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SCILICET, O CORPO FALANTE. Bernardino Horne. Introdução

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Academic year: 2021

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SCILICET, O CORPO FALANTE

Bernardino Horne

Introdução

O Dicionário Scilicet O corpo falante trabalha em 95 verbetes o que estamos pensando na AMP sobre este novo conceito, assim como os impasses e as dificuldades que se apresentam. Isto implica inúmeros desafios para os analistas. Lacan, no Seminário A Angústia, inicia o capítulo XIX tratando das diferenças entre o tempo necessário a uma comunidade científica para aceitar um salto epistêmico, com a comunidade analítica, que precisa de bem mais em decorrência da angústia de castração [1].

Os excelentes verbetes de Scilicet enfrentam um problema central que subjaz a nosso tema. Lacan o formula no livro 20 do Seminário: “O real [...] é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente” [2]. Jacques-Alain Miller o retoma e renova o problema ao dizer que há outro mistério que pergunta sobre o domínio do simbólico sobre o corpo [3].

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Como podemos pensar que se produz esse acontecimento do encontro do significante com o real? E como o Significante retorna de um puro existir como gozo, para ser significante? Como retoma seu poder Simbólico? Essas duas perguntas pairam nos verbetes de Scilicet.

No início, dois textos que estão presentes nas elaborações dos autores: o de

Abertura de Miquel Bassols [4] e o de Orientação de Jacques-Alain Miller [5]. A Apresentação cabe a Marcus André Vieira [6], na qual afirma que nosso Congresso

“propõe-se a investigar [...] o inconsciente partindo do Corpo Falante”.

Seguindo a indicação do Conselho da EBP, tentarei um comentário do Dicionário como um todo. Dividirei os textos em três grupos, ainda que muitos pertençam a mais de um. O primeiro intenta conceitualizar os mistérios na experiência clínica de aproximar-se ao real. Parte de Há Um. O segundo toma uma perspectiva desde o Simbólico e o Imaginário, assim como as relações deles com o Real. O terceiro toma a perspectiva da incidência do mundo contemporâneo, suas singularidades e problemas.

1. Há UM: o Campo Uniano

O mistério da união do corpo e da alma é a pergunta que preside este grupo.

Lacan responde antecipadamente ao mistério da união da alma com o corpo [7] ao dizer no Seminário 19: “O que só existe ao não ser: é disso que se trata, e foi o que eu quis inaugurar hoje no capítulo geral do Uniano.” [8].

Entendo que fala da forma do Significante incorporar-se, mutar em gozo, para depois voltar a ser o que era: Significante. O percurso, desse significante Uniano, é o modo que tem Lacan de dar uma resposta ao mistério da união do Significante com o corpo biológico.

Em torno de 20 textos, abordam essa perspectiva de modo direto. Laura Arciniegas Sánchez, em “Substância gozante”, abre seu texto dizendo: “A pergunta sobre a

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relação entre corpo e significante tem sido um eixo central na investigação psicanalítica.” [9]. Nora Pessoa Gonçalves, em “Gozo do corpo”, diz: “para concluir, diríamos que no corpo temos o gozo da fala e o gozo do corpo.” [10]. Podemos pensar que o gozo do corpo é o gozo da substância gozante, sem significante e, acompanhando M. Bassols [11], dizer que o gozo da fala pode dividir-se em gozo de alíngua, o significante toma forma no real como letra, e o gozo sentido, o

significante na linguagem. Com efeito, Bassols diz: “Miller chega a dizer – e pode

parecer surpreendente – que se trata de uma “terceira substância”. É uma substância gozante que encontramos [....] em O Seminário “Mais, ainda”, como o significante que vai se transformando cada vez mais em letra” [12]. Esse é o elemento terceiro que Lacan introduz no círculo vicioso do dualismo cartesiano. É a Trindade que de Três muta a Um e retorna a Três. O faz pela mutação de gozo Um, como primeira forma do real, em gozo da Letra. Por sua vez, ela enoda a materialidade do significante com a do gozo.

Por sua parte, Carlos A. Nicéas, em “Inconsciente lacaniano”, afirma: “O corpo falante, real do inconsciente, nos orienta, na experiência, para ‘o mistério [que] é antes de tudo o da união da palavra e do corpo’.” [13]

Esthela Solano-Suarez, “Um-corpo”. Afirma que estamos diante de um novo estatuto do corpo [14]. O novo é devido a se pôr em primeiro plano o campo do gozo. Lacan entra na escritura borromeana, o que dá um novo estatuto ao significante-Um. Não é um traço, mas um furo. Responde às duas perguntas, mediante uma citação de Lacan, que diz: “É por essa função de furo que a linguagem opera seu domínio sobre o real.” [15]

O significante Uniano atua em dois tempos: Um de pura existência, como gozo; não há significante. O Outro acontece quando o significante faz furo na substância gozante e o simbólico retoma seu poder. É o momento de Alíngua.

