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O MOVIMENTO ANTIVACINA NO BRASIL: BOATOS E AS CONDIÇÕES DE SUA DIFUSÃO NA SOCIEDADE ( )

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985 O MOVIMENTO ANTIVACINA NO BRASIL: BOATOS E AS CONDIÇÕES DE

SUA DIFUSÃO NA SOCIEDADE (2017-2018)

Thiago Machado Garcia1

Resumo: Em períodos de tensões políticas, temos a sensação aparente de um aumento na disseminação de boatos entre os grupos sociais e até mesmo notícias falsas veiculadas nos canais oficiais de informação. Foi comum a circulação dessas em meio a campanha de Donald Trump para as eleições nos EUA em 2016, nas manifestações contra a presidente Dilma Rousseff no mesmo ano e até mesmo recentemente, no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco em março de 2018 no Rio de Janeiro. No Brasil, vários outros momentos de instabilidade política, como as eleições em 2018 apresentam as mesmas características. No entanto, os boatos fazem parte das relações humanas e não aparecem somente em momentos de tensões políticas, catástrofes e demais crises. Eles circulam o tempo todo, em diferentes intensidades. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar boatos referentes às últimas campanhas de vacinação no Brasil. E, consequentemente, busca compreender as condições que levam a população acreditar nessas falsas histórias que circulam das mais variadas formas, oralmente, via Facebook, Twitter e também pelo aplicativo de mensagens WhatsApp, uma rede de comunicação que tem aumentado consideravelmente a propagação de boatos e notícias falsas.

Palavras-chave: Boatos; Vacinação; Notícias Falsas; História do Presente;

Nos últimos anos uma expressão estrangeira passou a fazer parte do cotidiano da sociedade brasileira, as “fakenews”(em tradução literal, as falsas notícias) se tornaram muitas vezes as protagonistas nas conversas corriqueiras, nas interações virtuais e até mesmo nas decisões políticas. Atualmente, basta o acesso a qualquer dispositivo de comunicação com acesso a internet e será muito provável que você tenha contato com algum veículo de informaçãoque comente sobre essas notícias ou até mesmo o contato direto com as mesmas. De modo geral, a disseminação delas possui uma relação estreita com momentos de crise política, tensão social ou qualquer situação que promova o sentimento de instabilidade na sociedade. A vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos (EUA) em 2016, por exemplo, tem uma grande parcela de votos creditada à divulgação de notícias falsas durante sua campanha que auxiliaram na conquista de popularidade e, consequentemente votos dos estadunidenses. Dentre as mais difundidas diziam que Barack Obama seria homossexual e um muçulmano radical

1 Mestrando e bolsista CAPES do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade

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986 que ocupava o maior cargo na Casa Branca. Durante o processo de investigação iniciado pelo congresso estadunidense, o Facebook encontrou cerca de 3000 perfis falsos que incentivavam os usuários a clicarem em conteúdos desse tipo e cobravam pela publicidade de acordo com o número de visitas nessas páginas (EL PAÍS, 2017).

No Brasil, o cenário não é muito diferente no que se refere a intensa quantidade de notícias falsas em períodos de instabilidade política. Após as eleições de 2014, a vitória de Dilma Rousseff gerou uma série de manifestações virtuais e nas ruas, sobretudo por parte dos que se identificavam com parte de sua oposição. Algumas das notícias veiculadas via WhatsApp, Facebook e Twitter era de que o governo pretendia confiscar a poupança, assim como aconteceu no período Collor, outra dizia que o ex-presidente Lula havia convocado um exército de guerrilheiros que estavam escondidos na Amazônia para dar início a uma guerra civil em virtude da oposição. Em março de 2018, uma série de informações falsas sobre a morte da vereadora Marielle Franco também tomou um espaço considerável nos mesmos meios de comunicação, primeiro como boato nas redes sociais por pessoas ordinárias e logo em seguida como notícias em canais oficiais (ORTELLADO et al, 2018). Pouco tempo após a prisão do ex-presidente Lula, em abril de 2018, também circularam informações de que ele estava em crise de abstinência de bebidas alcoólicas durante o cumprimento de sua pena em Curitiba.

