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UNIÃO AFRICANA: A AMISOM E O TERRORISMO NA SOMÁLIA

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Academic year: 2021

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NIÃO

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FRICANA

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AMISOM

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ERRORISMO NA

S

OMÁLIA

D

IRETORES

:

Alessandra Becker

Amanda Barbosa

Rafaela Rossi

P

ROFESSORES

O

RIENTADORES

:

Alexandre dos Santos

Marta Moreno

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Carta aos Delegados

Senhores Delegados,

É com grande satisfação que lhes damos as boas vindas, desejando a todos bons estudos e uma excelente simulação. Este guia foi desenvolvido para auxiliá-los no que se refere à contextualização dos senhores nas questões de política internacional que se desdobram no território Somali, introduzindo-os aos dilemas, inseguranças e interesses que permeiam as missões de paz na Somália. É necessário destacar, porém, que o presente guia deve funcionar apenas como meio basilar de obtenção de informações, cabendo aos senhores a busca pelos mais diversos dados adicionais que acharem convenientes. Lembramos que quanto maior o domínio que os senhores detiverem sobre o tema, maiores as chances de se destacarem e promoverem conosco um ambiente de debate produtivo.

Sabe-se que as consequências dos conflitos que se desenvolvem no território somali afligem toda a comunidade internacional e provocam efeitos negativos no que se refere à estabilidade do sistema, à promoção da ordem e à defesa dos direitos humanos. A violência desgovernada que se instaurou nesta área não só decreta e ostenta a situação de falência do Estado somali, como também retarda o desenvolvimento de toda a região, sendo dever de todos o estabelecimento e a manutenção da paz.

É com grande prazer que nós, Diretoras, moderaremos esta sessão da União Africana, com a certeza de que será um comitê muito enriquecedor e profícuo tanto para nós quanto para os senhores delegados. Esperamos que aproveitem bem cada um dos quatro dias de simulação, otimizando tanto o desempenho individual quanto o coletivo, de modo que esta experiência seja única e ilustre pra todos e que os debates desenvolvidos contribuam não só para o aprendizado como também para a formação dos senhores, tendo em vista que todo este projeto foi realizado em vosso prol.

Nós, Diretoras, gostaríamos de agradecer a confiança depositada por parte de todo o Secretariado do XI MIRIN e parabenizar por todo o trabalho realizado ao longo dos meses de preparação. Agradecemos também o apoio de todos aqueles que cooperaram para que fosse possível a realização de mais um ano de MIRIN e também aos senhores delegados pelo interesse e envolvimento com a proposta do comitê, tornando-a, assim, executável.

Nos vemos em Julho! Alessandra Becker Amanda Barbosa Rafaela Rossi

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Sumário

Sumário ... 3

1. INTRODUÇÃO ... 5

2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ... 7

2.1. Soberania ... 7

2.2. Peacekeeping ... 9

2.3. Peace-building ... 11

2.4. Peace-making ... 12

2.5. Peace enforcement ... 13

3. UNIÃO AFRICANA ... 13

3.1. Origem da União Africana ... 13

3.2. A Assembleia Geral ... 14

3.3. A União Africana atualmente: princípios, objetivos e limitações ... 16

4. RAÍZES DO CONFLITO NA SOMÁLIA ... 17

5. A ATUAL CRISE NA SOMÁLIA ... 19

6. MISSÕES DE PAZ NA SOMÁLIA ... 28

7. TÓPICOS A SEREM ABORDADOS EM UMA POSSÍVEL RESOLUÇÃO ... 34

8. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES ... 35

8.1. África do Sul ... 35

8.2. Angola ... 35

8.3. Argélia ... 35

8.4. Burkina Faso ... 36

8.5. Burundi ... 36

8.6. Cabo Verde ... 36

8.7. Camarões ... 36

8.8. Chade... 37

8.9. Costa do Marfim ... 37

8.10.

Djibuti ... 37

8.11.

Egito ... 37

8.12.

Eritréia ... 38

8.13.

Estados Unidos ... 38

8.14.

Etiópia ... 39

8.15.

França ... 39

8.16.

Gana ... 40

8.17.

Guiné ... 40

8.18.

Iêmen ... 40

8.19.

Libéria ... 41

(4)

8.20.

Líbia ... 41

8.21.

Madagascar ... 42

8.22.

Mali ... 42

8.23.

Moçambique ... 42

8.24.

Níger ... 43

8.25.

Nigéria ... 43

8.26.

Paquistão ... 44

8.27.

Quênia ... 44

8.28.

Reino Unido ... 44

8.29.

República Árabe Saaraui Democrática (Saara Ocidental) ... 45

8.30.

República Centro-Africana ... 45

8.31.

República Democrática do Congo ... 46

8.32.

República do Congo ... 46

8.33.

República Popular da China ... 47

8.34.

Ruanda ... 47

8.35.

Rússia ... 48

8.36.

São Tomé e Príncipe ... 48

8.37.

Senegal ... 49

8.38.

Somália ... 49

8.39.

Sudão ... 49

8.40.

Sudão do Sul ... 50

8.41.

Tanzânia ... 50

8.42.

Tunísia ... 50

8.43.

Uganda ... 51

8.44.

Zâmbia ... 51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 52

SITES PARA CONSULTA E ATUALIZAÇÃO... 55

(5)

1. INTRODUÇÃO

Não é de hoje que a questão da soberania é alvo de discussões nos mais diversos ambientes (tanto acadêmicos quanto aqueles que englobam as altas cúpulas de decisões dos importantes órgãos internacionais como, por exemplo, a OMC e a ONU) que tratam de temas relacionados à política internacional. Vale destacar que neste debate, não são raras às vezes em que são discutidos e/ou flexibilizados os direitos e deveres associados à soberania nacional e particularmente ao seu corolário, o princípio de não intervenção, associado à Paz de Westfalia (1648), que colocou fim à Guerra dos Trinta Anos e modelou o moderno sistema de Estados soberanos baseado na igualdade jurídica entre seus membros.

Desse modo, torna-se possível afirmar que 1648 foi um ano muito importante tanto para as relações internacionais quanto para o direito internacional, o qual já vinha se desenvolvendo num longo processo que se iniciara com o teólogo espanhol Francisco de Vitória, passando pelo jurista holandês Hugo Grotius, e que ainda hoje, encontra-se em construção e é objeto de ampla discussão. No decorrer desta trajetória de discussões, se estabeleceu que a intervenção externa em um determinado país seria ilegal, a menos que esta ocorresse em legítima defesa. Esta é a visão, por exemplo, presente na Carta das Nações Unidas (artigos 2.7 e artigo 51). No entanto, os acontecimentos que se sucederam durante, principalmente, o século XX, fizeram com que a cisão no que se refere a esta questão, entre pluralistas como Oppenheimer e solidaristas como Grotius, se tornasse cada vez mais evidente.

Neste contexto, o discurso solidarista se estabeleceu fortemente, baseando-se na ideia de que há um direito natural que está acima dos Estados e que pode ser aplicado a eles, de forma que ao homem individual é atribuída mais importância que ao indivíduo coletivo do Estado. Assim, como afirma Santos, os acontecimentos do século XX confirmaram a possibilidade de existência de situações em que “a responsabilidade da sociedade internacional para com os direitos básicos do ser

humano se chocaria com o direito dos Estados à autonomia (de lidarem com seus problemas e dilemas internos” (SANTOS, 2006, p.15). Estas novas considerações criaram o ambiente necessário

para que emergissem novas discussões acerca não só dos motivos que auferem legitimidade às intervenções externas como também acerca da definição do que seria uma “intervenção”. Dentre as diversas explicações existentes para este termo, aquela que o elucida como “ato destinado a impor

medidas necessárias a manter a integridade da sociedade internacional, quando algum de seus membros está submetido a anormalidade grave e que prejudique a segurança e/ou a paz internacionais” (SANTOS, 2006, p.16) é a mais utilizada para justificar atos de intervenção que

ocorreram em diversos países, tais como a Somália.

