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Rede de apoio social: a violação sexual do corpo da mulher e as suas decorrências

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Academic year: 2021

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REDE DE APOIO SOCIAL: A VIOLAÇÃO SEXUAL DO CORPO DA MULHER E AS SUAS DECORRÊNCIASI

Kananda Fabiane Godoy TelskiII Michelle Regina da NatividadeIII

Resumo: Atentando-se ao histórico de violências que as mulheres vivenciam em suas

trajetórias, este estudo tem seu foco na violência sexual, que fere os direitos humanos das mulheres ao afetar seu direito a vida, a saúde mental e a integridade física. Com diversas consequências que envolvem esta violência, a rede de apoio social possui um papel fundamental, pois pode propiciar a proteção, acolhimento, cuidado e prevenção de outras violências. Este artigo apresenta a análise dos sentidos atribuídos por mulheres à sua rede de apoio social em relação às decorrências da violência que vivenciaram. Para isso buscou-se caracterizar a violência sexual vivenciada; identificar as decorrências dessa violência; identificar a composição da rede de apoio social destas mulheres e identificar a atuação desta rede de apoio social em relação às decorrências da violência sexual. A pesquisa caracteriza-se como qualitativa, exploratória, estudo de caso e de corte transversal, analisada com a técnica de análise de conteúdo. Para alcançar os objetivos desta pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 04 mulheres da região da Grande Florianópolis, que em algum momento de suas vidas sofreram a violação sexual de seus corpos. Foi possível caracterizar a violência sexual destas mulheres como intra e extrafamiliar, ocorrendo, em sua maioria, durante suas infâncias e adolescências de forma contínua e, ainda, com a presença de outras formas de violência. Evidenciou-se que as decorrências advindas desta violência não se atrelam a uma única faceta da vida, mas sim a consequências biopsicossociais que afetam sua integralidade. Em suas redes de apoio social foram encontradas tanto pessoas que se demonstraram acolhedoras e puderam potencializar a emersão de sentimentos positivos, com também a presença de atitudes depreciativas que provocaram sentimentos negativos. Assim, este estudo demonstra que as redes de apoio social tem capacidade de suporte e proteção que propiciam o desenvolvimento da saúde mental da mulher violentada e, por isso, contribui para ampliação do conhecimento sobre a potência das relações humanas.

Palavras-chave: Violência Sexual. Rede de apoio social. Decorrências. Violência de gênero.

1 INTRODUÇÃO

A trajetória da mulher brasileira é historicamente marcada por constantes lutas para assumir seu protagonismo como sujeito e para garantia de direitos como seres humanos que, ainda, são cotidianamente violados. Encontrando-se em uma sociedade patriarcal, a mulher foi sujeitada a um papel coadjuvante, no qual deveria estar a serviço do homem para satisfazer suas necessidades e auxiliar na constituição familiar. Devido ao enraizamento cultural da

I

Artigo apresentado como trabalho de conclusão de curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Psicóloga. Palhoça, 2019.

II

Acadêmica do curso Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. E-mail: kanandatel@gmail.com.

III

Mestre em Psicologia. Professora na Universidade do Sul de Santa Catarina. E–mail: michelle.natividade@unisul.br

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concepção patriarcal, é possível encontrá-la na contemporaneidade, fazendo com que o homem, como marido ou pai, tenha o controle, autoridade e o poder sobre a mulher e a família (RIBEIRO, 2017). Nessa compreensão, a mulher se encontra submetida a uma cultura que a coloca às margens, posta em um lugar de exclusão na sociedade em que a voz de seus afetos não é ouvida (SAWAIA, 2001), tornando necessária a incessante busca por um espaço de direito. Pois, mesmo com conquistas como direito ao voto, direito à proteção, direito à liberdade, entre outros, observa-se que a prática é muito falha frente às teorias. Pasinato (2015) relata que, ainda que as leis existam, isso não garante que todas tenham seus direitos assegurados, devido as variáveis sociais, econômicas, educacionais etc, que influenciam nesse processo. Dessa forma, as leis ainda são infringidas em justificativa à uma cultura histórica, social, econômica e política do que foi sempre propagado como certo, com preconceitos e estereótipos explícitos e tácitos que mantém às mulheres as margens sociais.

Reconhecendo o histórico de violências sofridas por mulheres, ressalta-se que algumas destas se iniciam em suas infâncias, já que além da categoria mulher sofrer com a exclusão, a infância porta um papel, também, de submissão ao adulto (SAFFIOTI, 2000). E embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) tenha surgido para assegurar os direitos dessa população, o seu cumprimento é dificultadado a todas as crianças e adolescentes, pois a voz dos jovens ainda é silenciada pelo autoritarismo dentro da própria família e negligência do Estado (PINHEIRO, 2000). Diante deste aspecto, o papel de inferioridade que mulheres e crianças ainda são submetidas pela sociedade resulta em inúmeras violações desencadeadoras de sofrimentos físicos e psíquicos, com consequências sociais e emocionais de sujeitos postos em situações de vulnerabilidade.

A partir da compreensão das violações dos direitos humanos das mulheres destaca-se neste trabalho, aquela que ocorre de forma silenciosa e que, por vezes, se mantém em silêncio: a violência sexual. Conforme a Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009 (BRASIL, 2009) estas são diversas formas de crimes contra a dignidade e liberdade sexual cometidas de forma individual ou coletiva. Abrange desde atos libidinosos até a conjunção carnal, ou seja, desde o toque em qualquer região do corpo até a penetração sexual, sem que haja o consentimento dos sujeitos em relação, independente de alguma forma de vínculo ou familiaridade, ou em casos de crianças, mesmo havendo esse consentimento. Ainda, as definições das formas de violência sexual são caracterizadas como: intrafamiliar, em que o agressor possui vínculo familiar com a vítima, ou seja, o ato é cometido por alguém da família com uma relação de confiança estabelecida, o que facilita a abordagem à vítima, realização da violência e ameaças; ou extrafamiliar, em que o agressor pode ser algum desconhecido ou

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conhecê-la sem vínculos familiares (HABIGZANG; RAMOS; KOLLER, 2011). Além dessas características, algumas violências sexuais podem envolver agressão física, psicológica, ameaças à vítima e às pessoas com vínculos afetivos e até a morte da vítima (SUDARIO; ALMEIDA; JORGE, 2005). Dessa maneira, a violência sexual fere os direitos humanos das mulheres ao trata-las como objeto de satisfação de desejo sexual de agressores (as) que as forçam ao ato sexual sem o seu querer, afetando seu direito à vida, a saúde e à integridade física. Assim, a violação de seus corpos ocorre quando a vontade de mulheres não é respeitada pelo toque de mãos indesejadas, ao som de palavras que as assediam, a penetração sem que haja o seu consentimento e a coação para realizar atos sexuais malquistos (LUCANIA; MIYAZAKI; DOMINGOS, 2008).

Por ser, na teoria, a violência sexual ser uma violação do corpo, essa forma de agressão afeta o âmbito subjetivo do sujeito, incluindo a violação da vida afetiva, psicológica e social da mulher violentada. As consequências decorrentes da violência sexual são diversas, e irão variar de acordo com as condições de enfrentamento à situação, reação da família, amigos, amparo das redes de apoio, proteção e até mesmo quando e de que forma o acontecimento foi ou se será revelado (LYNSKEY; FERGUSSON, 1997; TYLER, 2002 apud BORGES; ZINGLER, 2013). Do mesmo modo, Hanada, D‟Oliveira e Schraiber (2010) relatam que as consequências da violência sexual poderão causar sofrimento psíquico de acordo com a vivência de cada sujeito, afetando sua autoimagem, relação com o outro, ao depender da idade, o desenvolvimento cognitivo, ademais “[...] envolve rompimentos nas relações de intimidade e confiança, permeados de julgamentos morais e modelos de masculinidade e feminilidade que desqualificam as mulheres no exercício de suas subjetividades.” (2010, p.34). Ainda, Amazarray e Koller (1998) acrescentam que os sentimentos decorrentes dessa situação podem ser imediatos ou retornarem posteriormente em situações adversas de estresse ou ansiedade, por isso, destacam a importância do acolhimento por sua rede de apoio, a qual poderá auxiliar no enfrentamento e proteção do sujeito.