No Brasil, num movimento de investigação semelhante ao realizado pelo congresso dos EUA, o Facebook retirou do ar 196 páginas e 87 perfis ligados a produção de falsas notícias do Movimento Brasil Livre (MBL) a fim de diminuir a circulação de desinformações nas vésperas das eleições de 2018 (REUTERS, 2018). Ou seja, é possível perceber com os exemplos acima que em momentos de instabilidade política, há um movimento crescente de notícias falsas e,de forma proporcional, a tentativa de grandes instituições evitarem a circulação dessas na sociedade.

Contudo, a propagação de rumores não é algo exclusivo de momentos como os apontados, ela acontece o tempo todo na sociedade, é algo inerente a atividade de interação humana. É comum, por exemplo, numa conversa informal alguém “ouvir-dizer” sobre algo relacionado a outra pessoa. As fofocas (sejam elas elogiosas ou depreciativas), por exemplo, comumente estão repletas de crenças e informações duvidosas a respeito de pessoas, mas é justamente a possibilidade (ou a falta dela) de ser

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987 verdade é que faz com que elas sejam sustentadas pelos indivíduos e que circulem nos grupos sociais que se relacionam.

Nesse sentido, o presente artigo não será focado estritamente nasfakenewsenquanto uma notícia veiculada nos canais oficias de comunicação, mas sim naquilo que costuma antecedê-la, o boato. Segundo o dicionário Houaiss (2009), o boato é uma “[...] notícia de fonte desconhecida, muitas vezes infundada, que se divulga entre o público; qualquer informação não oficial que circula dentro de um grupo; bochicho” [...]. Seu significado se assemelha também ao de rumor, de um barulho, um ruído que corre entre os indivíduos de maneira informal em determinado grupo social. Assim, oboato pode ser considerado uma narrativa e um processo de transmissão de narrativas ao mesmo tempo. É informação e um processo de troca de informações, pois é possível que, com o contato dos indivíduos, mais pessoas acrescentem dados que incrementem a narrativa inicial, o que pode até modificar o boato primário de acordo com sentidos estabelecidos a assimilados pelo grupo social.

O boato, rumores ou até mesmo as fakenews, não são elementos novos da nossa sociedade como aparentam ser. E também não estão presentes somente em momentos de crise, catástrofes ou quaisquer outros de tensão social. Eles circulam o tempo todo, em diferentes intensidades, em todos os grupos sociais. Contudo, foi no final do século XIX que surgiram as primeiras pesquisas em grande escala para buscar compreender a relação do fenômeno das multidões junto do aparecimento de boatos, queassociava a criação, disseminação e a crençanesses a uma patologia social (LE BON, 1980). Ou seja, o boato enquanto uma doença que surgia em meio às multidões, onde os indivíduos que o compunham e difundiam teriam sua capacidade mental e raciocínio crítico reduzidos por fazerem parte de um grupo, principalmente por se deixarem sugestionar pelos outros, sobretudo os líderes de multidões. Para Le Bon (1980), especialista nos estudos das multidões, a unidade mental causada pela aglomeração de indivíduos era prejudiciala capacidade crítica individual, tornando o homem um autômato, alguém que se tornou impotente de se levar sozinho, mais primitivo e com alguns degraus a abaixo no processo civilizatório.

Em contrapartida, cerca de três décadas após os apontamentos de Le Bon sobre a relação dos boatos com as multidões, Marc Bloch (1995) analisou enquanto uma experiência pessoal a propagação de falsas notícias na primeira guerra no início do século XX de modo a contestar as ideias propostas inicialmente. Para o autor, os boatos

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988 não eram sintomas de uma patologia social, mas sim resultado(s) das ações dos os indivíduos imersos a determinadas situações, no caso analisado, a guerra.

