo puramen-te platônico - continuidade do racional ao transracional - e um modelo platô-nico-estóico - Orígenes, Agostinho e a mística cristã posterior - que admite uma descontinuidade entre o fundo da alma (principale cordis) e a razão discursiva.

25. Sobre essa questão, ver a obra clássica de A. GARDEIL, La structure de l'âme et l'expérience mystique, 2 vo1s., Paris, Gabalda, 1927. A primeira parte (I, 1-352) estuda a teoria da mens em Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Ver igual-mente o amplo artigo de L. REYPENS, Âme, structure de I' ... , Dictionnaire de Spiri-tualité, I, cols. 433-469. Quanto ao exercício da contemplação segundo Santo Agostinho, ver ibid., II, cols. 1912-1921; segundo Santo Tomás, ver P. PHILIPPE, ibid., li, cols. 1983-1988.

26. Sobre a determinação do lugar antropológico da experiência mística, ver].

SuDBRACK, Wege zur Gottesmystik, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1980, 9-49; e ainda MAx HuoT DE LoNGCHAMP, art. cit., nota 20 supra.

27. Ver Antropologia Filosófica L 49-137.

(13)

ExPERIÊNCIA MísTicA E FILosoFIA NA TRADIÇÃo OciDENTAL

mo ao nível estrutural do espírito. Desta sorte, o ser humano pode

abrir-se ao mundo, num primeiro nível relacional, expresso pela

categoria de objetividade; pode abrir-se ao outro e à história, num

segundo nível relacional, expresso pela categoria da

intersubjetivi-dade; finalmente, pode abrir-se ao Absoluto, num terceiro e mais

elevado nível relacional, que se exprime pela categoria de

trans-cendêncirJ28. Mas, da mesma forma com que o ser humano só é um

ser-para - sujeito de uma relação propriamente humana -

por-que nele o espírito suprassume o corpo próprio e o psiquismo29

,

assim o seu mundo - termo intencional do ser-para - só se

cons-titui como tal porque a relação de transcendência suprassume, sob

diversas modalidades, as relações de objetividade e de

intersubjeti-vidade. Vale dizer que o ser humano só se abre à realidade obje-tiva na forma de um mundo humano porque movido

intencional-mente pela sua ordenação profunda ao absoluto, seja o absoluto

formal, como universalidade do Ser, seja ao Absoluto rea~ Deus.

Eis por que a figura do absoluto, multiforme e única, habita o

universo intencional do ser humano e acompanha como uma sombra todas as suas formas de auto-expressão e a sua autoposição

como sujeito, pela qual ele se faz presente entre os seres30

Igual-mente, no seu manifestar-se a si mesmo ou na sua reflexão sobre si

mesmo, o ser humano desvela sua ordenação essencial ao Abso-luto31. Nessa dupla ordenação, objetiva e reflexiva, ao Absoluto reside a raiz metafísica da idolatria e dessa imensa procissão de

28. Essas duas categorias são expostas em Antropologia Filosófica li, 49-137. 29. Antropologia Filosófica I, 224-225.

30. Antropologia Filosófica I, 163-164 e 170, nota 11.

31. Essa ordenação constitui, em suma, o dinamismo ontológico fundamental do espírito. Esse dinamismo exprime a ordenação do ser humano, como ser inteligen-te, para a Verdade, e, como ser livre, para o Bem, dando ao espírito uma estrutura

noético-pneumática: ver Antropologia Filosófica I, 219-233. A concepção do dinamismo do espírito no campo da teoria do conhecimento foi amplamente exposta por

J.

MARÉC_HAL em sua obra Le point de départ de la Métaphysique, cah. V, 2, Bruxelas/ Paris, Ed. Universell~/Desclée, '1947 e por ele aplicada à interpretação da expe-riência mística em Etudes sur la psychologie des mystiques, I, 194-195; li, 481-483 e passim. Ver, a propósito, G. MOIOLI, Mystique chrétienne, Dictionnaire de la vie spirituelle (tr. fr.), Paris, Cerf, 1983, 742-754 (v. 750-751).