Hoje, é possível afirmar que as intervenções externas em território nacional só podem ser admitidas como legais caso o ato de interferência seja resultado de uma unanimidade decisória por parte dos representantes da comunidade internacional, sendo “autorizada por uma organização

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intergovernamental regional ou global em nome de propósitos coletivos como ‘estabilização, restauração da paz e manutenção do status quo’” (SANTOS, 2006, p.17). Neste sentido, as

chamadas ‘intervenções humanitárias’, discutidas desde o século XIX, devem seguir estas mesmas normas para que se tornem legítimas, e são muitas vezes consideradas exceções ao princípio de não intervenção.

Ainda assim, este tipo de interferência internacional nos assuntos internos de um Estado só pode ocorrer em casos graves, quando, por exemplo, um Estado deixa de cumprir suas obrigações para com sua população, expondo-a a riscos e à violência extremos, num processo de constante violação dos direitos humanos. Nestes casos, seu direito à soberania é posto em xeque Vale destacar que, algumas vezes, interesses nacionais configura-se como parte das motivações para tais intervenções, o que, deste modo, compromete o caráter puramente humanitário destas intervenções.

De modo geral, as operações de paz e as intervenções são classificadas em quatro categorias disintas, Peacekeeping, State-building, Peace-making, Peace-enforcement, as quais ocorrem na Somália desde 1991. Vale mencionar que as intervenções humanitárias teriam como objetivos finais a promoção de assistência e a proteção dos direitos humanos fundamentais, podendo não só ocorrer por vias militares ou não, como também ser classificada dentre as categorias supracitadas. É importante destacar que, geralmente, as intervenções por vias militares se dão em “Estados Falidos” ou “Estados Assassinos”, como destaca Farell (2002). A intervenção liderada pelos Estados Unidos na Somália se deu mediante um discurso humanitário de interferência em um Estado Falido e foi aprovada pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, através da Resolução 794.

É importante notar que o Estado somali teve sua descolonização em 1960 (anteriormente o sul da Somália era colônia italiana e o norte, britânica) amplamente marcada pela ausência de legitimidade dos governos pós-independência e pela consequente inexistência de representatividade para a população da Somália. Isto fez com que os mais diversos clãs se voltassem contra o governo de Siad Barre, cuja derrubada em 1991 não promoveu a paz, mas sim uma disputa por poder cada vez maior entre as facções, o que resultou em uma guerra civil intensa e em delimitações de áreas autônomas dentro de um mesmo território. Neste sentido, a intervenção internacional foi levada a cabo com o objetivo humanitário de prover assistência à população somali que vivia sob uma grave crise de fome ocasionada por uma guerra civil desgovernada e de promover a paz entre as facções, buscando, dessa forma, reerguer o Estado somali das cinzas.

Como afirma Santos (2006), as operações na Somália foram amplamente caracterizadas pelo fracasso político, mas ao mesmo tempo, têm exposto para a Organização das Nações Unidas as limitações e desafios das intervenções de caráter humanitário. Ainda não foi encontrada uma solução para este conflito que envolve as missões de paz no território somali.

(7)

2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

2.1. Soberania

Os chefes de Estado devem entender muito bem o que significa ter direito à soberania, afinal, somente a partir desta compreensão é que se torna possível identificar tanto quais seriam os direitos e deveres basilares de cada Estado-Nação pertencente ao Sistema Internacional quanto à situação da soberania de cada Estado. Como mencionado na seção anterior, o conceito de soberania tornou-se o pilar da organização do sistema de Estados moderno, sobretudo a partir da Paz de Westfália, de 1648, se estruturando concomitantemente ao princípio de não intervenção. Entretanto, é importante destacar que as questões que permeiam o conceito de soberania já eram abordadas nas primeiras literaturas do Direito Internacional.

Vale ressaltar também que até hoje não há uma única definição para o termo ‘soberania’, o qual é alvo constante de discussões nos mais diversos ambientes marcados pelo dinamismo das Relações internacionais. Assim, dependendo do tema ou da abrangência da discussão, algumas definições tornam-se mais interessantes que outras, tornando-se sempre muito necessário deixar claro qual delas se está considerando durante as argumentações.

No caso deste comitê, uma vez que o tema encontra-se centralizado nas questões que envolvem a crise política na Somália, escolhemos os conceitos de soberania defendidos por Stephen D. Krasner em seu livro Sovereignty: Organized Hypocrisy, para explicar por que a instituição estatal somali é dita como falida, fato amplamente apontado como a principal causa do agravamento da situação política catastrófica instaurada no país. Esta consideração encontra-se intimamente relacionada à ideia de que o Estado Nacional somali passa já há algum tempo por um processo cada vez mais intenso de ‘perda’ de sua soberania, o qual resulta na instituição do chamado estado de natureza hobbesiano no local, como afirma Santos (2006). Para compreender este processo de ‘perda’, deve-se primeiro entender os quatro tipos de soberania existentes, defendidos por Krasner.

São eles:

 ‘internacional legal’: quando um Estado é reconhecido como igual pelos outros e recebe o mesmo tratamento jurídico;

‘westfaliana’: Quando o Estado exclui fontes de autoridade externas ao seu território, ou seja, quando exclui interferências externas à sua autoridade política;

 De ‘interdependência’: quando um Estado consegue controlar os fluxos que transpassam por sua fronteira; e

 ‘doméstica’: se refere a organização formal da autoridade política dentro do Estado, e sua habilidade de exercer o controle efetivo do território;

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Torna-se aqui importante ressaltar que, para Krasner, ainda que soberania doméstica, por exemplo, de um Estado esteja comprometida, as outras “faces” da soberania podem encontrar-se intactas. Ainda assim, na maioria dos casos, o comprometimento de um Estado no que se refere a uma dessas facetas é acompanhado pela inabilidade deste mesmo Estado em exercer as outras. Ao se analisar cuidadosamente a questão, ver-se-á que o Estado somali perdera quase que totalmente (alguns mais radicais ainda afirmariam que perdera completamente) suas soberanias, como definidas por Krasner.

Soberania Internacional legal

Esta face da soberania encontra-se amplamente relacionada ao reconhecimento da igualdade jurídica entre os Estados. Deve-se destacar, no entanto, que esta ideia não estabelece a perda da possibilidade de interações entre Estados internacionalmente reconhecidos enquanto soberanos e aqueles que não o são e não há qualquer critério exato que determine se um país será reconhecido ou não, afinal, a aceitação da igualdade jurídica entre os Estados encontra-se condicionada pelos interesses nacionais de cada Estado. No que se referece ao reconhecimento internacional, o caso da Somália é bastante delicado. O Governo Federal da Somália é o governo internacionalmente reconhecido do Estado Somali, apesar de não possuir controle efetivo por boa parte do território do país. De fato, uma das missões primordiais da AMISOM, a missão de paz da União Africana na região é garantir a estabilidade e manutenção do Governo Federal.

Soberania Westfaliana

Este tipo de soberania nacional encontra suas bases fundantes nos princípios de não intervenção, descrito como o direito de não sofrer interferências externas em assuntos domésticos, e de territorialidade, que, por sua vez, diz respeito à ideia weberiana do monopólio, por parte da autoridade estatal, do uso legítimo da força sobre um território específico. É interessante ressaltar, porém, que Krasner reconhece a existência de momentos em que o princípio da não intervenção é violado, seja por atos coercitivos por parte de outros atores do sistema seja pela própria vontade/consentimento do Estado de sofrer a intervenção. Em todo caso, fica claro que estas situações somente ocorrem quando a autonomia interna de um determinado Estado encontra-se fragilizada, como é o caso da Somália. Neste sentido, pode-se afirmar que esta face da soberania também foi alvo de disputa no Estado somali. Pode-se inclusive afirmar que nem mesmo o monopólio do uso da força a autoridade de governo central da Somália possui, visto a crise política, econômica e social que o Estado sofre há décadas, representado pela constante guerra civil entre as mais diversas facções somalis.

