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Uma análise Pós-Colonial na obra Robinson Crusoé / A Post-Colonial analysis on Robinson Crusoé

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 10, p. 78245-78255 oct. 2020. ISSN 2525-8761

Uma análise Pós-Colonial na obra Robinson Crusoé

A Post-Colonial analysis on Robinson Crusoé

DOI:10.34117/bjdv6n10-302

Recebimento dos originais:01/10/2020 Aceitação para publicação:14/10/2020

Jordy Dantas Maia

Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia (2020). Licenciado em Letras e Respectivas Literaturas pela Universidade Federal de Rondônia (2017).

E-mail: jordyy_84@hotmail.com

Jorge Cleibson França da Silva

Possui graduação em Letras Português e Respectivas Literaturas, pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR (2017). Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos

Literários, da turma de 2018/2, do Mestrado em Estudos Literários, da UNIR em Porto Velho (RO).

E-mail: jorgecleibson@hotmail.com

Andréa Moraes da Costa

Doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/UNESP (2016), Mestrado em Linguística pela Universidade Federal de Rondônia/UNIR

(2006) e graduação em Letras Português/Inglês e suas respectivas literaturas pela Faculdade Franciscana/Rio Grande do Sul (1996). É docente da Universidade Federal de Rondônia/UNIR,

atuando no Departamento de Línguas Estrangeiras. Líder do Grupo de Estudos da Tradução da Amazônia - GETRA, credenciado pelo CNPq. É Docente do Programa de Mestrado Acadêmico

em Letras, na Área de Estudos Literários (PPGMEL) da UNIR. E-mail: andrea@unir.br

RESUMO

Este artigo apresenta uma sucinta análise do romance Robinson Crusoé, do escritor inglês Daniel

Defoe, utilizando abordagens dos pensamentos dos estudos pós-coloniais. Publicado em 1719, a obra Robinson Crusoé é considerada o primeiro romance realista escrito em língua inglesa. Até os dias atuais, o romance já possui mais de 700 edições, traduções, adaptações, releituras e reescritas, além de adaptações cinematográficas e animações. Apresentando os relatos de aventura da personagem que nomeia o romance e como ele sobreviveu em uma ilha por vinte e oito anos, a obra ganhou apreço do público desde sua primeira publicação, pois durante o período de seu lançamento estava em ascensão os meios impressos de comunicação e os leitores ficavam entusiásticos por narrativas de viagem em lugares exóticos, mistérios e aventuras. O trabalho faz uso do método bibliográfico, sendo norteado pelos autores: Aimée Césaire (1978), Albert Memmi (2007), Frantz Fanon (1965) e Thomas Bonnici (2012; 2019). Após a análise da obra, percebe-se que ela ser compreendida como “colonizadora” visto que ela apresenta traços colonizadores, a saber: a individualização, o poder, o domínio, o preconceito e a submissão expostos por meio das personagens Robinson Crusoé e Sexta-Feira.

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ABSTRACT

This article presents a brief analysis of the novel Robinson Crusoeby the English writer Daniel

Defoe, using approaches from the thoughts of postcolonial studies. Published in 1719, Robinson

Crusoe is considered the first realistic novel written in English. To date, the novel has more than

700 editions, translations, adaptations, rereadings and rewrites, as well as film adaptations and animations. Featuring the adventure accounts of the character who names the novel and how he survived on an island for twenty-eight years, the work gained public appreciation since its first publication, because during the period of its release the printed media was on the rise and readers were enthusiastic about travel narratives in exotic places, mysteries and adventures. The work makes use of the bibliographic method, being led by the authors: Aimée Césaire (1978), Albert Memmi (2007), Frantz Fanon (1965) and Thomas Bonnici (2012; 2019). After analyzing the work, it is perceived that it be understood as "colonizing" since it presents colonizing traits, namely: individualization, power, dominance, prejudice and submission exposed through the characters Robinson Crusoé and Friday.

Keywords: Colonialism, Literature, Post-Colonialism, Robinson Crusoe.