Neste viés, é necessário entender como as relações humanas são partes constituintes do que é o ser humano, essa compreensão é o alicerce do que é uma rede de apoio social. Esse conceito baseia-se nas relações significativas de um sujeito, como sua família, amigos e contato com pessoas de seu cotidiano, ou seja, pessoas com as quais se interage de forma interpessoal e/ou intergrupal (SLUZKI, 1997 apud ROCHA; RODEGHERI; ANTONI, 2019). Assim como trazido em seu nome, essa rede diz respeito ao apoio social fornecido por aqueles que a compõe, ou seja, a forma como se é acolhido e o apoio fornecido pode fortalecer vínculos e contribuir para que o sujeito interaja e haja trocas entre as pessoas que constituem

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essa rede (LEONIDAS; CREPALDI; SANTOS, 2013). Conforme Sanicola (2008 apud NETTO et al 2017, p.3), a rede de apoio pode ser considerada primária: “caracterizados pelas relações de parentesco, amizade ou vizinhança, fundadas na reciprocidade e confiança”, e secundáriaIV: “[...] são formais ou informais, de terceiro setor, de mercado ou mistas [...] constituída por instituições de existência oficial, com prestação de serviços de acordo com as demandas e troca fundada na solidariedade”. Ressalta-se que as relações que possuem vínculo instituído possuem capacidade de suporte e proteção que propiciam o desenvolvimento da saúde mental, já que os vínculos afetivos são parte constituinte das relações humanas e as relações humanas são inerentes à constituição do ser humano (JULIANO; YUNES, 2014).

Do mesmo modo, Sawaia (2008) expõe que a afetividade faz parte do que é ser humano, de modo que ignorar essa magnitude é ignorar sua humanidade, e essa afetividade está relacionada ao que lhe afeta de forma boa ou ruim, mas que em sua totalidade contribuem para a constituição do sujeito. Deste modo, a violência sexual que mulheres sofrem desencadeiam afetos negativos, de modos de viver de relação de dominância que por meio da coação, da vergonha e humilhação tentam manter a mulher em posição de submissão suscitando a alienação à vontade do outro, inviabilizando sua potência e capacidade de agir (SAWAIA, 2008). Assim, as redes de apoio em que os vínculos estão instituídos são capazes de proporcionar emoções positivas que viabilizam a potência da mulher. E, conforme a mesma autora, a potência vai além da ajuda para se sentirem melhor com a situação posta, ela diz respeito em impulsionar a sua capacidade de viver diante do afetar e ser afetado, sem que exista uma relação de dominação. Dessa forma, uma rede de apoio em que vínculos e afetos positivos estão instituídos proporcionam condições viabilizadoras de enfrentamento à situação da violência sexual, já que, os afetos fortalecem a vítima a sair do ciclo de hostilidade e agressão que vem sofrendo (SAWAIA, 2008).

Entretanto, de acordo com Correa, Labronici e Trigueiro (2009), o sofrimento diante da violência sexual não afeta somente a vítima, sensibiliza, também, aqueles que estão diante da situação: família, amigos e profissionais que estão em contato com essa violência. As emoções acarretadas são diversas e podem desencadear desde sentimentos de sofrimento até os de impotência diante da situação de resolução do crime e de proteção ao sujeito. Dessa forma, tais aspectos negativos podem causar afastamento dos sujeitos envolvidos e da sociedade em geral com a temática. Assim, nota-se que mesmo que a violência sexual esteja sendo retratada e denunciada com mais frequência, essa violência ainda é um assunto

IV

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rejeitado, pois ainda que existam redes de atendimento às vítimas, por ser uma situação desencadeadora de afetos negativos, o contato com o tema é evitado, causando certa incompreensão social sobre a violência sexual. Assim, nota-se que não se trata da criação de mais dispositivos para relatos da violência sofrida, e sim “compreender”, conforme trazido por Hanna Arendt (1989, p.12):

[...] Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós - sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela - qualquer que seja.

Por isso a importância de ir além de números e dados estatísticos em relação a temática, de se potencializar práticas que viabilizam a compreensão da magnitude que a violência sexual atinge.

Deste modo, ao levar em consideração que, por meio da violência sexual, a mulher se depara com a violação de seu corpo e de sua vida, sofre com o desrespeito a sua integralidade e perde seu nome para assumir a identidade de “vítima”, “violada”, “abusada”, “estuprada” ou “violentada”, questiona-se sobre o papel que a rede de apoio social apresenta para mulheres, em relação aos seus afetos diante de uma situação desencadeadora de limitações de perspectivas de vida e identidade pessoal. Neste entendimento, faz-se a seguinte pergunta:

Quais os sentidos atribuídos por mulheres à sua rede de apoio social em relação às decorrências da violência sexual vivenciada?

Para fundamentar este projeto foram realizadas pesquisas nas seguintes bases de dados: Scientific Electronic Library Online (SCIELO) e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). As buscas basearam-se em publicações de artigos científicos voltados a estudos da realidade brasileira. Deste modo, foram utilizados cruzamentos entre as palavras-chave: “Violência sexual”; “rede de apoio”; “redes comunitárias”; “rede de apoio social”; “abuso sexual”; “violência sexual”; “mulher”; “violência de gênero”; “consequências” e “saúde”. Os artigos encontrados concentram-se nas seguintes temáticas: caracterização da violência sexual (SUDARIO; ALMEIDA; JORGE, 2005; LUCANIA; MIYAZAKI; DOMINGOS, 2008; DE ANTONI et al, 2011; HABIGZANG; RAMOS; KOLLER, 2011; LIMA; ALBERTO, 2015;); as possíveis consequências da violência sexual (AMAZARRAY; KOLLER, 1998; HANADA; D‟OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2010; MARTINS, 2011; BORGES; ZINGLER, 2013; GAVA; SILVA; DELL‟AGLIO 2013; FLORENTINO, 2015); a mulher na sociedade e sua história (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015; SOUSA; SIRELLI, 2018); concepção de rede

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de apoio social e sua contribuição (CORREA; LABRONICI; TRIGUEIRO, 2009; SILVA; GAVA; DELL‟AGLIO, 2013; JULIANO; YUNES, 2014; ROCHA; RODEGHERI; ANTONI, 2019).

Por meio das leituras realizadas para aproximação com o tema, foi possível notar a existência de pesquisas científicas sobre a violência sexual relacionada à rede de apoio, porém, os conteúdos expostos exploram a perspectiva de profissionais e familiares acerca do tema. Assim, esta pesquisa ancora-se a partir da voz de mulheres que sofreram a violação de seus corpos para que através do ato político de corresponsabilização com a sociedade e vida pública, mediante estudos, métodos e fundamentações científicas, contribuir para o desenvolvimento das Ciências Humanas.

Ademais, diante das decorrências emocionais advindas da violência sexual que a mulher sofre é perceptível que o papel da (o) profissional de Psicologia nessas situações é imprescindível devido a compreensão multidimensional do sujeito que está em sua frente. Conforme Freire (2003, p.14), o papel da (o) profissional de Psicologia se estende a:

Oferecer um lugar para o outro – lugar este que desde sempre já seria dele –, abrindo portas e janelas para sua visitação, oferecendo o melhor cômodo e a melhor comida, garantindo-lhe um espaço de habitabilidade, ou seja, um ethos, uma morada confiada e serena onde ele possa renovar-se para retomar suas dores no mundo.