O texto de Ana Simonetti, “Bordas do Corpo”, começa distinguindo a borda como limite na superfície plana, da borda como cruzamento espacial que sustenta a

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existência do gozo. Uma frase da autora mostra o nível de sua elaboração. Diz: “À luz de O seminário “Encore”, ser suporte do gozo implica que esse corpo é sensível e, assim, campo de incidência de lalíngua primária que lhe dará a “outra forma” [...]: não a da imagem, mas a da experiência en-corps.” [16]

Por que precisa dizer lalíngua primária? Esse embaraço está presente supondo uma dupla presença de gozo.

Há um momento de substância gozosa, gozo Um. Ele acontece no real sem Significante e, em outro momento, dá-se o tempo do significante, cuja primeira função é a de separar o gozo um em gozos. Miller escreve: J# J=S que neste contexto podemos traduzir como substância gozosa # gozo da Alíngua [17].

2. A perspectiva desde o Simbólico e o Imaginário

No século XXI, o poder da imagem, das ressonâncias e da pulsão escópica entra em jogo. Miller diz que Lacan passou tanto tempo sobre a pulsão escópica “porque é aí que o objeto (a) é o mais fugaz” [18].

Os textos aqui agrupados partem do reconhecimento de um gozo constitutivo, eixo do grupo anterior, mas interessam pelo ponto de vista de como se faz laço com o (A). Como se engancham, conectam-se e se influem ambas as escritas é a pesquisa deste grupo. No cerne, o mistério de como o Simbólico retoma o poder [19]. Temas como Semblante, Escabelo, Fantasma Fundamental, Ideal do Eu e outros se deslizam em torno do narcisismo e do acontecimento da Fase do Espelho. Nela se amalgamam o gozo substancial do corpo, fragmentado, fugaz e contingente, ao gozo do júbilo especular. Engancham-se o real da pura existência e o gozo de alíngua, a letra, com o imaginário e o simbólico, ou seja, o significante no real com o semblante. O fantasma fundamental cumpre essa função.

Victoria Horne-Reinoso, em “Fantasia (janela/tela)”, destaca seu valor de ferramenta conceitual na articulação de duas dimensões heterogêneas, o que

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constitui “o problema de Lacan” que atravessa todo o seu ensino [20]. Acrescenta que, na época do Sinthoma, a fantasia pode ser entendida como uma elucubração de saber sobre o gozo por meio de um cenário.

Há, então, dois grandes acontecimentos de corpo que se enodam fazendo que o navio e o capitão se amalgamem formando Um. Eles são o instante da Encarnação no campo do real e o da sincronia na Fase do Espelho.

Recentemente, na Introdução à leitura do Seminário 6, Miller destaca a Fantasia Fundamental como fio central de sua leitura [21]. Acrescenta que não é possível abandonar, sem mais, o Lacan de “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. Lacan se interessa pela perspectiva do desejo na sincronia [22], o que se articula claramente com os esforços de Miller para encontrar o cerne do singular no gozo Um [23]. A sincronia se ocupa do ponto, do instante de coincidências no momento da Fase do Espelho. No entanto, é a contingência a que preside o acontecimento de corpo na Encarnação.

O Campo Uniano e o campo do (A) se interpenetram e influenciam. A Fantasia como Defesa fundamental faz-se presente e, como parte do Sinthoma, intervém no enodamento dos Registros. Seu vacilo provoca desenganches.

Viviana Berger, em “Ideal do Eu/Eu Ideal (e falasser)”, faz sua a fala de Miller, que diz que se abre um novo campo de investigação e que esse outro real e essa outra ordem simbólica “nos levam a uma reformulação conceitual partindo do falasser, esse inconsciente unificado com o isso” [24].

Cecilia Gasbarro acompanha uma citação de Miller que resumo: Joyce faz “convergir sintoma e escabelo [...] no objeto de arte elevado sobre o escabelo à dignidade da Coisa” [25]. No mesmo sentido se orienta Charles-Henri Crochet em “Invenção e sentido” [26].

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Na problemática desse conjunto, geram-se novas formas em função da imagem como a aceleração temporal, a informação e transmissão visual, enfim, o mundo virtual. Assim, não é apenas interpenetrada com o conjunto anterior, mas também com o próximo.

3. A Pulsão Escópica: o corpo e o virtual no mundo contemporâneo

Miller introduz o tema que a explosão da sexualidade do século XXI está em relação direta com “A relação sexual não existe” [27]. Ao mesmo tempo que a vacuidade semântica da copulação pornográfica. O falasser constrói o mundo virtual para dar formas de satisfação ao gozo em eixo com a pulsão escópica.