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Soberania de Interdependência

Já faz algum tempo que o processo de globalização estimula cada vez mais os processos de interdependência e integração que ocorrem entre os mais diversos países do globo. Isto possui aspectos positivos e negativos. A soberania de interdependência se refere então à forma com a qual um determinado Estado lida com a questão das redes de conexão existentes entre os mais variados governos, nas mais diversas áreas tais como o sistema financeiro. A grande questão encontra-se na avaliação da capacidade de controle dos fluxos de pessoas, capital e mercadorias que transpassam as fronteiras estatais. No entanto, quando um Estado encontra-se em situação semelhante à somali, ou seja, tão fragilizado internamente, torna-se impossível o controle mínimo destes fluxos, inclusive porque a existência de uma autoridade central dentro do território encontra-se seriamente comprometida.

Soberania doméstica

Este tipo de soberania é atribuída ao Estado que possui a capacidade de exercer um controle efetivo sobre suas dinâmicas internas. É interessante notar que, para o autor, o processo de determinação da soberania doméstica independe da estrutura de governo, isto é, do tipo de organização política, sendo atribuída unicamente e impreterivelmente ao Estado capaz de manter o controle e a ordem interna. Esta pequena definição já nos permite admitir que o Estado somali não possui esta face da soberania, visto que a desordem e a guerra civil são recorrentes na região, o que perpetua a situação de caos e descontrole das dinâmicas domésticas por parte do Estado.

Por todos os motivos apresentados, entende-se que para se analisar a situação da soberania de um Estado, todas as faces que compõem a ideia de soberania, apresentadas acima, devem ser levadas em consideração simultaneamente. Por este motivo, inclusive, podemos afirmar que o Estado somali encontra-se em estado de falência. Afinal, o Governo Federal da Somália, apesar de internacionalmente reconhecido, não possui, por si, meios de garantir tanto a estabilidade quanto as demais “características” da soberania.

2.2. Peacekeeping

Ao contrário do que se pensa, o marco introdutório das operações de paz não se encontra nas Nações Unidas. Ainda nas décadas de 1920 e 1930, ações direcionadas à manutenção e prevenção da paz já eram implementadas pela Liga das Nações, porém ainda não tinham uma denominação específica. Contudo, muito antes da criação de organizações multilaterais, já havia a concepção de que as grandes potências eram responsáveis por manter a paz e segurança para além de suas fronteiras (Bellamy et al, 2000, p.200).

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Devido aos confrontos que emergiam no cenário internacional no pós Segunda Guerra Mundial, a ONU passou a autorizar uma série de missões que objetivavam prevenir conflitos entre Estados ou estabilizar os confrontos em andamento através do emprego de forças multinacionais compostas por civis e/ou militares.

A Carta das Nações Unidas, apesar de não fazer referência explícita a essas operações, delibera, aos Estados Membros, a responsabilidade de tomar medidas efetivas para reprimir os atos de agressão que possam levar a uma perturbação da paz. No referido documento, as ações relativas à promoção da paz estão expressas no Capítulo VI - referente a “Solução Pacífica de Controvérsias” – e capítulo VII, que destaca a “Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão”.1 Mesmo que analisados separadamente, os capítulos apresentam uma complementariedade quanto às ações da ONU. É possível perceber o caráter preventivo da instituição e que a mesma surgiria com o propósito de prover gradualmente a promoção da paz mundial. (UN, 1945).

O Conselho de Segurança, em sua qualidade de principal órgão do sistema das Nações Unidas responsável pela manutenção da paz e segurança internacional, e único dotado de poderes coercitivos, é quem possui autoridade para aprovar o mandato das operações de paz.

Durante o período da confrontação ideológica da Guerra Fria, o constante uso do poder de veto pelos Estados Unidos e pela União Soviética impediu o funcionamento efetivo do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que foi representado pelo baixo número de missões operacionalizadas até fim da década de 1980 (BERMAN; SAMS, 2000, p. 572).

Com o final do conflito bipolar inaugurou-se o período de maior atuação da ONU no campo da manutenção da paz e segurança internacional. Entre 1988 e 1999 foram instituídas 40 operações de manutenção o triplo em relação às quatro décadas anteriores2

Manutenção da paz

Uma operação peacekeeping é realizada para a manutenção da paz em Estados nos quais a gravidade da situação interna é elevada, de modo que ameace a paz e a segurança internacional. Semanticamente, para manter ou preservar algo, é necessário que o objeto exista. Assim também é com o peacekeeping: deve haver paz no território onde se iniciará a operação (RICHMOND; 2004). A definição de peacekeeping apresentada pelas Nações Unidas é a de um instrumento único e dinâmico, o qual foi desenvolvido para ajudar países devastados pelos conflitos, com o propósito de criar condições para uma paz duradoura.

1 Carta das Nações Unidas, 1945. Disponível em:< http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf >

2 Dados do Departamento de Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Disponível em

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Há vertentes de interpretação do peacekeeping, que afirmam que esse conceito fundamenta-se na atuação de terceiros, que objetivam eliminar qualquer possibilidade do retorno das relações conflituosas entre os grupos (EVANS; NEWHAN, 1998). Segundo o Major General Carlos Martins Branco:

As operações de manutenção da paz (peacekeeping) são em sua concepção o apoio militar à diplomacia. É um meio de conter a situação enquanto outros diplomatas e mediadores procuram uma solução pacífica e a presença dos militares (peacekeepers) no terreno assegura às partes que nenhuma delas vai adquirir vantagem tática durante as conversações e evita que a atmosfera das negociações não seja envenenada pelo reinício dos combates3.

O processo de operações é colocado em prática através da atuação dos pacificadores (peacekeepers) que variam desde contribuições técnicas em questões militares até desenvoltura nas negociações. As operações de peacekeeping apresentam algumas tarefas principais, a observação é uma delas. É por meio desta que se realiza a supervisão da retirada de tropas – para que desse modo se obtenha tréguas – o monitoramento e observação dos processos diante da execução de um acordo de paz, promovendo medidas de confiança e ajuda para estabelecer as bases para uma paz sustentável.

No processo de separação das forças, os peacekeepers encontram-se responsáveis por garantir a desmilitarização, evitando desse modo o surgimento de novas hostilidades entre as partes. A manutenção da paz deve ser implementada com o consentimento de ambas as partes do conflito, e por isso os pacificadores não devem usar a força para além da autodefesa - que compreende o direito de proteger a si mesmo e de quaisquer outras pessoas que estão sob a proteção da ONU. O uso da força dependerá do mandato da operação e das regras de engajamento que explicitam os variados níveis de força que devem ser usadas nas diversas circunstâncias, sempre com a autorização do Conselho de Segurança.

Os oficiais do peacekeeping também atuam a fim de formar um ambiente seguro para a implementação da ajuda humanitária, assumindo assim, um meio de garantir a liberdade de circulação, escoltas, proteção aos funcionários humanitários e aos locais de armazenagem.

2.3. Peace-building

O conceito de peace-building que apresentaremos é referente ao adotado pela Agenda para a Paz de 1992. Segundo o documento escrito pelo então secretário-geral da ONU Boutros-Ghali, este conceito foi definido como “post-conflict peacebuilding” (reconstrução pós-conflito) e consiste na “ação de identificar e apoiar estruturas que tenderão a fortalecer e solidificar a paz de modo a evitar a

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recorrência do conflito” (ONU, 1992). Esse modelo de operação ocorre no cenário de pós-conflito, destinando-se a fortalecer e consolidar um acordo político e as estruturas políticas e sociais de um Estado, fortificando o desenvolvimento.

É de tamanha importância frisar que o conceito consiste na ideia de construção da paz – e não apenas na manutenção ou preservação dela –, de modo que se evite novos conflitos após o término de um conflito armado.

