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A problemática dos refugiados no mundo: evolução do pós-guerra aos dias atuais

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Academic year: 2021

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Julia Bertino Moreira

Mestre em Relações Internacionais

pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) Graduada em Direito pela PUC-SP

A problemática dos refugiados no mundo: evolução do pós-guerra

aos dias atuais

CAMPINAS 2006

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Resumo

O presente trabalho tem como escopo expor como se configurou a problemática dos refugiados no mundo durante o pós-guerra e como esta foi evoluindo até os dias atuais. Primeiramente, buscou-se introduzir esta problemática, apresentando três soluções implementadas em prol dos refugiados. Em seguida, esta problemática foi analisada a partir da conjuntura internacional, durante o período mencionado. Nesse ponto, foram abordados os seguintes tópicos: o contexto do pós-guerra, que ensejou uma preocupação internacional em relação aos refugiados; a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), órgão subsidiário da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável pela proteção internacional aos refugiados, destacando seu histórico, suas principais funções, seu financiamento e a evolução de suas atividades. E, ainda, a elaboração de instrumentos internacionais (quais sejam: a Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiados de 1951 e o Protocolo de 1967) e regionais (a Convenção da OUA de 1969 e a Declaração de Cartagena de 1984) de proteção aos refugiados, enfocando as modificações na definição de refugiado ao longo das décadas.

1. Introdução

As notícias veiculadas sobre deslocamentos forçados de grandes contingentes humanos vêm chamando a atenção da comunidade internacional para esses indivíduos que são obrigados a abandonar sua terra natal, por inúmeros motivos, e a procurar a proteção de outros Estados.

Nesse sentido, vale registrar que, atualmente, existem cerca de 9,7 milhões de refugiados no mundo. A maioria deles provém da Ásia (3.635.700), África (3.135.800), e Europa (2.207.100), sendo os maiores grupos oriundos do Afeganistão (2.136.000), Sudão (606.200), Burundi (531.600), República Democrática do Congo (453.400), Palestinos (427.900), Somália (402.200), Iraque (368.500), Vietnã (363.200), Libéria (353.300) e Angola (329.600). Por outro lado, os países que mais acolhem refugiados são: Paquistão (1.100.000), Irã (985.000), Alemanha (960.000), Tanzânia (650.000) e Estados Unidos (452.500) (ACNUR, 2004a: 14; Idem, 2004b: 4-5). Esse enorme contingente de refugiados

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espalhados no mundo representa um problema que desafia a comunidade internacional há mais de cinqüenta anos.

Os refugiados são impulsionados a fugir de seu país de origem por terem sido ameaçados de perseguição (ou efetivamente perseguidos) por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a determinado grupo social ou opiniões políticas (conforme a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951). Ou, ainda, por terem suas vidas, seguranças ou liberdades ameaçadas em decorrência de violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação massiva de direitos humanos ou outros fatores que tenham perturbado gravemente a ordem pública (conforme a Convenção da OUA de 1969 e a Declaração de Cartagena de 1984).

Com base nessas definições, pode-se afirmar que as principais causas dos fluxos de refugiados se constituem por: violações massivas de direitos humanos, conflitos armados e, além destas, regimes anti-democráticos. No tocante à primeira, nota-se uma relação entre refugiados e direitos humanos, haja vista que aqueles decidem se deslocar quando seus direitos mais fundamentais (como a vida, a liberdade e a segurança) se encontram ameaçados ou já foram violados no país de origem. No que tange à segunda, também pode se estabelecer uma relação entre refugiados e conflitos armados (originados por razões religiosas, étnico-raciais, nacionalistas, entre outras), à medida que estes colocam a população civil em situação de risco (e, por conseguinte, os direitos humanos desses indivíduos). Por fim, a última causa aponta a relação entre refugiados e regimes anti-democráticos, posto que essas formas de governo atentam contra as liberdades civis, além de outros direitos humanos dos cidadãos.

Assim, quando o indivíduo abandona sua terra natal e atinge outro território, três situações podem ocorrer: ser mandado de volta ao seu país; ser acolhido pelo país no qual ingressou, obtendo refúgio; ou ser enviado a um terceiro país. Estas são, respectivamente, as soluções implementadas para resolver a problemática dos refugiados: a repatriação voluntária, a integração local e o reassentamento.

A primeira delas vislumbra-se como a mais difícil, ao mesmo tempo em que é a mais desejada e, por esse segundo motivo, é muito incentivada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), juntamente com os Estados de origem e de refúgio. Isso porque o sentimento natural do ser humano é retornar ao seu lar, onde

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encontra suas origens e nele se identifica. Entretanto, ante as perseguições e violações de seus direitos, que o levaram a deixar seu Estado de origem, entende-se assaz complicado esse retorno, principalmente se essas razões ainda subsistirem (ANDRADE, 1996a, p. 40).

Mediante a segunda delas, o refugiado encontra maiores condições de reestruturar sua vida, estabelecendo-se num Estado diverso daquele de sua origem, razão pela qual o ACNUR auxilia esse país que o acolheu no sentido de promover sua integração na comunidade local. Porém, esta solução também acarreta algumas dificuldades no tocante à adaptação do refugiado à nova sociedade na qual será inserido, uma vez que esta pode representar uma cultura (hábitos, crenças e tradições) diversa daquela de sua origem (ANDRADE, 1996a, p. 40-41).

Por fim, a última solução trata-se da inserção do refugiado em um terceiro Estado, em decorrência de dificuldades (como os casos em que a integridade física do refugiado se apresenta em perigo) quanto à sua integração naquele país que o recebeu (ANDRADE, 1996a, p. 40-41).