Por isso, entendendo o abundante número de casos de violência sexual e seus efeitos, o papel da (o) profissional de psicologia deve compreender as diversas magnitudes que essa forma de agressão atinge na vida da mulher, atentando-se para que suas atitudes não sejam limitadoras, levando em consideração sua multidimensionalidade, e, além disso, respeitando todos os aspectos que constituem esse sujeito. Assim, cabe a (ao) profissional entregar-se para quem o procura e, também, caminhar aos lugares onde a psicologia deve estar presente.

Assim, diante do apresentado, esta pesquisa teve como objetivo geral “Analisar os sentidos atribuídos por mulheres à sua rede de apoio social em relação às decorrências da violência sexual vivenciada”. Para atingir tal objetivo geral e responder à pergunta de pesquisa, tiveram-se os seguintes objetivos específicos: Caracterizar a violência sexual vivenciada por mulheres, a partir de suas próprias significações; Identificar as decorrências da violência sexual vivenciada por mulheres, a partir de suas próprias significações; Identificar a composição da rede de apoio social das mulheres que sofreram violência sexual, a partir de suas próprias significações; Identificar a atuação da rede de apoio social em relação às decorrências da violência sexual vivenciada por mulheres, a partir de suas próprias significações.

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2 MÉTODO

Esta pesquisa tem sua natureza como qualitativa, pois foi pesquisada a realidade dos sujeitos alvos da pesquisa, preocupando-se com o sentido pessoal de cada participante acerca de suas vivências (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). Considerando seu objetivo, caracteriza-se como exploratória que Gerhardt e Silveira (2009, p.35) classificam como principal finalidade “proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses” e nesta pesquisa será investigado um tema que em sua generalidade é conhecido popularmente, porém há poucos registros científicos que abordem a voz do sujeito em relação ao tema. Já quanto ao delineamento é definido como estudo de caso, ou seja, um número pequeno de participantes foi contatado, para apreensão da completude de uma situação, levando em consideração o seu contexto e singularidade (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). E seu corte do tipo transversal por haver um contexto histórico específico, com tempo delimitado para a realização da pesquisa, que foi realizada no 2º semestre do ano de 2019.

Em relação aos sujeitos da pesquisa, foram contatadas quatro (04) mulheres que demonstraram interesse em participar e que se enquadravam nos critérios de inclusão: com idade maior ou igual a 18 anos; que tenham vivenciado violência sexual; que contaram a alguém de sua rede de apoio social há pelo menos 06 meses e residentes na região da Grande Florianópolis. Foi considerado como violência sexual qualquer ato sexual ocorrido sem o consentimento da mulher, ou seja, que envolva atos libidinosos ou conjunção carnal, realizado na presença de alguém com ou sem capacidade de discernimento, ou forçá-los a participação do ato sem seu consentimento ou manipulação para o assentimento. Para seleção das participantes foi realizada a divulgação nas redes sociais (Whatsapp e Instagram) da pesquisadora, na qual apresentava critérios de inclusão, temática da pesquisa e contato da pesquisadora, que também foi divulgado por seus conhecidos até alcançar mulheres que se dispusessem a participar. As mulheres que quiseram participar entraram em contato, houve a explicação da pesquisa e a entrevista foi agendada em datas e horários convenientes para cada mulher e a pesquisadora.

O instrumento utilizado foi uma entrevista que, segundo Gil (1999), proporciona a coleta de informações acerca do sentido atribuído pelo sujeito referente a determinado tema e de forma semiestruturada com roteiro previamente estabelecido. Logo, a entrevista abordou questões relativas aos objetivos desta pesquisa: caracterizar a violência sexual; identificar as decorrências da violência sexual; a composição da rede de apoio social; a atuação da rede de apoio social em relação às decorrências da violência sexual vivenciada por estas mulheres.

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Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética de Pesquisas da UNISUL e somente após sua aprovação deu-se início a coleta de dados prevista. No início de cada encontro com as participantes, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em que constavam os objetivos, possíveis riscos, benefícios, garantia de sigilo, anonimato e autorização para gravação de voz, sendo lido e assinado pelas participantes e pesquisadora. As entrevistas ocorreram de forma individual e voluntária em salas disponibilizadas pela universidade, com estrutura adequada para assegurar o sigilo dos relatos e tiveram duração média de 50 minutos.

As entrevistas foram transcritas para viabilizar a categorização e análise de dados das informações obtidas para utilização da técnica de análise de conteúdo. Conforme Bardin (2011), as transcrições permitem uma leitura aprofundada e a organização do conjunto dos dados, que permite a categorização e análise dos dados, relacionando o relato das participantes com os conteúdos já encontrados na literatura.

As participantes desta pesquisa receberam nomes fictícios visando o anonimato a fim de preservar a identidade destas mulheres. Diante do exposto, apresentam-se as participantes da pesquisa, conforme tabela 1, para melhor compreensão da análise dos resultados que serão apresentas no próximo capítulo.

Tabela 1 - Apresentação das participantes

Nome fictício Idade Renda

familiar Escolaridade Considera-se Agressor

V Amélia 23 Mais de 10 salários mínimos. Superior cursando Branca “1º namorado” e “2º namorado” Joana 23 Mais de 10 salários mínimos. Superior cursando Branca “Mãe” e “namorado da mãe” Maria 29 2 à 5 salários mínimos. Superior cursando Branca “Irmão mais velho” Dandara 22 5 à 10 salários mínimos Superior

cursando Branca “Avô”

(fonte: elaborada pela autora, 2019). 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos resultados foi realizada por meio da organização e categorização dos dados a partir dos eixos temáticos em conformidade com os objetivos específicos desta

V

Estas mulheres não estão vivenciando atualmente qualquer forma de violência sexual, assim como não convivem com seus agressores.

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pesquisa. Deste modo, por meio das falas das mulheres entrevistadas articuladas ao referencial teórico desta temática serão apresentados os próximos subcapítulos abordando os eixos: “A violência sexual vivenciada”; “As decorrências da violência sexual vivenciada por mulheres”; “A composição da rede de apoio social”; “A atuação da rede de apoio social em relação às decorrências da violência sexual vivenciada”.

3.1 A VIOLAÇÃO SEXUAL DE SEUS CORPOS

Neste eixo será apresentada a análise vinculada aos objetivos específicos: “Caracterizar a violência sexual vivenciada por mulheres, a partir de suas próprias significações”. Isto posto, para que seja possível a compreensão do eixo, a partir das significações relatadas pelas entrevistadas, foram criadas cinco (05) categorias a priori, sendo elas: “vínculo com o agressor”; “idade”; “frequência”; “violências” e “apropriação”.

A categoria “vínculo com o agressor (4)VI” objetiva analisar características da violência referente a quem violentou as mulheres participantes desta pesquisa. Para melhor elucidação, foram criadas duas (02) subcategorias que integram esta categoria: “intrafamiliar

(3)” e “extrafamiliar (2)”.

Iniciando pela subcategoria intrafamiliar, conforme Lima e Alberto (2015), a violência sexual com essa característica tem como agressor algum sujeito que pertença à família da mulher violentada, seja por laços consanguíneos ou pela vítima identificar seu agressor como pertencente à família. De acordo com os mesmos autores, a maioria dos casos de violência sexual intrafamiliar ocorre com crianças e adolescentes e como os agressores estão envolvidos na dinâmica familiar seus atos e sua proximidade com a vítima não causam desconfiança. Assim, ao analisar esta subcategoria, nota-se que ela está interligada à categoria

“idade (4)”, tendo como subcategorias a “infância”, “adolescência” e “adulta”, que

correspondem à fase da vida em que as mulheres foram violentadas. Desse modo, da amostra das quatro (04) participantes desta pesquisa, três (03) delas vivenciaram a violência sexual

intrafamiliar durante o período de suas infâncias e adolescências: Joana: violentada

sexualmente pela mãe dos 07 aos 14 anos de idade; Dandara: violentada sexualmente pelo avô paterno aos 12 anos de idade; Maria: violentada sexualmente pelo irmão dos 07 aos 11 anos de idade. Ainda, cabe-se ressaltar que a infância porta um papel de submissão ao adulto em uma sociedade patriarcal, segundo Saffioti (2000, p. 21): “Há uma hierarquia, na qual o poder do adulto destina-se a socializar a criança, a transformá-la em um adulto à sua imagem e

VI

O número apresentado ao lado do nome da categoria ou subcategoria indica a quantidade de participantes que as integram.