A ideia de consolidação da paz já vinha sendo discutida desde a década de 1970 por Johan Galtung (1976) que apresenta a concepção de que o peace-building procura atingir uma paz que não é apenas um dado estado, uma situação temporária de não-guerra, mas sim uma estrutura autossustentável. A concepção de Galtung é também o arcabouço conceitual para o documento “Agenda para a Paz”.

É utilizado com finalidades de longo prazo e segue o processo de tarefas que vão desde o desarmamento das facções em conflito até a reconstrução de instituições políticas, econômicas, judiciais e da sociedade civil e inclui uma ampla gama de esforços de diversos atores para abordar as causas profundas da violência – do governo e da sociedade civil na comunidade, nacional e internacional. Visa também a construção da segurança humana, sendo um conceito que compreende o modelo de governo democrático, os direitos humanos, o respeito à lei e o desenvolvimento sustentável (BARNETT; ZÜCHER, 2009).

2.4. Peace-making

O conceito de peacemaking consiste no restabelecimento da paz. São ações instauradas no período pré ou pós início do conflito. A lógica funcional do peacemaking é a de resolver questões imediatas entre as partes envolvidas para, que assim, se chegue ao fim de controvérsias por meio de um acordo de paz. O ideal para obtenção do restabelecimento da paz é cessar a violência, fazendo assim com que a ameaça física deixe de existir.

O termo consiste em um processo realizado através da diplomacia, mediação, negociação ou outras formas de resolução pacífica de disputas com o intuito de resolver o que motivou o embate (KEGLEY Jr; WITTKOPF, 2001). Ou seja, pode ser considerada uma ação diplomática para trazer as partes envolvidas a um acordo negociado através de meios pacíficos conforme previstos no capítulo VI da Carta da ONU.

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2.5. Peace enforcement

As medidas conciliadoras não são o único meio através do qual atores externos ao conflito podem influenciar a busca pela paz. Entre diversas alternativas de resolução de conflitos, há a possibilidade da utilização da força e da coerção para incentivar um acordo entre as partes beligerantes. Esse recurso é o peace enforcement e é definido como a imposição da paz por meio da força, por um ator exterior ao conflito (MIALL et all, 1999). Nessa operação o acordo entre as partes é obtido através de medidas coercitivas.

Kegley Jr e Wittkopf (2001) definem o peace enforcement como ameaça e aplicação da força militar, contando ou não com autorização internacional para pressionar as partes hostis a aceitarem e cumprirem resoluções internacionais ou acordos de paz, com o objetivo de evitar o retorno conflito. A natureza complexa dessas operações gera certa confusão na compreensão deste instrumento de imposição da paz. A atuação do peace enforcement difere das ações de guerra visto que, em meio ao campo de batalha, derrotar a força inimiga é o objetivo militar final. Em contraponto, nas operações de peace enforcement, o objetivo militar será coagir o beligerante para evitar ou cessar o conflito armado.

Em relação aos outros instrumentos utilizados para controle dos conflitos, pode-se notar que as operações de paz (peace making, peacekeeping, peacebuilding) são outras formas de operação militar combinada, embora com princípios e considerações distintas.

3. UNIÃO AFRICANA

3.1. Origem da União Africana

O princípio da União Africana fora a Organização da Unidade Africana (OUA), formada em 1963 e que tinha como principal objetivo eliminar o colonialismo do continente africano. Para que isso fosse possível, entretanto, era necessário que a independência dos Estados africanos fosse bem-sucedida. Essa necessidade fez com que o mandato da organização focasse na promoção da unidade dos Estados africanos recém-formados, no encorajamento da cooperação entre eles e na proteção da soberania e territorialidade de cada estado (MIKANDA; OKUMU, 2008).

Durante sua existência, a OUA enfrentou dois problemas primordiais: a divisão do continente africano em função de diferentes ideologias no período da Guerra Fria e a instabilidade dos Estados africanos e suas tendências antidemocráticas. A divisão dos países em função da competição entre os Estados Unidos e a União Soviética no âmbito político-econômico e por territórios na África e na Ásia se transpõe para dentro da OUA, causando alguns impasses. Já a outra questão diz respeito a incapacidade da OUA de agir contra governantes autoritários, já que a organização não tinha

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autoridade nenhuma para punir governos ilegítimos e não democráticos ou intervir em conflitos civis e genocídios, o que fez com que a Organização da Unidade Africana ficasse conhecida como um “clube de ditadores” (BADEJO, 2008).

As potências, no período pós-Guerra Fria, pareciam estar se afastando da região, o que permitiria uma maior possibilidade de unidade no continente, mas, ao mesmo tempo, significaria que elas estavam se distanciando das questões políticas, econômicas e sociais da África, o que aumentaria o hiato entre tais fatores no continente africano se comparados ao resto do mundo. Com o estabelecimento desse cenário, era perceptível que ainda havia muitos problemas a serem resolvidos. Diversos importantes líderes africanos acreditavam que seria necessária uma revitalização da região e que os países africanos precisavam de governos democráticos legítimos e mercados livres para atrair investimentos estrangeiros.

Com isso, a Organização da Unidade Africana focaria nos propósitos de promoção da democracia, desenvolvimento econômico e progresso social, que viriam a ser os objetivos da União Africana. Medidas visando a coordenação, desenvolvimento entre as economias e cooperação foram tomadas. Outros tópicos que ganharam força foram o apoio aos direitos humanos, a insistência em governos constitucionais, a busca pelo fim da corrupção e o estímulo da participação popular na política (MIKANDA; OKUMU, 2008).

Tendo como objetivo a integração das nações africanas em uma organização mais poderosa e coesa, os líderes africanos adotaram a “Declaração de Sirte”. A declaração, que fora pensada em 1999 pela Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo da antiga OUA, constituía a nova União Africana e acelerava o estabelecimento das novas instituições dessa união. O documento fundador da UA, o Ato Constituinte da União Africana, foi aprovado em 2000. É essencial destacar que no Ato Constituinte da UA fica estabelecida a legalidade de intervenção nos países-membros por parte da União em casos graves, como crimes de guerra, genocídio e crimes contra humanidade (African Union Constitutive Act, 2000, p. 7).

3.2. A Assembleia Geral

A Assembleia Geral da União Africana é o órgão supremo da organização e é formada pelos chefes de estado africanos (ou seus representantes). A mesa diretora da assembleia é eleita pelos chefes de estados e seu mandato dura um ano, que pode ser renovado em certas circunstâncias. Muitas das resoluções debatidas e deliberadas na Assembleia Geral são originadas em outros comitês e agências da União Africana e passam pelo Conselho Executivo da UA antes de chegar a Assembleia – o que significa que as decisões são votadas duas vezes, uma pelo conselho e outra pela Assembleia (BADEJO, 2008). A Assembleia possui duas sessões ordinárias anuais (em janeiro e julho) para tomar decisões que são implementadas por outros órgãos. Podem haver sessões

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extraordinárias se solicitadas por um país-membro e aprovada por, pelo menos, dois terços dos países-membros (MIKANDA; OKUMU, 2008). As decisões procedimentais da Assembleia serão tomadas por maioria simples ou qualificada, dependendo da moção em pauta4. A votação do Projeto de Resolução, entretanto, precisará de consenso para ser aprovada5

O modus operandi da União Africana é geralmente dado através de cúpulas. O primeiro órgão a se reunir é o Permanent Representatives' Comittee, seguido pelo Conselho Executivo e, posteriormente, pela Assembleia Geral. Os documentos que chegam à Assembleia Geral são produzidos por representantes de níveis inferiores, garantindo que a síntese das questões a serem tratadas sejam amplamente conhecidas por todas as autoridades e que cheguem os melhores documentos na assembleia, possibilitando que os chefes de estado façam as melhores decisões possíveis (BADEJO, 2008).

