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O construtivismo kantiano segundo a interpretação de John Rawls

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE - ICA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

TEDSON MAYCKELL BRAGA TEIXEIRA

O CONSTRUTIVISMO KANTIANO SEGUNDO A INTERPRETAÇÃO DE JOHN RAWLS

FORTALEZA 2017

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TEDSON MAYCKELL BRAGA TEIXEIRA

O CONSTRUTIVISMO KANTIANO SEGUNDO A INTERPRETAÇÃO DE JOHN RAWLS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Área de concentração: Ética e Filosofia Política.

Orientador: Prof. Dr. Konrad Christoph Utz.

FORTALEZA 2017

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca Universitária

Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

T27c Teixeira, Tedson Mayckell Braga.

O construtivismo kantiano segundo a interpretação de John Rawls / Tedson Mayckell Braga Teixeira. – 2017.

152 f. : il.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de cultura e Arte, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Fortaleza, 2017.

Orientação: Prof. Dr. Konrad Christoph Utz.

1. Construtivismo. 2. Moralidade. 3. Matemática. 4. John Rawls. 5. Immanuel Kant. I. Título.

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TEDSON MAYCKELL BRAGA TEIXEIRA

O CONSTRUTIVISMO KANTIANO SEGUNDO A INTERPRETAÇÃO DE JOHN RAWLS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Área de concentração: Ética e Filosofia Política.

Aprovada em: 31/07/2017.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Konrad Christoph Utz (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Prof. Dr. Átila Amaral Brilhante

Universidade Federal do Ceará (UFC)

________________________________________ Prof. Dr. Kleber Carneiro Amora

Universidade Federal do Ceará (UFC)

________________________________________ Profª. Drª. Zilmara de Jesus Viana

Universidade Federal do Maranhão (Ufma)

________________________________________ Prof. Dr. Wandeilson Silva de Miranda Universidade Fedeal do Maranhão (Ufma)

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A todos que colaboraram direta ou

indiretamente para com a realização deste trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Aos professores e funcionários do programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará, na pessoa do seu atual coordenador Prof. Dr. Hugo Filgueiras de Araújo, a quem devo, junto ao Colegiado deste Programa, favores inestimáveis que superam o mero dever burocrático.

Ao Prof. Dr. Konrad Utz, que sempre esteve presente ao longo de toda essa trajetória, de maneira honesta, conciliadora e generosa, mostrando que para além de um profissional exemplar, é uma figura humana de extremo valor e enorme competência. Agradecerei eternamente pelo privilégio dessa convivência.

Aos professores Kléber Amora, Átila Brilhante e Wandeilson Miranda por aceitarem o convite para a composição desta banca e por suas contribuições sinceras e cuidadosas.

À professora Drª Zilmara de Jesus Viana, pela amizade, confiança e sinceridade ao longo destes anos. Mesmo à distância, tenho tentado honrar seus ensinamentos. Agradeço imensamente por tudo que ela representa em minha vida acadêmica e pessoal.

Ao colegiado de Ciências Humanas da Ufma, Campus de São Bernardo, na pessoa do seu Excelentíssimo Coordenador Prof. Dr. Clodomir, do nosso estimado e respeitado Diretor Prof. Dr. Josenildo Brússio, pela constante atenção a cada vez que eu precisei da compreensão de ambos.

À minha amada companheira, Francimare Barbosa, pelo amor, dedicação, humanidade, cumplicidade, cuidado e paciência demonstrados ao longo destes anos.

A todos os amigos que de maneira direta ou indireta contribuíram com suas amizades, conselhos, ajudas profissionais, e livros, em especial ao amigo de longa data, Hugo Filgueiras de Araújo pelo inestimável apoio, sem o qual, dificilmente, este doutorado teria sido possível.

Ao amigo e colega Wandeilson Miranda, pelo constante apoio, incentivo e companheirismo acadêmico.

Ao colega e vizinho Winston Silva, pelas conversas e pelos inestimáveis livros.

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“What would you think if i sang out of the tune?

Would you stand up and walk out on me? Lend me your ears and i’ll sing you a song And i’ll try not to sing out of key

Oh, i get by with a little help fron my friends Mm, gonna try with a little help from my friends [...]”.

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RESUMO

Nos idos da década de 70 do século passado, John Rawls deu início à construção do edifício teórico que o notabilizaria cerca de 20 anos depois como um dos maiores nomes da Filosofia Política daquele século. Ele defende uma nova concepção de pacto social afim de que as distorções, principalmente materiais, éticas e simbólicas em uma sociedade sejam equacionadas por meio de um expediente abstrato e universalmente disponível a todos os membros de uma comunidade. Por esse meio, teríamos a criação de princípios de justiça, aos quais qualquer um pode dar o seu livre e refletido assentimento, que corrobora ou rejeita determinado princípio geral de convivência. Rawls classifica a sua metodologia como um caso patente de construtivismo moral (posteriormente, construtivismo político) e alega filiar-se à filosofia moral kantiana, que, segundo o filósofo estadunidense, é o domínio primordial da doutrina construtivista, mais até que as matemáticas. Justamente a este ponto específico dirigimos nossa atenção neste trabalho: Quão construtivista é, de fato, o pensamento de Kant? Será que Rawls, nesta interpretação que se mostrou extremamente profícua no fim do século passado, não cometeu equívocos graves ou generalizações descuidadas ao tratar como epistemologicamente correlatas áreas tão metodologicamente distintas do pensamento kantiano? É à caracterização dos passos desta interpretação e dos temas kantianos que ela envolve, a saber, os conhecimentos racionais puros, tanto teóricos quanto morais, e principalmente as matemáticas, para posterior análise crítica dos méritos e limitações de tal intepretação que dirigimos aqui nossos esforços. Inicialmente referido por Kant apenas às matemáticas (geometria, aritmética e álgebra), nosso trabalho consiste em analisar a plausibilidade da importação desta metodologia para a filosofia moral kantiana, determinando, assim, até que ponto interpretação de Rawls sobre o pensamento kantiano encontra respaldo seguro no texto do filósofo prussiano.

Palavras-chave: Construtivismo. Moralidade. Matemática. John Rawls. Immanuel

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ABSTRACT

In the late 1970s, John Rawls began building the theoretical edifice of notabilization around 20 years later as one of the greatest examples of the philosophy of the century's history. He advocates a new design of social issues as primarily material, ethical, and symbolic distortions in a society are equated through a global model universally available to all members of a community. By this means we would have the creation of principles of justice, in which anyone can give his free and high consent that corroborates or rejects his general sense of coexistence. Rawls classifies himself as an example of a patent of moral constructivism, and then joins Kantian moral philosophy, which, according to the American philosopher, is the primordial domain of constructivist doctrine, more so than as mathematics. It is precisely at this particular point that we turn our attention to this work: How constructivist, in fact, is Kant's thought? Are the Rawls, the interpretation that is incredibly fruitful at the end of the last century, not committing to graves or generalizations, by treating as epistemologically related areas of methodologies distinct from Kantian thought? It is one of the characteristics of the knowledge and thematic themes that involve knowledge, knowledge, pure rational, both theoretical and moral, and mainly as mathematics, for later analysis of the critique of the merits and restrictions of interpretation that direct our efforts. Initially referred to by Kant only in mathematics (geometry, arithmetic and algebra), his work consists of analyzing the sufficiency of a didactic methodology for Kantian moral philosophy, thus determining until the text of the Prussian philosopher is interpreted.