As falsas notícias, em toda a multiplicidade das suas formas – simples boatos, imposturas, lendas – preenchem a vida da humanidade. Como nascem? A que elementos vão buscar a sua substância? Como se propagam, como ganham amplitude à medida que passam de boca em boca ou de escrita em escrita? Não há questão que, mais do que esta, mereça apaixonar quem quer que tenha o gosto pela reflexão sobre história. [...] o erro só se propaga, só se amplia, só vive com uma condição: encontrar na sociedade em que se difunde um caldo de cultura favorável. Nele, inconscientemente, as pessoas exprimem os seus preconceitos, os seus ódios, os seus medos, todas as suas emoções fortes [...] (BLOCH, 1995, p. 179-180).

A disseminação de um boato está permeada de um caldo de cultura favorável, ou seja, é necessário um ambiente que desperte incertezas e outros sentimentos nos indivíduos para que ele seja aderido pelos grupos sociais. A guerra, como é o caso da análise de Bloch (1995), funciona como um terreno rico para a difusão de boatos pela forma em que se dão as relações sociais nesse espaço. Seria impossível reproduzir esse terreno em uma experiência de laboratório, por exemplo, pois não haveria o mesmo caldo de cultura daqueles que estavam no campo de batalha sob a pressão do risco de vida, doenças, condições climáticas e psicológicas. Os boatos durante a guerra eram críveis para os soldados que estavam nas trincheiras, onde eram estabelecidas as relações sociais naquele tempo-espaço. Dessa forma, diferente de Le Bon (1980), a difusão de boatos não evidencia uma patologia social, mas permite identificar características comportamentais de indivíduos, os preconceitos, ódios, medos e outras emoções fortes nas relações sociais.“[...] boatos são apenas uma forma de interpretar um ambiente de incertezas, de reforçar os laços e convicções entre um grupo engajado ou de perceber os sinais da abertura de oportunidades para grupos de interesse” (MAGALHÃES DE OLIVEIRA, 2016).

Caso a perspectiva patológica fosse adotada, a circulação dos boatos e das falsas notícias seriam entendidas enquanto práticas comuns apenas nos momentos de crise, colapso, de ruptura com o cotidiano, além de associada a uma anomia/crise social, uma doença coletiva em determinado grupo social. No entanto, para outros pesquisadores, um dos principais equívocos dessa interpretação é de ignorar os boatos e rumores enquanto uma prática de comunicação cotidiana (LEFEBVRE, 1986; SHIBUTANI, 1966; ELIAS, 2000). Em outras palavras, essa prática é parte da própria natureza das

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989 relações humanas em quetais histórias criadas (por mais absurdas que pareçam ser a determinados olhos/ouvidos) geram o campo de incertezas sobre sua veracidade, “[...] enquanto prática de comunicação, eles são certamente uma chave para entendermos os sentidos que os participantes dão à sua ação [...] (MAGALHÃES DE OLIVEIRA, 2016, p. 03, grifos originais)

Dessa forma, a dissociação da perspectiva psicopatológica na análise da difusão de boatos é também fundamental para que se possa investigar os que circulam atualmente na sociedade, assim como o proposto nesse artigo, o caso do movimento antivacina no Brasil nos últimos meses e os boatos relacionados a eficácia (ou a falta dela) das vacinas distribuídas para a população. Por se tratar da análise do tempo presente ao qual também participo,os objetivos aqui propostos têm seus limites na medida em que a retrovisão, a “arma final do historiador” (HOBSBAWM, 2013, p. 323), não é utilizada pela ausência de tempo decorrido do objeto pesquisado. Nesse sentido, a proposta do artigo é de investigar os possíveis caminhos e condições que permitem a circulação de tais histórias.Mesmo após as recentes conquistas no alto número deimunização de doenças para uma grande parcela da população no país, como a poliomielite e a rubéola, em decorrência de grandes campanhas de vacinação no território nacional, os boatos continuam a fazer parte do cotidiano delas e possivelmente interferem nos resultados da imunização. Pouco mais de 110 anos após a Revolta da Vacina, o Brasil vive novamente condições semelhantes de desinformação da população sobre os efeitos da vacina? Certamente não, no entanto, busco compreender os traços de liquidez do caldo de cultura em que estamos inseridosem que parte da população opta por não receber a imunização de doenças através de vacinas.

