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Marcius Freire - Por Tarzan ou por Nanook: o filme antropológico à procura de seu punctum

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Academic year: 2021

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Antonio Fausto Neto

José Luiz Braga

Sérgio Dayrell Porto

BRASIL

COMUNICAÇÃO

CULTURA & POLÍTICA

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Capa:

Lila

Editoração:

Paulo César e Ricardo

1994

Diadorim Editora Ltda.

Rua Marquês de São Vicente 124, loja 227

Gávea - Rio de Janeiro - RJ

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O FILME ANTROPOLÓGICO À

PROCURA DE SEU PUNCTUM

M árcius Freire*

O presente ensaio representa o ponto de partid a de um trabalho atualmente em curso, que tem como objetivo refletir sobre o processo de construção do fi lme etnográfico e suas relações com o espectador. As origens de nosso interesse por este tema podem ser encontradas numa constatação que todos aqueles para quem o cinema documentário é ou foi objeto de atenção podem fazer: mesmo especialistas no estudo do homem, como antropólogos e sociólogos dem onstram, em algumas ocasiões, ter dificuldades para "dialogar" com a etnografia fílmica. Talvez o melhor exemplo disso venha de Claude Lévi-Strauss, que

perguntou a Claudine de France o porquê dos filmes

antropológicos serem tão chatos.

Mais que o desagrado eventual diante de um

docum entário pouco estimulante, a pergunta do grande

antropólogo resume, de maneira bastante ilustrativa, a relação conflituosa que o filme etnográfico ou antropológico m antém com o espectador desde que Félix-Louis R égnault apontou a objetiva da câmera cronofotográfica de Marey para uma oleira da etnia w olof na Exposição Etnográfica da África Ocidental de Paris, em 1895.

Professor do Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da UN ICAMP (GT - Comunicação Visual).

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Sabe-se que as primeiras imagens animadas fascinavam os espectadores justam ente por serem... animadas. Ver o m undo movendo-se como na vida real já era, por si só, um grande espetáculo. O trem entrando na gare de La Ciotat arrancou gritos de admiração e espanto dos freqüentadores do Grand Café n ão pelo modelo da locomotiva ou pela destreza do maquinista, mas simplesmente porque o que se tinha diante dos olhos, numa sala escura que em nada se assemelhava a uma estação ferroviária, era o movimento de um trem em toda sua pujança. A estas imagens seguiram-se cenas da vida cotidiana que iam do almoço de um bebê ao movimento dos operários na saída da fábrica dos inventores do aparelho.

Im ediatam ente após o prim eiro impacto, os detentores deste últim o perceberam que imagens do dia-a-dia, mesmo temperadas com o irresistível condimento do m ovimento, não seriam suficientes para continuar atraindo espectadores às salas escuras. Com efeito, se naqueles idos do século XIX registrar a realidade objetiva, respeitando seu continuum tem poral, era a melhor maneira de provocar espanto no espectador, depois que, passados alguns anos, Méliès levou o engenho dos Lum ière para seu teatro de mágicas, isto já não era suficiente.

Procurou-se então o concurso de ingredientes mais pican­ tes, capazes de excitar as papilas mais indiferentes. Foi assim que os operadores Lumière num prim eiro m om ento, e todos os seus émulos em seguida, partiram aos quatro cantos do m undo para trazer de volta imagens de um outro dia-a-dia, ou, m elhor dize ndo, imagens do dia-a-dia do outro.

Coroam ento de reis, desfiles militares, rebeliões, revoltas sociais, danças e rituais de possessão passaram a ser servidos como prato principal a uma audiência ávida por novas iguarias. As então colônias das potências européias foram as principais fornecedoras da matéria-prima necessária à preparação do cardápio cinematográfico da época. O filme etnográfico dava assim se us prim eiros passos ancorado no colonialismo e na e xploração do exotismo. Esse movimento foi de tal amplitude que

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até o final do século praticamente todos os povos do m undo já haviam sido filmados.