2. A problemática dos refugiados no contexto internacional

2.1. O pós-Segunda Guerra Mundial

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) representou um importante marco histórico para a problemática dos refugiados, assim como para os direitos humanos. No que diz respeito aos direitos humanos, foram verificadas as maiores atrocidades já praticadas contra o ser humano, em razão do holocausto, o que ensejou uma preocupação internacional com a dignidade da pessoa humana (PIOVESAN, 2004a, p. 131-132). No que toca aos refugiados, foram gerados os maiores deslocamentos humanos observados na História do mundo moderno, perfazendo-se mais de 40 milhões de pessoas deslocadas provenientes da Europa, além de, aproximadamente, 13 milhões de pessoas de origem alemã que foram expulsas de países como Polônia, Checoslováquia e daqueles que formavam a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e, ainda, 11,3 milhões de trabalhadores forçados e pessoas deslocadas na Alemanha (ACNUR, 2002, p. 13).

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Tendo em vista essa situação caótica que se constatava no continente europeu, as movimentações de pessoas começaram a causar grande preocupação aos países aliados (EUA, URSS, França e Reino Unido). Diante disso, em 1943, estabeleceu-se a Administração das Nações Unidas para o Auxílio e Restabelecimento (ANUAR), que prestava auxílio não só aos refugiados, mas a todas as pessoas deslocadas em razão da guerra (ACNUR, 2002, p. 14).

Com o fim da guerra, a ANUAR empreendeu esforços para promover o repatriamento destas pessoas, o que era desejado também pelos países que haviam lhes concedido asilo (como Alemanha, Itália e Áustria), resultando aproximadamente 7 milhões de repatriados (dentre os quais, 2 milhões eram soviéticos). Por outro lado, muitos dos deslocados e refugiados não queriam retornar aos seus países de origem, principalmente àqueles governados pelo regime comunista – o que foi ignorado pelos países aliados, procedendo-se ao repatriamento forçado (ACNUR, 2002, p. 14-15).

Os Estados Unidos, contudo, começaram a se posicionar contra essa prática, denunciando que a política de repatriamento da ANUAR e seus programas de reabilitação nos países do Leste Europeu serviam apenas para reforçar o controle soviético exercido sobre estes. Ademais, como os EUA eram responsáveis por 70% do financiamento do referido órgão internacional, recusaram-se a prorrogar o seu mandato, que expirara em 1947, bem como lhe suspenderam apoio financeiro (ACNUR, 2002, p. 15).

Assim sendo, a ANUAR foi substituída, em 1947, pela Organização Internacional para os Refugiados (OIR), uma agência especializada não permanente da ONU. Embora prestasse assistência somente aos refugiados europeus, foi, de fato, o primeiro organismo internacional a tratar, de forma integrada, de todos os aspectos da problemática dos refugiados. Esta organização desempenhava múltiplas funções, destacando-se a assistência e a proteção política e jurídica aos refugiados (ACNUR, 2002, p. 16-17).

Marcou-se, todavia, pela mudança em termos de soluções, abandonando a política de repatriamento1, defendida e realizada pela ANUAR, para adotar uma política de reassentamento dos refugiados em outros países. Desse modo, o trabalho da OIR resultou no repatriamento de apenas 73 mil pessoas, ao passo que reassentou mais de um milhão,

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Em contrapartida a esse entendimento do ACNUR, GOODWIN-GILL (1983: 219) aponta o repatriamento voluntário como um dos principais objetivos da OIR.

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que foram acolhidos pelos EUA e por outros países, como Austrália, Israel, Canadá e países da América Latina (ACNUR, 2002, p. 17-18).

No entanto, entendeu-se que a OIR não logrou êxito em encontrar uma solução definitiva para a problemática dos refugiados, haja vista que, em 1951, ainda havia 400 mil pessoas deslocadas na Europa, sendo que o mandato da organização expirava em 1952. Em face disso, viu-se a necessidade de criar outro organismo internacional para tratar da questão dos refugiados (ACNUR, 2002, p. 19).

2.2. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)

O cenário internacional do final da década de 1940 foi marcado por acontecimentos como a construção do muro de Berlim (1948/1949) e a Guerra da Coréia (1950), apontando um endurecimento na Guerra Fria. Nesse contexto, os conflitos travados entre os blocos ocidental-capitalista e oriental-socialista vieram a afetar a ONU, dificultando a criação do ACNUR (ACNUR, 2002, p. 19).

Isso porque havia um dissenso generalizado entre os países da Europa Ocidental, os EUA e a URSS: aqueles defendiam uma agência de refugiados permanente, forte e independente, capaz de angariar fundos; estes, ao contrário, um organismo bem definido, mas temporário, que exigisse pouco financiamento e que não pudesse receber contribuições; enquanto esta cuidava de boicotar as negociações. Apesar dessas dificuldades, em dezembro de 1949, a Assembléia Geral da ONU decidiu2 estabelecer o ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, que iniciaria seus trabalhos em 1º de janeiro de 1951 (Ibidem, p. 19).

Dez anos mais tarde, o Estatuto do ACNUR, aprovado em dezembro de 1959, ainda refletia as divergências entre os EUA e os países ocidentais europeus em relação a este organismo (Ibidem, p. 27), trazendo em seu bojo concessões a ambos os lados. Vejamos porquê, com base em seus dispositivos.

Nos moldes do artigo 1º do Estatuto, o ACNUR assumiu duas importantes funções: em primeiro lugar, tornou-se responsável pela proteção internacional aos refugiados, sob os

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Vale mencionar que a deliberação sobre o estabelecimento do ACNUR contou com 36 votos a favor, 5 contra e 11 abstenções dos Estados que faziam parte da ONU à época (ACNUR, 2002, p. 19).