1 INTRODUÇÃO

Os Estudos Pós-Coloniais começaram a ascender a paritr do século XX, com as lutas das nações pela sua independência, suas buscas de resgate cultural, social e histórico. No entanto, estes estudos não abordam somente o fator de libertação nacional, mas também outras temáticas, tais como: ético racial, gênero ou sexualidade, político e social.

A crítica Pós-Colonialista concede as interpretações e métodos de análises que envolvem o Colonialismo (caracterizado como o modo empregado para a exploração cultural) e Descolonialismo ou Descolonização (processo de revelação, desconstrução e libertação do poder colonial pelos colonizados) de produções literárias escrita pelos povos colonizados pelos europeus durante os séculos XV e XXI (BONNICE, 2012, p. 19).

As abordagens acerca desses assuntos são desenhadas pelos discursos entre colonizador e colonizado, e como o primeiro insere fortemente suas ideologias sob o segundo, a exemplo do que ocorre na linguagem e cultura, que são as maiores marcas do colonialismo desenvolvida pela presunção de superioridade. Na literatura, por exemplo, encontram-se nos textos literários experiências de colonização e que trazem em seu teor algum contexto cultural. De acordo com Thomas Bonnici (2012, p. 20),

[...] a crítica pós-colonialista se preocupou com a preservação e documentação da literatura produzida pelos povos degradados como ‘selvagens’, ‘primitivos’ e ‘incultos’ pelo imperialismo; com a recuperação das fontes alternativas da força cultural de povos colonizados; com o reconhecimento das distorções produzidas pelo imperialismo e mantidas pelo sistema patriarcal.

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Nessa perspectiva, percebe-se que guardar, estudar, reescrever e reler os textos escritos tanto por autores relegados à marginalidade, quanto por aqueles que se julgam superiores, neste caso, o branco europeu, são aspectos importantes que desenvolvem os estudos pós-coloniais e mostram as consequências da colonização aos povos desfavorecidos.

Em virtude disso, surgiu a ideia deste trabalho, com o qual se objetiva apresentar uma análise sucinta de “cânone literário1” Robinson Crusoé (2012), do escritor inglês Daniel Defoe, utilizando

abordagens dos pressupostos da crítica Pós-Colonial. A obra em estudo teve sua primeira edição publicada no século XVII, na Inglaterra, em pleno crescimento dos meios impressos de comunicação. Agora, no século XXI, o romance vai além das páginas dos livros, sendo adaptada, por exemplo, para filmes e animações que narram a vida e as aventuras de Robinson Crusoé.

Assim, em um primeiro momento, apresenta-se na segunda parte deste trabalho, uma biografia do autor, bem como uma breve análise da narrativa, posteriormente, a abordagem pós-colonial no texto Defoediano, a fim de evidenciar o modo como a narrativa traz traços colonizadores em seu interior, tendo como cernes principais a dominação e o silêncio diagnosticados através da relação entre suas personagens centrais Robinson Crusoé e Sexta-Feira.

Para alcançar o objetivo deste trabalho, o método empregado na pesquisa foi de cunho bibliográfico e para nortear os estudos, utilizou-se os pensamentos dos teóricos dos Estudos Pós-Coloniais: Aimée Césaire (1978), Thomas Bonnici (2012; 2019), Frantz Fanon (1965) e Albert Memmi (2007).

2 O AUTOR E OBRA

Filho de James Foe, Daniel Foe nasceu em Londres em 1660 e por volta de 1695 mudou seu nome para Daniel Defoe. Homem de negócios e empresário ambicioso, inicialmente, empreendeu no comércio de meias em Cornhill, com isso alcançou certa riqueza. No entanto, devido ao naufrágio do navio que transportava seus bens foi à falência, em consequência disso, sucedeu-se a prisão de Defoe por dívidas em 1692.

Após conseguir a liberdade através do perdão do então rei da Inglaterra Guilherme III, Defoe inicia sua jornada como agente secreto do rei, nesse mesmo período cria sozinho o Review, jornal escrito por ele com publicações que favoreciam o governo. Anos depois, foi preso novamente após

1 Cânone literário são os textos considerados, pelos críticos conservadores, como universais, aqueles que transcendem

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publicar a sátira The Shortest Way with the Dissenters2, paródia que retratava as posições extremistas da Igreja Anglicana. Na época, a publicação foi considerada inflamatória pelo governo.