O filão estava aberto às experiências mais ousadas. Quando as imagens in natura de povos longínquos começaram a enfadar o público, iniciou-se então um novo m ovimento que consistia em travestir a realidade dessas sociedades e adaptá-la ao gosto do espectador. De objeto da apreensão fiílmica, elas se transform aram em pano de fu ndo sobre o qual se tecia uma tram a ficcional. Nascia assim o "docum entário rom anceado", gênero explorado pelo próprio Méliès, que chegou a realizar alguns filmes no Tahiti e na Nova Zelândia1. Paralelamente a estas investidas da produção comercial no terreno da etnologia, filmes de caráter puramente científico eram rodados por antropólogos, sociólogos etc. O pioneiro Félix-Louis R égnault continuou fazendo filmes etnográficos e chegou a propor a criação de arquivos antropológicos filmados. Um pouco mais tarde, museus e universidades descobrem o valor do novo suporte para o desenvolvimento de suas atividades e subvencionam a viagem de equipes de pesquisadores e operadores a países distantes. O sucesso dessa iniciativa é tal que os produtores comerciais sonham em tirar também algum proveito e se associam a instituições acadêmicas para a realização de filmes etnográficos. A Eastman Kodak cria um departam ento de filmes educativos, chamado "Eastman Teaching F ilms", mas sua produção sofreu a concorrência de filmes de aventureiros e de ficção rodados em países exóticos que gozavam de uma grande popularidade entre as

duas guerras: La Croisière Jaune (1926), prim eiro longa

m etragem francês rodado na África; King Kong (1933); No País

dos Escalpos (1934), aventura amazônica montado por Alberto Cavalcanti2. Mas, de todos os "cenários roubados", talvez o mais plenamente explorado tenha sido a África, berço da mais inventiva criação do etnocentrism o ocidental: Tarzan, o rei dos

1DE BR IGAR D, E ., "Historique du Film Ethnographique", in: DE F R ANCE, C. (org.). Pour une Anthropolog ie Visuelle. Paris, Mou ton\EH ESS, 1979.

2I

b id .

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macacos. Foram mais de 35 filmes e pelo menos 12 atores

diferentes que nunca saíram de Hollywood para encarnar o

musculoso homem branco que a imaginação de Edgard R ice Burroughs fez aterrisar nas selvas africanas para defender os fracos e oprim idos.

Mais recentem ente, na década de 60, assistimos àquela que é, certam ente, a mais cínica e despudorada de todas as produções voltadas para a exploração do exótico: a série Mondo

Cane, de G. Jacopetti. Colcha de retalhos com posta de manifestações das mais diversas ordens, provenientes das mais diferentes sociedades, esta série fez grande sucesso jun to ao público justam ente por apresentar-lhe, da maneira mais crua e arbitrariam ente separadas de seu contexto natural, imagens de uma outra realidade, sobretudo aquelas que contrariam ou entram em choque com os padrões ocidentais.

Vemos assim, pelo que precede, que os filmes docum entá­ rios em geral, e o docum entário de caráter antropológico, em particular, não somente estão na origem do próprio cinema, como desempenharam o papel de geradores de gêneros cinematográficos. No entanto, observamos também que a sua natureza, ou seja, sua missão de "inform ar" o espectador sobre aspectos da sociedade dos homens foi muitas vezes desviada em proveito da exploração dos ingredientes mais espetaculares dessa sociedade que agradariam, com certeza, este mesmo espectador.

Alie-se a esta "tendência" a questão colocada no começo deste texto por Lévi-Strauss, e somos levados a form ular a

seguinte pergunta: como deve ser construído o filme

documentário de caráter antropológico, sobretudo num m om ento em que a televisão firma-se como o grande veículo de divulgação

áudio-visual? Não é possível responder a esta pergunta sem

abordar, rapidamente e num prim eiro m om ento, os meandros da relação film e /espectador operada nas projeções cinematográficas e a noção de prazer subjacente a esta relação.