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auspícios da ONU; e, em segundo lugar, por encontrar soluções permanentes para essa problemática, devendo auxiliar os governos e dependendo de sua aprovação para facilitar o repatriamento voluntário dos refugiados ou a sua integração local em novas comunidades (ACNUR, 1950, p. 9).

Ademais, nos termos de seu artigo 2º, o trabalho do ACNUR tem caráter totalmente apolítico3, é humanitário e social e está relacionado com grupos e categorias de refugiados (Ibidem, p. 9).

Em seguida, como previsto no artigo 3º, o ACNUR segue as diretrizes da Assembléia Geral, atuando sob a autoridade desta, bem como do Conselho Econômico e Social da ONU (Ibidem, p. 9). Isso posto, como o organismo ficou atrelado a esses dois órgãos, não se pode afirmar que seja absolutamente independente, como pretendiam os países europeus ocidentais. Por outro lado, estes obtiveram sucesso na pretensão de se instituir um organismo forte e permanente.

No tocante ao seu financiamento, o artigo 20 dispõe que o ACNUR conta com o orçamento da ONU, sendo que, salvo decisão posterior em contrário da Assembléia Geral, nenhum encargo, além das despesas administrativas relativas ao seu funcionamento, pode ser imputado a este orçamento, ao passo que todas as outras despesas são financiadas através de contribuições voluntárias (Ibidem, p. 16). Nesse aspecto, os países da Europa Ocidental também foram vitoriosos.

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Loescher (2001) critica o fato de o ACNUR caracterizar seu trabalho como apolítico, concebendo-o como um forte ator político e moldado pelos interesses dos países mais ricos, haja vista que depende de doações destes governos para levar a cabo suas operações e programas. Da mesma forma, Hathaway (1993, p. 662) entende que o ACNUR é dependente da “boa vontade” dos países industrializados para garantir o seu financiamento.

Bookstein (2001) também considera o ACNUR um ator significativo na comunidade internacional, assim como Hyndman (2000, p. 5) o percebe como uma organização poderosa e altamente politizada.

Para Khan (1986, p. 27), o papel do ACNUR é ambíguo, já que a organização reúne os Estados a fim de encontrar soluções para os refugiados, mas, ao mesmo tempo, é usada pelos Estados para perseguir seus próprios interesses.

Hyndman (2000, p. 3) acrescenta que não há soluções humanitárias apolíticas capazes de lidar com deslocamentos humanos, tendo em vista que estes são eventos políticos. Em razão disso, para a autora, o humanitarismo é um processo politizado que balanceia as necessidades dos refugiados e de outras pessoas deslocadas com os interesses dos Estados.

Além disso, o ACNUR (1995, p. 124-125) reconhece que existe uma relação estreita entre ação humanitária e ação política. Um exemplo disso são as negociações que se fazem necessárias com os governos para que a ajuda humanitária seja prestada aos refugiados dentro dos países. Mas justifica que, apesar da distinção entre ação política e ação humanitária ser um tanto artificial, o que importa é a imparcialidade da ajuda humanitária, devendo ser prestada independentemente das origens, convicções ou posições ideológicas dos refugiados.

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Contudo, embora lhe fosse garantido angariar tais contribuições, os Estados Unidos conseguiram que estas estivessem sujeitas à aprovação da Assembléia Geral da ONU. Em razão disso, o ACNUR passou a depender do pequeno orçamento da referida Assembléia e de um “fundo de emergência” (ACNUR, 2002, p. 22). Além disso, os EUA, inicialmente, recusaram-se a efetuar contribuições ao ACNUR, pois não o consideravam o órgão mais adequado para canalizar suas verbas, decidindo financiar outros programas e organismos4 (Ibidem, p. 24).

Diante disso, o ACNUR, desde o início, teve um financiamento insuficiente, contando, principalmente, com contribuições voluntárias e não dispondo de recursos para implementar programas de repatriamento ou de reassentamento. Dessa forma, “Tal como afirmou o primeiro Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Gerrit Jan van Heuven Goedhart, corria-se o risco do seu comissariado ficar reduzido a ‘administrar o sofrimento’” (Ibidem, p. 24). No entanto, mesmo com um orçamento anual que não ultrapassava 300 mil dólares, o ACNUR conseguiu realizar parcerias significativas com organizações voluntárias e beneficentes.

Exemplo disso se deu em 1952, quando o organismo, com o apoio de organizações não-governamentais influentes, obteve da Fundação Ford a quantia de três milhões de dólares para financiar seu programa pioneiro de solução durável, que promovia a integração local dos refugiados em países europeus, o que significou uma conquista (ZARJEVSKI, 1987, p. 82). Nesse ponto, cabe ressaltar que “O primeiro valor substancial colocado à disposição do ACNUR não proveio dos governos, mas da Fundação Ford, nos Estados Unidos (...)” (Ibidem, p. 24).

Somente em 1954 é que foi criado um novo Fundo das Nações Unidas para Refugiados (UNREF), que teve como função implementar programas na Áustria, Alemanha Ocidental, Grécia e Itália (Ibidem, p. 24).

Vale destacar ainda que o primeiro “grande teste” do organismo ocorreu com a crise da Hungria, em 1956, quando cerca de 180 mil refugiados abandonaram o país em

4 Exemplos deles foram: o Programa dos Estados Unidos Escapee; o Comitê Intergovernamental para as

Migrações Européias, fundado em 1952, que tinha a função de apoiar as movimentações de migrantes e refugiados da Europa, e que se tornou, mais tarde, a Organização Internacional para as Migrações; o Organismo de Obras Públicas e Socorro aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente; e a Agência das Nações Unidas para a Reconstrução da Coréia, que tinha como função prestar assistência a pessoas deslocadas pela Guerra da Coréia (ACNUR, 2002, p. 24).