24

ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA

pseudo-absolutos que acompanha os passos do ser humano na

história32

• Entre simplesmente ser e manifestar-se-que é

propria-mente o existir como ser espiritual - o ser humano cumpre um

movimento intencional de natureza dialética pelo qual ele é ou

manifesta-se a si mesmo - categorias de estrutura: corpo próprio,

psiquismo, espírito - e é ou manifesta-se em face da universalidade

do ser - categorias de relação: objetividade, intersubjetividade,

transcendência. É no curso desse movimento ou desse duplo

movimento - para-si, para-o-outro - que a experiência mística

tem propriamente seu lugar antropológico. Ela pode ser considerada

como que uma tensão paroxística entre ser e manifestação: entre o

ser humano na sua finitude e nas condições da sua situação, e o

dinamismo profundo ordenado ao Absoluto que move a sua

automanifestação. Esse paroxismo ocorre num aflorar do Absoluto que, sendo o termo último do movimento intencional do sujeito, está, por isso mesmo, presente na origem e no curso desse movi-mento e, formalmente presente nos atos de inteligência e vontade

com que o sujeito se auto-exprime: aqui, no apex mentis, acontecem

a intuição e fruição do Absoluto, configurando o ato mais elevado

da vida do espírito: a experiência mística. Esse aparecer do

Abso-luto pode assumir a modalidade do absoluto formal na afirmação

metafísica do ser, quando esta é acompanhada da intensidade de

uma experiência (a experiência metafísica) que tem por objeto a unidade e universalidade absolutas com que o ser se apresenta

como cognoscível (Verdade) e como amável (Bem); ou então pode

anunciar a presença do Absoluto real (Deus) que surge ao termo do movimento dialético de auto-expressão do ser humano,

pre-sença atingida seja indiretamente pela intuição do Absoluto como

Fonte criadora - mística natural - seja diretamente pela intuição

do Dom absoluto de um Amor infinito -mística sobrenaturaP:1

32. É a lei inelutável formulada por Santo Agostinho: ( ... ) ut nemo ab ipsa veritate dejiciatur qui non recipiatur ab aliqua effigie veritatis (De Vera Religione, XXXIX, PL, 34, 154). 33. A intensidade quase mística da experiência metafísica é uma das raízes da mística especulativa. Sobre a questão da intuição ou contemplação natural de Deus e sua natureza mística ou quase mística, ver R. ARNOU, Contemplation III-B, Dictionnaire de Spiritualité, II, cols. 1742-1762.

(14)

ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

Por outro lado, o aparecer do Absoluto no movimento de

auto-expressão do ser humano pode orientá-lo seja reflexivamente, na

forma de uma experiência do Si substancial atravessado pela energia divina do Ato criador ou pelo apelo transformante do

Amor infinito, dando origem às místicas do ênfase (ou da

interio-ridade), seja objetivamente, ou na direção do Cosmos ou da

Histó-ria contemplados à luz do Absoluto que os envolve, ou na saída de si para a união fruitiva com o próprio Absoluto, dando então

origem às místicas do êxtasil4

Nas místicas do ênfase o Absoluto é

experimentado como que constituindo o fundo abissal, o interior

interior intimo do próprio sujeito. Nas místicas do êxtase, na sua forma mais genuína, o Absoluto é experimentado como Absoluto

pessoal - superior summo -, manifestando-se como Dom de si

mesmo que introduz o místico na comunhão da vida divina. A experiência mística deve ser reconhecida, portanto, como um fato antropológico singular, cuja singularidade só pode ser reco-nhecida e interpretada nos quadros de uma adequada filosofia do ser humano. Desta sorte, a essência da experiência mística não é alcançada através dos procedimentos metodológicos das ciências humanas, na medida em que estas permanecem no plano da

cha-mada "compreensão explicativa"35

, que trabalha com modelos

abs-tratos aplicáveis apenas a dados selecionados da experiência. No momento em que passam a ocupar-se com experiências humanas que escapam manifestamente às características da experiência or-dinária, mas que, por outro lado, ocorrem em sujeitos perfeita-mente normais, como acontece emblematicaperfeita-mente com a expe-riência mística, as ciências humanas são obrigadas a recorrer, tácita ou declaradamente, a pressupostos filosóficos, e não é difícil des-cobrir a filosofia que subjaz a algumas das mais conhecidas

inter-pretações "científicas" da experiência mística36

• Nesse campo, aliás,

34. Sobre essa terminologia, ver L. GARDET, La Mystique, (co!. Que sais-je?), Paris, PUF, 1970, 27-28.

35. Ver Antropologia Filosófica I, 13; 159-164.

36. Exemplos: o pragmatismo em Williamjames, o idealismo em Henri Dela-c:oix, o materialismo em ]ames Leuba. Sobre esses autores, ver

J.

MARÉCHAL,

Etudes sur la psychologie des mystiques, vol. 1.