Claudine Eizykman dizia que "fechar-se numa sala de ci- nema é operar uma ruptura descarregando-se pulsionalm ente, e operar uma nova conexão, carregando-se, em um tem po e um

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lugar fixados, dos influxos que o filme em ite"3. O u seja, confrontado à projeção cinematográfica, o espectador se despoja das tendências e impulsos que regem suas atividades psíquicas para reagir a partir daqueles que o filme lhe envia.

Na concepção freudiana, o princípio do prazer está asso- ciado à dim inuição das tensões e à procura de uma constância psíquica que visa uma satisfação imediata, em oposição ao princípio de realidade que visa a satisfação mais a longo prazo. Na experiência cinematográfica, teríamos assim uma transferência dessa expectativa de satisfação do mundo real para o m undo da

diégèse4 fílmica. As tensões do sujeito foram substituídas por

aquelas que lhe vêm da tela, da história que lá é contada. Sua eventual constância psíquica decorre dessa transferência que, nas palavras de C. Eizykman, se traduz na ruptura operada entre o

"descarregamento pulsional" que dá lugar a um novo

carregamento "dos influxos que o filme emite".

É evidente, no entanto, que esse mecanismo de

transferência deve ser matizado, pois nem todo filme proporciona prazer ao espectador. Muitas vezes os "influxos" que ele emite não encontram abrigo no sistema pulsional do espectador e este

desg osta do filme. Segundo Christian Metz, "para que um sujeito

'goste' de um filme é necessário que o detalhe da diégèse adule suficientemente seus fantasmas conscientes e inconscientes para lhe perm itir uma certa saciedade pulsional, e é necessário tam bém que esta saciedade fique contida cm certos limites, que ela permaneça aquém do ponto onde se mobilizariam a angústia e a rejeição"5.

A saciedade pulsional do espectador é a prim eira meta de todo cineasta. A construção psicológica dos personagens, suas relações, os lugares que freqüentam, em sum a, a história criada

3EIZYKMAN, C ., L a Jouissance Cinéma. Paris, U nion Générale d'Editions, 1976

4Noção criada pela equipe de pesquisadores do In stitut de Filmologie, em Paris, para definir "tudo que pertence à história contada, ao mundo suposto ou proposto pela ficção”.

5METZ, C., ”Le Film de Fiction et son Spectateur”. In "Psychanalyse et Cinéma”, Communications, n ° 23, Paris, EHESS, 1975.

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n ão tem outro fim senão adular seus fantasmas e prendê-lo à tram a até o final da projeção. Quando isto n ão acontece nasce o desagrado, o desg osto, a rejeição que transporta o espectador da ficção para a realidade, da tela para a sala de projeção. Temos en tão o filme chato, de mau gosto, etc.

Dizíamos acima que o cineasta constrói seu filme procu­ rando suscitar prazer no público que vai assisti-lo. É evidente que estamos falando aqui de filmes de ficção, filmes que têm todos os seus ingredientes fabricados artificialmente, filmes construídos para dar ao espectador aquilo que ele vem buscar no cinema. N ão é por outra razão que, de tempos em tempos, surgem

movimentos, conjuntos de produções com as mesmas

características: filmes catástrofes; ficção científica etc. D etectados os ingredientes que, em determ inado m om ento, satisfazem o público, a receita faz escola e é explorada à exaustão.

É sabido, no entanto, que, mesmo esse tipo de filme,

filme de ficção cujos elementos são inteiram ente criados pelo

cineasta, não prendem o espectador, do começo ao fim, à sua trama. A m aior ou menor participação afetiva daquele depende da maneira como foram agenciados os elementos desta últim a e, no mais das vezes, essa participação tem seus mom entos de m aior

intensidade, momentos em que aquele que assiste relaxa sua

vigilância em relação ao mundo exterior e se envolve de m aneira mais efetiva com a ação, deixando-se levar por ela.

Que momentos seriam esses? Por que eles e não outros suscitam tal reação do público? Qual a relação desses m om entos com os outros que os sucedem e antecedem?

