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A Possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica na arbitragem

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

AMANDA SOUZA GOMES

A POSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA NA ARBITRAGEM

Salvador 2018

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AMANDA SOUZA GOMES

A POSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA NA ARBITRAGEM

Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. João Glicério de Oliveira Filho.

Salvador 2018

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AMANDA SOUZA GOMES

A POSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA NA ARBITRAGEM

Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovada em 27 de fevereiro de 2018.

BANCA EXAMINADORA

João Glicério de Oliveira Filho – Orientador ________________________________ Doutor em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia

Técio Spinola Gomes __________________________________________________ Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo

Professor Assistente da Universidade Federal da Bahia

Isabella Lucia Poidomani _______________________________________________ Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia

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GOMES, Amanda Souza. A possibilidade da desconsideração da personalidade

jurídica na arbitragem. Monografia (Graduação). Faculdade de Direito, Universidade

Federal da Bahia, Salvador, 2018.

RESUMO

O cenário de crise vivido pelo sistema judiciário no Brasil fez com que a arbitragem despontasse como importante meio alternativo de resolução de controvérsias. Por outro lado, a desconsideração da personalidade jurídica é importante instituto do direito, que tem como objetivo coibir o uso abusivo da pessoa jurídica por seus sócios. O presente trabalho de conclusão de curso tata, então, de analisar a possibilidade da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em processos arbitrais. A questão paira sobre a arbitrabilidade da desconsideração da personalidade jurídica, posto que os sócios a serem atingidos pela desconsideração não são, em tese, signatários da cláusula compromissória de arbitragem entre a sociedade da qual fazem parte e o terceiro atingido. Propôs-se, como hipótese central, a possibilidade de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica no processo arbitral, tendo em vista as práticas de extensão dos efeitos da cláusula compromissória.

Palavras-chave: Desconsideração da personalidade jurídica; Arbitragem; Extensão

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GOMES, Amanda Souza. The possibility of disregard of the legal entity in

arbitration. Monography (Undergraduate). Law School, Federal University of Bahia,

Salvador, 2018.

ABSTRACT

The crisis scenario experienced by the judicial system in Brazil has made arbitration appear as an important alternative dispute resolution. On the other hand, disregard of legal personality is an important institute of law, which aims to curb abusive use of the legal entity by its partners. The present work of conclusion of course tata, then, to analyze the possibility of the application of the institute of disregard of legal personality in arbitration proceedings. The question arises as to the arbitrability of the disregard of legal personality, since the members to be affected by the disregard are not, in theory, signatories of the arbitration clause between the company of which they are part and the third one reached. It was proposed, as a central hypothesis, the possibility of applying the disregard of the legal personality in the arbitration process, in view of the practices to extend the effects of the arbitration clause.

Key words: Disregard Doctrine; Arbitration; Extension of arbitration clause to

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 7

2 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS SOBRE ARBITRAGEM ... 10

2.1 Contextualização, conceito e noções gerais sobre o instituto ... 10

2.2 Natureza jurídica da arbitragem ... 14

2.3 Convenção de arbitragem ... 16

2.4 Arbitragem, autonomia da vontade e a constitucionalidade do instituto ... 18

2.5 Arbitragem no direito societário... 21

3 O INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ... 28

3.1 O instituto da pessoa jurídica e a limitação de responsabilidade ... 28

3.2 Desconsideração da personalidade jurídica: conceito e origem ... 31

3.3 A desconsideração da personalidade jurídica na legislação brasileira e as hipóteses do art. 50 do Código Civil ... 36

3.4 Breves considerações acerca do incidente de desconsideração no Novo Código de Processo Civil ... 40

4 A POSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO PROCESSO ARBITRAL ... 45

4.1 Arbitrabilidade subjetiva da desconsideração da personalidade jurídica e a extensão da cláusula compromissória e a teoria do group of companies ... 45

4.4.1 Teoria dos grupos de sociedades na arbitragem ... 47

4.1.2 A desconsideração da personalidade jurídica na arbitragem ... 49

4.2 A arbitrabilidade objetiva da desconsideração da personalidade jurídica .... 51

5 CONCLUSÃO ... 55

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1 INTRODUÇÃO

O cenário de crise vivido pelo sistema judiciário no Brasil fez com que os meios alternativos de solução de conflitos, quais sejam: arbitragem, conciliação e mediação, surgissem como importantes opções para evitar o demorado e custoso processo estatal. A arbitragem é método adequado de solução de controvérsias que retira a competência do Poder Judiciário para apreciação da demanda.

Como forma de afastamento da prestação jurisdicional estatal, a escolha pela arbitragem é pautada na manifestação da autonomia da vontade privada, como forma de garantir, inclusive, a constitucionalidade do procedimento arbitral, diante do princípio constitucional de inafastabilidade do judiciário. O fundamento basilar da arbitragem é, portanto, o consesualismo entre as partes, de forma que somente aqueles que se manifestaram no sentido de adoção da arbitragem como meio adequado para a resolução de determinado conflito, ou prováveis conflitos, estão vinculados à força da convecção de arbitragem.

A organização empresarial pode acontecer de diversas formas, com a finalidade de atingir a máxima eficiência da empresa e diminuir, à medida que for possível, o risco da atividade empresarial. A criação de sociedades para o exercício da atividade empresarial, no entanto, não exime os sócios, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, das responsabilidades pelas obrigações assumidas pela sociedade. Ainda assim, a depender do tipo societário, a responsabilidade pode ser limitada à participação societária. Ocorre que, mesmo quando há a responsabilidade limitada, os sócios podem ser obrigados ao cumprimento das responsabilidades da sociedade quando a sociedade for utilizada de forma abusiva ou fraudulenta. A partir desse raciocínio que surgiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que aos poucos passou a ser adotada no Brasil.

O presente trabalho monográfico trata da possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica por meio da arbitragem, quando a aplicação do instituto da desconsideração atingir terceiros que não assinaram a cláusula arbitral.

A questão paira sobre se a desconsideração da personalidade jurídica se amolda aos limites de arbitragem previstos na Lei nº 9.307/1996. Isto porque, para a validade da sentença arbitral que determinar a desconsideração da personalidade jurídica, devem estar presentes os requisitos de arbitrabilidade subjetiva e objetiva.

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Para tanto, serão analisados dois aspectos importantes da questão, quais sejam, a extensão da cláusula compromissória a partes não signatárias à luz do Direito Societário e a efetividade da sentença arbitral que atingir tais partes não signatárias. O objetivo geral consistirá, preambularmente, em um exame contextual do instituto da arbitragem como forma de solução de controvérsias no brasil, explicitando as teorias acerca da natureza jurídica da arbitragem e da forma de escolha pelo juízo arbitral. Posteriormente, analisar-se-á as teorias acerca da desconsideração da personalidade jurídica, esclarecendo as razões do seu surgimento, de forma a compreender os objetivos deste instituto jurídico. Tais análises serão feitas para possibilitar uma análise crítica acerca da responsabilização dos sócios, por meio da desconsideração da personalidade jurídica, no bojo do processo arbitral.

Quanto aos métodos, adotar-se-ão os clássicos, o hermenêutico e o argumentativo, valendo-se da linha crítico-metodológica. Em relação ao objeto, as pesquisa jurídico-exploratória e as jurídico-projetivo serão manejadas. A pesquisa inaugural se efetuará com enfoque em obras e artigos, que apresentarem pertinência temática. Ademais, serão manejadas as pesquisas qualitativa e quantitativa, bem como os demais instrumentos investigativos, que quem venham a se revelarem necessários. No âmbito da técnica, será desenvolvida a análise documental indireta por meio da pesquisa bibliográfica e documental. Registra-se, ainda, que se deverá proceder o levantamento de casos fáticos.