São definidas como funções da Assembleia:

a. Determinar as políticas comuns da União, estabelecer suas prioridades e definir sua agenda anual;

b. Acompanhar a implementação de políticas e decisões da União, assim como assegurar o cumprimento por todos os países-membros através de mecanismos adequados;

c. Acelerar a integração política e socioeconômica do continente;

d. Dar diretivas ao Conselho Executivo, Conselho de Paz e Segurança da Comissão sobre a gestão de conflitos, guerras, atos de terrorismo, situações de emergência e a restauração da paz;

e. Deliberar sobre a ação de um país-membro em relação a circunstâncias graves – ou seja: crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade;

f. Deliberar sobre intervenção em um país-membro, a pedido do próprio membro, em ordem de reestabelecer paz e segurança;

g. Determinar as sanções a serem impostas a qualquer país-membro para o não-pagamento das contribuições estabelecidas, violação dos princípios do Ato Constitutivo e regras, a não conformidade com a decisão da União e troca incondicionais de governança;

h. Nomear o Presidente da Comissão e seu vice ou deputados e comissários da Comissão e determinar suas funções e mandatos;

i. Receber, analisar e tomar decisões sobre os relatórios e recomendações de outros órgãos da União;

j. Considerar os pedidos de adesão à União e estabelecer qualquer órgão a União;

4 Consultar o Guia de Regras.

5 No consenso, diferentemente da unanimidade, é possível a abstenção dos países-membros sem que isso signifique,

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k. Nomear e terminar a nomeação dos juízes do Tribunal de Justiça e aprovar o orçamento da União;

3.3. A União Africana atualmente: princípios, objetivos e limitações

De certo modo, a União Africana é um produto dos debates da Organização da Unidade Africana, entretanto, é ainda uma reação à globalização e democratização que definiram as transformações do pós-Guerra Fria na África e no mundo como um todo. Além desses fatores, a predominância da ideologia econômica neoliberal, as crescentes demandas pelo respeito aos direitos humanos e por transparência por parte de organizações da sociedade civil bem como as rivalidades pessoais entre alguns líderes políticos africanos contribuíram para o surgimento da União Africana.

O final da Guerra Fria, o colapso da URSS e a prevalência da ideologia econômica neoliberal influenciaram mudanças na política doméstica na África. Países ocidentais que, previamente, tinham se aliado com ditadores africanos durante a Guerra Fria e ignorado os abusos dos direitos humanos em diversos Estados africanos, agora se distanciavam desses líderes e começavam a apoiar as forças nacionais que lutavam por reformas democráticas. Essas reformas e transições democráticas tiveram dois efeitos: (i) os novos líderes africanos perceberam a OUA como ultrapassada e buscaram a substituição da organização por outra que fosse mais democrática e transparente; e (ii) o efeito que as reformas democráticas tiveram nas populações, que começaram a exigir accountability (prestação de contas) por parte de seus novos governos. Desse modo, a nova organização deveria dar mais ênfase aos direitos humanos e das mulheres e ao desenvolvimento sustentável (MIKANDA; OKUMU, 2008, p. 34).

Diferentemente de sua antecessora, que buscava somente a unidade entre os estados africanos, a União Africana buscava a construção de uma África unida e forte. Além disso, visava estabelecer parcerias entre governos e empresas – responsabilidade do ECOSOCC6. Apesar de buscar se diferenciar de sua antecessora, por vezes ela acaba reproduzindo os velhos princípios da OUA. Um claro exemplo disso é abordagem da União Africana na crise de Darfur entre 2003 e 2007, que se aproximou das definições da OUA de paz e segurança (proteção de fronteiras, das elites e da integridade territorial) em vez de desafiar a sua lógica (o que poderia ter acontecido se paz e segurança tivessem sido avaliadas em termos da proteção dos civis e de seus valores, e das instituições). Outro exemplo disso pode ser observado nas eleições de 2005 na Etiópia quando, apesar de defender valores como a promoção dos princípios e instituições democráticos, participação popular e boa governança, a União – que desde sua criação tinha assumido um papel no

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monitoramento das eleições africanas– escolheu não monitorar a eleição etíope (MIKANDA; OKUMU, 2008, p. 36).

Apesar disso, é necessário ressaltar que existem, sim, diferenças cruciais entre a União Africana e sua antecessora. O melhor exemplo disso são os artigos 4(h)7 e 4(j)8 do Ato Constitutivo da União Africana. Durante a existência da OUA a organização foi incapaz de reestabelecer a paz no território somali (mesmo com a intervenção da ONU em 1992-5) e de impedir o genocídio de Ruanda. Ao adotar tais artigos, a União Africana se tornou a primeira organização no mundo a dar-se tal mandato (MIKANDA; OKUMU, 2008, p. 38).

O sucesso da União Africana depende amplamente de diversos fatores. Interesses distintos, rivalidades antigas e laços persistentes com ex-potências coloniais podem colocar em xeque a unidade política da União. É necessário que a UA enfrente seus problemas internos sem fazer com que situações complexas piorem. É necessário que a organização ache meios de enfrentar regimes autoritários de um modo efetivo e que não enfraqueça a própria organização. Existem também desafios econômicos, como a integração econômica para os países-membros menos afortunados. A falta de infraestrutura colocará em prova os recursos e a vontade política tanto das parcerias africanas quanto internacionais, enquanto a “Comissão da UA enfrentará uma difícil tarefa na renegociação dos tratados comerciais e políticos, a fim de atender a uma ampla gama de necessidades humanas” (BADEJO, 2008, p. 99).

4. RAÍZES DO CONFLITO NA SOMÁLIA

O conflito na Somália é extremamente complexo e com diversas raízes. Nenhum elemento isolado é capaz de explicar as causas do conflito, sendo assim fundamental a análise de fatores como: o impacto do colonialismo, a organização social somali, a militarização, os efeitos das violações dos direitos humanos pelo regime militar e outros eventos que desencadearam a falência da Somália. É necessário entender os antecedentes do conflito para entender com clareza seu rumo e seus efeitos.

A sua localização estratégica no Chifre da África fez com que a Somália desenvolvesse relações comerciais e culturais diversas. Além da relação que Somália tem com os outros países africanos, existem os laços históricos com o mundo Árabe – tanto é que foi aceita como membro na Liga Árabe em 1974. O povo somali apresenta ainda muitas características em comum entre si – independentemente do sistema de clãs –, como a prática do islã, a língua, tradições culturais

7Artigo 4(h) do Ato Constitutivo da União Africana “Direito da União intervir em um Estado Membro em conformidade com

uma decisão da Assembleia em situações graves nomeadamente: crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade”.

8Artigo 4(j) do Ato Constitutivo da União Africana “Direito dos Estados Membros de solicitarem a intervenção da União

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parecidas e a ligação pela mesma descendência (GONEN, 1993). Todavia, sob a suposta uniformidade, a sociedade somali apresenta uma profunda fragmentação em função das diferentes linhagens genealógicas (UNITED NATIONS, 1996).

O sistema de clãs é o principal fator que distingue a organização social somali. Para entender a situação perene dos conflitos na Somália é crucial a compreensão do sistema de clãs, uma vez que a sociedade somali é definida pela associação às famílias de clãs. Devido a lacuna deixada pela ausência de poder central, a importância do sistema clânico no cenário político aumentou, visto que os clãs se tornaram uma fonte fundamental de proteção e segurança social para os seus membros (ALASOW, 2010).

Os clãs são agregações onde os chefes alegam a descendência de um mesmo antepassado, e são divididos em vários sub-clãs – esses definidos genealogicamente. O sistema de clãs foi definido por Maria H. Brons (2001, p. 100) como “uma enorme teia de linhagem, segundo a qual,

através das gerações, os laços de ancestralidade em comum forjam as bases para alianças e oposições”9. Logo, para além da significância histórica da genealogia de cada homem, o sistema de clãs define divisões sociais das pessoas na esfera política.