Estas questões são válidas para qualquer tipo de filme, seja ele de ficção, docum entário, reportagem etc. Nossa análise se limitará, contudo, àquele que é o objeto de nossa intervenção, ou seja, o docum entário de caráter antropológico. Para continuá-la, retomaremos as questões inicialmente formuladas concernentes às estratégias do antropólogo-cineasta diante do poder da televisão e nos perguntamos ainda como avaliar a relação do espectador com

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contrariam ente ao filme de ficção não foram fabricados pelo cineasta mas apreendidos na realidade objetiva?

Dizer que os elementos constitutivos do filme

docum entário nao foram fabricados pelo cineasta deve ser m elhor explicado para evitar mal entendidos. Em prim eiro lugar quando estamos falando de elementos constitutivos estamos nos referindo à diég èse, àquilo que é contado no filme através dos personagens e lugares que lhe d ão suporte. Os personagens, no mais das vezes, são interpretados por atores que lhes em prestam seus corpos e suas vozes para o desenvolvimento de uma ação que ocorre em lugares, ambientes construídos (cenários) ou em locações naturais.

Ocorre que, para se investirem de sua existência

cinematográfica esses elementos devem ser tratados através dos

mecanismos próprios dessa linguagem, quer dizer, lugares e

personagens serão objetos de uma história a partir do m om ento

que são entregues ao espectador através dos ângulos,

enquadramentos, duração dos planos, intensidade luminosa, movimentos de câmera e banda sonora, que são os com ponentes da

linguagem fílmica. É o ordenam ento desses com ponentes que engendra o film e. Qualquer filme, por mais minimalista que seja, opera, pelo menos uma vez, a escolha desses elementos. É o caso de Sleep, de Andy Warhol, que nos mostra, durante seis horas e em cinco, ou seis planos imóveis (apenas dois ou três zooms quebram essa im obilidade), um homem dorm indo.

Ora, se por um lado o docum entário não fabrica a tram a que mostra (nos termos que descrevemos acima: invenção dos personagens, dos lugares e da intriga que os une), mas apreende a realidade tal qual ela se apresenta a seus olhos, por outro, para apreendê-la, ele não pode se privar de manipular os elementos de linguagem que lhe perm itirão mostrar essa mesma realidade. No entanto, a partir do momento que o cineasta faz sua escolha e recorta espaço-temporalmente esta última, ela deixa de ser

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É desnecessário dizer que existem critérios para que tal

escolha seja efetuada. Segundo os objetivos que se dá

previamente o cineasta, tal aspecto da manifestação observada será mais ou menos enfatizado, tal outro poderá ser ocultado ou deixado em segundo plano...; em outras palavras, um processo seletivo se instala, que tem como corolário a fabricação de uma nova realidade: uma realidade fílmica.

Temos assim um prim eiro e essencial ponto de partida que deve estar presente em qualquer discussão sobre o docum entário antropológico: quaisquer que sejam as intenções do cineasta, seja ele antropólogo-cineasta ou docum entarista, sua apreensão da realidade será sempre parcial e refletirá, de alguma maneira, seu ponto de vista sobre essa realidade.

Até m uito recentemente, por volta dos anos 60, o docum entário tinha como modelo, para a sua construção, o filme de ficção. As limitações instrum entais próprias da época, como câmeras mecânicas que autorizavam apenas planos de alguns segundos, a ausência do som sincronizado, que dava à câmera um poder absoluto sobre as escolhas do cineasta etc., estimulavam

essa influência que encontrava nos realizadores grande

receptividade, uma vez que poucos eram aqueles que à atividade de cineasta juntavam a de pesquisador em ciências humanas. Tínhamos, assim, filmes resultantes mais de uma preocupação estética que de um interesse real em transm itir ao espectador uma

compreensão efetiva da continuidade espaço-temporal da

manifestação observada. Como dizia Colin Young, a

condensação operada por esse tipo de filme "dá uma certa concisão à apresentação e tira do espectador todo desejo de proceder a uma análise mais aprofundada. O trabalho já foi feito cm seu lugar pelo cineasta. Por isso os acontecimentos aparecem mais coerentes ou mais racionais do que provavelmente eles eram na realidade"6 .