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LISTA DE FIGURAS

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 12

2 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA: RAWLS, KANT E O CONSTRUTIVISMO ... 15

3 O CONSTRUTIVISMO KANTIANO: CONHECIMENTOS PUROS A PARTIR DAS CATEGORIAS DO ENTENDIMENTO E DAS MATEMÁTICAS ... 46

3.1 Contexto histórico: Kant e a fundamentação das ciências racionais ... 46

3.2 A construção do critério de verdade dos conhecimentos a partir da lógica transcendental ... 52

3.3 A significabilidade dos conceitos puros do entendimento ... 64

3.4 O método da construção e o caráter apodítico da matemática ... 71

4 OBSERVAÇÕES SOBRE A MORALIDADE NO PENSAMENTO KANTIANO ... 86

4.1 Sobre a gênese do conceito de liberdade ... 88

4.2 O conceito de autonomia da vontade ... 98

4.3 Sobre os limites do Imperativo Categórico ...105

4.4 O direito racional como exemplo da produção de princípios de justiça ...107

5 O CONSTRUTIVISMO E OS LIMITES DA MORALIDADE ...121

5.1 Sobre a possibilidade do conhecimento prático ... 124

5.2 Possíveis caminhos de um construtivismo moral: o conhecimento prático ... 133

5.3 Sobre o construtivismo moral em Kant aos moldes do pensamento de John Rawls ... 139

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 146

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1 INTRODUÇÃO

O século XX tem sido palco de diversos fenômenos políticos que deixaram marcadas às suas passagens ao longo dos anos. Junto a essas convulsões sociais, alguns pensadores têm tratado de mapear (na maioria dos casos sem sucesso), aquilo que Hegel chamaria de ‘marcha do espírito universal’, sem, contudo, ter a pretensão de lhe descrever a lógica interna.

Um destes, John Rawls, filósofo americado falecido em 2002, que passou o tempo do seu labor desenvolvendo uma teoria chamada “Justiça como Equidade” em resposta a um ambiente em que a teoria ética e política melhor eceita era o utilitarismo, que, como veremos ao longo do texto, não seria o mais adequado para um ambeinete em que as diferenças entre os membros de uma sociedade que se encontra em desequilíbrio político e econômico.

Sua obra magna, “Theory of Justice”, foi lançada em 1971, ano que viu desde o lançamento da Apolo 14 até a Guerra do Vietnã, época em que no Brasil e em boa parte da América Latina, vivíamos momentos controversos, dividindo-nos ao longo de anos entre ditaduras militares e guerrilhas. Inclusive, a hoje já esquecida guerra fria estava a pleno vapor, com a extinta União Soviética testando armas submarinas cada vez mais destruidoras. Porém, uma coisa que nos chama a atenção nesta obra é a completa ausência de casuísticas ou críticas exasperadas. É um livro denso, composto por copiosos estudos a respeito dos fundamentos estruturais de uma sociedade bem ordenada e pautada na pressuposição hipotética de que todos nós precisamos agir como seres razoáveis e abrir mão das nossas diferenças sociais e culturais a fim de que possamos ponderar racionalmente sem a interferência de condicionantes externos a respeito da concepção de justiça que assumiremos coletivamente como guia de um pacto social em que todos possam se postar não apenas como submetidos ao poder, mas, como legisladores dos princípios deste.

Teria este livo absolutamente tudo para não ser lido por criticar os intuicionismos éticos e o utilitarismo, por não propor um estudo materialista da sociedade de então, por usar expedientes hipotéticos para elaborar princípios de justiça e mais do que tudo, por afirmar em momentos cruciais que retira da filosofia moral kantiana boa parte da inspiração para sedimentar a sua contribuição para um

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13 quadro de efervescência civil que os americanos viviam então, com sua sociedade novamente dividida, mas agora em função do apoio e do desapoio à campanha do Vietnã, bem como do veto ou da permissão para que os negros americanos tivessem os mesmos direitos civís que os brancos americanos.

Rawls, então, justifica a sua volta ao iluminismo kantiano (e também à antiguidade grega, de onde traz a noção de justiça distributiva), por precisar se contrapor a um extremo relativismo, ceticismo e atomismo social, característicos do século XX, sem recorrer às mesmas armas, nem a uma concepção materialista de natureza humana ou mesmo tentar encontrar na tradição alguma guarida para a ausência de critérios que estejam acima da dimensão política dos acordos e dos interesses particulares. Justamente nessa negação inicial às considerações particulares, Rawls encontra a utilidade de recuperar elementos da ética kantiana, uma vez que o filósofo prussiano parte da caracterização de uma vontade que pode superar as determinações empíricas dos interesses e agir ‘como se’ fosse um ser absolutamente racional.

Com isto, temos o retorno do pensamento kantiano com bastante força e uma nova possibilidade de interpretação da filosofia moral do prussiano, desde então, tem ganhado cada vez mais espaço. Uma das novidades que a contribuição de Rawls trouxe para o seio do kantismo, foi nos perguntarmos se Kant é ou não um construtivista moral.

Este não é um problema político, como se pode ver, posto que não precisaríamos criticar o pensamento de Rawls que é em si mesmo, eminentemente político, para analisarmos até que ponto essa interpretação realmente nos ajuda a fazer algo de novo com o pensamento do filósofo de Königsberg.

Para que alguém possa investigar esse tema, precisa, primeiramente, de uma noção prévia do que Rawls, em suas obras, atribui a Kant. Além disso, uma incursão no vocabulário kantiano se faz mais que necessária, dado que se trata de uma categoria do século XX sendo atribuída a um pensador do século XVIII e a possibilidade de se cometer um anacronismo é muito grande, caso não haja o devido cuidado no tratamento dos termos. Nosso interesse é, antes de mais nada, entender quais estruturas conceituais estão envolvidas no termo ‘construtivismo moral’, assim, nada mais natural que tentarmos entender o que Kant entende por construtivismo e

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14 se esse termo pode ser aplicado à sua filosofia moral e se para que se ganhe desse lado, não estejamos abrindo mão da coerência interna do pensamento do filósofo prussiano.

Nosso objeto, então, se resume nessa análise da inovadora interpretação de John Rawls, já que se abriu um campo inteiramente novo e fecundo para discussão, se isto foi feito sem o devido tato para com a arquitetônica do sistema kantiano, estaríamos falando de outro pensador que não o próprio Kant e divulgando concepções que apesar de populares e agradáveis aos nossos ouvidos contemporâneos, soariam como um ruído terrível nos tímpanos do velho pensador prussiano.

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15

2 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA: RAWLS, KANT E O CONSTRUTIVISMO

Neste trabalho pretendemos abordar criticamente aquela que hoje é considerada uma das mais influentes correntes em metaética, a saber, o construtivismo1 moral, tendo como foco principal o pensamento de John Rawls, mais especificamente a sua autoproclamada filiação com a tradição da ética kantiana. O percurso da interpretação do pensamento moral kantiano traçado pelo filósofo estadunidense é o seguinte: John Rawls atribuiu à designação “construtivista” a Kant e a si mesmo, a partir da publicação dos textos “Kantian Constructivism in Moral Theory”, de 1980, “Themes in Kant’s Moral Philosophy” de 1989 e de maneira lapidar na obra ‘Political Liberalism’ de 1993 que revisa boa parte dos argumentos da mais importante contribuição, o livro “Theory of Justice”, referência quase obrigatória em todos os cursos de filosofia política, inspirando afirmações quase folclóricas como:

“Após o lançamento da Teoria da Justiça, temos apenas duas opções; ou a lemos, ou devemos explicar porque não o fizemos”.