Para sistematizar o estudo proposto, dividiu-se o presente trabalho em cinco capítulos. O primeiro, de natureza introdutória, visa apresentar o tema, as questões suscitadas e o objetivo geral. O segundo capítulo será reservado para a realização de uma análise acerca da arbitragem, repassando por conceituação do instituto, com análise do seu surgimento histórico na legislação brasileira, trazendo noções gerais, bem como específicas, acerca da autonomia da vontade como fundamento da arbitragem e da sua constitucionalidade.

No terceiro capítulo, será estudada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, seu surgimento e seus objetivos, esmiuçando-se as suas hipóteses.

No quarto capítulo será examinada a possibilidade de se decretar a desconsideração da personalidade jurídica no processo arbitral, a partir da análise

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da arbitrabilidade objetiva e subjetiva do instituto. No sexto capítulo, será apresentada breve conclusão acerca do quanto estudado ao longo do trabalho.

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2 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS SOBRE ARBITRAGEM

2.1 Contextualização, conceito e noções gerais sobre o instituto

Diante do cenário de crise vivido pelo sistema judiciário no Brasil, os meios alternativos de solução de conflitos, quais sejam: arbitragem, conciliação e mediação, surgem como opções para evitar o demorado e custoso processo estatal. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, em 31 de dezembro de 2016 a taxa de congestionamento dos tribunais brasileiros, que mede o percentual de processos em tramitação sem baixa em 2016, era de 73%1. Ou seja, somente 27% de todos os

processos em trâmite naquele ano foram solucionados.

A ineficiência do processo judicial leva a uma constante busca pelos meios alternativos de resolução de conflitos, que a doutrina brasileira atualmente opta por denominar de meios adequados de solução de conflitos2 ou justiça multiportas.

A importância da utilização de outras formas de resolução de disputas distintas da jurisdição estatal cresceu tanto que o Código de Processo Civil de 2015 passou a valorizar sobremaneira os métodos consensuais de solução de conflitos, especialmente ao estabelecer a realização de audiência de conciliação ou de mediação como etapa prévia à instrução processual.

Nesse contexto, a arbitragem desponta como saída mais vantajosa, tanto economicamente quanto qualitativamente, especialmente em relação aos conflitos comerciais e empresariais, em comparação à justiça estatal.

A arbitragem é meio alternativo (ou adequado) de solução de controvérsias, heterocompositivo, que ocorre com a intervenção de uma ou mais pessoas que recebem poderes de uma convenção privada para decidir o conflito3. Esta convenção

privada é a convenção de arbitragem, base de decisão do(s) árbitro(s), seja no tocante às pessoas ou à matéria envolvida, ao tipo de arbitragem ou às regras de direito que serão aplicadas naquele processo arbitral.

1 Informações obtidas do relatório “Justiça em Números”, anualmente produzido pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros>. Acesso em 13.01.2018.

2 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação – conciliação – resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 27.

3 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. São Paulo: Atlas, 2009, p. 31.

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Isto é dizer que a arbitragem ocorre quando as partes decidem por submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral, que será formado por um ou mais árbitros livremente escolhidos pelos litigantes, na forma estabelecida pela convenção de arbitragem.

De acordo com os pesquisadores, historicamente, a arbitragem precede até mesmo a justiça estatal e, mesmo quando existente a jurisdição do Estado, comumente as partes buscavam um terceiro em quem confiassem para solução do problema4. Uma autoridade religiosa, um sábio reconhecido na comunidade ou um

membro mais experiente da família era escolhido o árbitro do conflito, por livre vontade e consenso das partes. O arbitramento clássico, presente em várias ordens jurídicas dos povos antigos, perdeu força à medida em que o Estado se consolidou5,

concentrando todo o poder, inclusive o de julgar.

Na contemporaneidade, a arbitragem voltou a ser instituto utilizado em diversos países, impulsionado também pela era da globalização e o fortalecimento do comércio internacional. No Brasil, a arbitragem surgiu pela primeira vez na Constituição do Império, em 1824, por meio do art. 160 que estabelecia que as partes poderiam nomear juízes-árbitros. Dentre as cartas magnas posteriores, a arbitragem voltou a aparecer na Constituição de 1934 e, atualmente, encontra-se prevista na Constituição Federal de 1988.

O instituto ganhou maior força com a promulgação da Lei nº 9.307/1996, inspirada na Lei-Modelo de Arbitragem da UNCITRAL. De acordo com o professor José Augusto Delgado6:

A arbitragem, como meio processual para a solução dos conflitos, sem a presença do Poder Judiciário, visa consolidar os anseios daqueles que estão insatisfeitos com a demora na entrega da prestação jurisdicional, não só porque contribui para aumentar o grau de discórdia com o seu semelhante, mas, também, pelo fato de lhe ser negado o direito constitucional de ver o seu direito reconhecido em tempo razoável de ser possível o seu gozo e a sua fruição.

4 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação – conciliação – resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 33.

5 DELGADO, José Augusto. A arbitragem no Brasil: evolução histórica e conceitual. Revista de Direito Renovar, v. 17, p. 1-24, maio/ago. 2000, pp. 1-2. Disponível em < http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/8302>. Acesso em 14/01/2018.

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O crescimento e fomento da arbitragem se dá, primordialmente, em razão das características e vantagens do instituto, especialmente quando em comparação com a jurisdição estatal. Chamam atenção de forma positiva a celeridade do processo arbitral, a confidencialidade, a possibilidade de escolha dos árbitros, maior informalidade e o – em regra – cumprimento espontâneo da sentença arbitral.

Quanto à escolha dos árbitros, a possibilidade de entregar o litígio a um profissional com conhecimento específico da matéria discutida é uma vantagem comumente citada entre as mais importantes características da arbitragem. Outro ponto importante é a confidencialidade. Geralmente a convenção de arbitragem ou os regulamentos das câmaras estabelecem que o procedimento arbitral será confidencial ou sigiloso. Assim, as partes ao levarem um conflito à arbitragem não terão o objeto do litígio entre elas divulgado, importante fator de escolha do instituto como forma de proteção à imagem de empresas, que não terão seus segredos industriais e comerciais amplamente conhecidos em razão da publicidade do processo estatal7.

No entanto, nem todos os litígios poderão ser resolvidos por meio da arbitragem. Existem limites objetivos e subjetivos à arbitrabilidade de uma demanda. O art. 1º da Lei Brasileira de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996) estabelece que as pessoas capazes de contratar poderão utilizar a arbitragem para resolver conflitos relativos a direitos patrimoniais e disponíveis.

De acordo com ensinamento do professor Carlos Alberto Carmona8:

[...] são disponíveis (do latim disponere, dispor, pôr em vários lugares, regular) aqueles bens que podem ser livremente alienados ou negociados, por encontrarem-se desembaraçados, tendo o alienante plena capacidade jurídica para tanto. [...] São arbitráveis, portanto, as causas que tratem de matérias a respeito das quais o Estado não crie reserva específica por conta do resguardo dos interesses fundamentais da coletividade, e desde que as partes possam livremente dispor acerca do bem sobre que controvertem.

Direitos patrimoniais, por sua vez, são aqueles que podem ser auferidos economicamente. Assim, direitos não patrimoniais, tais como os direitos ligados à personalidade, comumente chamados de extrapatrimoniais, não podem ser submetidos a um processo arbitral. Noutro lado, os impactos patrimoniais desses

7 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação – conciliação – resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 116.