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decorrência da repressão política do governo soviético. Sua atuação contou com o apoio do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e da Liga das Sociedades da Cruz Vermelha. Durante os anos subseqüentes, em 1957 e 1958, o ACNUR realizou uma grande operação de assistência aos refugiados húngaros acolhidos na Áustria e na Iugoslávia, efetuando também o seu repatriamento e reassentamento em outros países. Esse trabalho propiciou prestígio internacional ao ACNUR, uma vez que, ao conter esta crise, saiu dela muito fortalecido (ACNUR, 2002, p. 27).

Tendo em vista as considerações tecidas sobre o ACNUR, observa-se que desde o início de seus trabalhos até os dias atuais, as operações deste organismo vêm se ampliando cada vez mais. Isso porque, inicialmente, o referido organismo internacional deu assistência a 400 mil refugiados gerados pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sendo que, atualmente, presta-a a, aproximadamente, 22 milhões de pessoas (incluindo outros grupos, além de refugiados). Em 1951, contava com 33 funcionários e seu orçamento totalizava 300 mil dólares; em 1999, eram mais de 5 mil funcionários e um orçamento que superava 1 bilhão de dólares. Atuava, de início, apenas na Europa; enquanto, em 1999, suas delegações se espalhavam por 120 países no mundo. Na década de 1950, possuía um restrito número de parceiros, passando-se a 500 organizações não governamentais, em 1999 (ACNUR, 2002, p. 3).

Outrossim, suas atividades também foram se alterando, enfatizando-se a criação de programas de assistência específicos a certos grupos, como mulheres, crianças e idosos. Da mesma forma, foram sendo implementados programas de assistência não só para refugiados, mas também para os deslocados internos, os apátridas e os solicitantes de refúgio, com fulcro nos artigos 1º e 9º do Estatuto do ACNUR (Ibidem, p. 3).

Atualmente, as atividades do ACNUR têm sido consideradas como: pró-ativas, visto que têm se dado no sentido de combater violações de direitos humanos e situações causadoras de deslocamentos; orientadas para a terra de origem, passando-se a se destacar as obrigações dos países que geram refugiados; e holísticas, à medida que têm procurado promover uma abordagem integrada da problemática do deslocamento humano forçado (Ibidem, p. 4)5.

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Nesse ponto, vale registrar a seguinte observação: “As atividades do ACNUR durante os primeiros anos são por vezes qualificadas de reativas, orientadas para o exílio e específicas para os refugiados. Reativas, porque

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2.3. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados

Na mesma época em que foi criado o ACNUR, em 28 de julho de 1951, a ONU elaborou o primeiro instrumento internacional de proteção aos refugiados: a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, que entrou em vigor em 21 de abril de 1954 (ACNUR, 1996, p. 3). Nos seus termos, a definição, que ficou conhecida como “clássica”, do termo “refugiado” abarcava qualquer pessoa

que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a protecção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar (ACNUR, 1996, p. 61).

A definição de refugiado da Convenção apresentava uma limitação temporal (conhecida como “reserva temporal”), que restringia sua aplicação aos “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951”.

Além disso, conforme o texto da Convenção, os termos “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951” poderiam ser entendidos de duas maneiras: em primeiro lugar, como aqueles que tiveram lugar na Europa (o que ficou conhecido por “reserva geográfica”); e, em segundo lugar, como aqueles que tiveram lugar na Europa ou fora desta. Tendo isso em vista, a Convenção previa que caberia ao Estado contratante adotar uma dessas fórmulas, mediante declaração feita quando da assinatura, adesão ou ratificação do instrumento. Além disso, a qualquer momento, o Estado que tivesse adotado a primeira fórmula (mais restritiva) poderia, mediante comunicação ao Secretário-Geral da ONU, adotar a segunda delas, que abarcava um grupo maior de pessoas na definição de refugiado (ACNUR, 1996, p. 62).

gerem os problemas dos refugiados essencialmente no país de asilo. Orientadas para o exílio, porque os seus esforços se centravam em atividades nos países de asilo e a responsabilidade pela resolução dos problemas dos refugiados era vista como cabendo aos países que recebiam os refugiados em vez de imputada aos países que os geravam. Específicas para os refugiados, porque o ACNUR não se interessava geralmente por outras formas de deslocação forçada” (ACNUR, 2002, p. 4).

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É de se destacar que essas limitações6 refletiam a crença de que os refugiados constituíam um problema temporário do continente europeu, que havia sido gerado pela guerra, e que, logo após esta, seria resolvido (CONLEY, 1993, p. 631).

Vale exemplificar que o Brasil, ao aderir à Convenção em 1960, adotou a reserva geográfica e, em razão disso, só reconhecia como refugiados pessoas de origem européia (COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ, 1994, p. 46). A exclusão da referida reserva se deu apenas em 1989, quando, então, o país passou a receber refugiados de todos os cantos do mundo (ANDRADE, 1996b, p. 10; ALMEIDA, 2001, p. 124).

3. A descolonização afro-asiática nos anos 1960 e 1970

No decorrer da década de 1960 e de meados da de 1970, uma série de movimentos nacionalistas se desenrolou nas colônias africanas e asiáticas, levando à sua descolonização e, por conseguinte, à constituição de novos Estados independentes no mundo. A maioria destas colônias atingiu a independência de forma pacífica, mas muitas tiveram uma transição bastante violenta (como a Argélia, a Ruanda e o Paquistão) (SARAIVA, 1997, p. 269-270).