Por último, em sua obra póstuma ‘Lectures on the History of Moral Philosophy’, que consiste em uma série de conferências ministradas por Rawls na Universidade de Harvard, ele replica, esclarece e revisa a totalidade da sua interpretação construtivista do pensamento moral kantiano, o que confere um caráter mais consistente da interpretação que ele faz do pensamento de Kant. Entretanto, a título de esclarecimento, devemos apresentar a que problemas responde a proposta construtivista e porque justamente o pensador prussiano entra em cena neste debate. Os construtivistas caracterizam-se, essencialmente, por criticarem, principalmente (no caso de Rawls), o utilitarismo. Segundo eles, não se podem derivar princípios de justiça a partir de bases historicamente comprometidas, como os costumes de um determinado povo, nem sequer de uma moralidade intuicionista, característica de “doutrinas abrangentes não razoáveis” (aquelas que se arvoram abranger universalmente a história humana), que formam um sistema rígido e, por vezes, imutável de crenças, fechado em seus próprios princípios de compreensão do mundo realista e impossibilitado de lidar com situações críticas de choque cultural em

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16 sociedades pluralistas ou de desigualdades sociais latentes, onde um determinado grupo social locupleta-se com a manutenção do poder político pelos mais diversos modos sem permitir nem a alternância nem a emergência de novas representações de diferentes parcelas da sociedade.

Nestas circunstâncias, surge a necessidade de se rediscutir a maneira pela qual estabelecemos as noções do que é justo e injusto enquanto aquilo que institui a convivência básica das pessoas, uma vez que diante do quadro social descrito acima se faz necessário trazer o problema à tona e nos perguntarmos tanto a respeito dos atores que estão diretamente envolvidos no processo deliberativo a respeito da definição dos princípios de justiça que regulam a distribuição de bens sociais e do poder, quanto às metodologias utilizadas por aqueles protagonistas no processo de estabelecimento destas diretrizes.

Em resposta a tais questionamentos, os utilitaristas creem que seja suficiente apenas que nos comprometamos a aumentar as possibilidades de satisfação das necessidades e dos prazeres das pessoas, proporcionando felicidade e reduzir a ocasiões que gerem desprazer à menor ocorrência possível. Já por parte do intuicionista a crença na existência de uma dimensão “supra ética”, da qual se possa derivar de maneira inequívoca o bem, assim estabelecendo o parâmetro do que é moralmente correto e do que é imoral e recriminável, é mais que suficiente para a correção das distorções na distribuição do poder e dos bens sociais.

O debate a respeito da proposta construtivista em filosofia moral e política começou com Rawls por razões de insuficiência dos modelos éticos disponíveis em seu contexto histórico (Rawls viu pessoalmente a efervescência da luta por direitos civis nos Estados Unidos e desde berço teve a sua mãe como exemplo de engajamento social), resolveu que deveria problematizar não apenas as distorções sociais em si mesmas, deveria ir além disso e postular uma nova base para os acordos comunitários abrangentes que pudessem viabilizar, inclusive, restrições a pessoas já amplamente beneficiadas na partilha das riquezas de uma sociedade, alterando drasticamente a maneira de se pensar a fundamentação de um pacto social2.

2 Os ataques de Rawls, já na sua Teoria da Justiça, são contundentes em relação à divisão desigual de poderes e

privilégios, mesmo dentro de um ambiente que se considera formalmente igualitário, mas que não pensa a divisão de bens sociais de maneira equânime. A exemplo disso, temos a seguinte passagem que revela tais intenções do pensador americano: “If some have more votes than others, political liberty is unequal; and the same is true if the

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17 Num contexto pluralista, pouco adiantaria alegar princípios derivados de determinada crença religiosa como fundamento da normatividade da justiça, uma vez que todas as pessoas abrangidas não poderiam ser compelidas a dar o seu assentimento à lei e se engajarem como cidadãos ativos na comunidade, já que lhes faltaria o reconhecimento da carga semântica e simbólica do que é apresentado como justificativa da lei ordenar a fazer isto e não aquilo. O mesmo dilema de Antígona poderia ser encenado a cada vez que se ordenasse a um cidadão hindu, por força de uma lei fundamentada em uma matriz axiológica dominante, (estados que alegam seguir uma lei divina) agir contra suas crenças básicas e em total desacordo com suas tradições3. Faltaria à normatividade o reconhecimento por parte de todos aqueles que

votes of some are weighted much more heavily, or if a segment of society is without the franchise altogether. In many historical situations a lesser political liberty may have been justified. [...] These constraints do not justify the loss of liberty of conscience and the rights defining the integrity of the person. The case for certain political liberties and the rights of fair equality of opportunity is less compelling. As I noted before (§11), it may be necessary to forgo part of these freedoms when this is required to transform a less fortunate society into one in which all the basic liberties can be fully enjoyed. Under conditions that cannot be changed at present, there may be no way to institute the effective exercise of these freedoms; but if possible the more central ones should be realized first. In any cse, to accept the lexical ordering of the two principles we are not forced to deny that the feasibility of the basic liberties depends upon circumstances. We must, however, make sure that the course of change being followed is such that social conditions will eventually be brought about under which restrictions on these freedoms are no longer justified. Their full achievement is, so to speak, the inherent long-run tendency of a just system” (RAWLS, 1990, p. 217-218).

“Se alguns têm mais votos do que outros, a liberdade política é desigual; E o mesmo é verdade se os votos de alguns são ponderados muito mais fortemente, ou se um segmento da sociedade está sem a franquia completamente. Em muitas situações históricas, uma liberdade política menor pode ter sido justificada. [...] Essas restrições não justificam a perda da liberdade de consciência e os direitos que definem a integridade da pessoa. O caso para certas liberdades políticas e os direitos da igualdade de oportunidades justas é menos atraente. Como eu notei antes (§11), é necessário renunciar a uma parte dessas liberdades quando isso é necessário para transformar uma sociedade menos afortunada em uma em que todas as liberdades básicas possam ser plenamente aproveitadas. Sob condições que não podem ser alteradas no presente, pode não haver maneira de instituir o exercício efetivo dessas liberdades; Mas, se possível, os mais centrais devem ser realizados primeiro. Em qualquer caso, para aceitar a ordem lexical dos dois princípios, não somos forçados a negar que a viabilidade das liberdades básicas depende das circunstâncias. No entanto, devemos garantir que o curso das mudanças que se seguem seja tal que as condições sociais acabem por ser levadas a cabo segundo as quais as restrições a essas liberdades não são mais justificadas. A sua plena conquista é, por assim dizer, a tendência inerente a longo prazo de um sistema justo.” (Todas as traduções de comentadores e dos textos de Rawls são de nossa autoria, porém, acompanhamos de perto as obras deste filósofo disponibilizadas em português. Processo oposto fizemos com o texto kantiano, onde citamos traduções consolidadas para o nosso idioma, sem, contudo, deixar de ter acesso aos textos originais para eventuais consultas).

3 Este seria um caso mais que perfeito para testar a vitalidade do pensamento kantiano, analisando este claro

problema de inadequação entre os princípios de um pacto social e a realidade por ele gerenciada. Poderíamos escolher, por exemplo, dentro da razão prática, o primeiro e o terceiro momentos da quarta categoria da liberdade, a modalidade (KANT, 2003, p.229). Neste ponto Kant apresenta a categoria da Modalidade como aquilo que determina a relação do ente racional com os deveres, sejam eles ligados à moralidade ou a regras heterônomas. Tais deveres se limitam aos que são possíveis, aos existentes e aos absolutamente necessários. Num primeiro momento, o ente racional deve agir de acordo com aquela lei que lhe permita diferenciar atos moralmente permitidos daqueles não permitidos; num segundo momento, deve dar prioridade aos deveres prescritos pela lei

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18 são membros de uma comunidade onde uma determinada parte que não partilha dos princípios axiológicos dominantes e nem se pode pensar como válida a opção da conversão desta minoria à fé, à história e a visão de mundo do grupo dominante.

Por outro lado, reduzir a importância destes expedientes simbólicos e priorizar as relações baseadas na satisfação de cada um dos nossos desejos (ou de determinados grupos), a partir de uma generalização onde as necessidades humanas são colocadas em perspectiva e a partir daí mobilizaríamos esforços em função do aumento de satisfação e do nível de felicidadedos cidadãos também não parecia a melhor solução para os dilemas sociais oriundos da má distribuição dos poderes e da renda. Neste caso, estaríamos diante do utilitarismo, contra o qual Rawls dirige boa parte de suas críticas na sua “Teoria da Justiça”.