Os boatos na área da saúde são bastante comuns inclusive, não é necessário regredir muito no tempo para notar a presença de rumores relacionados a campanhas de imunização que já circularam na sociedade. Um dos casos mais famosos relacionados a vacina ocorreu com um pesquisador britânico em 1998 quando, junto de uma dezena de autores, publicou um artigo na The Lancet, uma revista britânica renomada na área da medicina, que associava a vacina tríplice viral (rubéola, sarampo e caxumba) ao autismo. Pouco tempoapós a publicação e circulação das informações do mesmo, muitas pessoas em toda a Europa, sobretudo crianças, deixaram de receber a vacina com o receio da ocorrência de autismo (ainda que não tivesse ocorrido nenhum aumento nos índices de autismo naquele período). O número de surtos e óbitos decorrentes dessas

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990 doenças aumentou após a ação do pesquisador. Anos mais tarde, houve a constatação que o artigo era fraudulento e especulações sobre a intencionalidade da difusão do boato ligada a interesses econômicos, no entanto, surtos das doenças já haviam espalhadoem algumas regiões do continente europeu e o boato já havia se espalhado para outros continentes (THE NEW YORK TIMES, 2010).

Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil confirmou 1098 casos e 340 óbitos entre 1º de julho de 2017 e 20 de março de 2018 em decorrência da febre amarela. O mesmo período em 2017, foram confirmados 632 casos e 201 óbitos. Além do aumento no número de casos, regiões que nunca tiveram recomendação da vacina e com grandes contingentes populacionais passaram a ter a circulação do vírus (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018). Além disso, o órgão não atingiu a meta de vacinação proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nos casos de febre amarela no país. Em 1904, durante a revolta, umas das principais causas da recusa às vacinas era a falta de informação da população a respeito dos benefícios da campanha vacinal.Contudo, atualmente, ainda que existam as grandes campanhas de conscientização sobre as vacinas, uma série de boatos que colocam em questão a eficácia e os interesses políticos inerentes em tais campanhascontinuam a circularna população, sobretudo nasredes sociais, as quais cumprem um papel importante para as baixas nos dados de imunização (SACRAMENTO, 2018).

O aplicativo de mensagens multimídia, ligações e chamadas de vídeo WhatsApp é uma das principais novidades dos últimos no que se refere ao local de difusão de boatos entre os indivíduos. Diferente de outras redes sociais, o aplicativo permite certa privacidade ao usuário pelo fato de poder conversar individualmente com alguém, ou então, em grupos com outros usuários. Sobretudo nos grupos, a ocorrência de mensagens de “conteúdo duvidoso” é bastante comum, em alguns casos, eles saem da condição de boatos, se tornam falsas notícias veiculadas em canais oficiais de comunicação etomam outras proporções, como foi o caso dos boatos que relacionavam Marielle Franco, vereadora eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) executada a tiros em abril de 2018, ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro (ORTELLADO et al, 2018). Nesse sentido, quais seriam as motivações para que falsas notícias pudessem ter credibilidade para aqueles que a compartilham? Certamente, o caldo de cultura favorável ao qual o boato se difundiu. O momento/tempo, o

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991 ambiente/espaço e o grupo social que estimula a circulação dessas histórias são fundamentais para tal análise.