Com sua soltura conquistada novamente graças ao perdão real, dessa vez concedido pela rainha Ana, Defoe volta a trabalhar como agente do governo. Sendo uma pessoa versátil, visto que acumulava diversas funções, pois era escritor, agente secreto, mercador e empresário, Defoe ascendera em suas produções literárias. Ao todo, durante toda a sua vida, o escritor deixou mais de 500 obras dos mais variados campos, a saber: economia, literatura, superstição, manuais de condutas morais, tratados teológicos, geografia, matrimônio e psicologia.

Defoe faleceu em 24 de abril de 1731, em Londres, deixando sua marca na literatura inglesa, sendo considerado o primeiro verdadeiro romancista inglês. Suas principais obras são: Robinson

Crusoé (1719), Roxana (1724), Moll Flanders (1722), Jure Divino (1706), Um diário do ano da peste (1722) e Coronel Jack (1722).

Lançado em abril de 1719 em pleno boom nos meios impressos de comunicação, a narrativa

Robinson Crusoé, independente do caráter que conquistaria posteriormente diante dos seus leitores,

foi escrita para ser vendida no mercado emergente dos textos impressos. De acordo com John Richetti (2012, p. 8), a obra é um dos livros mais reeditados e traduzidos do mundo, possuindo até os dias atuais, mais de setecentas edições, traduções, imitações e reescritas, além de animações, releituras e adaptações cinematográficas.

Além de mostrar o lado aventureiro, o autor aborda na narrativa temas conflitantes, tais como as dicotomias: religião x comércio-capitalismo e, devoção x ambição. Essas temáticas podem ser observadas não somente no protagonista do romance, mas também na vida do autor. Diante disso, o cerne da obra se situa na análise reflexiva que o narrador-personagem faz sobre sua própria vida. Desta maneira, o livro deixa de ser somente uma narrativa de aventura e torna-se, ainda, um drama psicorreligioso como demonstrado a seguir:

[...] Com essas reflexões convenci meu espírito não só a se conformar com a vontade de Deus naquelas circunstâncias, mas ainda a cultivar uma gratidão sincera por minha condição. Eu, que ainda vivia, não devia me queixar, tendo em vista que não fora submetido ao devido castigo por meus pecados. Recebia tantas graças, que não teria motivo de esperar naquela parte do mundo, que nunca mais devia me queixar da minha condição e sim me regozijar, dando graças todo dia pelo pão cotidiano que só mesmo uma legião de prodígios poderia me trazer. Que devia considerar ter sido alimentado à custa de milagres, na verdade tão grandes quanto Elias ter sido sustentado pelos corvos; na verdade, por uma série de milagres (DEFOE, 2012, p. 126).

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Com essa verossimilhança entre o real e o imaginário, o escritor traz na obra o relato detalhado da sobrevivência do narrador-personagem na ilha deserta, incluindo uma complexa representação de seu desenvolvimento psicológico e religioso numa solidão alienante e claramente perigosa. Isso acontece em virtude de o personagem encontrar-se sozinho em uma ilha desconhecida e que em certos períodos aparecem nativos que se deslocam até o local para realizarem a prática do canibalismo.

Vale ressaltar, como afirma Richetti (2012, p. 12), que Defoe empregou como inspiração, para a escrita do romance, a história real do escocês Alexander Selkirk (1676-1721) que ficou cerca de cinco anos vivendo sozinho em uma ilha, a saber: o Arquipélago de Juan Fernandéz (atual ilha denominada Robinson Crusoé em homenagem a obra de Defoe), distante cerca de 600 km da costa do Chile, no Oceano Pacífico.

É importante lembrar, ainda, que o escritor mesmo tendo utilizado como norte a história do escocês, faz a mudança de localização da ilha, já que se percebe na leitura da obra que há a mudança do espaço onde os fatos ocorrem. Na realidade, os fatos acontecem no Arquipélago Fernandez e na ficção, eles ocorrem na região do Caribe, visto que a narrativa descreve como a maré que atingia a ilha era influenciada pelo grande rio de Orinoco (atual rio Amazonas).