O utilitarismo pode ser definido, primeiramente, como uma teoria ética hedonista e consequencialista. Consequencialista porque o foco da análise a respeito da moralidade de uma ação se fixa nas consequências desta e não na intenção com a qual é praticada. Hedonista porque o fim último de toda ação visa o prazer maximizado dos seres humanos. Isto nos conduz a um princípio de ação específico que nos ordena a orientar as ações humanas de acordo com um princípio que valoriza ao extremo a felicidade e esta é definida pelo prazer obtido como consequência das nossas ações. Assim, algo é correto quando gera prazer e incorreto quando causa dor. Ademais, na caracterização do valor “felicidade” é fundamental o critério chave de justiça e moralidade, a “utilidade”.

Um ponto determinante do utilitarismo enquanto doutrina ética é o método pelo qual o princípio da utilidade enquadra as ações enquanto boas ou más de acordo com o valor “felicidade”, ou seja, promover o prazer como consequência das ações e evitar o seu oposto, a dor e o sofrimento impostos aos outros em função de uma determinada ação. É boa a ação que causar prazer e má a que implicar em dor. Deste esquema básico partem as teorias de Bentham e as de Stuart Mill, porém, não se

moral em detrimento da satisfação de necessidades pessoais e da procura da felicidade (enquanto estado de plena satisfação pessoal). Num terceiro e último momento, Kant enuncia uma de suas mais famosas prescrições sobre a relação entre a lei moral e uma constituição civil – aja sempre por dever (em observância às máximas que satisfaçam as condições do imperativo categórico, mais que meramente pela simples obediência civil uma lei pública. Neste pequeno caso que apresentamos, do desacordo entre as leis do estado e princípios éticos baseados em uma matriz religiosa, qualquer cidadão seria confrontado com o dilema entre desobedecer as leis civis e ser convidado a passar alguns dias (ou anos), na cadeia da sua cidade ou viver confortavelmente toda uma existência de acordo com o poder vigente e ser condenado à danação eterna em uma hipotética vida pós morte.

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19 reduzem uma à outra por conta do caráter qualitativo que Mill defende. Bentham parte da ideia de um “cálculo” que deve ser feito para aplicar o princípio da utilidade às ações humanas, que leva em consideração o aspecto quantitativo na contabilidade do prazer ou da dor que será obtida como consequência de uma ação qualquer. Enquanto economista político, ele parametrizou as ocorrências destas sensações mediante a quantificação daquilo que nelas pudesse ser objetivado, para que não corresse o risco de sucumbir às idiossincrasias particulares, o que, sem o devido cuidado, levaria a um solipcismo que impossibilitaria a construção de uma noção intersubjetiva que garantisse que todos os membros de uma comunidade pudessem apreender o sentido de uma lei, bem como chegar a um consenso de qual ação é moralmente boa ou má.

Pelo princípio da utilidade, uma ação é boa se causa satisfação nos seres humanos e se torna tanto mais justa quanto maior for a quantidade de sujeitos atendidos pelas consequências benéficas de uma ação, sendo que, a caracterização de “bem” implica, para um utilitarista como Bentham, a quantidade de prazer causado pela ação oriunda de um cálculo utilitário, única metodologia conveniente para chegar-se à ação que chegar-será boa ou má. Tem-chegar-se, portanto, como objetivo, majorar a quantidade de prazer e reduzir a quantidade de sofrimento causado aos homens por quaisquer ações em uma comunidade, este objetivo seria atingido exclusivamente pela aplicação de um cálculo das utilidades.

Mill, ao contrário de Benthan, percebe que a caracterização meramente quantitativa dos prazeres, sem qualquer modulação de gênero ou espécie, conduz a resultados pouco interessantes por conta da impossibilidade de se comensurar com precisão o prazer e a felicidade das pessoas sem cair em conflitos de interesse por vezes intransponíveis. Enquanto Bentham aduz a satisfação dos prazeres para a concretização da felicidade, Mill defende que a satisfação dos prazeres ainda conduz à felicidade, porém, os prazeres são de tal ordem que há entre eles uma diferença básica de natureza que impossibilita que o objeto de gozo de um prazer possa vir a suplantar a necessidade de satisfação de um prazer de outra natureza. Há, para Mill, uma gradação entre os prazeres e se pode dividi-los em duas categorias distintas: os superiores, que se ligam ao gozo de natureza intelectual por meio das faculdades superiores da razão, e os inferiores, que por sua vez se ligam ao gozo imediato do

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20 prazer que não leva em consideração os sentimentos mais elevados que podem ser conhecidos apenas pelo aprimoramento das faculdades intelectuais mediante o aperfeiçoamento cultural por meio da educação dos sujeitos.

É bastante compatível com o princípio da utilidade reconhecer o fato que alguns tipos de prazer sejam mais desejáveis e mais valiosos que outros. Enquanto na avaliação de todas as outras coisas a qualidade é levada em consideração, tanto quanto a utilidade, seria absurdo supor que a avaliação dos prazeres dependesse depender de quantidade [...] é um fato inquestionável que aqueles que estão inteirados de ambos os prazeres e inteiramente capazes de avalia-los e apreciá-los deem uma preferência mais notada àquele que dá vida às suas faculdades mais elevadas. [...] Um ser de faculdades superiores requer mais para ser feliz, é capaz provavelmente do mais intenso sofrimento e é mais suscetível a ele em muitos pontos do que um ser do tipo inferior, mas apesar dessas suscetibilidades, ele nunca poderá desejar afundar naquilo que ele acha ser um nível inferior da existência. (MILL, 2007, p.24-25)

Assim, Mill atrela um caráter qualitativo à teoria utilitarista e por meio deste expediente insere uma hierarquia diferente de prazeres no cálculo das utilidades. Enquanto Bentham caracterizava uma ação enquanto boa apenas pela quantidade de pessoas atingidas pela maior quantidade de prazer, Mill avança neste postulado e estabelece na sua versão do cálculo utilitário, um elemento tipicamente iluminista, que é o otimismo sustentado pela ideia de progresso baseado na implementação de ações que favoreçam o desenvolvimento da natureza intelectual do ser humano.

A este respeito, John Rawls desenvolve uma crítica pontual à doutrina utilitarista partindo exatamente da diferença entre os seus respectivos métodos para gerarem princípios de justiça de certa maneira equivalentes. O filósofo norte americano defende a tese de que um princípio de justiça deve ser aquele que segue o critério da equidade, ou seja, divide os bens sociais e direitos de maneira equilibrada não conforme um cálculo de proporções, mas de acordo com a análise da situação particular de cada sujeito quanto possível, privilegiando sempre na divisão dos bens coletivos aqueles cidadãos que estiverem em maior situação de risco social.

Rawls afirma que o utilitarismo nada mais é, no que diz respeito ao seu princípio de justiça, do que a reprodução do critério de ação de um homem para toda uma comunidade. Essa extensão seria justificada porque há um traço comum que liga a todos os seres humanos, a sua natureza, porém, este aspecto, antes de ser uma consequência, é tomado como pressuposto e elementos como o sentimento de

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21 simpatia, por exemplo, são tomados como autoevidentes por meio da simples observação empírica do ser humano.

Uma vez que o princípio para o indivíduo consiste em promover, na medida do possível, seu próprio bem-estar, seu próprio sistema de desejos, o princípio para a sociedade é promover ao máximo o bem-estar do grupo, realizar até o mais alto grau o abrangente sistema de desejos ao qual se chega com a soma dos desejos de seus membros [...] dessa forma, por meio da observação dos fatos, chega-se ao princípio da utilidade de um modo natural: uma sociedade está adequadamente ordenada quando suas instituições maximizam o saldo líquido de satisfações. O princípio da escolha para uma associação de seres humanos é interpretado como uma extensão do princípio da escolha para um homem4 (RAWLS, 1999, p. 25-26).