No tocante às vacinas, os últimos 12 meses (julho de 2017/julho de 2018) foram repletos de campanhas de vacinação, números baixos de imunização e uma quantidade considerável de informações falsas, sobretudo no WhatsApp. Dentre elas, uma apontava que a vacina contra a febre amarela levava ao óbito em 50% dos casos, o apontamento segundo a mensagem, era de um dermatologista que fez o alertano programa do radialista Roberto Canazio, conhecido por levantar polêmicas na emissora em que trabalha. Outra dizia, nas vésperas da campanha de vacinação contra o sarampo em 2017, que as crianças que não tomam vacinas são cinco vezes mais saudáveis. Outro boato alarmava os usuários sobre um caso de que uma garota virgem havia engravidado no nordeste do Brasil após tomar a vacina contra a febre amarela e que já teria ocorrido a injeção de espermatozoides através da vacina contra a gripe em outra jovem nos EUA,alguns meses antes do suposto caso brasileiro. Até mesmo Bill Gates, um dos fundadores da empresa Microsoft, foi alvo da boataria numa mensagem que distorcia um dado sobre o crescimento da população, acompanhado de um vídeo em inglês, o texto “transcrevia” uma fala de que as vacinas serviam para esterilizar, matar e reduzir a população mundial. Outra mensagem acompanhada de um vídeo especulava que a febre amarela é uma farsa criada pelo governo para vender vacina, chamar atenção da população para que os governantes possam desviar recursos públicos.

É importante ressaltar sobre a dificuldade de apresentação de referências sobre as mensagens citadas, uma vez que muitasdessas sequer chegaram a circular em meios de comunicação oficiais, se restringiram aos dispositivos pessoais de comunicação. Contudo, existem espaços na web que se dedicam a investigar sobre os boatos que circulam nas redes, como é o caso do portal Boatos.org, que busca, junto da colaboração dos usuários, investigar e criar um compilado dessas informações falsas a fim de auxiliar o usuário a lidar com o conteúdo que circula na internet.

Na campanha de imunização do vírus do papiloma humano (HPV), em meados de 2017, circulou no WhatsApp a informação de que o Ministério Público Federal (MPF) havia proibido (ainda que não seja da competência do órgão uma ação proibitória) a vacina no país por conter metais pesados, vírus transgênicos e conservantes, ao qual recebi no meu aparelho pessoal em um grupo de WhatsApp que participam familiares. Na mensagem é possível perceber algumas características dos

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992 boatos que circulam nas redes: a mensagem é alarmista, informal, possui um público direcionado, propicia um ambiente de incerteza e incita determinado tipo de comportamento do leitor. Possivelmente, o caldo de cultura favorável para a emissão de mensagens como essa está ligado ao preconceito dos pais, uma vez que há o direcionamento para eles, sobre a vacinação contra a HPV, pois uma das formas mais comuns de transmissão do vírus se dá por relações sexuais. Nesse sentido, as campanhas de vacinação inicialmente visavam atingir adolescentes, meninos e meninas em condições de início da vida sexual. Os pais, por sua vez, inconscientemente evidenciam na campanha contra a vacina os preconceitos e medos sobre a saúde e vida sexual de seus filhos.

Figura 01. Boato sobre a campanha de vacinação contra o vírus do papiloma humano (HPV). Outubro de

2017, do autor.