No começo dos anos 60, os equipamentos de 16 mm se min iaturizam, o som sincronizado aparece, e um outro tipo de

6 YOUNG,

c.,

"Le Cinéma d'Observation". In DE FRANCE, C., Pour une

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docum entário antropológico nasce: ele deixa de ser "dirigido" para ser "direto", nas palavras de L. Marcorelles. As pessoas filmadas passam a se exprimir diretamente para o espectador, a falar por elas mesmas e a interferir na construção do objeto que as retrata. Nos anos 70, esse caminho foi ampliado mais ainda com o advento do vídeo. Com efeito, o suporte magnético, com sua maleabilidade, sua grande autonomia e sua capacidade de restituir im ediatamente às pessoas filmadas suas próprias imagens, abre novas perspectivas no estudo do homem através das imagens animadas.

O sistema de veiculação, de divulgação dos produtos en­ gendrados a partir dessas novas tecnologias também foi ampliado. É fato que as televisões do mundo inteiro têm aberto mais espaços para o docum entário antropológico, sem falar na TV a cabo que, com seu sistema de assinaturas, destina canais para audiências selecionadas.

N ão obstante, em que pese toda essa lista de novas possibilidades, o filme antropológico é quase sempre um produto pouco palatável para o espectador médio. O que fazer en tão para que esse tipo de filme possa penetrar o público que o assiste? De que mecanismos dispõe o cineasta para seduzir esse espectador sem cair na exploração do exotismo? Em outras palavras, e retornando ao título desta intervenção, onde está o punctum do verdadeiro filme antropológico?

Vamos tentar responder a esta questão evocando o criador do conceito e tom ando como base sua reflexão sobre a fotografia.

Roland Barthes, em seu livro La Chambre Claire. Note sur

la photographie7, observa que "uma foto pode ser objeto de três

práticas (ou de três emoções, ou de três intenções): fazer, experimentar, olhar. O Operator é o fotógrafo. O Spectator, somos todos nós que compulsamos, nos jornais, os livros, os álbuns, os arquivos, coleções de fotos. E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente (...) eu chamarei de bom grado

7BARTHES, R., La Chambre Claire. Note sur la photog raphie, Paris, Cahiers du cinéma/Gallimard/Seuil, 1980

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o Spectrum da fotografia". Ele distingue ainda dois temas passíveis de presença numa fotografia: o Studium e o Punctum. "O prim eiro, visivelmente, é uma superfície, ele tem a extensão de um campo, que eu percebo bastante familiarmente em função de meu saber, de minha cultura... (...). O segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Desta vez, nao sou eu que vou procurá-lo (como eu invisto minha consciência soberana contra o campo do studium ), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. Uma palavra existe em latim para designar esta ferida, esta picada, esta marca feita por um instrum ento pontudo... Este segundo elemento que vem incomodar o studium , eu o chamarei então punctum (...). O punctum de uma foto, é o acaso que, nela, m e punge (mas também me magoa, me sufoca)".

A partir dessas duas noções que dizem respeito à diégèse do objeto fotográfico e sáo, no final das contas, seu elo de comunicação com o spectator^ Barthes analisa algumas fotos sublinhando as relações que estas mantêm com ele, observador. Vamos entáo tomá-las em prestado e tentar, utilizando-as como instrum entos de análise, levantar alguns pontos iniciais que, pensamos, poderão trazer alguma luz à questão das relações do docum entário com seu espectador. Para tanto buscaremos, em prim eiro lugar, aproximar o filme docum entário daquilo que Barthes diz sobre a fotografia para encontrar as homologias necessárias à operacionalizaçáo da análise pretendida. "Muitas fotos sáo, hélas^ inertes sob meu olhar. Mas mesmo dentre aquelas que têm alguma existência para meus olhos, a maioria provoca em mim apenas um interesse geral, e poderíamos chamar, polido: nelas, nenhum punctum: elas me agradam ou desagradam sem me pungir: elas são investidas somente do studium {,.,). Reconhecer o studium^ é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harm onia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discutí-las em mim mesmo, porque a cultura (de onde provem o

studium) é um contrato passado entre os criadores e os

consumidores. O studium é uma sorte de educação (saber e cortesia) que me permite encontrar o operador, de viver as