(Tradução nossa).

Rawls não encontra problemas com relação ao fato de um homem específico encarnar a tarefa de legislador privilegiado ou modelo, já que algum princípio de justiça deve ser elaborado como parâmetro para todas as ações morais. O que Rawls aponta como problemático no utilitarismo é a maneira pela qual se chega até este “ser humano” privilegiado, pois seria arbitrária a identificação dos desejos de todos em um sistema que poderia ser reduzido fidedignamente na cognição de apenas um sujeito hipotético, ou observador imparcial.

É esse observador que é concebido como realizador da necessária organização de todos os desejos num único sistema coerente de desejos; é por meio dessa construção que muitas pessoas se fundem em uma só. Dotado de poderes ideais de solidariedade e imaginação, o observador imparcial é o indivíduo perfeitamente racional que se identifica com os desejos dos outros e os experimenta como se fossem seus. Desse modo ele avalia a intensidade desses desejos e lhes atribui seu peso apropriado no sistema único de desejos cuja satisfação o legislador ideal tenta, então, maximizar com o ajuste das regras do sistema social5 (RAWLS, 1999, p.29).

(Tradução nossa).

4 “Since the principle for the individual is to promote, as far as possible, his own well-being, his own system of

desires, the principle for society is to promote to the maximum the well-being of the group, to perform to the highest degree The comprehensive system of desires to which one arrives with the sum of the desires of its members ... in this way, by observing the facts, one arrives at the principle of utility in a natural way: a society is properly ordered when Their institutions maximize the net balance of satisfactions. The principle of choice for an association of human beings is interpreted as an extension of the principle of choice for a man.”

5 “It is this observer who is conceived as the director of the necessary organization of all desires in a single coherent

system of desires; It is through this construction that many people merge into one. Endowed with ideal powers of solidarity and imagination, the impartial observer is the perfectly rational individual who identifies with the desires of others and experiences them as his own. In this way he evaluates the intensity of these desires and assigns them their proper weight in the single system of desires whose satisfaction the ideal legislator then tries to maximize by adjusting the rules of the social system.”

(22)

22 Rawls critica, portanto, o pressuposto geral assumido simbolicamente pelo utilitarismo na figura do espectador desinteressado e benevolente. Este só pode ser viável mediante a aceitação de que a simpatia significa além de um instinto, um meio pelo qual podemos ter acesso a uma compreensão privilegiada do outro de modo que se possa até mesmo imaginar com um bom grau de clareza e correção que danos subjetivos podem acometer um determinado sujeito. O filósofo norte americano, portanto, critica severamente a redução dos sistemas de desejos a uma matriz quantitativa e sua grande ressalva quanto ao utilitarismo é que este não possui um espectro amplo o suficiente para observar as diferenças mais sutis entre os sujeitos, tratando-os todos como simples reflexo de um sistema geral de prazeres.

Há um sentido no qual o utilitarismo clássico é incapaz de levar a sério a distinção entre as pessoas. O princípio da escolha racional para um homem é considerado também como o princípio da escolha social. Como surge tal visão? Ela é consequência, como agora podemos ver, de se querer conferir uma base dedutiva a uma definição do justo que se baseia no observador ideal, e de se presumir que a capacidade natural dos homens para a compreensão fornece o único meio pelo qual os seus juízos morais podem entrar num acordo. As aprovações do espectador compreensivo, imparcial, são adotadas como o padrão de justiça, o que traz como resultado, a impessoalidade, a fusão dos desejos em um único sistema de desejos6

(RAWLS, 1999, p.204). (Tradução nossa).

Neste caso, apesar de reduzirmos a possibilidade de confrontos políticos causados por diferenças culturais, também reduzimos a capacidade de reconhecimento, por parte do Estado, das diferenças que se encontram num plano que vão muito além das diferenças econômicas entre os cidadãos. Assim, um estado que se orienta pela caracterização de uma maioria satisfeita por simples critérios de contabilidade falharia, flagrantemente, em reduzir um quadro de desigualdade causada pela exclusão de uma minoria caracterizada não apenas por seu número, mas, principalmente, por sua invisibilidade, uma vez que seus membros podem

6 “There is a sense in which classical utilitarianism is incapable of taking the distinction between people seriously.

The principle of rational choice for a man is also regarded as the principle of social choice. How does such a vision arise? It is a consequence, as we now see, of wanting to give a deductive basis to a definition of the just that is based on the ideal observer, and of assuming that men's natural capacity for understanding provides the only means by which their judgments Can enter into an agreement. The approvals of the sympathetic, impartial spectator are adopted as the standard of justice, which results in impersonality, the fusion of desires into a single system of desires.”

(23)

23 efetivamente ser impedidos de ascenderem a quadros representativos, conquistando, assim, um assento no debate a respeito da divisão dos bens sociais.

Falta visão ampla à política e à justiça neste caso, pois o critério materialista/econômico que estipula a expectativa de satisfação de necessidades subtende uma ideia de igualdade formal muito estreita e insuficiente para identificar casos em que um grupo específico é submetido a uma condição precária na divisão histórica dos bens sociais em função da felicidade de uma “maioria” dominante. Esta característica “impessoal” dos utilitaristas, principalmente no caso de Bentham, acaba por gerar dentro deste sistema de pensamento um contrassenso, pois se pode defender, com base no cálculo utilitário, que o sacrifício de uma pequena parte da população, ou mesmo de alguns membros de uma coletividade, poderia ser justificado por gerar o aumento da satisfação daquela maioria dominante.

Assim as desigualdades sociais poderiam ser tanto administradas quanto naturalizadas, transformando aqueles que detém a menor condição de serem representados em bodes expiatórios para um problema que se encontra na própria maneira pela qual permitimos que o conceito de justo e injusto seja definido. A normatividade, nestes casos em que há uma clara distorção entre o que é certo e errado, justo e injusto e as pessoas e grupos que vivem sob a égide destas noções, perde totalmente a sua força já que os seus princípios de justiça, apesar de alegarem tratar a todos como ‘iguais’, pecam por não entenderem as razões das diferenças e por isso não conseguem empregar meios eficazes para equalizar as discrepâncias entre os membros de uma comunidade. O princípio de justiça utilitarista não seria distributivo o suficiente, por isso, apesar da ideia formal de igualdade, em que todos valem exatamente a mesma coisa diante do cálculo utilitário, não poderia jamais ser ‘equitativo’7 por não conseguir entender que a igualdade formal não condiz com a realidade material de nenhuma sociedade.

Assim, diante da emergência em se buscar uma fonte de normatividade adequada aos dilemas históricos vivenciados, Rawls busca um princípio de justiça que seja acessível a todos de igual maneira e amplamente abrangente, ou seja, que todos

7 A este conjunto de problemas Rawls dedica a obra ‘Political Liberalism’, a qual se direciona muito mais à

for-mulação da dimensão política dos princípios de justiça que à sua dimensão metaética. Com isso, abre espaço para justificar a sua proposta como um ‘liberalismo político’ abrangente, igualitário, equitativo e capaz de servir como modelo para a criação e fundamento de revisão de pactos sociais desiguais.

(24)

24 os cidadãos subsumidos pela lei possam dar a ela o seu “livre assentimento”, independentemente das diferenças políticas, religiosas ou econômicas que os separem.

Meu objetivo foi indicar não só que os princípios da justiça se encaixam nos julgamentos considerados, mas também que eles fornecem os mais fortes argumentos para a liberdade. Em contrapartida, os princípios teleológicos permitem, na melhor das hipóteses, razões incertas para a liberdade, ou pelo menos para a igualdade de liberdade. E a liberdade de consciência e a liberdade de pensamento não devem basear-se no ceticismo filosófico ou ético, nem na indiferença dos interesses religiosos e morais. Os princípios da justiça definem um caminho apropriado entre dogmatismo e intolerância, por um lado, e um reducionismo que respeita a religião e a moral como meros privilégios, por outro. E uma vez que a teoria da justiça baseia-se em presunções fracas e amplamente sustentadas, ela pode ganhar uma aceitação bastante geral. Certamente, nossas liberdades estão mais firmemente sedimentadas quando são derivadas de princípios que as pessoas bem situadas em relação umas às outras podem concordar se podem concordar com tudo o mais (RAWLS, 1999, p. 214).8 (Tradução

nossa).