8 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 38-39.

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direitos, reflexos patrimoniais oriundos de direitos não patrimoniais, são plenamente arbitráveis9. O mesmo ocorre em relação à disponibilidade de tais direitos. Os direitos

da personalidade, tidos como indisponíveis, também possuem uma relativa disponibilidade, de forma que existem exceções à regra da indisponibilidade10. Ainda

de acordo com o professor Flávio Tartuce, tais exceções “confirmam a tendência de

relativização de princípios, direitos e deveres, realidade atual da órbita constitucional e privada”11.

Este limite imposto pela Lei de Arbitragem faz com que seja necessária uma análise sobre a arbitrabilidade de todo e qualquer conflito. Ou seja, uma análise se determinado litígio é arbitrável, de acordo com as limitações impostas pela lei. A arbitrabilidade pode ser objetiva ou subjetiva, a primeira caso se analise o objeto do conflito e a segunda caso a análise repouse sobre o os sujeitos envolvidos na demanda, que juntas constituem a condição de validade da convenção de arbitragem.

O requisito de arbitrabilidade subjetiva está relacionado com a capacidade das partes de contratar, de assumir direitos e obrigações no universo jurídico12. Diz

respeito não só aos aspectos de capacidade no sentido civilista da expressão, como a pessoa capaz de firmar um contrato, mas também à capacidade daquela pessoa de poder se submeter à arbitragem13 e de submeter aquele litígio à arbitragem.

Quanto ao requisito objetivo, este diz respeito à natureza da matéria levada à arbitragem. Significa a possibilidade de um litígio ser resolvido por arbitragem. Representa um dos limites impostos pela lei à arbitragem, de forma que um acordo de arbitragem que envolva um objeto inarbitrável é um acordo eivado de vício14, que

impossibilita aos árbitros a análise da demanda.

Assim, para submissão de uma demanda à arbitragem, impõe-se a análise dos requisitos de arbitrabilidade, sob pena de nulidade da sentença arbitral proferida com

9 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação – conciliação – resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 135.

10 TARTUCE, Flávio. Direito Civil, 1: Lei de introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 131, e-book.

11 TARTUCE, Ibid, p. 131, e-book.

12 TELLECHEA, Rodrigo. Arbitragem nas Sociedades Anônimas: Direitos Individuais e Princípio Majoritário. São Paulo: Quartier Latin, 2016, pp. 333-334.

13 LEMES, Selma M.F. Arbitragem na administração pública. Fundamentos jurídicos e eficiência econômica. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 116.

14 GONÇALVES, Eduardo Damião. Arbitrabilidade objetiva. Tese de doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008, p. 7.

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base em convenção de arbitragem nula, nos termos do que dispõe o art. 32, I, da Lei nº 9.307/1996.

2.2 Natureza jurídica da arbitragem

Muito se discutiu, e ainda se discute, sobre a natureza jurídica da arbitragem. Embora para alguns doutrinadores a Lei nº 9.307/1996 tenha colocado um fim à discussão no âmbito do direito brasileiro, ainda há divergência quanto ao tema. As teorias acerca do assunto se dividem em privativa, jurisdicionalista, intermediária e autônoma.

A teoria privatista, também chamada de contratualista, tem como entendimento que a arbitragem é um instituto cuja natureza jurídica é de uma obrigação criada por um contrato, que tem como consequência todas aquelas que derivam do pacto em geral15. De acordo com os ensinamentos de Ana Tereza Palhares Basílio e André R.

C. Fontes16:

A base das Teorias Privatistas é a de que os atos volitivos impregnam a arbitragem ao ponto de tomar todo o seu conteúdo. A vontade de duas partes na prática de um ato traduz-se em uma declaração única de vontade, de soberania dos litigantes e de poder de disposição, que dão a marca e as feições contratuais à arbitragem. Pois bem, o cumprimento das disposições negociadas pelas partes na arbitragem é a vontade desses sujeitos e equipara-se ao que se entende no direito contratual por cumprimento das manifestações de vontade dos co-contratantes. Se o cumprimento de um e outro tem o mesmo perfil e características pode-se deduzir que a base da vontade sujeita à execução é a mesma. Cumprimento de cunho contratual e vontade de natureza também contratual.

Isto é dizer que, para os adeptos da teoria privatista, a arbitragem se forma por meio de um contrato e se cumpre em razão de uma obrigação contratual. Para esta teoria, a arbitragem é, tão somente, extensão do contrato firmado entre as partes17.

Em sentido diametralmente oposto, a teoria jurisdicionalista, adotada pela Lei Brasileira de Arbitragem, confere à arbitragem natureza jurisdicional. Entende-se que a arbitragem é jurisdição, tal qual a estatal, tendo em vista que o Estado lhe confere

15 CRETELLEA NETO, José. Curso de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 14.

16 BASÍLIO, Ana Tereza Palhares; FONTES, André R. C. Notas introdutórias sobre a natureza jurídica da arbitragem. In Revista Brasileira de Arbitragem. v. IV, n. 14, p. 48-51, jul./set, Revista dos Tribunais, 2007.

17 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação – conciliação – resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 124.

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esse status. Teoria defendida pelo professor Carlos Alberto Carmona18, que sustenta

que o legislador, por meio do art. 31 da Lei nº 9.307/1996, optou por adotar a tese da jurisdicionalidade da arbitragem. Tal conclusão parte da regra prevista no referido dispositivo legal, que estabelece que a decisão final dos árbitros produzirá os mesmos efeitos da sentença estatal, constituindo título executivo judicial. Trata-se, portanto, da ideia de que o juiz e o árbitro exercem o mesmo papel, dotados de poderes para tanto, que lhes é outorgado pelo Estado. Quando árbitros, os particulares escolhidos para tal papel estão investidos de jurisdição e são revestidos de autoridade pública19.

A teoria intermediária parte da ideia que as teorias privatista e jurisdicionalista formam uma dicotomia pois foram construídas com base no direito privado, no caso da primeira, e no direito público, em relação à segunda20. Assim, a teoria intermediária

afirma que a arbitragem é fundada em um negócio jurídico firmado entre as partes, e decorrente desse negócio jurídico, mas não pode se desenvolver fora de um ordenamento jurídico e submete-se à ordem legal existente21.

Por fim, a teoria autônoma entende que a arbitragem é a sua própria natureza jurídica, autônoma dentro do ordenamento jurídico. Essa teoria desponta como importante nos procedimentos de arbitragem internacional, nos quais há maior independência do processo arbitral ao ordenamento jurídico local das partes22.

Neste estudo, adota-se a teoria jurisdicionalista, partindo da premissa de que a jurisdição se concretiza com o poder outorgado pelo Estado para julgar. No caso da arbitragem no Brasil, tal poder jurisdicional se reafirma no art. 18 da Lei nº 9.307/1996, que confere ao árbitro a qualidade de “juiz de fato e de direito” e retira do Poder Judiciário o poder de homologação da sentença arbitral. Assim, tal a justiça estatal, a arbitragem é meio jurisdicional de resolução de conflitos.

18 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. São Paulo: Atlas, 2009, p. 26.

19 BASÍLIO, Ana Tereza Palhares; FONTES, André R. C. Notas introdutórias sobre a natureza jurídica da arbitragem. In Revista Brasileira de Arbitragem. v. IV, n. 14, p. 48-51, jul./set, Revista dos Tribunais, 2007.