Além de serem importantes em termos sociais, políticos e econômicos, os clãs têm um papel fundamental na mediação e resolução de controvérsias através do sistema somali Xeer10 de direito consuetudinário11. A questão de identificação com os clãs na Somália é tão expressiva que, para além desse sistema não existe um sentimento de sociedade – para os membros de um determinado clã, a vida de membros de outro clã simplesmente tem uma menor relevância12.

Assim como em outros Estados africanos, o legado colonial estimulou conflitos na Somália. A herança das fronteiras arbitrárias, que não levavam em conta as populações locais, fez com que os governos recém-independentes buscassem a centralização do poder e uma identidade nacional. Entretanto o resultado, diferentemente do esperado, tendia mais para instabilidade política e o desejo de alguns grupos pela autodeterminação (ALASOW, 2010).

9Do original: <a huge lineage web, whereby, through generations, the ties of common ancestry forge the basis of both

alliances and oppositions>, tradução nossa.

10Xeer – É o sistema legal da Somália. Os anciãos servem como juízes e ajudam na mediação de casos, através da

utilização de precedentes. Se assemelha ao princípio de direito natural (dedução das regras e normas de caráter moral a partir da análise da natureza humana, tanto na esfera pessoal quanto coletiva). Segundo vários estudiosos, mesmo sendo um sistema com séculos de idade, existe um potencial de utilizá-lo atualmente.

11Direito consuetudinário – direito que surge dos costumes de uma sociedade, as leis não passam por um processo formal

para serem criadas.

12UN Document E/CN.4/1999/103, 18 de abril de 1999, parágrafo 44. Disponível em:

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Apesar dessa situação ser relativamente comum em grandes partes do continente Africano, o caso da Somália fora agravado pela repartição dos somalis em cinco unidades coloniais13. Desde sua independência a Somália reivindicava tais14 territórios no Quênia, Etiópia e Djibuti – o que tencionou as relações entre a Somália e seus vizinhos. Depois da unificação das unidades coloniais britânica e italiana, a recuperação dos outros três territórios passou a ser um objetivo do povo somali. Em função deste irredentismo somali, alguns de seus vizinhos contribuíram com alguns clãs participantes em conflitos internos, estimulando assim a crise da própria Somália.

5. A ATUAL CRISE NA SOMÁLIA

Desde sua independência até o presente, a Somália passou por dois períodos políticos diferentes. O primeiro, de 1960 a 1969, foi o período da democracia parlamentar baseada nos modelos europeus de democracia multipartidária – desordem, deterioração das políticas para o sistema de clãs, corrupção e nepotismo marcaram esse período. O segundo período, de 1969 a 1990, foi marcado por uma ditadura militar opressiva de Siad Barre que durou vinte e um anos e que, num primeiro momento (até 1977), buscou construir uma sociedade com orientações socialistas. Muitas infrações contra os direitos humanos e contra as leis da guerra foram cometidas durante esse segundo período.

Durante os primeiros nove anos de sua independência, o Estado Somali foi governado pelo sistema parlamentar. Entretanto, é necessário frisar que a realidade do sistema de clãs coexistia com o sistema parlamentar de forma delicada, o que resultou em uma progressiva incerteza e confusão. Como a ONU observou:

Com o estabelecimento de um Estado central, a competição por posições políticas e por recursos estatais se tornaram novos elementos que afetavam as relações entre os clãs. No período parlamentar dos anos 1960, por exemplo, tensões clânicas refletiram, de alguma forma, na divisão entre os vários partidos políticos (THE UNITED NATIONS AND SOMALIA 1992-1996 apud ALASOW, 2010, p. 14)15.

O partido Liga da Juventude Somali (Somali Youth League, SYL) foi o primeiro partido político na Somália e se manteve no poder durante os anos 60. O SYL tinha ideias pan-somalistas e reivindicava

13Somalilândia Britânica na porção norte da Somália, Distrito da Fronteira do Norte da Quênia, Somalilândia Francesa

independente como República do Djubuti desde 1977 –, Somalilândia Italiana ao Sul e Ogaden – região somali cedida à Etiópia em 1897 por um tratado anglo etíope.

14Olhar Figura 3 (anexos).

15Do original: <with the establishment of a central State, competition for political positions and State resources became a

new element affecting inter-clan relations. In the parliamentary period of the 1960s, for example, clan tensions were reflected to some extent on the divisions among the various political parties>, tradução nossa.

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as regiões habitadas por maioria somali e controladas pela Etiópia e Quênia16. Entretanto em 1969 o presidente da Somália, Abdirashid Ali Shermarke, que era afiliado a Liga da Juventude Somali, foi assassinado no feudo de um clã. O primeiro-ministro, Abdirizak Haji Hussein, tentou então organizar novas eleições que o fariam presidente. É nesse momento que ocorre o golpe de estado, que coloca o General Mohamed Siad Barre no poder.

A princípio, o General Barre fora recebido de bom grado e até mesmo certo alívio, em função das eleições fraudadas de 1969. No entanto, apesar de ter trazido alívio no curto prazo, a longo prazo o golpe traria desgraça e tumulto. Além da criação do Conselho Revolucionário Supremo (Supreme

Revolutionary Council, SRC), que substituía os poderes executivo e legislativo e era liderado pelo

General Barre, a Constituição de 1960 foi revogada. Os líderes do regime civil foram presos, os partidos políticos banidos e a Assembleia Nacional fora abolida (THE AFRICA WATCH COMMITTEE, 1990).

Associada com a URSS, a Somália de Barre adotou o “socialismo científico” e realizou uma campanha de modernização radical, o que trouxe várias mudanças como a melhoria nas condições das minorias e das mulheres, criação da escrita da língua somali, construção de clínicas, escolas, lojas, estradas, promoção da igualdade de gêneros através da aplicação de uma legislação moderna (ADAM; FORD et al., 1998).

Com o intuito de livrar a sociedade do sistema de clãs, o Conselho Revolucionário Supremo promoveu uma campanha nacional contra o tribalismo, corrupção, nepotismo e má governança. Estátuas que representavam tais características foram queimadas e enterradas em todo o território somali. O sistema de clãs era visto como “uma força divisiva, fonte do nepotismo e da corrupção” (METZ, 1992). No início dos anos 70, instituições políticas e administrativas foram concebidas para realizar funções que antes eram realizadas pelos clãs – o que fez com que muitos líderes de clãs assumissem posições no regime. No entanto, a centralização dessas funções em instituições governamentais e a politização dos tradicionais papeis dos líderes de clãs enfraquecia as estruturas e instituições tradicionais que a sociedade mantivera por muitas gerações, debilitando tanto o status quanto a capacidade dos líderes tradicionais de resolver disputas inter e intra clãs, já que sua posição no regime diminuía sua independência na sociedade (ALASOW, 2010).

Oficialmente, Barre procurava acabar com o tribalismo, nepotismo e corrupção, para construir uma sociedade de orientações socialistas. Entretanto, o próprio Barre era influenciado pelo sistema de clãs, como evidencia a Human Rights Watch (1993):

16 O objetivo de unificação dos territórios habitados pelo povo somali, sob o domínio de outros países, em um só território

está incluso nas constituições nacionais de 1960 e 1979. A Somália reivindicou, em sucessivos governos, porções territoriais controladas pela Etiópia e pelo Quênia, além de gastar uma grande parte do seu orçamento com despesas militares. Os somalis aceitavam as fronteiras de facto (do latim: na prática) e não as fronteiras de jure (do latim: pela lei). Em função dessa questão, as relações entre a Somália e seus vizinhos foram tensionadas. Seguindo os exemplos, Somália e Quênia entraram em uma guerra em 1964 que durou até 1977 e a Etiópia deu suporte político, econômico e militar a grupos armados – e acabou manipulando tais grupos armados para fins políticos, o que contribuiu com a guerra civil somali.