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intenções que fundamentam e animam suas práticas, mas de vivê- las de alguma maneira às avessas, segundo meu desejo de

Spectator'\

Pensemos um pouco nessas palavras. Substituamos a fo to ­ grafia pelo docum entário e relembremos a observação de Claude Lévi-Strauss no começo de nossa exposição; não seria lícito afirm ar que este últim o tem com o filme antropológico o mesmo tipo de relação que Barthes tem com os clichês acima mencionados? Esta não seria, também, a relação que grande parte dos espectadores tem com a filmografia antropológica? Será que a causa desse descon-forto não está na presença isolada do

studium desprovido de qualquer punctum i

E fato que os filmes antropológicos se dão como objetivo recípuo informar se,u público, dar-lhe a conhecer aspectos do m undo dos homens. Mesmo que essas informações sejam, como dizíamos anteriorm ente, a interpretação que o cineasta dá às manifestações observadas, para que ele, o público, as entenda e assimile aquilo que lhe é apresentado, é necessário que se estabeleça um diálogo entre seu universo cultural e a dié£fesc do

filme. Se suas relações com esta última se restringem ao

estabelecimento desse diálogo, se nenhum elemento vem atingi-lo além de sua compreen-são intelectual, segundo Barthes, este filme não disporia de punctum. Em outras palavras, o studium desse filme encontra-se na mesma situação daquele de algumas fotos descritas por Barthes "que não é atravessado, chicoteado, zebrado

por um detalhe {punctum) que me atrai ou me fere" e que

engendraria "um tipo de foto bastante difundido (o mais difundido do mundo) que poderíamos chamar a fotografia unaire. (...) A fotografia é unaire quando ela transform a enfaticam ente a "realidade" sem desdobrá-la, fazê-la vacilar (a ênfase é uma força de coesão): nenhum duelo, nenhuma indireta, nenhum distúrbio".

Faz-se necessário aqui uma precisão: é óbvio que a analogia que estamos fazendo entre a fotografia e o docum entário antropológico deve ser relativizada, uma vez que o produto fíhnico possui a dimensão tem poral, inexistente no clichê fotográfico. Se é possível, portanto, afirmar que uma foto tem ou

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náo tem um punctum^ pois a imagem é uma só, no cinema a presença desse elemento é mais difusa e é passível de ser encontrada na duraçáo do filme. Se acrescentarmos à dim ensão tem poral a banda sonora, somos levados a nos perguntar: quais as características do punctum cinematográfico? Sua forma de agir junto ao espectador é a mesma da fotografia junto ao spcctator?

Para responder a estas perguntas, citarem os uma definição de punctum dada por Th. G ontier no seu artigo L'Image

Blanche.8 "A noçao de punctum designa esse instante onde os

sentidos sáo colocados em perigo; o punctum e também, antes de tudo, o m om ento de um ferimento e de uma dor: Barthes fala de um 'esvaziamento’. E no seio dessa dor que a imagem fotográfica pode ser ao mesmo tempo geradora de gozo: o que me parecia essencial na fotografia (sua função inform ativa), é 'excedida’ por um detalhe inessencial a esta informação, e portanto inútil à mensagem fotográfica. E essa adiçáo gratuita, amiúde nao desejada pelo operador, que vai despertar meu desejo, e fazer da fotografia o lugar de um gozo".

Vemos, assim, que a noção de punctum está associada aos

mesmos mecanismos que, na experiência cinematográfica,

atingem o espectador, com a diferença que o "detalhe inessencial" que vai despertar meu desejo náo é, como veremos a seguir, resultado de um acaso qualquer.