20 BASÍLIO; FONTES, Ibid.

21 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação – conciliação – resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 125-126.

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2.3 Convenção de arbitragem

Brevemente já mencionado, mostra-se importante tratar com maior detalhamento acerca da convenção de arbitragem, que é elemento indispensável da instauração de um processo arbitral. A convenção de arbitragem é o contrato, o acordo, por meio do qual as partes decidem submeter determinado(s) litígio(s), mesmo que ainda não existente(s), à arbitragem.

Por convenção de arbitragem entende-se o gênero, do qual existem duas espécies: a cláusula compromissória e o compromisso arbitral. Assim, conforme previsto no art. 3º da Lei nº 9.307/1996, as partes interessadas em submeter a solução de seus litígios a um juízo arbitral poderão fazê-lo por meio de uma cláusula compromissória ou um compromisso arbitral, que são de grande importância na formação do processo arbitral, cujo bom desempenho depende fundamentalmente do preparo adequado das condições de resolução das disputas23.

A cláusula compromissória, também chamada de cláusula arbitral, nada mais é do que uma cláusula inserida em um contrato, ou em documento apartado que se refira ao contrato, por meio da qual os contratantes se comprometem a submeter ao juízo arbitral seus futuros e eventuais conflitos que possam vir a surgir relativamente a tal instrumento contratual. O que caracteriza a cláusula compromissória é o momento do seu surgimento, que é anterior à existência do conflito24. Trata-se de uma

opção pelo processo arbitral que não se concretiza com a sua simples previsão, pois seu acionamento depende do surgimento da demanda, refletindo uma modalidade de dirimir conflitos que podem vir a acontecer ou não25.

Importante destacar que, embora seja cláusula de previsão futura da arbitragem, a cláusula compromissória não é facultativa, quando do surgimento do litígio. Isto é dizer que, quando do surgimento do conflito, as partes são obrigadas a se submeter ao procedimento arbitral – exceto quando for vontade de ambas que a resolução se dê por outro meio.

A cláusula compromissória tem caráter vinculante e constitui regra imperativa para as partes signatárias do contrato em que inserida. Trata-se de renúncia prévia à

23 STRENGER, Irineu. Comentários à lei brasileira de arbitragem. São Paulo: LTr, 1998, p. 35.

24 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Manual de arbitragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 77.

25 TEIXEIRA, Paulo César Moreira; ANDREATTA, Rita Maria de Faria Corrêa. A nova arbitragem: comentários à lei 9.307, de 23.09.96. Porto Alegre: Síntese, 1997. pág. 89.

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justiça estatal e a violação ao pacto arbitral constante de cláusula compromissória é violação contratual passível de indenização por eventuais danos.

Os efeitos da cláusula compromissória, enquanto vinculativa das partes desde o momento da sua assinatura, fazem parte do rol de inovações trazidas pela Lei de Arbitragem. Isso porque, antes da Lei nº 9.307/1996 não existia na legislação brasileira qualquer disciplina acerca da cláusula compromissória.

A importância da cláusula compromissória e da sua força vinculativa encontra-se refletida na Lei de Arbitragem, que encontra-se dedicou a estabelecer as regras formais para a validade da cláusula arbitral. O art. 4º da Lei de Arbitragem estabelece que a cláusula compromissória deve ser estipulada por escrito e, quando inserida em contratos de adesão, somente terá eficácia se a iniciativa partir do aderente ou se o aderente concordar expressamente com a arbitragem, em documento anexo ou em negrito com assinatura especialmente para essa cláusula.

Há discordância doutrinária sobre se a exigência da cláusula arbitral de forma escrita seja necessária à sua validade ou se trata-se de requisito de prova da existência da escolha pela arbitragem. Por um lado, defende-se que basta que se possa demonstrar a inequívoca aceitação da arbitragem pelas partes26, enquanto

noutro sentido que é da essência do ato a forma escrita27.

A preocupação da Lei de Arbitragem ao exigir a forma escrita para a cláusula compromissória está intrinsecamente relacionada à necessidade de existir manifestação de vontade das partes pela adoção da arbitragem. Sobre este tema, será dedicado um tópico específico neste trabalho, devido à importância da discussão.

Destaca-se também que a cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato ao qual se relacionar, conforme art. 8º da Lei nº 9.307/1996. Assim, a nulidade do contrato não implica em nulidade da cláusula arbitral. Quando inserida a cláusula compromissória em um contrato criam-se, portanto, duas relações jurídicas: o objeto principal do contrato e a arbitragem28. Dessa forma, conforme desenvolve Carlos

Alberto Carmona29 quanto a autonomia da cláusula compromissória:

26 ALVIM, J. E. Carreira. Direito Arbitral. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 179-180.

27 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 10ª Ed. São Paulo: RT, 2007, p. 1395.

28 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação – conciliação – resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 176.

29 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 174-175.

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Trata-se de saber se, resilido o contrato em que se insere a cláusula compromissória, sem qualquer menção especial àquela convenção, subsistiria a competência do árbitro para solucionar litígio que envolva as partes e que verse sobre o contrato desfeito. A autonomia anunciada leva à conclusão de que a vontade das partes no sentido de dissolver por mútuo acordo a relação jurídica principal não as desliga da relação objeto da cláusula compromissória (independe daquela outra). Em consequência, surgida controvérsia decorrente do contrato resilido (ou questão que diga respeito à validade, eficácia e extensão da resilição) tocará ao arbitro – e não ao juiz togado dirimir o litígio.

Ainda quanto às espécies de convenção de arbitragem, cumpre tecer breves comentários sobre o compromisso arbitral, que é a convenção através da qual as partes submetem um litígio já existente a um ou mais árbitros. Conforme prevê o art. 9º da Lei de Arbitragem, o compromisso arbitral poderá ser extrajudicial ou judicial, este último quando celebrado por termo nos autos de um processo, perante um juízo ou tribunal.

Diferentemente da cláusula compromissória, quando as partes assinam um compromisso arbitral já existe o litígio que será resolvido por arbitragem. A grande distinção entre as espécies de convenção de arbitragem é justamente essa: o momento em que a escolha pela adoção da arbitragem é feita – antes ou depois de o litígio existir.

2.4 Arbitragem, autonomia da vontade e a constitucionalidade do instituto

A arbitragem é meio de solução de controvérsias fundado na vontade das partes. Isto é dizer que não há arbitragem, não se instaura um procedimento arbitral, sem uma manifestação inequívoca de vontade daqueles envolvidos no litígio. O consentimento na formação da convenção de arbitragem tem como principal função tornar incontroversa a intenção das partes em solucionar as disputas pela via arbitral30, de forma que aquela convenção se torne vinculante aos contratantes.

Isso porque, a arbitragem é instrumento por meio do qual as partes que escolhem, em livre manifestação da autonomia privada, retirar do Poder Judiciário a competência para análise de demanda específica ou de eventuais demandas. Dessa escolha, derivam diversas consequências, dentre elas, e talvez a mais importante, seja a vinculação das partes à convenção de arbitragem entre elas firmadas.

30 REDFERN, Alan; HUNTER, J. Martin; et al. Redfern and Hunter on International Arbitration. Oxford University Press, 2009, p. 19.

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Assim, após a convenção de arbitragem, uma parte não pode simplesmente mudar de ideia e iniciar um processo no Juízo estatal, não sem a concordância, ainda que manifestada por meio da abstenção, da outra parte envolvida.