26

ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA

o problema filosófico coloca-se inevitavelmente, pois a experiên-cia mística faz sua aparição no ãmbito de uma questão

especifica-mente filosófica: a questão da transcendência. A experiência mística

pode e, mesmo, deve ser estudada cientificamente. Mas é neces-sário que as ciências humanas, ao aplicar-se a esse estudo, evitem todo tipo de reducionismo e/ ou explicitem a filosofia que as ins-pira, ou ao menos deixem aberto o espaço às interpretações filo-sóficas ou teológicas que dispõem de instrumentos conceptuais adequados para captar, na sua essência, o fenômeno da

experiên-cia mística37Como acabamos de ver, a tradição filosófica e

teoló-gica do Ocidente, até pelo menos os inícios da modernidade, pensou a experiência mística segundo um modelo antropológico

fundamental que, nas suas grandes variantes - modelo dual ou

trial -, e não obstante as diferenças que separam as místicas

grega e cristã38, concebe a unidade do ser humano como uma

unidade estrutural aberta, no nível superior do espírito, à

univer-salidade do ser e ao conhecimento do Absoluto. É esse modelo que

iremos encontrar dando significação e unidade às grandes formas de experiência mística que a tradição ocidental nos apresenta.

37. Sobre a legitimidade da investigação científica, em particular psicológica, da

experiência mística e sobre sua compatibilidade com a interpretação filosófico-teológica, ver as observações pertinentes de A. MAGER, Mystik als seelische Wirklichkeit: eine Psychologie der Mystik, 11-29. Convém lembrar igualmente as páginas clássicas de

J.

MARITAIN, Expérience mystique et philosophie, ap. Les Degrés du Savoir, Paris, Desclée, 41946, 489-583. Ver também C!. TRESMONTANT, La mystique chrétienne et l'avenir de l'homme, 9-23.

38. Ver supra, nota 9.

(15)

11

fORMAS DA EXPERIÊNCIA MÍSTICA

NA TRADIÇÃO OCIDENTAL

A investigação histórica e a reflexão filosófico-teológica iden-tificaram, na tradição mística do Ocidente, três grandes formas segundo as quais a experiência mística é vivida pelos místicos e pensada pelos teóricos da mística. Os traços característicos dessas formas permitem descobri-las e descrevê-las nesse ou naquele escritor místico e nessa ou naquela escola de espiritualidade. Na experiência concreta, porém, tais formas aparecem freqüentemen-te infreqüentemen-tegradas no todo da experiência, tal como, na sua riqueza e complexidade, é vivida e descrita pelos grandes místicos. Essa observação vale particularmente para a mística cristã, que herdou da tradição grega uma estrutura conceptual e nela transfundiu um espírito novo, vindo a surgir daí um modelo ou modelos de ex-periência mística profundamente originais.

Aqui também, pois, distinguir não é separar, mas tornar pos-sível uma visão, ao mesmo tempo complexa e ordenada, da ver-dadeira fisionomia e das vicissitudes históricas desse evento espi-ritual aparentemente enigmático que denominamos Mística, que persiste em repetir-se na história e que, como reconheceu Berg-son, é uma fonte inesgotável das mais altas aspirações éticas e religiosas a que uma civilização pode elevar-se.

Distingamos, pois, três grandes formas de experiência mística na tradição ocidental:

- a mística especulativa;

- a mística mistérica;

- a mística profética.

(16)

ExPERIÊNCIA MísTicA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

As duas primeiras são comuns aos misticismos grego e cristão, levando-se em conta a profunda diferença do conteúdo doutrinal nas duas tradições. Já a mística profética é própria da tradição cristã, sendo essencialmente uma mística cristológica.

a.

A mística especulativa

A chamada "mística especulativa" pode ser considerada um prolongamento da experiência metafísica em termos de intensida-de experiencial. Ela se apresenta, pois, como a face do pensamento filosófico voltada para o mistério do Ser, tentando mergulhar seu olhar nas profundidades propriamente insondáveis e inefáveis que assinalam a fronteira última do pensamento distinto e da palavra - do lagos. A mística especulativa é, portanto, o esforço mais

audaz - na mística natural - e o apelo mais radical - na mística

sobrenatural - para que o espírito humano, seguindo o roteiro do

lagos, penetre no domínio do translógicoi. Ela floresce, assim, histo-ricamente, nas proximidades dos grandes surtos do pensamento metafísico que marcaram a história da filosofia de Parmênides a HegeF. Nesse sentido, pode-se dizer que, em sua versão ocidental, a mística especulativa é originariamente grega, não obstante o vigoroso crescimento que conheceu em terras cristãs. Situa-se na

vertente noética da consciência, desabrochando como que no seu

vértice. É, portanto, uma mística do conhecimento, e essa é a feição

original que a distingue na história da Mística.