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Desde o início de seu governo, Siad também favoreceu os membros do seu próprio clã (Marehan), que além de terem sido recrutados em grande número para o exército foram favorecidos no âmbito do serviço civil. Apesar desse favoritismo, Siad pretendia declarar como ilegal o "tribalismo" ao proibir reuniões clânicas, como cerimônias de noivado e casamento, e homogeneizando os anciãos ao torná-los ‘peacekeepers’ pagos. Instituições independentes capazes de desafiar o poder do governo foram destruídas, os políticos civis foram presos, as organizações civis independentes e partidos políticos foram proibidos, assim como toda e qualquer forma de dissidência política. Então, na tentativa de se manter no poder, Barre atiçou as chamas das animosidades existentes entre os clãs, ao mesmo tempo em que, sistematicamente, destruía qualquer instituição que pudesse atravessar o sistema clânico ou agir como mediadora autêntica nas disputas entre os clãs17.

Apesar da suposta busca pelo o fim do sistema clânico e dos seus subprodutos (nepotismo, corrupção e má governança), no fim dos anos 70, a Somália se transformou em uma ditadura militar baseada em um clã, a aliança M.O.D18. No regime de Barre os ministros, embaixadores, líderes militares e da polícia, além de seus próprios conselheiros, todos eram da aliança M.O.D. Ao marginalizar os outros clãs enquanto favorecia o seu próprio clã, Barre oprimiu e submeteu esses clãs, o que prejudicou a viabilidade de seu próprio governo.

O modo pelo qual Barre escolheu governar foi através de diversos decretos de segurança nacional, o que consequentemente levou ao estabelecimento de fortes organizações nacionais de segurança interna e inteligência – inspiradas na antiga URSS e na Stasi da antiga República Democrática Alemã. Cortes nacionais foram utilizados como instrumentos para punir movimentos antirrevolucionários e contrários ao regime militar. Essas instituições, que eram controladas pelo clã de Barre e sua família, perpetraram graves violações aos direitos humanos (ALASOW, 2010). Segundo Tom Farer (1993), Barre “se tornou um 'açougueiro' de seu próprio povo assassinar anciãos

religiosos em nome da modernidade e matar ‘em uma escala cada vez maior e confiando cada vez mais em um clã estreita base de apoio terminando assim seu flerte com um nacionalismo inclusivo’”19.

17Do original: <from the outset of his rule, Siad also favored members of his own clan, the Marehan, whowere recruited in

large numbers into the army and favored within the civil service. Despite this favoritism, Siad purported to outlaw "tribalism" by banning clan gatherings, such as engagement and wedding ceremonies, and co-opting elders by making them paid "peacekeepers". Independent institutions capable of challenging the government’s power were destroyed, leading civilian politicians were arrested, independent civic organizations and political parties were outlawed, and any form of political dissent was prohibited. Thus, in seeking to maintain himself in power, Siad Barre fanned the flames of clan animosity while systematically destroying any institution that could cut across clan lines or act as an authentic mediator in disputes between clans>, tradução nossa.

18M.O.D – aliança de três sub clãs (Mareehaan, Ogaden e Dulbahante) da família Darod. Explicado por Lewis (1988) como

“M stood for the patrilineage of the president. O, for that of his mother, and D for that of his principal son-in-law”.

19Do original: <became a ‘butcher’ of his own people murdering religious elders in the name of modernity and killing "on a

progressively larger scale and relying ever more on a narrow clan based of support thus ending his flirtation with an inclusive nationalism>, tradução nossa. UN Document E/CN.4/1994/77/Add.1, 9 de fevereiro de 1994, parágrafo 7. Disponível em:

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Uma das principais armas de Barre era seu poder de manipulação. Ele jogava um clã contra o outro, desviando assim a atenção das pessoas em relação a sua má governança e aos abusos de poder. Essa característica fica evidente principalmente após a guerra entre Somália e Etiópia em relação ao deserto de Ogaden, de 1977 a 1978, quando Barre passa a manipular o sistema de clãs oferecendo dinheiro, armas e recompensas para o seu próprio clã em detrimento dos demais (OMAR, 1992). Ao estabelecer uma estrutura de poder centralizada e baseada no sistema de clãs, mesmo que de forma não oficial, e que pecava nos quesitos de accountability (prestação de contas), transparência e respeito pelos direitos humanos, Barre estaria lançando as bases do atual conflito.

O atual conflito na Somália também tem suas raízes na Guerra Fria. Durante este período, as duas superpotências competiam por influência na área em função dela ter uma importância estratégica, por sua proximidade do Oriente Médio e das principais rotas de transporte marítimo do petróleo árabe. Até 1977, Barre era um aliado da URSS (o que podemos ver até mesmo na ideologia implantada no país pelo General), entretanto a configuração das alianças mudou quando a União Soviética passou a apoiar a Etiópia em 1978. Dada a nova configuração das alianças, os Estados Unidos passaram a apoiar militarmente a Somália, assim como países da Europa ocidental – em especial a Itália20. É estimado que U$750 milhões em armas foram importados pela Somália entre 1976 e 198021. Com o fim da Guerra Fria, o valor estratégico da Somália diminuiu e apesar da influência das superpotências no território somali ter sido reduzida, foi possível sentir seus efeitos por muito tempo através das armas herdadas de tal período e que foram empregadas por clãs nos seus conflitos intra-estatais (ALASOW, 2010).

Uma das políticas mais longas de Barre foi a campanha para conquista do território de Ogaden, habitado predominantemente por somalis, mas sob o domínio da Etiópia. Apesar das grandes chances de ganhar a guerra em decorrência de ter o melhor exército da África Subsaariana, a derrota somali foi definida quando a União Soviética decidiu trocar de lado e apoiar a Etiópia (ADAM; FORD et al., 1998).

A derrota da Somália na guerra etíope somali pela região de Ogaden gerou críticas e oposição substanciais ao regime de Barre. Que levariam, em um processo de longo prazo, à crise do regime ditatorial do General. Como destaca Ismail (2009), a derrota da guerra trouxe consequências: a perda de confiança no governo por parte dos cidadãos o que fez com que o apoio desses diminuísse consideravelmente; a perda de seu maior aliado externo, já que os EUA não ocuparam imediatamente o vácuo deixado pela URSS; e, por fim, a fragilização do exército somali. É necessário

<http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/0/8b84c99b706a004a8025676f004ca23e?Opendocument>.

20Relatório do Panel of Experts on Somalia pursuant to Security Council resolution 1425 (2002), S/2003/223, 25 March 2003,

para. 16. Disponível em: <http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/SOMALIA%20S2003223.pdf>.

21U.S. Department of State, Arms Control and Disarmament Agency (ACDA), World Military Expenditures and Arms

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frisar os efeitos na economia do grande fluxo de refugiados gerado pela guerra, agravante de problemas como a terrível seca que atingiu o Chifre Africano no período do fim da guerra. Além desses fatores, a Somália sofria com os efeitos de uma economia atrasada em um contexto de crise econômica e restauração da economia capitalista mundial. Com o aumento das taxas de juros internacionais, a dívida externa do país era de 1,9 bilhões de dólares – o que correspondia a 360% do PIB nacional (AHMED; GREEN, 1999, p. 116).

O principal desafio enfrentado por Barre foram os grupos opositores que surgiram dentro de seu próprio governo. A inexistência de quaisquer meios legais e democráticos ou de outros meios pacíficos para enfrentar a herança de um estado de violência e terror deixado por Barre, fez com que a oposição armada surgisse desde o final da guerra – mobilizando clãs e iniciando assim um conflito interno armado. Os militares, que eram uma base importante do regime, começaram a demonstrar insatisfação. Essa insatisfação culminou em uma tentativa de golpe fracassada em abril de 1978, com os oficiais responsáveis executados em público. Apesar das represálias e repressão contra grupos opositores, foi criado na Etiópia, em 1979, o Somali Salvation Democratic Front (SSDF). A maioria dos oficiais do SSDF pertencia ao sub-clã Majarteen (Darod) e o grupo utilizava técnicas de guerrilha e era apoiado pelo regime de Mengistu da Etiópia (MOHAMED, 2009, p. 48).