Como podemos observar, o repertório é vasto e o terreno da saúde é bastante fértil para a difusão de boatos, sobretudo nos WhatsApp nos últimos anos. No entanto, por mais absurdo que possam ser as informações contidas nas mensagens, elas são compartilhadas nos grupos sociais aos quais atribuem sentidos que parecem dar credibilidade às narrativas contidas. Paralelamente a circulação dos boatos citados, os dados relacionados a imunização da população por meio das vacinas são cada vez mais baixos em relação aos últimos anos,como vimos anteriormente. Por não se tratar de uma rede social de grande exposição como o Twitter e Facebook, é difícil mapear a maneira pela qual os boatos se espalham para a população pelo WhatsApp, tanto pela restrição de contato com essas fontes e suas possíveis alterações no conteúdo ao longo da transmissão para outros usuários e quanto o conhecimentodas características dos grupos que as pessoas participam. No entanto, a hipótese é de que tendo o WhatsApp como ambiente de propagação, tais boatosse tornam mais críveispor geralmente serem feitas por pessoas de convívio cotidiano, membros da família, amigos próximos e colegas de trabalho que compartilham tais informações (SACRAMENTO, 2018), semelhante ao que ocorreu no caso de Marielle Franco (ORTELLADO et al, 2018). Possivelmente a

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993 proximidade desses indivíduos possibilita um sentimento de confiançaque as pessoas não possuem com canais oficiais ou órgãos públicos, como o Ministério da Saúde. Ou seja, a credibilidade dessas informações está associada ao nível de proximidade dos indivíduos, o que permite a familiaridade com o caldo de cultura por partes desses, um ambiente de maior confiança para se tratar determinados assuntos, como a saúde.

Para além das questões relacionadas à saúde, o cenário de instabilidade política no Brasil nos últimos anos também contribui para que os brasileiros confiem cada vez menos nos representantes políticos e instituições públicas (ESTADÃO, 2017). Desse modo, o ambiente de incertezas na política também pode ser considerado um elemento importante para esse caldo, e, consequentemente para os números baixos de imunização das campanhas de vacinação do período analisado, uma vez que que parte da população deixa de acreditar nas narrativas do Ministério da Saúde para dar lugar aos boatos que tiveram conhecimento. Os efeitos da ausência de credibilidade da população em relação aos órgãos públicos podem ser percebidos com a campanha recente do Ministério da Saúde:

Figura 02. Página inicial do site do Ministério da Saúde. Julho de 2018.

De um lado, o aumento da circulação de boatos que questionam os efeitos e os interesses políticos ligados às campanhas de imunização da população através de vacinas. Do outro, a propaganda de conscientização sobre a importância da vacinação na sociedade e o “perigo” intrínseco às notícias falsas. A tentativa do governo de refutar os boatos relacionados à vacinação busca conferir a eles o caráter de uma mentira disseminada, no entanto, deixam de refletir na possibilidade de que uma das motivações para a crença no que o ministério aponta ser falsa notícia é justamente a ausência de credibilidade das instituições públicas ligadas à política, sobretudo em momentos de crise e incertezas.

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994 O erro comum às autoridades [...] é a crença de que boatos sempre trazem a marca da manipulação, ignorando seu caráter próprio de deliberação coletiva. E, na verdade, ainda que houvesse propósito deliberado na difusão dessas falsas notícias, o que importa, [...] é compreender as causas de sua credibilidade entre aqueles que as compartilharam (MAGALHÃES DE OLIVEIRA, 2016, p. 5)

A maneira pela qual os boatos são utilizados é que devem ser o principal objeto de estudo para compreendê-los na sociedade. A veracidade ou a falta dela não são os elementos fundamentais para analisar a ocorrências de falsas notícias, o que importa é a investigação sobre a liquidez presente nos usos dessas narrativas, uma vez que os boatos são formas de comunicação que se expressam de maneiras diversas em diferentes conjunturas na sociedade. Nesse sentido, são as próprias conjunturas, o repertório de determinado grupo social que explica o motivo de serem críveis ou não. Na propaganda da página inicial do portal do ministério da saúde, a preocupação do governo não está focada nesses elementos, mas sim na tentativa de apresentar as inverdades contidas nas dezenas de mensagens que circularam nas redes sociais. É ignorada a condição de que “[...] se o boato ganhou aceitação é porque ele ia na direção em que os pensamentos de todos já estavam indo [...]” (MAGALHÃES DE OLIVEIRA, 2016).