A arbitragem é, por si só, fundada no consentimento e na vontade dos envolvidos na disputa. Assim entendeu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da homologação da Sentença Estrangeira nº 5206-7, quando afirmou a constitucionalidade da Lei Brasileira de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996), fundamentada no instituto na autonomia privada das partes, na clara demonstração de vontade por submeter o conflito ao juízo arbitral.

A discussão no STF pairava sobre a compatibilidade entre a Lei nº 9.307/1996 e a previsão do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que estabelece a inafastabilidade do exame pelo Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito. O entendimento do Supremo consagrou a ideia de que a norma prevista no texto constitucional consubstanciava proteção ao cidadão contra abusos do poder público, se tratando de limitação ao legislador, e não às próprias partes. Assim, como a escolha pela arbitragem partiria da autonomia da vontade privada, não haveria qualquer violação à inafastabilidade da justiça.

Sobre o fundamento de legitimidade constitucional da arbitragem na autonomia da vontade, veja-se excerto do voto do então Ministro do STF Sepúlveda Pertence31:

Como visto, vale sintetizar, a sustentação da constitucionalidade da arbitragem repousa essencialmente na voluntariedade do acordo bilateral mediante o qual as partes de determinada controvérsia, embora podendo submetê-la à decisão judicial, optam por entregar a um terceiro, particular, a solução da lide, desde que esta, girando em torno de direitos privados disponíveis, pudesse igualmente ser composta por transação. A marca da consensualidade da instituição mediante compromisso do juízo arbitral é, assim, dado essencial à afirmação de sua legitimidade perante a Constituição.

É nesse sentido que a doutrina arbitralista entende que a validade da cláusula compromissória depende da livre manifestação de vontade das partes contratantes32.

A necessária manifestação de vontade das partes não se confunde, no entanto, com a possibilidade de violação à convenção de arbitragem. A ausência da livre

31 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2001. Ag. Rg. Na Sentença Estrangeira 5.206-7 Reino da Espanha. Tribunal Pleno, Julgado em 12/12/2001.

32 TELLECHEA, Rodrigo. Arbitragem nas Sociedades Anônimas: Direitos Fundamentais e Princípio Majoritário. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 323.

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manifestação de vontade na inserção da cláusula arbitral em um contrato dever ser comprovada por meio de arguição de nulidade da cláusula compromissória. Não sendo este o caso, é obrigatória a vinculação à convenção de arbitragem.

A obrigatoriedade de vinculação ao procedimento arbitral, deriva, principalmente, da natureza jurisdicional da arbitragem33, de forma que a escolha

prévia por este meio de resolução de controvérsia não pode ser preterida, por razões outras senão a vontade de todas as partes envolvidas.

Assim prevê o ordenamento jurídico brasileiro, com a obrigação do juiz estatal de extinguir o processo sem resolução do mérito quando acolhida a preliminar de existência de convenção de arbitragem, disposição constante no art. 485, VII, do Código de Processo Civil de 2015, bem como quando estabelece o princípio do

Kompetenz-Kompetenz na arbitragem, segundo o qual cabe ao árbitro decidir sobre

as questões da convenção de arbitragem e da sua própria competência, assim previsto nos arts. 8º, parágrafo único, e 20 da Lei nº 9.307/1996.

No entanto, mais do que isso, a força da arbitragem é historicamente reconhecida como resultado de nada mais do que a vontade das partes. Conforme destaca Pedro Batista Martins:

[...] o fato é que, no âmbito das associações de classe e de produtores, já imperava a vinculação das partes à arbitragem e a sujeição ao resultado da controvérsia, inobstante lei expressa nesse sentido. [...] a justiça se realizava e se impunha, satisfatoriamente, sem a interveniência do Estado. No seio das associações imperava, literalmente, o pacta sunt servanda. E, como corolário desse pressuposto, se realizava a justiça, que era acatada sem maiores contestações.34

Por simples vontade daqueles envolvidos, se escolhe uma ou mais pessoas que, a partir daquele momento, terão autoridade e poder vinculantes para a solução do litígio.

Conclui-se, portanto, que a eficácia e eficiência da arbitragem está intimamente ligada à vontade das partes. Ainda que existentes dispositivos legais que imponham o cumprimento da sentença arbitral, o cumprimento voluntário, resultante de um pacto

33 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 26-27.

34 MARTINS, Pedro A. Batista. Arbitragem no direito societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012, pp. 38-39.

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impositivo firmado entre as partes, é fator essencial ao sucesso do procedimento arbitral, e do instituto da arbitragem em si.

2.5 Arbitragem no direito societário

O instituto da arbitragem é reconhecidamente favorável às questões societárias, empresariais e comerciais, especialmente em razão das vantagens já exemplificadas neste trabalho, tais como a confidencialidade, a possibilidade de escolha dos árbitros e a maior celeridade de resolução das disputas.

No tocante à arbitragem no direito societário, muito se discutiu – e ainda se discute, acerca da vinculação do sócio/acionista contrário à adoção da arbitragem para resolução dos conflitos internos da sociedade.

A dúvida paira sobre o conflito entre o princípio basilar da arbitragem – autonomia da vontade – e o princípio que rege as relações societárias – princípio do majoritário. Assim, surgem diversas perguntas quanto à possibilidade de utilização da arbitragem para conflitos societários – internos à sociedade. A inserção da cláusula de arbitragem no contrato social, por força da vontade da maioria, vincula aqueles que votaram em sentido diverso? Ou a ausência de manifestação de vontade impede a vinculação?

Embora para alguns o problema tenha sido resolvido pela nova regra prevista no art. 136-A da Lei Brasileira de Arbitragem, há não muito tempo inserido pela Lei nº 13.129/2015, a questão está longe de representar um consenso na doutrina brasileira.

De um lado, temos aqueles que entendem que a extensão da cláusula compromissória a partes não signatárias, especialmente a partes que não manifestaram expressamente a sua concordância com a adoção da arbitragem, significaria violação do princípio do consensualismo.

Como brevemente abordado neste trabalho, a arbitragem tem o seu fundamento no princípio da autonomia da vontade. A ausência de expressa manifestação de vontade, por sua vez, é fator impeditivo à instituição do processo arbitral.

Ao tratar da possibilidade da extensão da cláusula compromissória, Leonardo de Campos Melo35 afirma:

35 MELO, Leonardo de Campos Extensão da cláusula compromissória e grupos de sociedades - A prática arbitral CCI e sua compatibilidade com o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Florense, 2013, p. 60.

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[...] será sempre necessário, para a validade da arbitragem, que a parte interessada na extensão subjetiva da cláusula compromissória demonstre ter havido, por todas as partes envolvidas na disputa, vontade inequívoca de aderir à relação jurídica subjacente e à convenção arbitral [...].