Estes movimentos se fundamentavam no direito à autodeterminação dos povos, que foi bastante discutido entre os países desenvolvidos e os países considerados subdesenvolvidos, deslocando o foco do conflito Leste-Oeste para as relações Norte-Sul durante esse período da Guerra Fria.

Esse debate se verificou no âmbito da ONU, durante a elaboração do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 1966. Como este direito não fora contemplado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, os países do chamado Terceiro Mundo insistiram na sua inserção nos dois pactos. Embora os países ocidentais vislumbrassem que se tratava de um princípio e não de um direito, os países em desenvolvimento saíram vitoriosos (ALVES, 2003, p. 50).

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Para Hathaway (1993, p. 660), essas limitações eram estratégicas e motivadas por interesses políticos dos países ocidentais.

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As guerras civis pela independência de colônias africanas geraram grandes fluxos de refugiados na década de 1960, dentre as quais se destacam as da Argélia e de Ruanda. Na Argélia, o conflito ocorreu entre 1954 e 1962 e foi travado entre um grupo insurgente constituído na Frente de Libertação Nacional (FLN), apoiado por seu braço armado (ALN), e o governo francês (SARAIVA, 1997, p. 269-270). Com o intuito de afastar a comunidade local deste grupo, as forças francesas enviaram mais de um milhão de camponeses para acampamentos, onde sofreram privações (ACNUR, 2002, p. 40-41).

Diante disso, em 1957, os argelinos começaram a fugir para a Tunísia e o Marrocos, que fazem fronteiras com o seu país natal (Ibidem, p. 43; ZARJEVSKI, 1987, p. 103). Esses países, que haviam se tornado independentes da França apenas um ano antes, não conseguiam lhes prover a assistência adequada. Ao mesmo tempo, o governo francês se recusava a reconhecer os argelinos como “refugiados”. Apesar disso, o número deles só continuava a crescer, perfazendo, em 1959, 150.903 refugiados argelinos na Tunísia e 110.245, no Marrocos (ACNUR, 2002, p. 43).

Havia um grande problema no interior dos campos de refugiados instalados nestes dois países: a presença de guerrilheiros da FLN ou o recrutamento de pessoas comuns para o combate. Isso ensejou incidentes armados nas fronteiras, bem como extrema insegurança aos refugiados que viviam nestes campos (Ibidem, p. 43).

Assim sendo, o acordo de cessar-fogo entre a França e o governo provisório da Argélia apenas foi firmado em março de 1962. Este acordo também previa o repatriamento dos argelinos, para que pudessem participar do referendo sobre a independência (ou autodeterminação) do país, que seria realizado quatro meses depois. A operação de repatriamento foi organizada pelo ACNUR e pelo CICV, resultando no regresso de mais de 61.400 refugiados argelinos do Marrocos e de 120.000, da Tunísia até o final de julho. Finalmente, em 3 de julho de 1962, a Argélia passou a ser um país independente (ACNUR, 2002, p. 44-45).

Ademais, a independência, seguida de uma nova eclosão de conflito armado entre duas facções do ALN, gerou o deslocamento de mais de um milhão de colonos, que voltaram para a França, bem como de outros europeus, dos quais 50.000 foram para Espanha, 12.000, para o Canadá e 10.000 para Israel. Com isso, a reintegração dos argelinos retornados, que já era difícil em face da destruição generalizada provocada pela

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guerra, agravou-se com a partida de toda a comunidade européia, deixando o país sem qualquer infra-estrutura. A reconstrução da Argélia exigia, além da consolidação da paz que havia chegado, apoio internacional para recompor sua economia e suas instituições (ACNUR, 2002, p. 45-46).

Ainda em 1962, o território sob tutela belga denominado Ruanda-Urundi adquiriu independência, acarretando a constituição de dois novos Estados: Ruanda e Burundi. Os problemas neles verificados se pautaram num enfretamento político entre duas etnias, a maioria hutu e a minoria tutsi (Ibidem, p. 50).

Em Ruanda, a Bélgica sempre havia apoiado esta minoria, contudo, face à pressão da ONU, que objetivava acelerar os movimentos de descolonização, decidiu apoiar a maioria. Por conseguinte, em 1961, os hutus tomaram o poder, gerando o deslocamento de cerca de 120.000 tutsis para os países fronteiriços. Alguns deles regressaram em setembro de 1961, para participar das eleições, mas sofreram represálias, tendo de fugir novamente. Muitos, de outro lado, pretendiam retornar em julho de 1962, quando o país alcançasse sua independência. Outros, por fim, somente o fariam se os tutsis recuperassem o poder. O que ocorreu, na prática, foi que a grande maioria só conseguiu voltar à terra natal trinta anos depois, na década de 1990 (ACNUR, 2002, p. 51).

Dessa forma, em 1962, havia, aproximadamente, 150.000 ruandeses fora de seu país, dos quais 60.000 se encontravam na província de Kivu, na República Democrática do Congo (ZARJEVSKI, 1987, p. 109); 40.000, em Burundi; 35.000, em Uganda; e 15.000 em Tanganica (que se tornaria Tanzânia dois anos depois) (Ibidem, p. 52).