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semelhança.”. Além do mais, a criança, sendo aquela que deve obedecer aos ensinamentos do adulto, torna-se sujeita às situações violentas já que muitas vezes não possui condições maturacionais ou psicológicas para reconhecer o contexto de hostilidade de uma relação “entre um superior que manda e um inferior que obedece”, que deslegitima o outro e reduz sua integralidade que o constitui como ser humano (CHAUÍ 2003). Fato que tornaram essas três participantes ainda mais vulneráveis a situação, pois como apresentado na introdução desta pesquisa, além de abarcarem a categoria mulher, que são sujeitadas ao papel de submissão, eram também crianças que se encontram no lugar de oprimidas.

Entretanto, mesmo que haja mais casos de violência sexual intrafamiliar, é necessário apontar que a relação violenta que deslegitima o outro também está presente nos casos de violência sexual extrafamiliar. Esta forma tem como agressor o sujeito sem nenhum vínculo familiar, podendo ser um desconhecido, conhecido ou até amigo (HABIGZANG; RAMOS; KOLLER, 2011). Ainda, conforme De Antoni et al (2011) essa vinculação com o agressor tem geralmente como vítimas: “as adolescentes, jovens e adultas do sexo feminino” (p.99). Assim, em relação aos casos das participantes, além de Joana Sanchez ter sofrido uma violência sexual intrafamiliar, esta também vivenciou a violência sexual extrafamiliar aos 12 anos de idade, praticada pelo namorado de sua mãeVII. Em seu relato ela compartilha que: “[...] Ele era um homem que me violentou e sim, ele sentiu que por ser um homem mais velho, ele tava se sentindo no direito de tocar no meu corpo né.”. A partir do relato de Joana, identifica-se que as violências encontradas ainda hoje são heranças de uma cultura arcaica, de uma relação de dominação e submissão às figuras masculinas, em que as mulheres não são vistas como mulheres, são compreendidas como aquelas que não são homens, estando em um lugar de inferioridade, pois a partir do patriarcado a mulher é reduzida a função de servir ao homem (BEAUVOIR, 1970). Nesse mesmo sentido, a participante Amélia foi violentada sexualmente aos 17 anos de idade por seu 1º namorado e meses depois por seu 2º namorado, dos 17 aos 19 anos de idade. Assim, ela relata sobre sua vivência com o 1º namorado: “Então eu fiquei, parecia cena de filme, eu estática, parada, olhando pro teto, enquanto ele se satisfazia assim [...]”. Posto isto, as perspectivas de que as mulheres devem servir aos desejos do homem e comportar-se conforme “conservadorismo” contribuem com as contínuas violações devido aos hábitos ultrapassados que reificam a mulher (SOUSA; SIRELLI, 2018).

Ainda, dados da categoria “vínculo com agressor” estão associados à categoria

“frequência (4)”, correspondente à constância da violação sexual vivenciada. Ela foi dividida

VII

Este caso é considerado extrafamiliar, pois a participante não identificava este homem como figura familiar ou paterna.

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em duas (02) subcategorias: “Contínua (3)” e “Pontual (2)”. Conforme parágrafos anteriores, os casos de violência sexual intrafamiliar, além de ter como maior número de vítimas crianças e adolescentes, possuem, também, maior chance de terem ocorrências

contínuas, pela confiança estabelecida e a facilidade do acesso à vítima (DE ANTONI et al,

2011). Apesar disso, é possível observar que o caso de Dandara foi pontual, ou seja, com apenas uma ocorrência, porém acredita-se que a variável de seu agressor não residir no mesmo domicílio que a participante seja um dos fatores que possa ter influenciado nesse aspecto. E em relação aos casos de violência sexual extrafamiliar, não foram encontrados dados científicos que o relacionem com a frequência da ocorrência.

Em continuidade, ainda que este trabalho tenha o foco na violência sexual, as diversas formas de violências não ocorrem isoladas e estão em sua maior parte interligadas (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015). Neste sentido, as vivências das mulheres desta pesquisa não se restringiram à apenas uma forma de violência, por isso, criou-se a categoria “outras

violências (4)”, divididas nas subcategorias “física (3)” e “psicológica (4)”. A primeira se

refere às violências físicas que as mulheres sofreram no momento de sua violência sexual, em que tiveram sua saúde corporal ofendida por resistir ao ato e pela hostilidade de seus agressores, como ocorreram nos casos de Maria e Dandara. Entretanto, falar sobre a interligação entre as violências inclui, também, falar sobre um contexto ameaçador, de violações praticadas em diferentes situações resultadas de um ambiente sustentado pela coerção (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015), encontrados nos relatos de Joana e Maria, que sofreram diversas agressões físicas em momentos assíncronos à violação sexual, explicitado pelo relato de Maria: “tinha momentos que ele me batia, mas não era só pra ter o abuso, era só porque dava pra ver que ele tava com vontade de me bater, um negócio bem doentio assim. Então ele me batia sabe, ficava me torturando.”.

Já a violência psicológica é definida pelos atos que prejudicam o estado emocional, autoestima e saúde mental da mulher, por meio de constrangimentos, manipulações, proibições de relacionar-se com sua rede social, insultos, chantagens, limitação do direito de ir e vir etc (BRASIL, 2006). A violência com esta configuração normalmente está presente com as demais violências e apesar disso quem a vivencia dificilmente a reconhece, já que é desconhecida popularmente e de complexa comprovação (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015). Do mesmo modo, todas as mulheres participantes trazem em seus relatos vivências explícitas dessa violência, com a presença de ameaças de morte, insultos e chantagens emocionais, como também implícitas, encontradas, por exemplo, no relato de Joana: “[...]ela sempre me elogiava muito durante o abuso sabe? Então isso era muito forte”. Assim, mesmo que elogios

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não tenham uma conotação agressiva, os fins para os quais se destinavam, nessa situação, caracterizavam-se como manipulativos articulado à violência sexual.

Um ponto em comum sobre as mulheres participantes desta pesquisa é sobre o silêncio que mantiveram sobre as violências sexuais que vivenciaram. Por isso, criou-se a categoria

“apropriação (4)”, esta foi dividida nas subcategorias “no momento da violência sexual (2)”

e “posterior à violência sexual (3)”. Quando Joana foi violentada pelo namorado de sua mãe, desde o momento em que o ato aconteceu, ela percebeu do que se tratava, ou seja, notou no

momento da violência sexual e tentou contar à mãe, que não acreditou em seu relato. No caso

de Maria, quando as violências sexuais começaram, não entendia o que acontecia, entretanto notou enquanto ainda vivenciava constantes violações, contando pela primeira vez entre seus 16 e 17 anos de idade. Já Amélia em relação aos dois namorados; Joana em relação à sua mãe e Dandara em relação ao seu avô, compreenderam que haviam sofrido violência sexual quando os efeitos dessa violação ficaram mais intensos e começaram a afetar diversos âmbitos de suas vidas pessoais na vida adulta e ao compartilhar suas vivências perceberam posterior à

violência sexual que se tratava de uma violação de seus corpos. Destaca-se, assim, o relato de

Joana “Então... é quando ele passou a mão em mim, eu percebi que era errado, eu sabia que era errado. Mas quando minha mãe fazia, não”.

Ao atentar-se ao fato de que essas mulheres presentes na subcategoria posterior à

violência foram vítimas de uma violência sem a apropriação no momento em que a mesma

ocorria, é importante apontar que estavam em fase de escolarização e evidencia a relevância da educação sexual nos ensinos escolares. Conforme Spaziani e Maia (2015), as escolas não se reduzem à reprodução de grades curriculares, devem abordar questões sociais e propiciar a socialização dos estudantes. Sabendo que o agressor podem ser os próprios cuidadores das crianças, vê-se na escola um potencial para prevenção e/ou proteção da criança violentada. Assim, nota-se que mesmo as mulheres da subcategoria no momento da violência poderiam ter percebido na escola confiança e suporte se identificassem abertura e segurança para esse diálogo.