Como apontado, esse artigo foi escrito em meio a propagação dos boatos sobre as campanhas de vacinação o que consiste num olhar muito próximo ao objeto de estudo e ausência da retrovisão enquanto a principal arma do historiador segundo Hobsbawm (2013). No entanto, ao investigar o terreno pelo qual esses rumores e falsas notícias circulam, é possível delinear e perceber a liquidez presente nas relações humanas que permitem a criação dessas narrativas. Para além dos números baixos de imunização, nos próximos anos, ou então, nos próximos meses, a sociedade brasileira deverá ter contato com as consequências da difusão desses conteúdos que o momento de incertezas possibilitou. Da mesma forma em que toda análise da história é uma análise realizada a partir do presente (HOBSBAWM, 2013, p. 317), a circulação dos boatos faz parte da conjuntura de determinado grupo, de determinado momento histórico e fazem sentido para os sujeitos envolvidos nessa situação específica do presente.

Assim como existem sites e grupos específicos para criar falsas notícias, também existem grupos que buscam combate-las, embora dificilmente um combate contra as falsas notícias será eficaz na mesma proporção de sua propagação, uma vez que a liberdadedo ambiente da internet proporcionou a deliberação de boatos de maneira

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995 muito rápida e com uma área muito maior de atingimento que muitos dos bochichos face a face nos grupos sociais. No entanto, é preciso lembrar que o conteúdo dos boatos tende a ser absurdo para determinado grupo que o observa, mas faz sentido para outro que o compartilha. Nesse sentido, compreender o boato enquanto um elemento de comunicação entre os grupos sociais e a maneira pela qual eles são utilizados na sociedade é que devem ser os principais objetivos do historiador ou qualquer outro indivíduo que tenha contato com esse tipo de fonte, pois a partir dessa perspectiva é que serão delineados os paradigmas de análise dessaatividade na sociedade.

REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. Reflexões de um historiador sobre as falsas notícias da guerra. In: História e Historiadores: Textos reunidos por Étienne Bloch. Tradução de Telma Costa. Editorial Teorema, 1995.

EL PAÍS. Morre o rei das ‘fakenews’ a quem se atribui a vitória de Trump. El País Internacional.São Francisco, 28 de set. 2017.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2000.

ESTADÃO, Desconfiança nos políticos aumenta, diz pesquisa Ipsos. O Estado de São Paulo, 20 de out. 2017.

HOBSBAWM, Eric. O presente como história. In: HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

LE BON, Gustav. Psicologia das multidões. Tradução de Ivone Moura Delraux. Edição Roger Delraux, 1980.

LEFEBVRE, Georges. El GranPanico de 1789. Tradução de Maria Elena Vela Rios. Editorial Paidós, 1986.

MAGALHÃES DE OLIVEIRA, Julio Cesar. Boatos, crises e oportunidades políticas na Antiguidade Tardia. Dossiê: A Antiguidade Tardia e suas diversidades. História (São Paulo) v. 35, e89, 2016.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Febre amarela: Ministério da Saúde atualiza casos no país. 21 de mar. 2018. Disponível em:

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<http://portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-996 saude/42857-febre-amarela-ministerio-da-saude-atualiza-casos-no-pais-4>Acesso em: 20 jul. 2018.

ORTELLADO, Pablo; RIBEIRO, Márcio Moretto. A difusão dos boatos sobre Marielle Franco: do WhatsApp aos sites de notícias. Monitor do debate político no meio digital, 2018.

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SACRAMENTO, Igor. A saúde numa sociedade de verdades. Reciis, jan.-mar.; 12(1): 4-8, 2018.

SHIBUTANI, T. Improvised News: A Sociological Study of Rumor. Indianapolis: The Bobbs-Merill Co, 1966.

THE NEW YORK TIMES. Journal Retracts 1998 Paper Linking Autism to Vaccines. 02 fev. 2010.

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