Salientamos aqui que ao criticar os princípios teológicos como incapazes de responderem às demandas pluralistas, Rawls jamais tem a intenção de esvaziar a religião de sentido, nem pretende contrapor-se a qualquer tipo de crença assumindo um ceticismo militante. O pensador norte americano defende aqui que a sua ideia de igualdade precisa de livre adesão consciente e para isso faz-se mister a liberdade de consciência e de pensamento, sem que com tais liberdades estejamos a defenestrar todo e qualquer tipo de crença. É nesta dimensão pública, amplamente abrangente, baseada em pressuposições com a quais todas as pessoas dotadas de razão assumem uma postura razoável em que se permitem concordar, sem prejuízo para as suas crenças particulares.

Mas, perguntaríamos, porque Rawls precisa voltar a Kant e porque o construtivismo se mostrou uma teoria mais adequada para fundamentar princípios de justiça mais equânimes? Justamente aquele filósofo relegado à prateleira por ser

8 “My aim has been to indicate not only that the principles of justice fit our considered judgments but also that

they provide the strongest arguments for freedom. By contrast teleological principles permit at best uncertain grounds for liberty, or at least for equal liberty. And liberty of conscience and freedom of thought should not be founded on philosophical or ethical skepticism, nor on indifference to religious and moral interests. The principles of justice define an appropriate path between dogmatism and intolerance on the one side, and a reductionism which regards religion and morality as mere preferences on the other. And since the theory of justice relies upon weak and widely held presumptions, it may win quite general acceptance. Surely our liberties are most firmly based when they are derived from principles that persons fairly situated with respect to one another can agree to if they can agree to anything at all.”

(25)

25 demasiado abstrato e ter uma proposta ética totalmente desconexa com os problemas particulares do agente moral! Como Rawls encontraria algum tipo de uso para o pensamento kantiano em pleno início dos anos 70, com a sociedade em ebulição e cada vez mais tendo que encontrar soluções para o problema da convivência com o diferente? Segundo Carla Bagnoli:

O termo "construtivismo" entrou em debates recentes na teoria moral com o artigo seminal de John Rawls "Construtivismo kantiano na teoria moral" (RAWLS, 1980), em que Rawls ofereceu uma reinterpretação da ética do filósofo Immanuel Kant e de sua relevância para debates políticos. Rawls se volta para Kant a fim de defender uma concepção de objetividade que não é metafísica, mas "política". Ele atribui a Kant a ideia de que precisamos de padrões objetivos no raciocínio para resolver problemas práticos sobre o que fazer (Rawls 1971, 34, 39-40, 49-52). Rawls está especialmente preocupado com problemas de coordenação que surgem em contextos pluralistas, nos quais os cidadãos têm opiniões morais diferentes e, em certa medida, incomensuráveis. Nossa necessidade de objetividade é prática: ela surge em contextos em que as pessoas discordam sobre o que valorizar e precisam chegar a um acordo sobre o que fazer9 (BAGNOLI, 2017, p.2). (Tradução

nossa).

Encontramos nesta passagem uma clara explicação da razão pela qual o pensador prussiano foi trazido de volta à baila num contexto social marcado pela emergência de uma sociedade cada vez mais plural e o seu descompasso com relação a princípios de justiça que representavam uma ordem de valores que reafirmavam as diferenças e impediam a livre adesão racional de outros membros que não partilhassem das mesmas crenças básicas às quais aqueles valores correspondiam. Ao seguirmos o que nos diz Bagnolli (2017), vemos que a nossa necessidade de objetividade é prática e surge em contextos em que as pessoas discordam sobre o que valorizar e precisam chegar a um acordo sobre o que fazer. Portanto, é em busca de um critério objetivo para a ideia de justiça ao qual todos possam se referir sem prejuízo de suas crenças básicas, que Rawls retorna para Kant

9 “The term ‘constructivism’ entered recent debates in moral theory with John Rawls’ seminal article “Kantian

Constructivism in Moral Theory” (RAWLS, 1980), wherein Rawls offered a reinterpretation of the philosopher Immanuel Kant’s ethics and of its relevance for political debates. Rawls turns to Kant in order to argue for a conception of objectivity that is not metaphysical, but "political." He attributes to Kant the idea that we need objective standards in reasoning to solve practical problems about what to do (RAWLS, 1971, p. 34, 39-40, 49-52). Rawls is especially concerned with coordination problems that arise in pluralistic contexts, wherein citizens hold different and to some extent incommensurable moral views. Our need for objectivity is practical: it arises in contexts in which people disagree about what to value and need to reach an agree-ment about what to do.” (Tra-dução nossa).

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26 e assim encontrar algo semelhante a um ponto de ancoragem a partir do qual se possam construir princípios de justiça que atendam às novas demandas pluralistas.

Em seu texto ‘Lectures on the History of Moral Philosophy’ (doravante, apenas ‘Lectures”), Rawls apresenta um pequeno resumo (bastante amadurecido), do que possa consistir o construtivismo kantiano:

Uma característica essencial do construtivismo moral de Kant é que os imperativos categóricos particulares que dão o conteúdo dos deveres da justiça e da virtude são vistos como especificados por um procedimento de construção (o procedimento), cuja forma e estrutura refletem ambos os nossos dois poderes de razão prática, bem como o nosso estatuto de pessoas morais livres e iguais. Como veremos, essa concepção da pessoa como razoável e racional, e como livre e igual, Kant considera implícita em nossa consciência moral cotidiana, o fato da razão. Uma doutrina kantiana pode sustentar (como fez Kant) que o procedimento pelo qual os primeiros princípios são especificados, ou construídos, é sintético a priori [...] significa simplesmente que a forma e a estrutura do procedimento construtivista são vistos como uma representação processual de todas as exigências da razão prática, tanto pura como empírica. Acredito que é intenção de Kant que o procedimento IC (imperativo categórico) represente todos esses requisitos, na medida em que isso possa ser feito10 (RAWLS, 2000, p. 237). (Tradução

nossa).

Tal afirmação refere-se ao modo como o filósofo prussiano apresenta a ligação entre diversos elementos na dimensão da Razão Prática, assim, segundo Rawls, observa-se, guardadas as devidas proporções, uma “semelhança”. O procedimento do Imperativo Categórico deve ser visto como um expediente para a construção de fatos morais e criação de princípios de justiça, assim como o procedimento de construção de princípios de justiça apresentado na obra de 1971, ‘Theory of Justice’, na qual, por meio de um procedimento formal, abstrato e amplamente acessível a todas as pessoas dotadas de capacidades cognitivas para tal, podem construir princípios de justiça para o ordenamento da coletividade, dando aos cidadãos a possibilidade de participarem ativamente do processo de constituição de um pacto social mais equânime.

10 “An essential feature of Kant’s moral constructivism is that the articular categorical imperatives that give the

content of the duties of justice and of virtue are viewed as specified by a procedure of construction (the CI proce-dure), the form and structure of which mirror both of our two powers of practical reason as well as our status as free and equal moral persons. As we shall see, this conception of the person as both reasonable and rational, and as free and equal, Kant regards as Implicit in our everyday moral consciousness, the fact of reason. A Kantian doctrine may hold (as Kant did) that the procedure by which first principles are specified, or constructed, is synthe-tic a priori. [...] For the present, it simply means that the form and structure of the constructivist procedure are seen as a procedural representation of all the requirements of practical reason, both pure and empirical. I Believe that it is Kant’s intention that the CI-procedure represent all such requirements, as far as this can be done”.