Dessa forma, embora se tenha o movimento de mudança, de empoderamento e de ouvir a voz de mulheres e crianças, ao considerar as histórias desta pesquisa, foi possível perceber que relação entre homens e mulheres, bem como de adultos e crianças, foi e continua a ser constituída pelo poder. Um sujeito assume dominância e razão sobre o outro, independente das circunstâncias, acarretando uma relação marcada por opressões e intimidações. Essas são atitudes violentas, já que são desenvolvidas em um contexto de hostilidade, coerção, contra liberdade e favorável à violação (CHAUÍ, 2003), ao levar em

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consideração que as vivências destas mulheres estiveram a mercê do autoritarismo de um “superior” que as limitavam e as violavam.

3.2 AS DECORRÊNCIAS DA VIOLAÇÃO SEXUAL DE SEUS CORPOS

Neste eixo será apresentada a análise vinculada ao objetivo específico: “Identificar as decorrências da violência sexual vivenciada por mulheres, a partir de suas próprias significações”. Logo, pontua-se que a violência sexual pode ser desencadeadora de consequências físicas e psicológicas que poderão emergir decorrente a violência (AMAZARRAY; KOLLER, 1998). Assim, os efeitos resultantes da violência sexual são variados e a forma como eles irão se manifestar se devem a diversos fatores. Diante do exposto, foram criadas seis (06) categorias a priori para a compreensão desses fenômenos, sendo elas: “identificação do sentimento desencadeado”; “somatização”; “autoimagem”;

“relacionamento interpessoal”; “desempenho escolar” e “negação”.

Deste modo, a forma como a violência sexual poderá afetar os aspectos biopsicossociais das mulheres se devem a diversos fatores, dentre eles categorias citadas nos eixos anteriores, como: idade da vítima; diferença de idade entre agressor e vítima; a reação de seus familiares; vínculo com agressor; por quanto tempo ocorreu a violência; o silenciamento, a presença de ameaças; a presença de outras agressão; ausência de figuras protetoras; condições genéticas etc. (AMAZARRAY; KOLLER, 1998; BORGES; ZINGLER, 2013; GAVA; SILVA; DELL‟AGLIO 2013). Esses fatores são condições particulares, porém com algumas semelhanças entre as participantes desta pesquisa, bem como as decorrências vivenciadas, entretanto experienciadas de maneiras singulares por cada uma delas.

Deste modo, a categoria identificação do sentimento desencadeado (4) refere-se a forma como as participantes nomeiam o sentimento desencadeado diante da violência sexual vivenciada. As subcategorias foram divididas conforme a nomeação de cada participante, sendo elas: desespero, invasão e receio em ser desacreditada relatados por Joana; desistência relatado por Maria; medo relatado por Dandara e Joana; raiva relatado por Dandara e Amélia;

culpa relatado por Maria, Dandara e Amélia. Cabe mencionar que a culpa vivenciada por

estas mulheres carregam sentidos diferentes: Amélia e Dandara se referem a sentir culpa pela violação sofrida. Já no caso de Maria se refere a uma culpa em decorrência ao suicídio de seu irmão abusador, quando ela tinha entre 16 e 17 anos, pois acredita que poderia ter evitado sua morte se o tivesse ajudado e, também, por diversas vezes ter desejado sua morte. Tal acontecimento também desencadeou pensamentos suicidas, em que ela menciona ter sentido muita vontade de se matar.

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Durante as entrevistas observou-se a intensidade e dificuldade de todas as mulheres em conseguir nomear os sentimentos advindos da violência sexual e cabe ressaltar o relato de Maria sobre a desistência, pois foi percebido um grande impacto ainda presente na vida desta mulher:

Eu acho que... talvez se fosse outro dia eu ia falar outra palavra, mas hoje, eu acho que é desistir. Por que eu não tenho vontade de me matar mais, mas eu acho esse mundo tão injusto, tão injusto... Não que eu seja infeliz agora, atualmente né, mas... eu acho tão difícil viver nesse mundo.

Essas consequências também estão presentes no estudo do Martins (2011) e como resultado de seu estudo a autora apresenta que mesmo no decorrer de um ano, algumas decorrências continuam presentes na vida da pessoa violentada e esses impactos são percebidos quando a vítima não pode contar com uma rede de apoio presente. Fato que pode ser corroborado nesta pesquisa, já que as participantes permaneceram em silêncio durante longo tempo e, em algumas situações, ainda preferem não falarem sobre a situação.

Em relação a categoria “somatização (4)”, conforme a compreensão de Dalgalarrondo (2008), se refere à manifestação do corpo por meio de sintomas e sinais, relacionados à expressão física de ordem psicológica que ocorre quando a forma verbalizada se encontra impossibilitada de ser usada, como por exemplo, pela falta da identificação do sujeito sobre o que o está afetando. Para isto, foram criadas nove (09) subcategorias de acordo com a significação das próprias participantes: “dermatite”; “fibromialgia”; “asma” “dores nas

relações sexuais”; “candidíase”; “crise do pânico”; “compulsão alimentar”; “gastrite” e “vômitos”.

O mesmo autor expõe que as somatizações podem ocorrer devido à predisposição genética, ou doenças já manifestadas, que são impulsionadas devido às raízes psicológicas que intensificam os sintomas. Assim, em relação às subcategorias dermatite apresentada por Joana, fibromialgia apresentada por Dandara, e asma apresentada por Amélia são doenças que as próprias participantes reconhecem ter devido a fatores biológicos e genéticos, entretanto enfatizam que identificam a sua manifestação ou intensificação devido às conturbações emocionais vivenciadas como pode ser observado no relato de Dandara sobre a fibromialgia:

Mas tem casos na minha família que as pessoas têm. E aí eu tinha essas crises, né, que é uma dor no corpo inteiro assim. Foi nessa época, com uns 18/19 que eu comecei a me dar conta de tudo que tinha acontecido, que eu fui falar sobre, daí reviver isso me deu essas crises assim. Tinha isso, assim, dor no corpo todo[...]É que... a dor aparece a partir de algum estado emocional teu né? Se alguma coisa mexe ali, daí a dor surge, ai tem pessoas que tem dor em algum canto do corpo[...]

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No mesmo sentido, Facuri et al (2013) mencionam que o comprometimento da saúde física das mulheres vítimas de violência sexual podem se manifestar em curto ou em longo prazo e comumente encontram-se decorrências como “distúrbios ginecológicos e na esfera da sexualidade”, assim como “maior vulnerabilidade para sintomas psiquiátricos, principalmente depressão, pânico, somatização, tentativa de suicídio, abuso e dependência de substancias psicoativas” (BASILE; SMITH, 2011 apud FACURI et al, 2013, p. 890). Neste viés, em relação as consequências recorrentes de ordem ginecológicas e de sexualidade, Dandara apresentou candidíase frequente e mesmo com a tentativa de diversos tratamento não obtinha melhora até que sua ginecologista indicou a psicoterapia, situação na qual a participante começou a compreender os efeitos da violência sexual em seu corpo. Assim como Amélia apresenta, desde a primeira violência sexual, dores nas relações sexuais que vivencia, conforme seu relato: “[...] Até hoje em muitas relações sexuais que eu tenho com meu atual noivo, mesmo sendo com vontade, mesmo tendo lubrificação, mesmo tendo um contexto totalmente favorável, a primeira penetração SEMPRE dói, sempre dói...”.

Por conseguinte, em relação à vulnerabilidade para desenvolver sintomatologias psicopatológicas, a participante Joana relata ter apresentado em diversas situações crise do

pânico, ou seja, crises intensas de ansiedade quando reconheceu que suas vivências na

infância e adolescência com a mãe eram caracterizadas como violência sexual.