Diante desse panorama, em meados dos anos 1960, havia mais de meio milhão de refugiados no continente africano, número que praticamente dobrou ao final da década. Esse grande contingente, decorrente de maciços fluxos de refugiados, impossibilitava uma avaliação individual do fundado receio de perseguição. Procedeu-se, então, a uma determinação da condição de refugiado “prima facie” em grupo, segundo a qual se apreciavam as circunstâncias que levaram o indivíduo a deixar o país de origem (ACNUR, 2002, p. 56). Com isso, flexibilizava-se a aplicação da definição de refugiado, enfocando-se as condições objetivas do país (ACNUR, 1992, p. 32).

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3.1. O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados

Tendo em vista os movimentos de independência verificados na África e na Ásia, que geraram novos fluxos de refugiados, em 31 de janeiro de 1967, foi elaborado o segundo instrumento internacional de proteção aos refugiados: o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados. Este buscou pôr fim à chamada “reserva temporal” da Convenção, a qual estabelecia que só seriam reconhecidos como refugiados aqueles que tinham receio de serem perseguidos “em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951”, passando-se a não mais se aplicar esses termos à definição de refugiado (ACNUR, 1996, p. 85; ANDRADE, 1996b, p. 8).

3.2. A Convenção da OUA de 1969

Ainda que o Protocolo de 1967 tivesse trazido um avanço quanto à aplicação da definição clássica de refugiado, diante do fim da reserva temporal e da impossibilidade de adoção da reserva geográfica, os grandes fluxos de refugiados na África atestavam a necessidade de se criar uma nova definição.

Assim, os países da Organização de Unidade Africana (OUA), preocupados com a segurança dos Estados de origem e de acolhimento dos refugiados, pretendiam celebrar uma Convenção que tratasse especificamente dos refugiados africanos, o que constituiu a primeira experiência regional na elaboração de instrumentos de proteção a esse grupo.

Diante disso, cogitou-se que a Convenção da OUA poderia pôr em risco o caráter universal da Convenção de 1951, mas esse entendimento foi superado, reforçando-se que a primeira consistia num instrumento regional e, nessa medida, deveria ser complementar à segunda (ACNUR, 2002, p. 59).

Em face disso, a Convenção da OUA, elaborada em 10 de setembro de 1969 em Adis-Abeba, Etiópia, reconheceu que a Convenção de 1951 era o instrumento universal relativo aos refugiados, bem como ratificou os motivos clássicos de refúgio dados por ela7 (OUA, 1969; ZARD, 2005, p. 5).

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Além disso, a Convenção da OUA estabeleceu, em seu artigo 1º (2), uma definição de refugiado, conhecida como “ampliada”, que se aplicava a

qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem a nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar de residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade (OUA, 1969).

Esta foi sua maior contribuição, pois possibilitava aos indivíduos que fugiam de conflitos internos e outras formas de violência em seus países de origem serem considerados como refugiados. Com isso, não precisavam mais demonstrar a existência do fundado receio de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, filiação a determinado grupo social ou opiniões políticas (ACNUR, 2000a, p. 60; ZARD, 2005, p. 7). Além disso, constituiu a primeira experiência regional com relação ao tratamento da problemática dos refugiados e à busca de soluções para esses indivíduos.

4. Os conflitos armados na América Latina nos anos 1970 e 1980

Nos anos 1970 e 1980, vários países da América Latina (destacando-se El Salvador, Nicarágua, Guatemala e Chile) tiveram, em seus governos, regimes ditatoriais e foram palco de graves conflitos armados por motivos políticos, o que provocou um fluxo de mais de 2 milhões de refugiados provenientes apenas dos países da América Central (ANDRADE, 1998, p. 400).

A Nicarágua foi governada pelo regime Somoza, que contava com apoio dos Estados Unidos, por três décadas. Nos anos 1970, o povo se voltou contra o ditador Anastasio Somoza Dabayle, impulsionando-o a fugir do país em 1979, quando, então, os

“Para fins da presente Convenção, o termo refugiado aplica-se a qualquer pessoa que, receando com razão, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país da sua nacionalidade e não possa, ou em virtude daquele receio, não queira requerer a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país da sua anterior residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude desse receio, não queira lá voltar” (OUA, 1969).

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sandinistas (que constituíam a Frente Sandinista de Libertação Nacional) passaram a exercer o poder na Nicarágua. Com isso, muitas pessoas, relacionadas ao governo Somoza, deixaram o país, enquanto outras, que o haviam abandonado por causa do regime ditatorial, retornavam (ACNUR, 2002, p. 128).

Diante dessa situação, em 1978, aproximadamente 15 mil nicaragüenses obtiveram residência temporária em Honduras (ZARJEVSKI, 1987, p. 216), sendo que, em 1981, o número de refugiados neste país atingiu 30 mil pessoas (ACNUR, 2002, p. 133). Vale destacar ainda que, durante a guerra civil ocorrida na Nicarágua, 100 mil pessoas oriundas deste país conseguiram asilo temporário na Costa Rica (ZARJEVSKI, 1987, p. 219).

Por sua vez, El Salvador foi alvo de golpes políticos desde sua independência, o que gerou a formação de grupos rebeldes a partir dos anos 1970. Os camponeses também passaram a aderir a organizações que pregavam a reforma agrária e justiça social, sofrendo grande repressão por parte do governo. Eis que, em 1981, os grupos da oposição se uniram para formar a Frente Farabundo Marti para a Libertação Nacional (FMLN), ganhando grande força política tanto em nível nacional como internacional. Os Estados Unidos, na tentativa de barrar essa expansão, aumentaram a ajuda militar fornecida ao governo salvadorenho, ensejando um conflito entre este e a FMLN que perdurou pela década de 1980 (ACNUR, 2002, p. 128-129).