Em decorrência da pressão norte-americana, foi constituída, em 1979, a Assembleia Nacional, foi aprovada uma nova constituição e foram realizadas novas eleições. Apesar dessa nova constituição que garantia os direitos dos cidadãos ter sido aprovada pela Assembleia, é necessário ressaltar que tal medida não foi de fato efetiva, e sim uma jogada político-militar de Barre para que seu governo não perdesse apoio econômico e militar externo (CARDOSO, 2012, p. 41).

É nesse cenário que começam a surgir outros grupos armados opositores, que buscavam defender os interesses de seus próprios clãs, além de outras causas. É fundado então o Somali

National Movement (SNM) na Grã-Betanha por exilados do clã Isaq – vale ressaltar que eles

passaram a atuar no território somali através da Etiópia e, assim como o SSDF, também contavam com o apoio do regime Mengistu. É importante frisar que, mesmo os grupos SSDF e SNM tendo bases clânicas, eles não defendiam somente os interesses desses clãs, conforme Lewis (2008, p. 68) aponta:

A oposição armada contra Said estava se espalhando e assumindo um caráter nacional que transcende as divisões clânicas. Mas, ao mesmo tempo, apesar dos seus objetivos comuns – depor Said Barre – as bases predominantes Darod e Isaq, respectivamente, SSDF e SNM, somado as outras dificuldades

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logísticas, impedindo-os de realizar as causas comuns e enfraquecendo o impacto geral da sua rebelião22.

Apesar do apoio de Barre a grupos insurgentes da Etiópia23 como resposta ao apoio dado por Mengitsu aos insurgentes somalis, em abril de 1988 Barre e Mengistu assinaram um acordo de paz entre os países em função dos problemas econômicos e da instabilidade interna enfrentada por ambos. Barre acreditava que os grupos opositores ficariam enfraquecidos sem o apoio externo. Entretanto contra as expectativas, tais grupos aumentaram a oposição e em alguns casos, como o da SNM, passaram a atuar com apoio da população civil. O General Barre iniciou uma campanha de contra insurgência que contava com ataques aéreos e terrestres, sem ressalvas à população civil nas principais cidades resistentes do norte. Tais ataques foram condenados veementemente por grupos de direitos humanos e a assistência militar estadunidense foi suspendida (ELMI, 2010, p. 20). Os custos humanos e sociais foram enormes: milhares de pessoas morreram ou fugiram para Etiópia e Djibuti e as principais cidades da região foram destruídas (CARDOSO, 2012, p. 43).

O produto do aumento dos grupos opositores de base clânica a esse cenário é a deflagração da guerra civil somali. Em 1989 é criado o United Somali Congress (USC) pelo então embaixador General Mohamed Farah Aidid apoiado pelo clã Hawiye. No mesmo ano os clãs Ogaden, que apoiavam o regime, por temerem uma possível deposição de tal regime criam o Somali Patriotic

Movement (SPM), liderado pelo coronel Aden Abdullahi Nur Gabyow.

Em 1989 a Somália estava dividida em quatro principais regiões com guerrilhas opositoras ao governo de Barre: o SNM no norte, o SSDF no nordeste, o USC no centro e o SPM no sul. O que leva os grupos insurgentes a buscarem, além do controle dessas regiões, o controle da capital Mogadíscio são fatores como o fim da Guerra Fria e o enfraquecimento progressivo do regime.

Já em 1990 apenas 10-15% do território somali era controlado pelo governo (FERREIRA apud CARDOSO, 2012, p. 45). No mesmo ano, os líderes dos grupos USC, SNM e SPM se reúnem na Etiópia para orquestrar a deposição de Barre. Em janeiro de 1991 Mogadíscio é invadida pelas tropas da USC, sob o comando de Mohamed Farah Aidid.

A estabilidade não foi atingida após a deposição de Barre. Nenhum dos grupos armados opositores era forte o suficiente para dominar os demais grupos e centralizar o poder, o que fez com que as ruas de Mogadíscio virassem um cenário de conflito. Esse vácuo de poder deixado após a queda de Barre fora preenchido de formas diferentes no território. Além disso, a falta de um governo central isolou as regiões, já que cada uma estava sob o comando de um movimento. Em meio a esse

22Do original: <armed opposition to Siad was spreading and assuming a national character transcending clan divisions. But,

at the same time, despite their common objective – the overthrow of Said Barre – the predominantly Darod and Isaq bases, respectively, of the SSDF and SNM added to their other logistical difficulties, preventing them from making common cause, and weakened the overall impact of their rebellion>, tradução nossa.

23Western Somali Liberation Front (WSLF), Eritrean People’s Liberation Front (EPLF), Tigary People Liberation Front (TPLF)

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cenário de caos, Ali Madhi Mohamed da USC, se autodeclara presidente do país, rompendo com um acordo24 entre os três principais grupos (SNM, SPM e USC) em 1990 (FERREIRA apud CARDOSO, 2012). Apesar dos outros grupos terem contestado, o principal efeito dessa presidência auto-declarada foi a divisão da própria USC em duas facções, lideradas por Ali Mahdi (apoiado pelo sub-clã Abgal) e Mohamed Farah Aidid (apoiado pelos sub-sub-clãs da família Hawiye). Com essa divisão, a capital Mogadíscio também fora dividida: o norte era controlado por Ali Mahdi e o sul, controlado por Aidid. Com os dois grupos guerreando entre si pelo controle da capital, “a briga de dois homens

tornou-se um problema de todos25” (MOHAMED, 2009, p. 14).

As partes beligerantes utilizavam armamento pesado nas ruas de Mogadíscio, sem qualquer ressalvas em relação aos civis, prisioneiros de guerra ou ao pessoal médico. A falência da Somália, detentora de uma das maiores forças bélicas da África, deixou o país saturado de armas leves, munições e armamentos pesados. Em 1992, com a fundação do grupo pró-Barre Somali National

Front (SNF), Ali Mahdi e Aidid foram forçados a se unir. Com essa união, as forças pró-Barre foram

derrotadas rapidamente.

Depois queda de Barre e da deflagração da guerra civil, a Somália passou a ser, em pouco tempo, conhecida como um “Estado Falido”. O rótulo se deveu ao fato do país não ter mais estrutura de um estado efetivo, não sendo capaz de fornecer serviços básicos como segurança, lei e ordem e de gerenciar sua economia, saúde pública, etc.

Em meio a esse cenário de colapso do governo central da Somália, as cortes islâmicas baseadas na Sharia tornaram-se o principal sistema judicial. Em pouco tempo, as cortes assumiram as funções do Estado, passando a oferecer serviços, como educação, assistência médica e também se mostram atuantes como força policial local, paga por comerciantes locais para reduzir o crime. Devido a predominância mulçumana na Somália essas instituições receberam um forte apoio popular.

Por volta de 1996, algumas das cortes existentes decidiram iniciar um trabalho conjunto, que seria estruturado em uma comissão mista, com o intuito de intensificar a promoção da segurança. Desse modo, quatro das cortes – Ifka Halan, Circolo, Warshadda e Hararyaale – formaram as Cortes Islâmicas, com o intuito de coordenar seus assuntos, objetivando consolidar recursos e poder (TABARANI, 2011, p.223).

Em 1999 o grupo começou a firmar sua autoridade, e então os partidários e integrantes das Cortes Islâmicas e outras instituições uniram-se para formar a União dos Tribunais Islâmicos (UTI),

24SPM, SNM e USC tinham se comprometido em não negociar com o regime e não criar nenhuma liderança política sem se

consultarem mutuamente (FERREIRA apud CARDOSO, 2012).

Referências

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