É em Platão que os estudiosos reconhecem habitualmente a

fonte primeira da mística especulativa. Ela nasceu de algumas

passagens dos Diálogos, que se tornaram quase canônicas, e foi,

sem dúvida, alimentada pelas especulações sobre o Bem e o Uno,

1. Lembremo-nos de que o domínio da mística não é o domínio do alógico ou

do irracional, mas do translógico: a realidade que se alcança com um passo além do lógico ou do pensamento conceptual. Ver A. BRUNNER, Der Schritt über die Grenze, 30-38.

2. Com efeito, alguns autores fazem remontar a Parmênides as origens históricas da mística especulativa; ver, por exemplo, K. KoMOTH, Hegel und die spekulative Mystik, Hegel-Studien 19 (1984): 65-93.

30

FORMAS DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

que a tradição atribui ao ensinamento não-escrito do Filósofo3

• É

justo, pois, afirmar-se que a mística especulativa tem sua origem nesse singular intento de Platão, que foi o de unir o entusiasmo

e a razão4Independentemente da interpretação da theoria

platô-nica, seja como uma visão terminal da Idéia, de natureza quase mística e em descontinuidade com a ascensão dialética, seja a de uma intuição que coroa essa ascensão", é inegável que os temas e conceitos platônicos irão constituir um organismo teórico que será animado por correntes sucessivas de vida mística na antigüidade

grega e no cristianismo dos primeiros séculos6

• A mística

especu-lativa será, pois, fundamentalmente uma mística platônica, e será sob o patrocínio de Platão que mística e filosofia se unirão por estreitos laços na tradição do Ocidente.

Fiel às suas origens platônicas, e desenvolvendo-se no campo

temático aberto pela filosofia dos Diálogos e pela tradição

não-escrita, a mística especulativa apresenta-se dotada de uma estrutu-ra fundamental que permanecerá constante atestrutu-ravés de todas as vicissitudes de sua história. Dois grandes eixos sustentarão essa estrutura:

a) o eixo subjetivo, correspondendo a uma ordenação vertical

e hierárquica das atividades cognoscitivas da alma (psyché,

ani-ma) e, por conseguinte, das formas de conhecimento, culminando

3. A Primeira Academia, onde essas lições foram ministradas, pode ser consi-derada a primeira escola de mística especulativa. A estrutura platônica da mística especulativa é sintetizada nos três princípios essenciais do platonismo, segundo E. voN IvANKA (Plato Christianus, 499): a) real e ideal integrados na unidade de um Todo ordenado; b) a totalidade do ser fluindo de uma fonte única, que é também a unidade originária; c) a existência do Uno originário é objeto, ao mesmo tempo, de certeza racional e de experiência mística, sendo o fim último da tendência essencial do homem. Ver ibid., 450-459, sobre os problemas levantados a propó-sito da integração dessa estrutura platônica na mística cristã.

4. Essa expressão é de V. GoLDSCHMIDT, Les Dialogues de Platon: structure et méthode dialectique, Paris, PUF, '1988, 337; ver à p. 341 a descrição do momento em que entusiasmo e razão se unem na intuição da essência. [ed. br.: Os Diálogos de Platão, São Paulo, Edições Loyola, 2001].

5. A primeira dessas interpretações foi exposta por A.J FESTUGIÉRE em sua obra clássica Contemplation et vie contemplative selon Platon, Paris, Vrin, '1950; com ela concorda substancialmente R. ARNou, Contemplation, II/2, 1719-1725.

6. A comparação do organismo deve-se a A.J FESTUGIÉRE, op. cit., 5.

(17)

EXPERIÊNCIA MíSTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL

com a inteligência (noús, mens) no seu ato mais elevado (nóesis,

intuitio). A mística especulativa, em suas formas clássicas, admite, portanto, que o conhecimento humano possa elevar-se, seguindo a continuidade de um mesmo movimento espiritual, até o cimo da

mente (apex mentis), onde se dá a intuição do divino ou de Deus7•

O eixo subjetivo, que sustenta a experiência mística na sua forma especulativa, orienta, desta sorte, a alma na direção que conduz ao exercício pleno da sua capacidade de abrirse ao Absoluto