Defoe, ao utilizar com tamanha maestria o espaço na narrativa, nos proporciona uma realidade ficcional surpreendente, levando-nos a ter uma imagem fixa do lugar, como bem nos diz Yves Reuter (2007, p. 53): “O texto construirá um universo completamente imaginário, um outro possível, mas de maneira tão precisa, tão detalhada, tão realista, que também nós chegaremos a acreditar nele”.

3 UMA ABORDAGEM DOS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS EM ROBINSON CRUSOÉ

A crítica Pós-Colonial nos proporciona uma nova estética em interpretar os textos literários, seja ela de forma política, social, cultural ou sexual, observando minuciosamente a “relação de discurso e poder” (BONNICI, 2019, p. 253). Desse modo, essa nova crítica rompe o dogmatismo imposto pela sociedade conservadora. Nesse viés, Alfredo Bosi (1992, p. 17) esclarece que “saber é poder”, nesse sentido, as forças econômicas, o controle ideológico e cultural alcança os textos literários, uma vez que nas obras literárias se encontram diversos modos de opressão e submissão impostos aqueles considerados inferiores pela hegemonia eurocêntrica-capitalista-patriarcal, a saber: os nativos, as mulheres, os negros e os homossexuais.

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As grandes metrópoles, por serem os centros econômicos, acreditam na sua superioridade intelectual e cultural, subjugando as demais culturas à marginalidade, em consequência disso, constrói-se a relação “sujeito” e “objeto” ou “Outro” e “outro”.

Nesse sentido, podemos realizar uma análise seja ela colonialista, quanto descolonialista na narrativa Robinson Crusoé, dado que no romance se encontram temas que envolvem questões de dominação, submissão, raça, silêncio e religião. O enredo, narrado em primeira pessoa – primeira característica colonizadora, o silenciamento – estar concentrado na história de sobrevivência do seu personagem principal que nomeia o romance.

Terceiro filho da família Kreutznaer3, posteriormente Crusoé, Robinson desde cedo tinha

pensamentos errantes, gostava muito de navios. No entanto, seus pais não o incentivavam, visto que eles já haviam perdido dois filhos mais velhos, um em combate de guerra e o outro, de acordo com a história, nunca se soube de notícias.

Com seus 18 anos, Robinson foge de casa para realizar o seu sonho de navegar, ele embarca em um navio com destino a Londres, mas no decorrer da viagem o navio é assolado por uma grande tempestade, o que o faz naufragar. Tempos depois, embarca novamente em uma nova jornada, mas desta vez rumo à Guiné, na costa da África. Nessa viagem, Crusoé se torna um marinheiro e mercador, ao realizar trocas de mercadorias acaba conquistando certos valores em ouro. Nessa parte da narrativa, observa-se o poder do capitalismo, as ambições que a busca pela riqueza pode gerar.

Concernente a isso, Frantz Fanon (1965, p. 52) aborda que o capitalismo viu nas colônias uma fonte de riqueza, e que os produtos adquiridos nelas poderiam ser vendidos ou trocados no mercado europeu. Seguindo essa ideia, o europeu viu no capitalismo um meio de aumentar suas riquezas, suas reservas de ouro, prata e pedras preciosas e, por fim, estabelecer o seu poder.

Essa busca pela riqueza, leva Robinson a empreitar em uma nova viagem à Guiné, no entanto, ele acaba sendo feito escravo após ser capturado por piratas de Salé. Cerca de dois anos depois, com a ajuda de Xuri, outro escravo, Crusoé consegue fugir da escravidão. Mesmo estando ambos à margem, o personagem principal acredita ser superior ao outro escravo, já que para ele o europeu sempre será superior as demais raças. No excerto a seguir, nota-se essa presunção de superioridade de Crusoé,

‘Xuri, se você me for fiel, farei um grande homem de você; mas, se você não bater em seus próprio rosto jurando que só me dirá a verdade, ou seja, não jurar por Maomé e pela barba do pai do Profeta, também vou lança-lo ao mar’. O rapaz sorriu para mim, e falou com tamanha inocência que não tive como desconfiar dele; jurou que me seria fiel e correria o mundo inteiro comigo (DEFOE, 2012, p. 42).