Em continuidade, a pesquisa de Florentino (2014) acrescenta que problemas relacionados à alimentação também são consequências frequentes da violência sexual, no caso desta pesquisa encontrou-se compulsão alimentar (1), gastrite (1) e vômitos (2). Maria mencionou não ter controle sobre o que comer em situações ansiogênicas geradas pela violência sexual e que ocasionaram uma gastrite. Em relação às situações de vômitos a participante Amélia sente náuseas, levando ao vômito, ao se deparar com situações de outras mulheres em situação de violência sexual. Já no caso de Joana essa ocorrência aconteceu ao se deparar com momentos relacionados às suas vivências sexuais: “eu tentei até ter uma relação casual sim e só me fez mal, ao ponto de eu ter a relação sexual com a pessoa e eu ficar uma semana vomitando, porque eu me senti suja. Então, isso tudo me afetou assim, bastante”.

Diante do exposto, é necessário mencionar que mesmo que as participantes apresentem algumas manifestações normalmente encontradas nos casos de violência sexual, não existem dados científicos sobre causa e efeito referente à certeza de que as vítimas irão vivenciar comprometimentos específicos de sua saúde física (SILVA; GAVA; DELL‟AGLIO, 2013). Ainda as pesquisas em relação às reações do corpo em longo prazo não apresentam detalhamentos sobre a forma como ocorrem, porém, conforme Florentino

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(2015), fatores como subjetividade, genética, vínculo com agressor, tratamento após revelação ou se houve revelação, interferem em dados precisos de como a manifestação de sinais e/ou sintomas pode ocorrer, pois como pode ser observado, as participantes apresentaram formas diversas de suas expressões corpóreas.

Em prosseguimento, a categoria autoimagem (4) se refere ao modo como as mulheres se percebem. Para isso foi criada a subcategoria depreciação (03), em que os relatos de Maria, Amélia e Dandara exprimiam desvalorização sobre si mesma. Isso pode ser explicitado com a fala de Maria:

Num ano eu queria que ele morresse, no outro eu queria que minha mãe percebesse “ba, se minha mãe não ta percebendo, qual o meu valor, será que eu sou importante”. Em outro ano era porque eu era um lixo, porque eu não era importante, então é um misto de coisas em vários períodos diferentes. Então... Era muita coisa na cabeça né.

Neste sentido, a estigmatização e baixa autoestima são formas manifestadas por estas mulheres como formas de depreciação e mesmo que em diferentes literaturas sejam citadas diversas consequências diferentes, esta autodesvalorização está presente na maioria dos dados (AMAZARRAY; KOLLER, 1998; HABIGZANG; CUNHA; KOLLER, 2010, GAVA; SILVA; DELL‟AGLIO, 2013). Já a segunda subcategoria relação com o corpo (1) se refere ao modo de se relacionar com o próprio corpo, Joana menciona não identificar parte de seu corpo como parte integrante de siVIII: “eu achava, o meu seio era uma parte muito abstrata, sabe, eu não reconhecia o meu seio como meu [...]”. Conforme Teixeira-filho et al (2013), quando a violência sexual tem como agressor o pai, as consequências desse ato podem ocasionar uma alteração entre o sujeito e sua auto percepção sobre seu corpo, podendo consequenciar, inclusive, na automutilação. Assim, mesmo que Joana não tenha mencionado a automutilação e que sua violação não tenha sido causada por seu pai, a participante morava apenas com a mãe e, assim como a figura paterna, também assume papel de proteção, variável que pode fazer com que seus efeitos tenham as mesmas características.

Ainda, além de ter como consequência a forma de relacionar-se como o próprio corpo, outra decorrência identificada foram interferências no relacionamento interpessoal (3), colocada como categoria referente ao modo como as mulheres desta pesquisa relacionam-se com outras pessoas. Assim, esta categoria foi subdivida de acordo com as dificuldades encontradas pelas participantes. Diante disso, Amazarray e Koller (1998) mencionam que as

VIII

Apesar de não mencionado pela participante, essa é uma característica apresentada em quadros psicopatológicos dissociativos, que são normalmente encontrados em casos de violência sexual (GAVA; SILVA; DELL‟AGLIO, 2013). Entretanto, para tal enquadramento seria necessário aprofundamento sobre demais sintomas e esta pesquisa não tem fins diagnósticos.

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violências sexuais prejudicam na confiança com o outro, já que a violação sofrida foi praticada por quem supostamente poderia confiar, como pode ser observado nas subcategorias “dificuldade na relação com homens (1)” e “dificuldade em confiar em qualquer outra

pessoa (2)”. Na subcategoria dificuldade na relação com homens Dandara menciona que as

relações que observa entre as pessoas são permeadas por machismo, com violências sutis praticadas por meio de piadas que legitimam às mulheres um lugar subalterno e vulgar na sociedade. E na subcategoria dificuldade em confiar em qualquer outra pessoa Joana e Maria mencionam perceber que a violência sexual afetou a forma de se relacionarem com pessoas em diversos contextos, desassociados a relações sexuais. A subcategoria dificuldade na

relação sexual (3), situação encontrada na pesquisa de Martins (2011), envolve a realização

de um ato traumático, que foi mencionado por Joana, Dandara e Amélia como aspecto complicador em seus relacionamentos amorosos, em que ambas sentiam dificuldades em ter vivências sexuais, pois os toques de seus parceiros lhes causavam angústia ao invés de prazer.

As decorrências em relação aos aspectos comportamentais também envolveram a relação com desempenho escolar (2) de Amélia e Maria. Embora normalmente a vítima de violência sexual tenha seu rendimento decaído (SPAZIANI; MAIA, 2015), como ocorreu no caso de Amélia em relação ao ensino superior, a participante Maria teve alteração de seu desempenho para melhor no Ensino Fundamental, pois utilizava seus estudos como rota de fuga das agressões: “[...]eu vou me trancar no quarto com a desculpa que eu tô estudando, que eu tenho trabalho e coisa e tal, então eu tirava as melhores notas porque eu estudava desde a hora do almoço até a hora da minha mãe chegar em casa, eu ficava estudando, pra tentar fugir daquela realidade”. Aspecto, também mencionado por Spaziani e Maia (2015) em relação à educação nas escolas, já que o alto desempenho escolar ou a mudança para um baixo desempenho podem indicar mudanças na realidade daquele sujeito e pode ser percebida diretamente pelos profissionais que estão envolvidos nessa dinâmica, mas que precisam de capacitação e assistência para notar essas sutilezas e realizar o amparo necessário.

Por fim, a situação da violência sexual envolveu um processo de negação (3) destas mulheres em relação à violência sexual vivenciada. Amélia mencionou em relação ao seu 1º namorado: “Mas como eu era muito nova, tava com meus 17 anos e ele era mais velho, aquela coisa toda, nossa namorando um cara mais velho, eu meio que tava um pouco deslumbrada também” e menciona esse deslumbramento também sobre o 2º namorado. Dandara relatou: “Eu não sei... Eu acho mais que era uma negação, de querer negar que isso não tinha acontecido, de não querer lidar com o que aparecia a partir disso. De querer esquecer mesmo isso que aconteceu.”. Já Maria: “E como minha mãe ia em uma igreja neopentecostal tinha

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muito essas coisas de demônio e coisa e tal, e eu na minha cabeça de criança „ba, eu quero amar o meu irmão ainda‟, sabe? Então era só uma coisa ruim que entrou no corpo dele e criava desculpas, né.”. De acordo com cada contexto social, estas mulheres criaram artimanhas como formas de lidar com o que tinha ocorrido enquanto não tinham a compreensão da dimensão da violação de direitos que sofriam e por serem pessoas com vínculo e confiança estabelecida, dificultou o reconhecimento e enfrentamento as situações aversivas as quais foram submetidas (LIMA; ALBERTO, 2015).