Encabeçando a parcela da doutrina que entende não ser possível vincular o sócio discordante da inserção da cláusula compromissória no contrato/estatuto social, o professor Carlos Alberto Carmona, comentando a Lei 10.303/2001, que modificou a Lei das Sociedades por Ações para inserir artigo prevendo a possibilidade de o estatuto estabelecer a resolução de divergências pela via arbitral36, afirmou que para

inserir a cláusula compromissória em um contrato de sociedade, a deliberação deve ser sempre unânime. Veja-se excerto que desenvolve a tese defendida pelo professor:

Não se pode conceber, portanto, que haja um estatuto híbrido, que obrigue alguns sócios e não vincule outros. Digo isso para que o raciocínio sirva de ponto de partida para minha análise: se os sócios deliberarem a inclusão de cláusula compromissória no estatuto, tal cláusula haverá de obrigar todos os sócios, presentes e futuros. Mas, como harmonizar tal conclusão com o fato de que a cláusula deve ser consensual, dependendo sua validade de expressa manifestação de vontade no sentido de retirar a competência do juiz togado? Parece-me que a resposta está baseada na necessidade de a deliberação sobre a inclusão da cláusula ser sempre unânime, contando com a adesão de todos os sócios. [...] Caso, entretanto, a cláusula não tenha sido introduzida no momento da constituição da companhia, somente com o voto de todos os acionistas poderá ser incluída no estatuto, pouco importando o quorum estabelecido na lei ou no próprio estatuto para as demais alterações pontuais, eis que estará em jogo direito essencial do acionista, qual seja, o de dirigir-se ao Estado para tratar de lesão ou ameaça de lesão a suposto direito seu.37

A inserção da cláusula compromissória em contratos de sociedade quando da sua constituição não gera grandes polêmicas, tendo em vista que, naquele momento, o contrato é integralmente consentido por todas as partes, quando da assembleia de constituição. O ingresso de novo sócio quando a cláusula arbitral já consta no contrato também não representa um problema, considerando que o sócio ingressante concorda com todos os termos daquele contrato quando decide fazer parte dele.

36 Lei nº 6.404/1976, Art. 109, §3º: O estatuto da sociedade pode estabelecer que as divergências entre os acionistas e a companhia, ou entre os acionistas controladores e os acionistas minoritários, poderão ser solucionadas mediante arbitragem, nos termos em que especificar. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001).

37 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. São Paulo: Atlas, 2009, p. 111.

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No mesmo sentido, com base nos ensinamentos de Carlos Alberto Carmona, Luiz Antonio Scavone Jr. defende que a deliberação pela inserção da cláusula compromissória no momento da constituição da sociedade e posteriormente, deve se dar por unanimidade, enquanto os que ingressarem posteriormente estarão aderindo ao estipulado no contrato.38

Tal entendimento se deve ao fato de que a Lei Brasileira de Arbitragem exige concordância das partes e manifestação expressa, em determinados casos, pela instituição da arbitragem39, ao mesmo tempo em que a Constituição Federal prevê a

inafastabilidade da apreciação de lesão ou ameaça a direito pelo Estado e o Supremo Tribunal Federal sustentou a constitucionalidade da arbitragem no princípio da livre autonomia das partes.

De outro lado, a análise da lógica de funcionamento das sociedades empresárias pode levar a entendimento diverso, com base na aplicação do princípio do majoritário nas decisões societárias.

A priori, têm-se que a manifestação de vontade das partes é essencial para a validade da convenção de arbitragem. No entanto, o princípio jurídico do consensualismo, previsto no art. 107 do Código Civil, estabelece que a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente exigir40.

A lei de arbitragem, por sua vez, nada estabelece quanto à forma em que a vontade da parte deve se expressar, com exceção às disposições referentes aos contratos de adesão, em que exige que a iniciativa tenha partido do aderente, ou o aderente manifeste concordância por escrito, em documento anexo ou negrito. No entanto, não se confundem os contratos societários com contratos de adesão, de forma que a referida obrigatoriedade não se aplica aos contratos de sociedades.

38 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Manual de arbitragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 53.

39 O art. 4º da Lei nº 9.307/1996 e seus parágrafos estabelecem a obrigatoriedade da forma escrita para a cláusula compromissória e a necessidade de expressa concordância das partes. Veja-se: Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. § 1º A cláusula compromissória deve ser estipulada por escrito, podendo estar inserta no próprio contrato ou em documento apartado que a ele se refira. § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.

40 MELO, Leonardo de Campos Extensão da cláusula compromissória e grupos de sociedades - A prática arbitral CCI e sua compatibilidade com o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Florense, 2013, pp. 31-32.

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Assim, pode-se concluir que o consentimento apto a vincular uma parte à cláusula compromissória pode ocorrer de forma expressa ou de forma tácita4142.

Ocorre que, no caso da inserção de cláusula de arbitragem nos contratos societários, a vinculação vai além da aceitação tácita. Isso porque, entre as regras societárias, há a regra de que, na ausência de previsão de quórum especial estabelecido em lei ou no contrato social, as decisões societárias serão tomadas com base na maioria absoluta dos votos43.

Assim, os sócios e acionistas vinculam-se obrigatoriamente a todas as deliberações assembleares, independente do seu voto contrário ou a favor, por força do princípio majoritário, que é forma de garantia da capacidade funcional da sociedade44. Somente por meio do princípio majoritário, como critério de combinação

de votos, se é possível chegar a uma deliberação social45.

É nesse sentido que se entende que a cláusula compromissória estatutária gera efeitos para todos os acionistas/sócios, independentemente do seu voto, sob pena de promover insegurança jurídica aos demais interessados. A hipótese de não vinculação dos sócios divergentes poderia fomentar a propositura de demandas paralelas tanto na via arbitral como na judiciária, o que anularia as vantagens da arbitragem e inviabilizaria seu uso na resolução de disputas societárias, tendo em vista o sério risco de decisões conflitantes e o inegável desperdício de recursos.46

A corrente doutrinária que defende a aplicação do princípio da maioria e a vinculação do acionista ausente ou dissidente à cláusula compromissória estatutária conta com a defesa de Pedro Batista Martins, coautor do anteprojeto que deu origem à Lei nº 9.307/1996:

Note-se que nossa lei societária, ao contrário do que ocorre na Itália, deixou de ressalvar ou de criar certos obstáculos à introdução da arbitragem. O art. 109, parágrafo 3º, da Lei n. 6.404/76 autoriza, e induz, a utilização da arbitragem para a solução de disputas intra-sociais, sem que conste qualquer restrição quanto ao quorum de deliberação ou direito de recesso por parte do

41 CARDOSO, Paula Butti. Limites subjetivos da convenção de arbitragem. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2013, p. 21.

42 O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu, inclusive, a possibilidade do consentimento tácito como forma de aceitação da cláusula compromissória – Ver STJ, SEC 856/GB.

43 Ver artigos 1.0161, §1º do 1.063 e 1.076 do Código Civil, e artigos 110,115, 129 e 136 da Lei das Sociedades por Ações.

44 TELLECHEA, Rodrigo. Arbitragem nas Sociedades Anônimas: Direitos Fundamentais e Princípio Majoritário. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 89.

45 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23.

46 ENEI, José Virgílio Lopes. A arbitragem nas sociedades anônimas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Financeiro e Econômico, nº 129, v. 42. São Paulo, 2003, p. 159.

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acionista descontente. Assim sendo, cumpridas as formalidades legais, a aprovação da inserção de cláusula de arbitragem estatutária vinculará todos os acionistas da companhia. Estejam presentes ou ausentes, ou, mesmo, contrários à deliberação.47

Ao se vincular à cláusula arbitral estatutária, ainda que ausente ou dissidente, não estaria o acionista renunciando a um direito – o de recorrer ao Poder Judiciário, mas se submetendo ao poder da maioria. É o que defende Pedro Batista Martins, destacando “da parte do acionista o abandono de um direito, mas, somente, sua sujeição a um interesse maior”48, se referindo à submissão do acionista que não

concordou expressamente com a cláusula compromissória à vontade da maioria do capital social votante da sociedade, que entendeu ser esta a melhor opção, em vista do interesse social.