Em decorrência do conflito, a partir desta década, salvadorenhos passaram a procurar abrigo nos seguintes países: Honduras (Ibidem, p. 133), somando 18 mil refugiados em 1982; Nicarágua; Costa Rica, perfazendo-se 10 mil refugiados no mesmo ano; Estados Unidos; e Belize (ZARJEVSKI, 1987, p. 217-221). Vale mencionar que, ao final dos anos 1980, o México era o país que acolhia o maior número de refugiados salvadorenhos, totalizando 120 mil pessoas (ACNUR, 2002, p. 223).

Ademais, a Guatemala viveu processo semelhante àquele verificado em El Salvador, visto que os grupos rebeldes se insurgiram contra o regime militar na mesma época. Em represália, este iniciou, em 1981, uma campanha de 18 meses contra os guerrilheiros e a população indígena, causando a morte de dezenas de milhares de guatemaltecos, bem como o deslocamento interno de 1 milhão de pessoas. Após isso, os grupos rebeldes formaram a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG),

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propiciando a ocorrência de novos conflitos com o governo guatemalteco (ACNUR, 2002, p. 131-132).

Estes conflitos na Guatemala geraram, por conseguinte, outro fluxo de refugiados, que se dirigiu para o México, em 1981 (Ibidem, p. 135), atingindo 30 mil pessoas em 1982; algumas centenas deles, para a Nicarágua; e pequenos grupos, para a Costa Rica e para o Panamá (ZARJEVSKI, op. cit., p. 216-223).

Por fim, em 1973, o Chile vivenciou um golpe político que ensejou a queda do governo Allende e a tomada do poder pelos militares. Em face disso, muitos refugiados políticos que haviam sido ali acolhidos, temendo ser deportados aos seus países de origem, procuraram asilo em igrejas e embaixadas (Ibidem, p. 212). Ao mesmo tempo, os chilenos começaram a deixar o país, tendo sido acolhidos na Argentina, totalizando 4 mil pessoas reassentadas, enquanto 2 mil tiveram permissão para residir e trabalhar no país; e no Peru, onde 3 mil pessoas obtiveram estadia temporária (Ibidem, p. 213-214). Vale registrar que, na segunda metade dos anos 1970, muitos refugiados chilenos se instalaram no México (Ibidem, p. 223).

Posto isso, as guerras nos países da América Central deram origem a mais de 2 milhões de refugiados, que fugiram para países da mesma região, como já visto, e para países da América do Norte (EUA e Canadá). Do total de 500 mil pessoas que foram para os Estados Unidos, a maioria não foi reconhecida como refugiada, sendo que muitos nem tiveram a oportunidade de solicitar refúgio, por razões políticas. Nos países da América Central e no México, foram reconhecidos 150 mil refugiados (ACNUR, 2002, p. 132).

Diante desse contexto, em 1984, foi elaborada a Declaração de Cartagena, um instrumento regional de proteção aos refugiados, aplicável na América Latina. Com a Declaração, pretendia-se alterar a definição de refugiado dada pela Convenção, haja vista que esta não abarcava as situações de conflitos armados, praticados sistematicamente na região durante as décadas de 1970 e 1980.

A Declaração passou a incluir na definição de refugiado pessoas que deixaram seus países porque sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas em decorrência da violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação massiva dos direitos humanos ou outras circunstâncias que perturbaram gravemente a ordem pública (ARAÚJO, 2001, p. 425-426). Assim, por ter estendido o alcance do termo “refugiado”,

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este instrumento regional trouxe, em seu bojo, o que ficou conhecido por “definição ampliada de refugiado” (ANDRADE, 1997b, p. 162). Tratava-se da segunda experiência regional, dessa vez, no continente americano, que buscou lidar com a problemática dos refugiados e encontrar soluções para ela, a partir da realidade latino-americana.

5. O cenário pós-Guerra Fria

O fim da Guerra Fria, observado entre o final da década de 1980 e o início da de 1990, trouxe grandes mudanças no cenário internacional. Isso porque a queda do socialismo, com a desintegração da URSS, somada ao triunfo do capitalismo, provocou intensas transformações de ordem econômica, política e militar. No plano econômico, configurou-se o modelo do neoliberalismo, voltado para uma economia global, marcada pela intensificação dos fluxos transfronteiriços e pela formação de blocos regionais. No plano político, os países desenvolvidos do centro do capitalismo, dentre os quais EUA, Europa e Japão, governaram as decisões internacionais. Por outro lado, no plano militar, os EUA se constituíram como potência hegemônica mundial (CERVO; BUENO, 2002, p. 455).

Ademais, findado o conflito Leste-Oeste, as questões envolvendo segurança internacional deixaram de predominar, abrindo espaço para novos temas na agenda global, como: direitos humanos, meio-ambiente, comércio internacional, narcotráfico, entre outros. Assim, concebendo o mundo como interdependente, enfatizou-se o multilateralismo como meio de solucionar problemas globais (CERVO; BUENO, 2002, p. 455-469).

Com o fim da Guerra Fria, nos anos 1990, havia uma expectativa de que os conflitos no mundo acabariam, extinguindo, com isso, os movimentos de refugiados. Contudo, não foi isso que se verificou, mas, ao contrário, uma intensificação dos conflitos étnico-raciais e religiosos e um aumento da população refugiada mundial. Ao mesmo tempo, a situação de pobreza de muitos países, acentuada pelos efeitos da economia global, influenciou os maciços deslocamentos humanos que se verificaram ao longo da década.