(27)

27 Desde a publicação desta sua obra inaugural, Rawls nos apresenta os laços de sua filiação kantiana no que concerne à fundamentação racional dos princípios de justiça advindos da natureza formal do procedimento pelo qual podemos apresentá-los. Vejamos em que consistem, inicialmente, tais laços:

Na maioria das vezes, tenho considerado o conteúdo do princípio da liberdade igualitária e o significado da prioridade dos direitos que ele define. Parece apropriado neste ponto, observar que existe uma interpretação kantiana da concepção da justiça a partir da qual esse princípio se deriva. Esta interpretação baseia-se na noção de Kant de autonomia. É um erro, eu acredito, enfatizar o lugar da generalidade e da universalidade na ética kantiana. Que os princípios morais são gerais e universais dificilmente é uma novidade; e, como já vimos, estas condições não nos levam muito longe. É impossível construir uma teoria moral com base tão estreita, e portanto, limitar a discussão da doutrina de Kant a essas noções é reduzi-lo à trivialidade11

(RAWLS, 1999, p. 221).

Além da evidente crítica ao reducionismo e a trivialidade dos que julgam abranger toda a filosofia moral kantiana apenas atentando para a sua generalidade e universalidade, vemos que a noção mais básica que Rawls pretende encontrar é a de um princípio de justiça capaz de tornar viável um pacto social mais equânime, onde indistintamente os cidadãos possam equacionar suas diferenças diante do fato de poderem se portar de maneira autônoma e razoável, como legisladores privilegiados que podem acessar diretamente a fonte da normatividade das leis sem o intercurso de qualquer instituição ou religião. Este fato conduz diretamente para uma das concepções mais originais de Rawls, a ‘posição original’que Rawls (1980, p. 522) define nos seguintes termos:

A justiça como equidade começa com a idéia de que o conceito mais adequado de justiça para a estrutura básica de uma sociedade democrática é justo entre eles e eles são representados unicamente como pessoas morais livres e iguais. Esta situação é a posição original: conjecturamos que a justiça das circunstâncias sob as quais o acordo é alcançado é transferida para os princípios da justiça; uma vez que a posição original coloca pessoas morais livres e iguais de forma justa em relação à outra, qualquer concepção de

11 “For the most part I have considered the content of the principle of equal liberty and the meaning of the priority

of the rights that it defines. It seems appropriate at this point to note that there is a Kantian interpretation of the conception of justice from which this principle derives. This interpretation is based upon Kant’s notion of autonomy. It is a mistake, I believe, to emphasize the place of generality and universality in Kant’s ethics. That moral principles are general and universal is hardly new with him; and as we have seen these conditions do not in any case take us very far. It is impossible to construct a moral theory on so slender a basis, and therefore to limit the discussion of Kant’s doctrine to these notions is to reduce it to triviality.”

(28)

28 justiça que adotam é igualmente justa. Assim, o nome: "justiça como equidade"12 (Tradução nossa).

Como podemos ver, este conceito basilar do pensamento de Rawls consiste na proposição de uma situação ideal meramente hipotética onde os membros de uma determinada comunidade podem se colocar uns diante dos outros de maneira equilibrada e sem a pressuposição de diferenças socioeconômicas, nem interesses particulares, em um perfeito equilíbrio de poderes e ideias.

Kant sustentou, acredito, que uma pessoa age de forma autônoma quando os princípios de sua ação são escolhidos por ele como a expressão mais adequada possível de sua natureza como um ser racional e livre e igual. Os princípios sobre os quais ele atua não são adotados por causa de sua posição social ou recursos naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que vive ou das coisas específicas que ele deseja querer. Atuar com tais princípios é agir de forma heterônoma. Agora, o véu da ignorância priva as pessoas na posição original do conhecimento que lhes permitiria escolher princípios heterônomos. As partes chegam à sua escolha juntos como pessoas racionais e livres, sabendo apenas que essas circunstâncias se obtêm, o que dá origem à necessidade de princípios de justiça13 (RAWLS,

1999, p. 222). (Tradução nossa).

Rawls nos sugere que o modelo de normatividade para os princípios de liberdade que precisariam ser criados para a melhor condução da dinâmica social é retirado da filosofia moral kantiana, uma vez que ela permitiria não apenas tratar cada cidadão de maneira idêntica como um ser racional, mas também abstrair das suas diferenças específicas (religião, status social, etc.), concentrando nossa atenção no fato de que é livre, pode agir autonomamente, dar seu assentimento racional a uma lei por meio de suas próprias considerações e a partir de um procedimento universal e abstrato, o Imperativo Categórico, pode dar um conteúdo aos deveres de direito.

12 “Justice as fairness begins from the idea that the most appropriate concept of justice for the basic structure of a

democratic society is fair between them and in wich they are represented solely as free and equal moral persons. This situation is the original position: we conjecture that the fairness of the circunstances under wich agreement is reached transfers to the principles of justice agreed to; since the original position situates free and equal moral persons fairly with respect to one other, any conception of justice they adopt is likewise fair. Thus the name: 'justice as fairness'.”

13 “Kant held, I believe, that a person is acting autonomously when the principles of his action are chosen by him

as the most adequate possible expression of his nature as a free and equal rational being. The principles he acts upon are not adopted because of his social position or natural endowments, or in view of the particular kind of society in which he lives or the specific things that he happens to want. To act on such principles is to act heteronomously. Now the veil of ignorance deprives the persons in the original position of the knowledge that would enable them to choose heteronomous principles. The parties arrive at their choice together as free and equal rational persons knowing only that those circumstances obtain which give rise to the need for principles of justice.”

(29)

29 Esta concepção de agente racional e razoável não pode caber em nenhuma das outras opções apresentadas como antagônicas ao construtivismo porque ou derivam a força normativa e o valor da ação moral de coisas fora do sujeito (deus, por exemplo), ou reduzem drasticamente os objetos da vontade a uma generalização do que seriam as “necessidades humanas”, consistindo no grau mais alto de satisfação a noção de “bem”, e uma sociedade estaria equilibrada e seria justa de acordo com a maior ou menor satisfação da maioria da população.

Ao retornar a Kant, o que Rawls busca é, antes de mais nada, trazer para dentro do sujeito o próprio referencial de moralidade da ação, sem, contudo, cair em uma armadilha relativista que o conduziria a um pragmatismo sofístico. Assim, faz-se necessário ancorar em algum lugar a validade e a objetividade dos princípios de liberdade e igualdade equitativa (aquela que permitiria ações desiguais para conduzir a dinâmica de uma sociedade até uma situação igualitária14 e equilibrada). São dois os pontos em que Rawls se detém: uma concepção ‘ilustrada’ de Pessoa racional/razoável e um procedimento que possa nos dar princípios de justiça amplamente comunicáveis, imparciais e possíveis de serem averiguados e aceitos por qualquer um.

Com relação à ideia de Pessoa, ela vai muito além do que o utilitarismo pode pensar, uma vez que o sujeito não é tratado ‘paternalmente’ como uma máquina volitiva, que apesar de tudo, ainda pode ser reduzida a mecanismos de estímulo/resposta e por meio dessa ‘redução eidética’15 naturalista do agrado subjetivo, poderia fornecer uma noção precisa de como manter todos (pelo menos a maioria), felizes ou bastante ocupados em satisfazerem seus desejos que não teriam

14 Em nenhum momento queremos dar a entender que Rawls advoga bandeiras do movimento comunista por tais

posições, uma vez que jamais questiona o direito à propriedade dos cidadãos sobre os meios de produção, nem quer conduzir o seu princípio de igualdade equitativa até a efetivação de uma sociedade planificada, o que, de acordo com o que acreditamos, seria exatamente a mesma coisa de cair num utilitarismo, só que de esquerda, tendo o Estado e não o mercado como patrono das necessidades humanas.