3 Sobrenome da família de Robinson, mas devido à pronúncia dos ingleses, eles preferiram mudar o sobrenome para

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Ao serem resgatados pelo Capitão Português, Xuri é vendido por Robinson assim que chegam ao Brasil. Nesse novo local, Robinson conquista novamente riqueza e poder, ao comprar terras e investir na cultura canavieira. Cerca de quatro anos após desembarcar na Baía de Todos os Santos, no porto de São Salvador, Crusoé decide viajar novamente à África com a pretensão de capturar negros para escravizá-los no Brasil. Contudo, a viagem não sai como o planejado, e tempos depois o navio naufraga e ele consegue sobreviver ao chegar em uma ilha deserta.

Nesse novo ambiente, Crusoé encontra Sexta-Feira e, será a partir desse momento que ficará exposta de maneira perceptível a relação de superioridade entre colonizador e colonizado, em que a dominação e o silêncio são o cerne de ligação entre as personagens. A seguir, um trecho do primeiro contato entre Crusoé e Sexta-feira:

Fiz novamente um gesto para que se aproximasse, e dei-lhe todos os sinais de encorajamento que me ocorreram, ao que ele foi chegando cada vez mais perto, ajoelhando-se a cada dez ou doze passos, em sinal de reconhecimento por eu ter salvado sua vida. Sorri para ele, com uma expressão amistosa, e fiz gestos para que viesse mais perto ainda; finalmente ele se aproximou e então tornou a cair de joelhos, beijou o chão, apoiou a cabeça na terra e, pegando meu pé, pôs a sola em sua cabeça. Isso, ao que parece, era um sinal pelo qual jurava tornar-se meu escravo para sempre [...] (DEFOE. 2012, p. 175).

Robinson Crusoé desde o momento que soube que na ilha apareciam nativos, teve a ideia de salvar um para que posteriormente pudesse domesticá-lo a fim de conseguir um conforto para si, já que haveria outra pessoa para realizar suas atividades laborais. Aimée Césaire (1978, p. 25) observa que “nenhum contacto humano, mas relações de dominação e de submissão que transformam o homem colonizador [...] em chicote e o homem indígena em instrumento de produção”. Essa subjugação de Sexta-Feira vai ao encontro do que Albert Memmi (2007, p. 45) aborda, considerando que “[...] todo colonizador é privilegiado”.

Nenhum colonizador coloniza de modo inocente ou impune, já que sempre há verdadeiramente um motivo e/ou situação (religioso, político e o maior de todos, a ambição) em que sempre se colocam como os salvadores e vítimas, mas no fundo “a vítima, também tira suas vantagens” (MEMMI, 2007, p.45). Essa prática de vitimismo e oportunismo pode ser observado, por exemplo, nas condutas empregadas na ocupação das Américas pelos colonizadores.

A dominação imposta a Sexta-Feira o faz perder sua cultura, ao tempo em que absorve a do colonizador. Essa perda o faz deixar sua identidade natural, pois os seus costumes e crenças são retirados de si pelo colonizador. No instante que aceita a imposição de seu “Amo”, torna-se alienado, tendo sua liberdade privada. Jean-Paul Sartre (1965) argumenta que ao ser introduzidos a uma nova cultura, os colonizados acabam tendo suas bocas amordaçadas, sem terem o direito à voz.

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O silêncio é apresentado na narrativa no momento o qual Sexta-Feira aprende o idioma do colonizador, deixando o seu à margem. A primeira palavra que lhe é ensinada “Amo” demonstra, imediatamente, o poder do colonizador sobre o colonizado. A visão que somente os ocidentais são dignos de estarem no poder, já que para eles os nativos são vistos como “bestas”, ao passo que se tem sua condição humana renegada. Fanon (1965, p.22) compreende que a linguagem do colonizado é simplesmente uma “linguagem zoológica” e que o colonizador se sente “moralista” ao calar o colonizado. Nas palavras do autor, percebe-se sua crítica em relação aos modos discriminatórios praticados pelos colonizadores aos colonizados. A desculpa utilizada é que se os colonizados ao conquistarem a liberdade, “eles retornariam imediatamente à barbárie, à degradação e à bestialidade” (FANON apud BONNICI, 2012, p.44).