Diante do apresentado neste subcapítulo, compreende-se que não há como esperar apenas uma reação à violação sofrida, deve-se levar em consideração seu contexto social, cultural e, principalmente, a subjetividade da mulher, que irão interferir na forma como essa vivência será atribuída por conta da violação de seu corpo (HOHENDORFF; HABIGZANG; KOLLER, 2015). À vista disto, mesmo que esta pesquisa seja fruto de uma produção acadêmica de psicologia, faz-se relevante apontar que as decorrências da violência sexual não se restringem somente à dimensão psicológica da mulher de modo isolado. Nota-se como nos casos destas mulheres as dimensões sociais, biológica e psíquicas demonstram-se interligadas, em que as decorrências perfazem a vida das mulheres com um todo. Assim como apresentado pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 1946), a saúde abrange aspectos sociais, físicos e mentais, desta forma, uma situação que comprometa um desses aspectos afeta as demais dimensões e acomete a saúde do sujeito como um todo.

3.3 COMPOSIÇÃO DA REDE DE APOIO SOCIAL E SUA CONTRIBUIÇÃO

Neste eixo será apresentada a análise vinculada aos objetivos específicos: “Identificar a composição da rede de apoio social das mulheres que sofreram violência sexual, a partir de suas próprias significações” e “Identificar a atuação da rede de apoio social em relação às decorrências da violência sexual vivenciada por mulheres, a partir de suas próprias significações”. Deste modo, adiante será exposto quem são os integrantes da rede de apoio social de cada participante desta pesquisa, em relação a violência sexual vivenciada, assim como apresentar suas contribuições na forma como essas mulheres significaram a violação sexual vivenciada.

Por meio do relato de Amélia, foi possível identificar sua rede de apoio social sendo composta por seu núcleo familiar: mãe, pai e seu irmão mais novo, os quais não sabem sobre a violência sexual que ela vivenciou. E também por seu noivo, uma amiga de infância e outra amiga, que sabem da situação e lhe deram o suporte necessário. Entretanto, aponta-se que a

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outra amiga de Amélia hoje não faz mais parte de sua rede de apoio, já que se distanciaram por motivos que não envolvem a violência sexual.

Em relação à Joana, foi identificada sua rede composta por sua família paterna: pai, madrasta, tia e avó, bem como por suas amigas. Quando Joana apropriou-se da violência pode contar com o apoio do ex-companheiro, o qual atualmente não faz parte de sua rede de apoio e será apresentado no decorrer deste subcapítulo. Ainda, destaca-se que seu pai sabe sobre outras violências que Joana foi vítima de sua mãe, e sobre a violência sexual praticada pelo namorado da mãe, mas não sabe sobre a violência sexual praticada pela própria mãe.

As falas de Maria demonstraram sua rede composta por sua família: mãe, padrasto, irmão mais novo, irmã mais nova e seu marido, sendo este último que dispôs maior apoio e suporte significativos. E, também por amigas próximas, todavia, ela conta que em alguns momentos de sua vida pode ter o apoio de colegas de quarto e estudo, mas o vínculo formado não foi forte o suficiente para que se mantivessem em sua rede de apoio, ou seja, houve distanciamento por razões que não envolvem a violência sexual.

Dandara explicita sua rede composta por sua família materna: mãe, irmão e integrantes da família materna. A sua família paterna sempre esteve presente em sua vida antes de saberem sobre a violência sexual, como será apresentado no decorrer deste trabalho. Ainda, menciona que não gostaria de ter contado a eles, sua história foi exposta à família quando seu irmão identificou seu relato em uma entrevista nas redes sociais sobre violência sexual. Em relação ao seu pai, a participante menciona afastamento por outras razões que não envolvem a violência sexual somente. Foi percebido em seu discurso destaque às suas amigas de grupo feminista, que foram as primeiras a ter conhecimento sobre a violação de seu corpo e lhe deram o suporte necessário, assim como outras amigas.

Como exposto ao longo da pesquisa, a rede de apoio social compreende todas as relações que são significativas para o sujeito e que afetam direta e indiretamente a qualidade de vida das pessoas nela envolvidas (JULIANO; YUNES, 2014). Para compreender como as redes de apoio social agiram, em relação à violência sexual vivenciada pelas mulheres desta pesquisa, foram criadas quatro (04) categorias a priori, sendo elas: “expectativa das

vítimas”; “comportamento da rede”; “vínculo com a rede” e “denúncia”. E uma (01)

categoria que surgiu a posteriori: “outras mediações”

Nesta continuidade, ressalta-se que a violação sexual vivenciada por estas mulheres esteve em segredo por vários anos e contar sobre essa vivência implicou em um processo que envolveu o reconhecimento e a apropriação do que lhes aconteceu, suas diversas decorrências e as relações de confiança com o outro. No decorrer desse processo emergiram-se diversos

(20)

afetos e fantasias sobre o que aconteceria com a revelação do segredo. Tal característica envolve a categoria “expectativa das vítimas (4)” sobre as medidas que seriam realizadas ao contar sobre a violência às quais foram submetidas.

Assim, a categoria foi dividida em subcategorias conforme a significação de cada participante: para Amélia, sua expectativa era de que o noivo sentisse Raiva e tristeza (1), porém ao contar pode constatar que a atitude do noivo foi acolhedora. Cabe ressaltar que esta mulher ainda não contou sobre as violências aos seus pais, de forma que ainda acredita que seus pais reagirão com raiva e tristeza. Punição ao agressor (1), Dandara mencionou que esperava que o agressor de sua violência fosse punido com as consequências cabíveis. Culpa

(1) relatada por Maria, pois imaginava que seria culpabilizada pela violência sofrida e pela

destruição da família. Descrédito (2) foi percebido nos relatos de Dandara que julgava que a família paterna não acreditaria em seu relado; já nos relatos de Joana foi percebido como receio de que pessoas com quem não possui uma relação de confiança estabelecida não acreditem em sua fala. E acolhimento (3) em que Maria esperava que a família a acolhesse com cuidado e proteção; Joana esperava que ao contar à avó, suas atitudes fossem acolhedoras, por saber do histórico de violência vivenciada por essa integrante da rede; por Dandara, com desejo de que seus familiares paternos pudessem protegê-la.

Dessa forma, nota-se que a expectativa das vítimas referente a revelação apresentou caráter encorajador para que compartilhassem suas vivências, mas ao mesmo tempo dificultador, pois envolveu aspectos sociais de perspectiva sobre as mulheres a partir de valores masculinos, perpassados por uma cultura religiosa conservadora e pela prevalência do patriarcado que mantem as mulheres como responsáveis pelas violações sofridas e vítimas de julgamentos morais (SOUSA; SIRELLI, 2018).

Neste sentido, quando o sujeito se vê diante de situações aversivas, a necessidade pela busca de apoio aumenta e a forma como a rede de apoio social se articula e interage contribui na forma como o sujeito envolvido nessa dinâmica irá se relacionar com essas situações (JULIANO; YUNES, 2014). Deste modo, a categoria comportamento da rede (4) refere-se à postura adotada pela rede ao ouvir sobre a violência sexual que as mulheres vivenciaram. Para isto criou-se as subcategorias “desvalorização (3)” e “acolhimentos (4)”. Assim, as mulheres desta pesquisa puderam perceber que algumas pessoas que integram sua rede social demonstraram desvalorização em relação ao seu valor social e à violação sexual que sofreram. Isto foi notado por meio de depreciações, dúvidas, culpabilização e desinteresse pelo assunto e pelas próprias vítimas. Joana identificou aspectos desvalorativos em relação à sua mãe, que não acreditou em seu relato sobre a violência praticada pelo namorado desta;

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pelo seu ex-companheiro que, apesar de em um primeiro momento a apoiar, ao terminar o relacionamento teve práticas machistas de julgamento moral contra Joana; e em relação à avó que mesmo dispondo de sua escuta, fez Joana coadjuvante da violência sofrida, pois deu enfoque à relação conflituosa de seus pais. Para Maria foi percebida a falta de interesse de seu padrasto, mãe e irmão mais novo, sem orientações ou conversas aprofundadas sobre o assunto e ela expõe com conformismo: “[...] o que eles iriam fazer, sabe?”. Já Dandara percebeu de seu ex-companheiro e de sua família paterna desconfiança sobre os relatos do que havia vivenciado, com questionamentos duvidosos e falta de credibilidade no que expressava à essas pessoas.