Sobre a extensão subjetiva dos efeitos da cláusula compromissória estatutária, Rodrigo Tellechea, em sua obra Arbitragem nas Sociedades Anônimas: Direitos

Individuais e Princípio Majoritário, divide a doutrina em três correntes: a) corrente

minoritária: caleidoscópio argumentativo, b) corrente majoritária: prevalência da maioria, e c) corrente disruptiva: relativização da regra da maioria. A chamada corrente majoritária corresponde à parcela da doutrina que defende que o princípio majoritário vincula todos os sócios à cláusula arbitral estatutária.

Já a corrente minoritária, que Tellechea denomina de “caleidoscópio argumentativo”, é defendida por Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik e “propõe que somente os acionistas que votaram favoravelmente à inclusão da cláusula arbitral em assembleia geral extraordinária estão a ela vinculados”49. Isto porque, entendem os

autores que a cláusula compromissória inserida no estatuto tem natureza de pacto parassocial, de forma que não pertence às normas organizativas da sociedade e não se submete à regra do princípio da maioria. Veja-se o que diz Modesto Carvalhosa:

A cláusula compromissória constitui matéria facultativa e, portanto, potestativa do estatuto social. Não se confunde com as matérias que obrigatoriamente deverão constar do estatuto, que são especificas da

47 MARTINS, Pedro Batista. A arbitrabilidade subjetiva e a imperatividade dos direitos societários como pretenso fator impeditivo para a adoção da arbitragem nas sociedades anônimas. In YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Processo societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012, pp. 617-632, p. 626

48 MARTINS, Pedro Batista. A arbitrabilidade subjetiva e a imperatividade dos direitos societários como pretenso fator impeditivo para a adoção da arbitragem nas sociedades anônimas. In YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Processo societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 627. 49 TELLECHEA, Rodrigo. Arbitragem nas Sociedades Anônimas: Direitos Fundamentais e Princípio Majoritário. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 377.

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sociedade anônima, ditadas pela lei. Distingue-se, dessa forma, a cláusula estatuária potestativa, que consubstancia o pacto compromissório, daquelas cláusulas mandatórias. Na primeira, o conteúdo é livre, desde que não seja vedado por lei ou que não altere os dispositivos obrigatórios da lei e do próprio estatuto. De qualquer forma, o estatuto não pode privar os acionistas do direito que lhes é constitucionalmente assegurado com cláusula pétrea (art. 5º, XXXV, §4º, da CF), cujo §2º dispõe que os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembleia geral.50

No mesmo sentido entende Nelson Eizirik, ao afirmar que “a legitimidade da arbitragem repousa no princípio fundamental da autonomia da vontade, não se pode obrigar os acionistas que expressamente votaram contra a inclusão da cláusula”51.

Conclui, no entanto, pela vinculação dos acionistas ausentes, que não votaram favorável ou contra a cláusula compromissória.

Por fim, a corrente disruptiva sustenta a relativização da regra da maioria, em razão de um necessário diálogo entre os microssistemas jurídicos arbitral e societário. A teoria defendida por Juliana Krueger Pela52 sustenta que a possibilidade de inserção

da cláusula compromissória em estatuto social relativizou a imperatividade da regra da maioria, tendo em vista que a Lei de Arbitragem não permite a submissão de qualquer pessoa à arbitragem contra a sua vontade. Conclui a autora que a solução seria a criação de uma hipótese de direito de retirada do acionista, em razão da inserção da cláusula compromissória.

A legislação pátria recentemente adotou a posição defendida pela chamada corrente majoritária, implementando a solução proposta pela autora Juliana Krueger Pela. Em importante alteração legislativa promovida pela Lei nº 13.129/2015, que modificou em diversos aspectos a Lei de Arbitragem, incluiu-se também na Lei das Sociedades Anônimas, o artigo 136-A, que estabeleceu a necessária vinculação dos acionistas à cláusula compromissória inserida em estatuto, ressalvando aos acionistas dissidentes a possibilidade do exercício do direito de retirada.

No entanto, para aqueles que defendem a impossibilidade de vinculação de qualquer pessoa à arbitragem sem sua expressa manifestação de vontade, a inserção do referido dispositivo em nada deve influir. Trata-se, tão somente, da criação de uma possibilidade de saída do acionista da sociedade que optar pela arbitragem como

50 CARVALHOSA, Modesto de Souza Barros. Comentários à lei das Sociedades Anônimas. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 357.

51 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A comentada. Vol. I. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 617.

52 PELA, Juliana Krueger. Notas sobre a eficácia da cláusula compromissória estatutária in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Financeiro e Econômico, nº 126, abr.-jul. 2002, pp. 129-140.

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forma de solução dos conflitos internos. O não exercício do direito de retirada, por sua vez, implicará na vinculação do acionista à cláusula estatutária, independentemente do seu voto, por força do princípio majoritário.

Assim, certamente ainda existirá quem entenda que a permanência do acionista, que não exercer o referido direito de retirada, não o vincula aos efeitos da cláusula de arbitragem, posto que ausente o elemento volitivo, que é a necessária manifestação de vontade pela renúncia ao juízo estatal e adoção do juízo arbitral.

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3 O INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1 O instituto da pessoa jurídica e a limitação de responsabilidade

A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, ou disregard doctrine

of legal entity, corresponde à possibilidade de rompimento episódico da personalidade

jurídica, quando do uso indevido da pessoa jurídica por seus sócios ou administradores. Trata-se de buscar um equilíbrio de forma a assegurar a autonomia patrimonial e a existência da pessoa jurídica, ao mesmo tempo em que se protege a sociedade contra o uso indevido do instituto53.

Para que possamos analisar as razões que levaram à busca de tal equilíbrio, insta tecer alguns breves comentários sobre a pessoa jurídica. Trata-se de uma entidade pensada pelo Direito com o objetivo de promover e possibilitar avanços das atividades econômicas, criando facilidades àqueles que pretendiam se unir no intuito de iniciar ou conduzir determinado empreendimento.

Isso porque a atividade empresarial, por si só, envolve riscos dos mais diversos às pessoas naturais nelas envolvidas. A atividade empresarial, por sua vez, existe desde que o mundo é mundo, sob as feições dos comerciantes, dos mercantes, daqueles que vendiam, trocavam, permutavam mercadorias, muito antes mesmo da existência da denominação atividade empresarial. No entanto, a figura da empresa estava intrinsecamente ligada à do empresário. O comércio era o comerciante, a pessoa natural por trás daquela atividade.

Com a criação de um ente dotado de personalidade e responsabilidade, com capacidade para ser sujeito de direitos e obrigações, e que, no entanto, se diferenciava daqueles por trás deste ente, as pessoas naturais poderiam se aventurar sobre os riscos das atividades de mercado sem o receio de prejudicarem seu patrimônio próprio.

A separação entre o patrimônio das pessoas natural e da pessoa jurídica permite que ocorra uma junção de esforços para grandes empreendimentos, funcionando como um incentivo, tendo em vista que os investidores têm segurança quanto ao limite das eventuais perdas em razão do investimento realizado,

53 SARAI, Leandro. Disregard doctrine e sua aplicação pela Administração Pública in Revista de Direito Administrativo & Constitucional, pp. 193-219. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 195.