-capax entis, -capax Dei" - por uma forma de conhecimento supra-racional, do qual se origina o êxtase do amor, num quiasmo per-feito entre conhecimento e amor, cuja expressão ultrapassa os

limites da razão discursiva9

b) o eixo objetivo está em perfeita homologia com o eixo

sub-jetivo na estrutura da mística especulativa. Com efeito, esta

repou-sa sobre a pressuposição de que, à capacidade do ser humano de

conhecer e amar o Absoluto, corresponde a realidade objetiva desse

mesmo Absoluto intuído e amado - vigora aqui o objetivismo da

gnosiologia antiga, em cujos quadros nasceu e se desenvolveu a

mística especulativa - numa paradoxal relação de sujeito a

obje-to, que forma como que o cerne da mística especulativa. De um lado, aí se manifesta o supremo esforço do espírito humano para alcançar, pelo conhecimento e pelo amor, o vértice da pirâmide do ser, tal como parece elevar-se aos olhos da sua inteligência. De

7. Na mística sobrenatural cristã, a elevação pela graça - no caso, uma graça atual gratis data - do contemplante é pressuposta ao ato da contemplação.

8. Segundo a tradição platônica, esse eixo atravessa todas as camadas da alma até atingir seu cimo; ver, no entanto, supra, nota 24, cap. 21.

9. Como é sabido, remonta igualmente a Platão a doutrina da íntima inter-relação entre amor e conhecimento (eros e logos). A propósito, ver H. C. LIMA V A:z,

Amor e Conhecimento: sobre a ascensão dialética no Banquete, Revista Portuguesa de Filosofia 12 (1956}: 225-242. Sobre a dialética amor-conhecimento, ver também P. MENESES, O conhecimento afetivo em Santo Tomás (co!. CES}, São Paulo, Loyola, 2000. SAo GREGÓRIO MAGNO resumiu essa inter-relação numa sentença célebre: Amor ipse notitia est (Hom. in &echielem, II, hom. 27, 4; PL, 76, 1207}. Para o pleno exercício dessa sinergia amor-conhecimento, impõe-se a necessidade, já realçada por Platão, da purificação (kátharsis) da alma como condição para a ascensão espiritual. O capítulo da "purificação" permanecerá fundamental no neoplatonis-mo (Plotino} e no cristianisneoplatonis-mo.

32

FoRMAs DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL

outro, esse vértice do ser, apenas entrevisto, distancia-se ao infini-to, mergulhado numa profundidade insondável, para além de toda

intuição distinta10

• A homologia que mantém em equilíbrio os dois

eixos, subjetivo e objetivo, da mística especulativa exprime-se na

equação ontológica inteligência

=

ser. É essa mesma homologia

que permite construir igualmente o edifício da Metafísica. Nesta, porém, a inteligência procede por via discursiva e/ ou elabora, utilizando o procedimento analógico, o conceito universalíssimo

de ser (absoluto formal) ou avança, na linha da afirmação judicativa,

até a posição do Absoluto realn. Na mística especulativa a

inteli-gência é elevada como que acima de si pelo ímpeto profundo de

atingir12 em si mesmo o Absoluto na sua plenitude absoluta de ser.

Mas como atingi-lo desta sorte sem identificar-se, de alguma maneira, com ele e sem descobrir em si mesma uma identidade original com o Absoluto? Tal é, fundamentalmente, o roteiro desenhado pela mística especulativa para seu itinerário, e que será a fonte de todos os problemas que sua prática e sua expressão

teórica encontrarão ao serem recebidas pela tradição cristã13• O

eixo objetivo da mística especulativa aponta tradicionalmente em duas direções o caminho para se atingir o Absoluto: o caminho do ênfase e o caminho do êxtase. Ou o caminho da descoberta do Absoluto no íntimo do Si substancial ou o caminho da sua desco-berta no ápice da ordem ascendente dos seres. Em ambos os

casos, o atingir assume a forma de um ver transracional, de um

excessus mentis. Por outro lado, como falar do objeto dessa contem-plação, senão transgredindo as regras da linguagem ordinária? O

10. Deve-se igualmente a l'L\TAO a fórmula para designar a transcendência absoluta que eleva o vértice da realidade para além do ser determinado, quando declarou a Idéia do Bem "para além da essência em majestade e poder" ( epékeina tês ousias prebeia kai dynámei hyperéchontos, Rep., VI, 509 b}. As místicas neoplatônica e cristã usarão as preposições hyper = supra e melá = trans, para designar a trans-cendência do termo da ascensão mística.

11. Sobre o fundamento antropológico da Metafísica, ver o capítulo sobre a

categoria da relação de transcendência, ap. Antropologia Filosófica 11, 93-137. 12. Os verbos "atingir" e ''tocar" ( thingánein, attingere) são usuais na linguagem da mística especulativa. Ver Antropologia Filosófica I, 286, nota 161.

13. Esses problemas são discutidos por E. v. IvANKA, Plato Christianus, 453-457. 33

Referências

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