Dizíamos, no começo deste texto e citando Claudine Eisykman, que na sala de cinema o sujeito descarrega-se pulsionalmente para carregar-se em seguida dos influxos em itidos

pelo filme. Barthes fala de "esvaziamento" (passage à vide).

Christian Metz, também citado, mencionava a necessidade de a

diégise afagar os fantasmas do espectador para que este goste do

fihne. Barthes fala de mom ento de ferim ento e de dor, dor no seio da quai a foto pode ser geradora de prazer.

Temos entáo que o prazer fotográfico depende da existência ou náo de um punctum na foto observada. Aliás, o prazer

^G ON TIER , Th. "Roland Barthes et la Photo: le pire des signes". In Les

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fotográfico está na experiência do spectator com esse punctum. Pelo

que vimos acima, podemos dizer o mesmo do prazer

cinematográfico. O filme deve guardar em si estes mom entos em que ”os sentidos são colocados em perigo" e o espectador é atravessado por aquilo que ele é incapaz de explicar, pois, como diz o próprio Barthes, "o que eu posso nomear não pode realmente me ferir".

No entanto, como estamos tratando do docum entário antropológico, temos que matizar a idéia de uma diéjfèse in teira­ mente construída para trazer prazer ao seu público. Ao contrário, como já foi dito anteriorm ente, antes de qualquer coisa esse tipo de filme deve informar o espectador. Ademais, de maneira mais evidente, mais explícita que na fotografia, a dimensão diegética do filme está estreitam ente ligada à forma, ao tratam ento que ela recebeu por parte do cineasta. Em outras palavras, para além das especificidades da história que está sendo contada estaria seu tratam ento através dos recursos da linguagem cinematográfica.

Retom ando a citação de Th. G ontier quando ele diz que "o que (lhe) parece essencial na fotografia (sua função inform ativa), é ’excedido’ por um detalhe inessencial a essa

informação, e portanto inútil à mensagem fotográfica",

poderíamos, num prim eiro m om ento, sugerir que,

contrariam ente à fotografia, o fenômeno cinematográfico é passível de guardar em si uma multiplicidade de punctums, pois esse detalhe, esse excesso pode surgir a qualquer m om ento, em

decorrência da diversidade de elementos que conformam a

experiência fílmica. Como já observava Christian M etz, "o cinema c uma linguagem composta desde o nível da m atéria de sua expressão. Não se trata somente dos vários códigos que ele tem a sorte de conter, mas também várias linguagens que, de alguma maneira ele guarda em si; linguagens que se distinguem umas das outras por sua própria definição física: fotografia em m ovim ento, organização em seqüência, som fonético, som musical, ruído"^.

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A mais im portante dessas linguagens^ aquela que é a essência mesmo do cinema e que poderíamos apontar como o principal instrum ento do cineasta na construção de seu fdme, é também, conseqüentemente, a que mais criaria condições para a existência de um punctum: a organização em seqüência, Para exemplificar, tomemos o íúm c Architectes Ayorou^ de Jean Rouch. Filmado em 1971, este filme mostra técnicas de arquitetura de uma pequena ilha do Niger. Abandonando m om entaneam ente o registro dessas técnicas, Rouch passa a observar algumas mulheres do vilarejo pilando milho em grandes pilões de madeira. Esse trabalho é acompanhado de uma melopéia, cuja marcação rítm ica é dada tanto pelo ruído do pilão no milho quanto pelo bater de palmas das mulheres que, para fazê-lo, jogam o pilão para o alto.