15 Tomamos a liberdade de entender que o utilitarismo pressupõe um materialismo e reduzir as faculdades e

comportamentos do ser humano a um mecanismo de recompensa consiste num processo análogo, porém com abissais diferenças, à redução eidética da fenomenologia de Edmund Russerll, dado que para este pensador, poderíamos adquirir conhecimento suficiente das propriedades inerentes a um objeto unindo a maior quantidade possível de informações e perspectivas diferentes a respeito dele, processo chamado de ‘redução eidética’ porque conduziria ao ‘eidos’ da coisa em si, e não apenas ao conhecimento epistemologicamente condicionado pelo limite da nossa cognição.

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30 tempo de perceber quão desigual e problemático é o pacto social em que estão inseridos.

Para Rawls, seguindo a esteira de Kant, o sujeito moral é dotado da capacidade de realizar para si mesmo o objeto da sua vontade de maneira independente dos condicionamentos sociais a que está historicamente submetido. Afinal, ser autônomo significa não depender de noções externas para definir o que fazer para se obter uma boa ação e o que evitar para se fugir da má ação, preservando a obediência às prescrições da lei moral por meio do imperativo categórico incondicionalmente. Cabe, então, reconhecer que a consciência que temos dessa moral inerente aos seres humanos plenamente dotados de suas capacidades cognitivas, habilidades discursivas e membros de uma determinada comunidade estabelece para nós um ‘fato da razão’16, fato este que estaria subjacente a cada momento do nosso exercício cotidiano da consciência moral e do qual nos damos conta por meio de seus efeitos no mundo, a saber, as nossas ações morais.

16 ‘Fato da razão’ é a expressão que Kant usa, principalmente em sua Crítica da Razão Prática, para exprimir a

ideia de que a Liberdade é irredutível a absolutamente tudo. Esta irredutibilidade é tão radical que não permitiria qualquer prova a respeito da mesma, temos convicção dela a partir dos seus efeitos no mundo prático, sem jamais podermos derivar conhecimento de suas causas. Karl Ameriks em seu livro “Kant and The Fate of Autonomy” (p. 71-77), qualifica o argumento kantiano como um exemplo do filosofar com certa ‘modéstia’, em contraposição a Reinhold e Ficht e suas tentativas pela ‘fundamentação absoluta’. Se Kant encerra a terceira seção da sua obra ‘Fundamentação da metafísica dos Costumes’ encorajando-nos a interpretar a experiência judicativa em si mesma como evidência inconteste da absoluta espontaneidade teórica e prática da Razão, em sua segunda Crítica, trata de retroceder e assumir uma postura certamente mais modesta ao afirmar que a liberdade é um ‘fato da razão’ por não podermos utilizar nenhum expediente para demonstrar a sua existência enquanto um objeto. Temos motivos suficientes para “meramente acreditar” que temos uma liberdade absolutamente incondicionada e que a vontade humana, quando toma por princípio a lei desta liberdade (e não a lei da natureza), se converte em uma ‘vontade boa’, porém jamais estaremos habilitados a derivarmos uma demonstração convencional (como a matemática pode fazê-lo com relação a seus objetos), de tal fato. É grande a procela de problemas que este expediente metodológico acarreta ao seio da filosofia kantiana, bem como grande a celeuma entre os comentadores a respeito de uma mudança de posição da “Fundamentação da metafísica dos Costumes” para a “Crítica da Razão Prática” e um quadro bem ilustrativo do problema pode ser visto no texto de Guido Antônio de Almeida, “Kant e o fato da razão: cognitivismo ou decisionismo moral?”. O mesmo comentador nos apresenta em “Crítica, dedução e Facto da razão” um resumo das críticas a respeito do ‘Fato da Razão’ em Kant: “O abandono da dedução pelo apelo ao “facto da razão” não satisfez a maioria dos leitores de Kant, mesmo simpáticos à nova doutrina. Com efeito, os dois pontos fundamentais da nova doutrina parecem bastante frágeis, talvez pela extrema concisão com que são expostos. Assim, por um lado, a exclusão da dedução parece não só uma renúncia ao projeto crítico e uma recaída no dogmatismo, mas também insuficientemente argumentada. Se lermos com cuidado as passagens relevantes, veremos que a explicação dada é deficiente quer como explicação da possibilidade de uma dedução dos princípios do conhecimento, quer como explicação da impossibilidade de uma dedução do princípio da moralidade. Por outro lado, o recurso a um “facto da razão” parece, no mínimo, um apelo a uma entidade misteriosa. Antes de mais nada, o próprio significado da expressão é ambíguo, “facto” podendo ser tomado tanto no sentido cognitivo de uma verdade imediatamente certa, quanto no sentido volitivo de um acto ou feito da razão. Além disso, Kant dá pelo menos cinco caracterizações diferentes do “facto da razão”, e não está claro de início como essas caracterizações se relacionam entre si” (ALMEIDA, 1999, p. 60-61).

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31 Este seria, portanto, o ponto de ancoragem que Rawls tanto procurava. Um fato objetivo (pois pode produzir para si mesmo o objeto, não dependendo, como o utilitarismo, de recursos naturalistas, nem de recurso ao argumento ontológico, como as tradições baseadas em princípios religiosos), uma lei que se expressa por meio de um procedimento que nos orienta a distinguir entre as boas e as más ações e qualquer princípio que for derivado de um tal procedimento, com certeza teria a sua validade normativa garantida de maneira irrestrita. Nas palavras de Rawls:

Na doutrina de Kant, tal como a interpretamos, um juízo moral correto é aquele que está em conformidade com todos os critérios relevantes de razoabilidade e racionalidade cuja força total é expressa pela forma como são combinados no procedimento IC. Kant pensa nesse procedimento como adequadamente combinando todos os requisitos de nossa razão prática, pura e empírica, em um esquema unificado de raciocínio prático. Este é um aspecto da unidade da razão. A forma desse procedimento é a priori, enraizada em nossa pura razão prática, e portanto para nós praticamente necessária. Uma sentença apoiada por esses princípios e preceitos será, então, reconhecida como correta por qualquer pessoa inteiramente razoável e racional (e informada) (RAWLS, 2000, p. 244)17. (Tradução nossa).

Notemos que Rawls, neste momento, já insere dentro do pensamento kantiano, por sua própria conta, uma relação que somente após um exame muito cuidadoso se pode pensar, que é a inserção da razoabilidade na lei moral. Ora, o que haveria para contemporizar em uma lei que ordena absolutamente? Deixemos por hora esta ponderação para podermos seguir adiante, pois aqui se apresenta uma pequena dificuldade com relação à prioridade das esferas da razão. Qual seria o fundamento mesmo da normatividade de acordo com a interpretação de Rawls? O procedimento do imperativo? O fato da razão? A ‘lei moral’ que se expressa unicamente por meio do procedimento do imperativo na forma de máximas universais da ação? O que, afinal é combinado no imperativo que satisfaria as condições de racionalidade e razoabilidade? E como podemos entender a expressão ‘esquema

unificado da razão prática’? Seria apenas força de expressão ou o filósofo

estadunidense estaria mesmo defendendo uma tese que faria todos os intérpretes do

17In Kant’s doctrine, as we have interpreted it, a correct moral judgment is one that conforms to all the relevant

criteria of reasonableness and rationality the total force of which is expressed by the way they are combined into the CI-procedure. Kant thinks of this procedure as suitably combining all the requirements of our practical reason, both pure and empirical, into one unified scheme of practical reasoning. This is an aspect of the unity of reason. That procedure’s form is a priori, rooted in our pure practical reason, and thus for us practically necessary. A judgment supported by those principles and precepts will, then, be acknowledged as correct by any fully reasonable and rational (and informed) person (RAWLS, 2000, p. 244).

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