O poder do virtual e da imagem é tão omnipresente que subjaz à pergunta de quanto o predomínio da Imagem se deve a uma oferta imperativa da realidade ou à própria pulsão. Em “Olhar”, Deborah Gutermann-Jacquet toma posição quando afirma “do gozo que invade o corpo desde o momento em que a pulsão escópica passa ao primeiro plano” [28].

Com efeito, desde Freud, sabemos que o ser humano morre pelo predomínio da pulsão de morte, eleva-se à bípede estação e abandona o olfato como orientador por força da pulsão escópica. Ela também comanda outras formas de gozo em nossos dias. Destaco a relação estreita entre a imagem e as ressonâncias, as que têm uma forte capacidade de produzir e mutar afetos.

Em “Imagem Virtual”, Ennia Fravet lembra que, no esquema ótico, verifica-se que o falasser depende de sua posição para não confundir as imagens virtuais com as reais ainda que sejam diferentes [29]. Marco Focchi, “Sex Toys”, diz que o brinquedo sexual transforma-se de amplificador de sensações em bolha imaginária contra o desejo do Outro [30]. Jean-Luc Monnier, em “Exibição/Pornografia”, diz que se trata da pretensão de criar fantasias ready-made nas quais também o gozo escapa [31]. Esse tema tão instigante, como o próprio século XXI, está nos inícios.

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O que enoda estes três grupos separados por mim? Eles trabalham sobre “A psicanálise muda” como diz Miller no texto de Orientação [32]. No século XXI, o mundo virtual traz tanto de novo que tende a nos afastar do lugar e da posição do analista, pretendendo fazer desnecessária sua presença.

Nosso trabalho implica “meter as tripas”, estar presente e poder dizer das novas formas clínicas e posições de gozo. É interessante destacar que, quanto mais evidente a sutileza material da realidade virtual, mais se afirmam as raízes do significante no corpo.

Assim como Freud tirou conclusões sobre o funcionamento mental da leitura das sessões de seus pacientes, temos de pensar novas formas de leitura para a clínica do século XXI. Miller nos orienta a falasser como chave ao lado de sinthoma e escabelo.

Notas

[1] Lacan, J. O Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: JZE, 2005, cap. 19, p. 280.

[2] Lacan, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: JZE, 2008, p. 140.

[3] Miller, J.-A. Orientação: O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet. O corpo

falante. Sobre o inconsciente no século XXI. EBP: São Paulo, 2016, p. 25.

[4] Bassols, M. Abertura. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 7-12.

[5] Miller, J.-A. Orientação: O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet. O corpo

falante. Op.cit. [6] Vieira, M. A. Apresentação. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit.

p. 13-17.

[7] Lacan, 2008.

[8] Lacan, J. O Seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: JZE, 2012, p. 131. [9] Arciniegas Sánchez, L. Substância gozante. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 293.

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[10] Gonçalves, N. P. Gozo do corpo. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 137. [11] Bassols, 2016.

[12] Ibid., p. 12.

[13] Nicéas, C. A. Inconsciente lacaniano. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 163.

[14] Solano-Suarez, E. Um-corpo. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 316. [15] Lacan, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: JZE, 2007, p. 31. [16] Simonetti, A. Bordas do corpo. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 58. [17] Miller, J.-A. Peças avulsas. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, n. 44, p. 9-27, nov. 2005.

[18] Miller, J.-A. A imagem rainha. In: Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Eolia, n.14, p. 12-22, nov. 1995. p. 20. [19] Miller, 2016, p. 25.

[20] Horne-Reinoso, V. Fantasia: janela/tela. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 126.

[21] Miller, J.-A. Apresentação do Seminário 6: o desejo e sua interpretação de Jacques Lacan. Opção Lacaniana online, nova série, ano 5, n. 14, jul. 2014, p. 68-69.

[22] Lacan, J. El Seminario, libro 6: el desejo y su interpretacion. Buenos Aires: Paidós, 2015, p. 398-399.

[23] Miller, J.-A. Sutilezas analíticas: los cursos psicoanalíticos. Texto estabelecido por Silvia Elena Tendlarz. Buenos Aires: Paidós, 2011. cap. 9.

[24] Berger, V. Ideal do eu/eu Ideal. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 143. [25] Miller, J.-A. Orientação: O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet. O corpo

falante. Op. cit. p. 28.

[26] Crochet, C.-H. Invenção e sentido. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 21-22.

[28] Gutermann-Jacquet, D. Olhar. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 224. [29] Fravet, E. Imagem virtual. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 153. [30] Focchi, M. Sex toys. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 281

[31] Monnier, J.-L. Exibição/Pornografia. In: Scilicet. O corpo falante. Op. cit. p. 115.

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