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contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento econômico54. A pessoa jurídica é

um ente que, como as pessoas naturais, pode ser sujeito de direitos e deveres. Sobre a criação das pessoas jurídicas, ensina Rubens Requião:

Não se confundem, assim, as pessoas jurídicas com as pessoas físicas que deram lugar ao seu nascimento; pelo contrário, delas se distanciam, adquirindo patrimônio autônomo e exercendo direitos em nome próprio. Por tal razão, as pessoas jurídicas têm nome particular, como as pessoas físicas, domicílio e nacionalidade; podem estar em juízo, como autoras ou como rés, sem que isso se reflita na pessoa daqueles que a constituíram. Finalmente, têm vida autônoma, muitas vezes superior às das pessoas que as formaram; em alguns casos, a mudança de estado dessas pessoas não se reflete na estrutura das pessoas jurídicas, podendo, assim, variar as pessoas físicas que lhe deram origem, sem que esse fato incida no seu organismo. É o que acontece com as sociedades institucionais ou de capitais, cujos sócios podem mudar de estado ou ser substituídos sem que se altere a estrutura social.55

É neste sentido que a criação da pessoa jurídica, que não se confunde com a pessoa de seus membros, significou a criação de um grande incentivo e benefício aos empreendedores: a limitação da responsabilidade patrimonial das pessoas naturais em seus empreendimentos. Sob as lições de Fabio Ulhôa Coelho56:

[...] pelas obrigações da pessoa jurídica responde, em regra, apenas o patrimônio. É, em geral, incabível a responsabilização do membro da pessoa jurídica por obrigação que não é dele, mas dela. O credor do ente moral (sociedade civil ou comercial, associação ou fundação) não pode, em princípio pretender a satisfação de seu crédito no patrimônio individual de membro da entidade, mesmo em se tratando da pessoa que a representa no negócio ou na ação judicial, já que são sujeitos de direito distintos.

A separação entre a pessoa jurídica e seus membros tem como consequência a autonomia patrimonial. Com a criação da personalidade jurídica surge um novo centro de imputação de direitos e deveres, titular de relações jurídicas, com capacidade para contrair obrigações e com patrimônio próprio, dissociado do patrimônio do(s) seu(s) membros.

A separação patrimonial entre a sociedade e seus sócios faz com surja dois tipos de responsabilidade. No caso da responsabilidade primária, a sociedade responde pelas obrigações contraídas em seu nome com seus bens presentes e

54 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2, p. 15-16; COMPARATO,Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: RT, 1976. p. 359; JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1987. p. 46-51

55 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Forense, 1998. p. 204.

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futuros. A responsabilidade secundária permite a execução do patrimônio pessoa dos sócios, de acordo com o tipo societário escolhido57.

Nas sociedades anônima e limitada não há responsabilidade secundária, desde que integralizado o capital social. Trata-se, nestes casos, de aplicação do princípio da autonomia patrimonial. Distingue-se o patrimônio da pessoa jurídica dos seus sócios e cada um responde pelas obrigações assumidas por seu titular.

Ocorre que, conforme mencionado, a limitação de responsabilidade dos sócios não é consequência automática do reconhecimento da personalidade jurídica, embora a pessoa jurídica detenha autonomia patrimonial. Isto porque o tipo de limitação de responsabilidade dos sócios depende do tipo societário da pessoa jurídica. Para melhor explicar esta questão, Viviane Muller Prado e Antonio Deccache58 explicam o

desenvolvimento dos tipos societários no direito brasileiro:

Até 1919, os comerciantes tinham a opção de se organizar por algum dos tipos societários previstos no Código Comercial de 1850 ou então na forma de sociedade por ações (S.A.). Nenhum dos tipos de sociedade do Código Comercial conferia limitação de responsabilidade a todos os sócios. Somente pelas sociedades por ações, havia a limitação da responsabilidade de todos os sócios ao valor de subscrição das ações. A S.A., entretanto, configurava-se como instrumento bastante custoso e burocrático para as pequenas e médias empresas.

Em 1919, foi criada no Brasil a sociedade por quotas de responsabilidade limitada pelo Decreto nº 3.708, de 10 de janeiro de 1919. Tratava-se de diploma legal extremamente simplificado, com apenas 18 artigos, que conferia amplo campo para o exercício da autonomia de vontade para a configuração das estruturas internas das sociedades comercial. Além da simplificação da burocracia, se comparada às exigências das sociedades por ações, as sociedades por quotas de responsabilidade limitada conferiam a todos os sócios a limitação da responsabilidade ao montante do capital social após a sua integralização.

Com o surgimento das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, os tipos societários do Código Comercial de 1850 caíram, pouco a pouco, em desuso59, justamente por não possibilitar a limitação de responsabilidade da totalidade de sócios605 e, por isso, ser incapaz de restringir o risco dos empreendedores.

57 NEGRÃO, Ricardo. Direito empresarial: estudo unificado. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 59.

58 PRADO, Viviane Muller; DECCACHE, Antonio. Arbitragem e desconsideração da pessoa jurídica. In: CONPEDI. (Org.). Direito Empresarial. XXI Congresso Nacional do CONPEDI/UFF. 1ed.Florianópolis:

FUNJAB, 2012, p. 216-245, pp. 221-222. Disponível em <

http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=f5496252609c43eb>. Acesso em 11/02/2018.

59 Vide estatística do Departamento Nacional de Registro de Comércio (DNRC), de 2005, onde as sociedades limitadas somam 4.300.257; as sociedades por ações, 20.080; as cooperativas, 21.731; e os demais tipos societários apenas 4.534. Disponível em: <http://www.dnrc.gov.br>. Acesso em: 23 agosto 2012. In PRADO; DECCACHE, Ibid.

60 Em 1961, o Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (TASP) decidiu pela penhora de bens de sócio, com base no art. 350 do Código Comercial, mas se tratava, como afirmado no acórdão de “sociedade de responsabilidade solidária” (BRASIL. Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 1966, p. 543). In PRADO; DECCACHE, Op. cit.

(31)

Constata-se assim que o instituto da pessoa jurídica (e a conseqüência da separação patrimonial) conjuntamente com a simplificação trazida pelas sociedades por quotas de responsabilidade limitada forneceram aos pequenos e médios empresários o instrumental necessário para organizar a sua atividade empresarial, de forma a restringir os seus riscos ao valor aportado a título de capital social.

Assim, com a adoção dos tipos de sociedades empresárias por quotas de responsabilidade limitada, o patrimônio dos sócios somente será atingido até o limite da sua participação do capital social da sociedade, possibilitando que os membros das pessoas jurídicas assumam os riscos da empresa de forma limitada.

No entanto, se por um lado a criação da personalidade jurídica foi essencial para o desenvolvimento empresarial e econômico, notadamente em razão dos benefícios decorrentes da formação das sociedades empresariais com a autonomia patrimonial, por outro, a pessoa jurídica se tornou, em alguns casos, instrumento de fraude e ilícitos cometidos pelos sócios, em nome da pessoa jurídica.

Isto porque, a partir da criação da personalidade jurídica, os sócios puderam contrair obrigações sem se preocupar com a possibilidade de ter o seu patrimônio pessoal atingido no caso de inadimplemento. Se os sócios de uma empresa contraíssem obrigações e esta não lograsse de capital para adimpli-las, a situação assim permaneceria, visto que, em virtude da prerrogativa da personalidade jurídica, os bens pessoais destes sócios não poderiam ser utilizados para satisfazer o crédito dos credores61.

Assim, surge a teoria da superação da personalidade jurídica, ou teoria da desconsideração da personalidade jurídica, também chamada de teoria da penetração, de forma que os atos cometidos pelos sócios de forma abusiva podem levar à superação da personalidade jurídica com o objetivo de atingir o patrimônio pessoal dos seus sócios.

3.2 Desconsideração da personalidade jurídica: conceito e origem

Com a criação da pessoa jurídica, e com a importância da sua existência para a economia, identificou-se um movimento de tamanha valorização da autonomia

61 SILVA, Osmar Vieira. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 73.

Referências

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