Para filmar esta cena, o cineasta, se tivesse seguido os cânones da m ontagem clássica, teria intercalado imagens das construções que sugerem o título do filme com imagens das mulheres pilando o milho. A montagem paralela daria assim a idéia de simultaneidade: enquanto os homens constróem casas, as mulheres preparam a alimentação. Ora, o que faz Jean Rouch.^ Filma a atividade doméstica utilizando um travelling circular de 360 graus, que transform a o valor inform ativo da seqüência. Não é mais apenas uma técnica de fabricação de farinha de m ilho que nos é apresentada. A enfatização do ritm o do trabalho, a partir de um plano-seqüência tão expressivo, projeta o espectador para além de sua compreensão intelectual de um processo material, para colocá-lo em contato com a dimensão ritualizante presente numa atividade tão singela. Mas esse "ritual" é difuso e indefinido; sua função, pouco clara. Por isso ele é capaz de

traspassar o studium (o caráter cognoscível das imagens), c ferir o

espectador na sua afetividade.

Um outro bom exemplo pode ser encontrado no clássico tic Flaherty, Nanook of the North. Nanook, o personagem -título, prepara-se para pescar uma foca. Abre um buraco no gelo, instala um mecanismo que lhe perm itirá perceber quando o animal sc aproximar para respirar, e fica à espreita. Antes de tudo um jogo

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de paciência, a caça de Nanook é filmada com paciência por Flaherty. N um só plano temos a espera do esquim ó, a aproximação do animal e sua morte. A conjugação de elementos presentes na seqüência não permitia qualquer corte. Como dizia André Bazin, "quando o essencial de um acontecimento depende da presença simultânea de dois ou mais fatores da açao a

montagem éproibidcC^^^ (gi^ifo nosso).

Esta cena lança o espectador para além da descoberta de uma técnica de caçar inusitada, para além de sua sim patia para com o sorridente esquimó e uma eventual cumplicidade com sua luta contra uma natureza hostil; ela traz em si um excesso que

perturba sua compreensão e o projeta na dimensão do puro

prazer fílmico,

A co-presença obrigatória, num mesmo plano, de todos os elementos envolvidos imediatamente numa determ inada ação, é talvez o aspecto mais evidente da m ontagem no docum entário antropológico. Não é por outra razão que Jean Rouch passou a fazer longos planos-seqüências de até dez minutos (duração máxima do chassi de uma câmera portátil) nos seus últimos filmes. E o caso de Tour ou et Bitti, Les tambours d'avant., realizado em 1971 no Niger. Neste filme, Rouch passeia com sua câmera, durante oito minutos, no meio de um ritual de |iosscssão, no qual são utilizados os tambores arcaicos T ourou e Bitti.

Com base no que foi exposto, acima, podemos concluir provisoriamente este texto propondo que, diferentem ente da loiografia onde o punctum se encontra como que colado à diégese, oii seja, àquilo que é contado na imagem, o docum entário .iniropológico cria a "adição gratuita", o "detalhe inessencial" de íjiir l.ilava Th. G ontier a partir da mise en scène do cineasta, ou

»1 partir da maneira como este apresenta a manifestação

vaila se servindo dos elementos próprios da linguagem

unniM ií)gráfica. D ito de outra forma, a existência de um

no fihne antropológico é dependente do encontro bem

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sucedido de dois sistemas de apresentação: a auto-apresentaçao das pessoas filmadas e a apresentação do cineasta. Nos exemplos citados esta última se manifestou através de planos-seqüência que privilegiaram a co-presença dos diversos com ponentes envolvidos na auto-apresentação do fenômeno observado. Desnecessário dizer que esse mecanismo não surtirá, obrigatoriam ente, o mesmo efeito se aplicado a um qualquer outro tipo de auto- apresentação, Não se trata, portanto, de nenhum a receita ou fórmula infalíveis. A perfeita integração das duas formas de apresentação resulta, antes de tudo, do talento do cineasta. E da sua capacidade de escolher a melhor forma de registrar a realidade que tem diante dos olhos que dependerá a qualidade de seu filme, a qualidade de levar o espectador para além da inteligibilidade do studium, deixando-o ser atingido pelo

punctum, veículo do prazer cinematográfico. Como dizia Jean

Rouch, "além de informar, todo filme deve ser tam bém um poema".

Referências

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