Ao ter sua condição humana renunciada, Sexta-Feira perde sua existência, suas memórias, seus sonhos, seu modo de dormir e se alimentar, seu modo de morar e orar/rezar, tudo passa a ser o modo do seu “Amo”. Neste sentido, Césaire (1978, p. 25) retrata que

“entre colonizador e colonizado, só há lugar para o trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, o imposto, o roubo, a violação, as culturas obrigatórias, o desprezo, a desconfiança, a arrogância, a suficiência, a grosseria, as elites descerebradas, as massas aviltadas”.

Depois de anos de convivência na ilha, Robinson Crusoé e Sexta-Feira são resgatados pelo Capitão Inglês, após os dois salvarem a vida do marujo quando este havia sido levado a ilha pelos amotinados de seu navio para ser assassinado. Uma parte interessante da narrativa, pois nela o poder de dominação transcende de Sexta-Feira para todos que estavam na ilha, como demonstrado a seguir:

[...] toda a terra era de minha propriedade, de modo que eu tinha sobre ela um direito inquestionável de domínio. [..] meu povo era perfeitamente submisso: eu era senhor e juiz absoluto, todos deviam as vidas a mim e por mim se dispunham a sacrificá-las, se preciso fosse (DEFOE. 2012, p. 201).

No excerto acima percebe-se a visão que o branco colonizador possui das demais raças, a cultura imperialista do branco sobre o não branco, à marginalidade do “outro”. O pensamento Pós-colonial vem justamente mostrar essa relação injusta e desigual que o fator “raça” impõe sobre colonizador e colonizado, descontruindo essa visão imperialista, eurocêntrica de que todas as demais etnias servem somente para servir ao homem branco.

Um dos principais métodos utilizados para a desconstrução são os questionamentos dos chamados “cânones literários”, fazendo releituras e reescritas de obras que o colonizador encontrou oportunidades de consagrar de modo “excelente” (BONNICI, 2019, p. 264) seus textos.

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De acordo com Bonnici (2019, p. 267), o processo de reescrita “tem por finalidade a quebra da ocultação da hegemonia canônica e o questionamento dos vários temas, enfoques, pontos de vista da obra literária em questão, os quais reforçavam a mentalidade colonial”. Assim, ela desmascara o poder colonial existente no considerado cânone literário, trazendo à luz fatos distanciados e enraizadas pelo tempo. Logo, foi necessário anos de transformações para que então o poder ideológico dos colonizadores fosse questionado pelos colonizados.

Utilizando-se desse recurso descolonizador, o escritor sul-africano John Maxwell Coetzee (1940), ou simplesmente J. M. Coetzee, vem reescrever o “cânone literário” Robinson Crusoé. Ao resgatar o clássico em Foe (1986), ele traz a visão do sexo feminino sobre os fatos que acontecem na ilha ao criar uma personagem, talvez uma anti-heroína, Susan Barton. Neste sentido, ele descontrói o processo de escrita ficcional e discute a relevância do discurso, ao tempo que toca em questões do silêncio da mulher, e assuntos de cunho ético e político.

Em Foe, quem consegue sobreviver a ilha é Susan e Sexta-Feira, pois Crusoé (Cruso no texto de Coetzee) morre no decorrer da viagem de volta à Inglaterra. Ao chegar em Londres ela procura por Daniel Foe, escritor inglês, e conta toda a história desde a busca pela filha até seu resgate da ilha. No entanto, ele não acredita e publica sua própria versão da história. O que gera em Susan uma grande revolta, pois para ela, ele omite a verdade.