Vale registrar que, no decurso de 1950 a 1975, os países desenvolvidos do Ocidente acolheram grande contingente de refugiados, em razão de interesses econômicos, culturais e, principalmente, políticos, no contexto da Guerra Fria (KHAN, 1986, p. 32). Isso

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porque os governos ocidentais resolveram abrigar muitas pessoas que fugiam de países socialistas (especialmente, do leste europeu). Enquanto os refugiados tinham a mesma origem e traços culturais da comunidade local, não havia um impedimento para acolhê-los. Contudo, a partir da década de 1970, quando começaram a chegar solicitantes africanos e asiáticos em massa, os países desenvolvidos do Ocidente passaram a se opor à sua entrada (ACNUR, 1995, p. 182; Idem, 1998, p. 189-190). Dessa forma, o recebimento de refugiados se baseava nas vantagens ideológicas ou geopolíticas que eles representavam (CUNHA, 2002, p. 510; VÉLEZ, 2001, p. 111). Nesse período, os benefícios decorrentes da admissão de refugiados superavam os custos envolvidos nela (FELLER, 2001).

A partir dos anos 1975 e início dos 1980, a posição dos países desenvolvidos passou a se modificar. Numa época de recessão econômica internacional, os refugiados passaram a ser vistos como um grande encargo econômico e social. Além disso, intensificou-se o choque cultural entre os refugiados, que eram, majoritariamente, africanos e asiáticos, e a comunidade local destes países. Assim, o cálculo custo-benefício se inverteu, tendo em vista que o recebimento de refugiados não trazia mais vantagens para os países desenvolvidos (FELLER, 2001). Todos esses fatores levaram ao desenvolvimento de uma percepção negativa quanto aos refugiados (KAHN, 1986, p. 36). Diante disso, pode-se afirmar que o fim da Guerra Fria acarretou a perda do significado político que os refugiados tinham durante a Guerra Fria (HYNDMAN, 2000, p. 4).

Em razão disso, os países ricos passaram a adotar medidas restritivas em relação às pessoas que chegavam aos seus territórios (dentre eles, potenciais refugiados), numa tentativa de controlar os fluxos transfronteiriços e de evitar o acolhimento de mais refugiados, que representam grandes encargos econômicos e sociais. Com isso, as soluções para os problemas dos refugiados vêm se tornando cada vez mais difíceis (ACNUR, 1998, p. 190-191)

6. Conclusão

Os refugiados são indivíduos que, por terem sido perseguidos em razão de diversos motivos, tiveram sua vida, segurança e liberdade ameaçadas ou de fato violentadas em seus países de origem, levando-os a se deslocar para outros territórios em busca de refúgio.

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Assim sendo, essa problemática dos refugiados emerge como uma preocupação internacional no contexto do pós-guerra, diante do grande contingente de pessoas deslocadas na Europa. Naquele momento, verificou-se a necessidade de se criar um órgão específico dentro das Nações Unidas para cuidar da proteção internacional dos refugiados e buscar soluções para esta problemática. Ao mesmo tempo, foi preciso elaborar um instrumento internacional que definisse o alcance do termo “refugiado”.

Décadas após a criação do ACNUR, constata-se que esse organismo foi se alterando, seja modificando suas atividades ou alargando seu campo de atuação, com o intuito de proteger os refugiados. Da mesma forma, acontecimentos no cenário internacional exigiram que uma nova definição de refugiado fosse elaborada, para que se pudesse abarcar nessa condição jurídica um maior contingente de pessoas.

Nesse sentido, a definição clássica de refugiado, elaborada pela Convenção de 1951, baseou-se no contexto da Europa do pós-guerra, nos interesses dos países ocidentais e na idéia de que o problema dos refugiados era temporário e seria rapidamente resolvido. Isso resultou em duas limitações, uma geográfica e outra temporal, à definição, que atestavam o objetivo desses Estados em firmar obrigações somente aos refugiados europeus gerados pela Segunda Guerra Mundial.

Contudo, nos anos 1960, os novos fluxos na África e na Ásia evidenciaram que este problema não era temporário e nem restrito ao continente europeu. Essa nova realidade exigia que a limitação temporal da definição fosse excluída, para que os refugiados africanos e asiáticos pudessem ser acolhidos.

Ademais, os conflitos armados, ocorridos na África e na América Central durante os anos 1960 a 1980, provocaram intensos movimentos de refugiados. Todavia, a Convenção de 1951 não havia arrolado os conflitos como motivo de refúgio e tampouco havia previsto os fluxos de refugiados em larga escala. Diante disso, os países dessas regiões decidiram se reunir para formular uma nova definição de refugiado, condizente com a situação presenciada neles. O resultado foi a elaboração de definições ampliadas, dadas pela Convenção da OUA de 1969 e pela Declaração de Cartagena de1984.

Ambas introduziram a agressão e ocupação externa, a dominação estrangeira e os conflitos armados como motivos de refúgio, sendo que a Declaração de Cartagena ainda

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acrescentou as violações massivas de direitos humanos. Além disso, reafirmaram os motivos clássicos da Convenção de 1951, sendo, portanto, complementares a ela.

Esses esforços, tanto no sentido de aprimorar o organismo que tutela os refugiados internacionalmente, quanto de ampliar a definição de refugiado, demonstram que esta problemática foi se modificando ao longo do tempo e, diante disso, a comunidade internacional foi se mobilizando para solucioná-la.

Contudo, como os movimentos de refugiados são motivados por conflitos armados, que colocam em risco os direitos humanos (principalmente, a vida e a segurança) da população civil, enquanto essa situação conflituosa persistir, não há como se solucionar definitivamente a problemática dos refugiados no mundo. Esta permanecerá, demandando cada vez mais novos desafios a serem vencidos pela comunidade internacional.

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