Assim, conforme Martins (2011), pessoas que tem relação de confiança estabelecida, principalmente aquelas que assumem papel de cuidadores são, normalmente, integrantes da rede na qual se espera encontrar o suporte necessário para vivenciar qualquer evento adverso que aconteça no decorrer da vida. Entretanto, de acordo com o apresentado, esse suporte não foi percebido pelas participantes em relação a todos os membros de sua rede e, inclusive, a

desvalorização exprimida foi desencadeadora de sensações como: invisibilidade, raiva e

culpa, que compõem afetos negativos que inviabilizam a potência de agir dessas mulheres para sair do ciclo de sofrimento (SAWAIA, 2008).

Por outro lado, ao mesmo tempo em que as participantes identificaram desvalorização em suas relações com a rede de apoio social, algumas pessoas que integram essa rede demonstraram acolhimentos. E, no que concerne esta subcategoria, foram percebidas relações de apoio, em que todas as participantes apontaram ter recebido de sua rede social: acolhimento, escuta empática e orientações de como deveriam proceder diante da violência sofrida. Estas condutas respeitaram os discursos das participantes, que, a partir disso, puderam propiciar alívio, ressignificação e fortalecimento em relação à violação vivenciada. Igualmente, o apoio fornecido é reconhecido pelas vítimas como contributivo na forma como se relacionam atualmente com a violência, como se pode perceber no relado de Dandara:

A transformar o sentimento da dor em alguma outra coisa... que não seja raiva e que não seja dor, assim. Então de ajudar a transformar nessa comunicação com as pessoas, de ajudar as pessoas a se conscientizarem de ser um pouco mais tolerante com os meninos, também. Acho que é isso, foram transformando o jeito que eu me sentia, o que que eu fazia com isso, acho que é isso.

Assim, ao analisar conforme a compreensão de Sawaia (2008), as redes destas mulheres se mostram potencializadoras por meio de afetos positivos e vínculos que as legitimam como seres de direitos e as impulsionam a agir de modo distante das relações de coerção e dominância. Corroborando que o apoio provido é fundamental para o processo de

(22)

resiliênciaIX das vítimas de violência sexual, como apresentado por Martins (2011) e Silva, Gava e Dell‟Aglio (2013).

Posto isto, Juliano e Yunes (2014) apontam que uma rede de apoio social é considerada forte conforme o vínculo e relações de reciprocidade que se estabelecem entre os integrantes. Logo, pode-se constatar nesta pesquisa que a forma como as pessoas portaram-se concernente à violência sexual vivenciada por estas mulheres influenciou na dinâmica e interação dessa rede social. Diante do exposto, foi criada a categoria vínculo com a rede (4), que foi dividida da subcategoria aproximação (4) e distanciamento (4). Sendo a aproximação percebida pelos integrantes da rede que manifestaram acolhimentos, passaram a demonstrar carinho e preocupação com estas mulheres.

Já a subcategoria distanciamento (4) refere-se ao movimento de afastamento entre as mulheres e integrantes de sua rede de apoio social. Destaca-se que quando questionadas as participantes trazem em seu relato o distanciamento em relação aos membros da rede que demonstraram desvalorizaçãoX. Entretanto, cabe mencionar que em diversos momentos das entrevistas pode-se evidenciar o distanciamento das pessoas que foram acolhedoras com estas mulheres ao levar em consideração, por exemplo, o relato de Joana: “Então, ele já tem tanta dor quanto tudo que ele sente, ele se sente muito culpado por não ter me tirado antes de casa... Então... É mais um sofrimento pra ele, é mais uma coisa pra ele remoer, então... prefiro evitar.”. O relato expõe a existência de um segredo que relacionado aos seus pais, do mesmo modo que acontece com Amélia. Outrossim, Maria mencionou evitar falar sobre a violação com sua família; e Amélia com seu noivo e amiga por identificarem sofrimento por quem ouve seus relatos. Assim, sem que percebam explicitamente, afastam-se de sua rede e de seus próprios sentimentos.

Neste sentido, enquanto Joana e Amélia escolheram não compartilhar, ou recompartilhar suas experiências, puderam contar com o amparo de outras mediações (2). Embora a literatura sempre aponte a rede de apoio social como pessoas, foi possível identificar produções humanas que atuaram como mediações, citadas por Joana como literatura feminista e por Amélia como músicas. Ou seja, a partir da compreensão de Silva (1998), a música e a literatura são criações humanas surgidas a partir das relações sociais como forma de expressão de um determinado contexto social ou situação, neste caso sobre a violência sexual, que possibilitaram mediações com o sofrimento destas mulheres. Cabe

IX

“[...] „capacidade‟ das pessoas e dos grupos para superarem as situações adversas e traumáticas” (JULIANO; YUNES, 2014, p. 138)

X

Mesmo que Joana aponte não sentir-se acolhida por sua avó, esta não menciona o afastamento desta pessoa em específico.

(23)

ressaltar que não foram medidas de valor substitutivo do contato com o outro, mas foram mediações que elas encontraram para lidar com as decorrências de suas violações sexuais.

Por fim, ao levar em consideração que a violência sexual fere os direitos humanos de quem a vivencia e é considerada crime conforme Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009 (BRASIL, 2009), entende-se que essa vivência repercute na busca de instituições para proteção de garantia dos direitos. Entretanto, nenhuma das mulheres entrevistadas nesta pesquisa realizou denúncia formal contra seus agressores. Neste sentido, mesmo que os dados estatísticos apresentem números de casos notificados da violência sexual, eles não são exatos ao considerar que a notificação da ocorrência, como no caso destas mulheres, não ocorre.

Assim, Cavalcanti et al (2015) relata que a relevância que a violência sexual alcançou no campo do direito e da saúde promoveu, em virtude das conquistas feministas, formas de enfrentamento à violência sexual. No entanto, se encontra um distanciamento dos profissionais e das instituições competentes em contato com a vítima. Isto pode ser destacado na fala de Dandara, em que sua mãe a orientou em fazer a denúncia, porém ao buscar o auxílio da assistência social, mesmo se sentindo acolhida pelo serviço, a orientação foi: “[...] e ela disse que não valeria a pena, porque não iam fazer nada e ainda mais de ser depois de anos, não tinha prova nenhuma, ainda ele dizendo que não fazia nada, a família também dizendo que ele não fazia nada”, abalando sua confiança em prosseguir para uma resolução do problema e em sua revelação, fato que evidencia o despreparo da atuação das políticas públicas com o assunto.

Além disso, conforme exposto em parágrafos anteriores, os relatos demonstram falas de vivências em um espaço de exclusão, na busca de que a voz de seus afetos tivesse um espaço para ser ouvida e levada em consideração. Dessa forma, ao pesquisar sobre as redes de apoio sociais primárias e secundáriasXI como elementos que amparam, protegem e propiciam novas perspectivas às vítimas, entende-se a importância de fortalecer, disseminar e potencializar as práticas que viabilizam a integração das redes em atenção à mulher. Com políticas que forneçam qualidade de vida em atenção a esse sujeito biopsicossocial com necessidades diversas a serem acolhidas de maneira que promova a qualidade de sua saúde de forma integral.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

XI

Ainda, mesmo que as redes de apoio secundárias não sejam o foco desta pesquisa, Dandara esteve em contato com a assistência social; Maria com a Igreja; e todas as participantes realizam psicoterapia devido às decorrências da violação sexual.

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