Carla Moraes (2012), considera Susan e Cruso como personagens próximos e similares, e que para que um fale o outro é necessário calar-se. Nessa perspectiva, observa-se a crítica na qual Coetzee retrata em sua obra, o silêncio do sexo feminino. Também, em Foe, o autor retrata o silêncio do nativo, pois Sexta-Feira não fala em virtude de ter tido sua língua cortada. Fernando Paulo demonstra que

[...] as mulheres e nativos são relegadas a um espaço marginal ou inexistente – Foe, como uma revisão, leva então a cabo a subversão de um texto canônico [...] desarticulando-o de dentro para fora ao mostrar que sua pretensão de verdade cai por terra ao ser posta em contraste com a realidade da mulher expropriada e do indígena emudecido (PAULO, 2003, p. 32. Grifo nosso).

Nesse sentido, a voz feminina ausente e a do nativo manipulada, já que o servo é limitado através da língua, pois o idioma lhes é ensinado de forma parcial. Assim, Coetzee vem descontruir a imagem da verdade presente em Robinson Crusoé, resgatando temas ao qual a sociedade da época estava organizada, mostrando brechas deixadas pelo clássico e trazendo reflexões sobre questões sociais como a marginalização da mulher, o comércio de escravos, o poder do colonizador e a submissão e silêncio dos nativos.

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Vale lembrar que a ausência da voz do nativo na narrativa também demonstra a recusa a língua do colonizador, pois ao absorver o idioma, absorve-se também sua cultura, pois a língua é a grande condutora de cultura, valores etc. Assim, o silêncio retratado em ambas as personagens (Susan e Sexta-Feira) não deve ser entendido somente como um impedimento, mas também como resistência e oposição.

Logo, ao resistir as forças do colonialismo, o colonizado “se aceita e se afirma” (MEMMI, 2007, p. 173), ele rechaça o desprezo dado pelo colonizador e concretiza as diferenças entre ambos. E ao assegurar essa distinção, o colonizado constitui sua essência, haja vista que o colonizado rompe o dogmatismo imposto a ele pelo colonizador, dessa maneira, resgatando sua identidade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a criação de uma personagem de origem europeia e outra de origem nativa, Defoe vem expor em Robinson Crusoé a visão eurocêntrica que o mundo possui dos povos que vivem à margem da sociedade. Ao apresentar Crusoé como o todo poderoso da ilha, o governador supremo, aquele que tinha a vida dos demais como sua propriedade, coloca em foco o perfil do colonizador. O branco como o todo superior, mesmo estando em condições de grande adversidade, vê-se como o salvador, o paternalista que considera as demais etnias como inferiorizadas, sem cultura, sem civilização e história. No decorrer da narrativa, o autor oferece ao leitor vários exemplos colonizadores, desde a fuga da escravidão na África, até o momento de regresso à Inglaterra.

Vale ressaltar que essa temática não está presente somente na ficção, mas também se encontra na realidade, pois a obra em análise apenas demonstra um pouco como é esse processo que devasta o subalterno, povos e culturas. Um exemplo fidedigno desse procedimento devastador, seja a conquista das américas pelos espanhóis (também encontrado na narrativa de Defoe, como crítica ao processo de colonização espanhola, e favorecimento a inglesa), no qual dizimaram todo uma nação por pura ambição.

À vista disso, os estudos pós-coloniais (colonialismo x descolonialismo) vêm mostrar essa afronta à pessoa humana, pois se percebe que o colonialismo não ocorreu somente no tempo da colonização, mas ainda está presente em nosso cotidiano, no modo como o marido silencia sua esposa, como os moradores dos grandes centros veem os habitantes da periferia, etc. Logo, o colonialismo é uma enfermidade que assola todos que são submetidos a ela, um mal que discrimina e gera violência e, a descolonização é a cura, aquela que aos poucos vai tratando a enfermidade, com a conscientização da mente, a valorização do ser e a busca pela liberdade.

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REFERÊNCIAS

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BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá: EDUEM, 2012.

BONNICI, Thomas. Teoria e crítica pós-coloniais. In. BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Ozana.

Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 4. ed. Maringá: EDUEM,

2019, p. 253-280.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 1992.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Noémia de Sousa. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.

DEFOE, Daniel. Robison Crusoé. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Peguin Companhia, 2012.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Serafim Ferreira. Lisboa: Serafim Ulisseia, 1965.

PAULO, Fernando de L. O tema da verdade em Foe, de J. M. Coetzee, In. Em

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Referências

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