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Os Salvadores do Homem: Paideia e Ascese da Razão na Atitude Fenomenológica

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Academic year: 2021

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Jimmy Sudário Cabral**

Resumo: o artigo avalia a atitude fenomenológica que encontramos no testamento de

Hus-serl. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental,como uma forma de Paidéia da razãoque procurou ultrapassar a aporia científico-naturalista

moderna. Tal atitude fenomenológica procurou afirmar-se como uma espécie de refundação do sentido da razão, postulando que a consciência constitui-se como um absoluto fundamento, e que, sob a forma de ego transcendental,constitui-se como a forma primordial da existência humana. Procuramos, neste sentido, pen-sar como o programa fenomenológico de Husserl pode ser compreendido como uma meditação que carrega as entonações e as características de uma ascese re-ligiosa, cujo conteúdo estaria enraizado na fortuna crítica da filosofia da Grécia antiga (séc. VII e VI a.C) e nos seus desdobramentos do pensamento ocidental. Esta forma de ascese representaria o esforço do sujeito em ultrapassar a aporia científico naturalista e a consequente desconstrução do sentido da subjetividade que, segundo Husserl, seria o centro constitutivo de toda a realidade.

Palavras-chave: Fenomenologia. Paideia. Ascese. Niilismo-Técnico-Cientifico.

A elevação da identidade humana ao posto de subjetividade transcendental não anula o efeito que a penetração do metal – ponta do punhal ou bala de revol-ver – pode ter no coração do Eu, que é apenas víscera. Afirma a lógica do Port-Royal: ‘Todo o vigor do espírito humano é forçado a sucumbir ao menor átomo da matéria’. (Levinas, De Deus que vem à ideia)

OS SALVADORES DO HOMEM:

PAIDEIA E ASCESE DA RAZÃO NA ATITUDE FENOMENOLÓGICA*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 04.11.2015. Aprovado em: 09.12.2015. Para Haroldo Reimer. Em memória das saudosas aulas sobre fenomenologia da religião, hermenêutica e crítica e dos memorá-veis encontros com boa cerveja e boa conversa.

** Doutor em Teologia pela PUC-Rio e Université de Strasbourg. Professor no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: sudarioc@hotmail.com.

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Excessivamente ocupado com as tarefas que seu eu e a alma européia lhe propu-nham, excessivamente sobrecarregado pelo dever de produção, excessivamente avesso à distração para prestar-se ao papel de amante do colorido mundo exte-rior, dera-se inteiramente por satisfeito com o parecer de que cada um pode tirar proveito da superfície do mundo sem se afastar muito do seu círculo, e jamais se sentira sequer tentado a deixar a Europa.(Thomas Mann, Morte em Veneza)

A

oposição entre espírito científico e espírito filosófico marcou o pensamento mo-derno, tornando-se forçosamente presente no alvorecer eufórico das ciências du-ras no século XIX e acirrando-se, em nossos dias, com os incontornáveis avan-ços das ciências cognitivas (PETIT, J L; BERTHOZ, A, 2006). Essa oposição instaurou uma distinção entre a reflexão de tradição filosófica, fundada sobre a

idealidade dos conceitos – portanto, um esforço por sentido – e o discurso cien-tífico, metodologicamente organizado por um empirismo e pelo ato cognitivo

que instaura a oposição entre o sujeito que conhece e o objeto de conhecimento (LEGROS, 1995, p.164). Genealogicamente instauradora da tradição cientificis-ta moderna, escientificis-ta forma de empirismo organizou os pressupostos das ciências, inaugurando uma abordagem que procurou avaliar empiricamente os fenômenos da vida, provocando assim uma “matematização” da vida e da natureza. Consti-tuindo-se a partir do método cientifico, as ciências modernas opuseram-se forço-samente à tradição filosófica, considerada por aquelas como presa à ideias “mui-to gerais”e, portan“mui-to, vítima de um idealismo que não conhece senão conceitos

completamente desvinculados da realidade empírica. Marcadas pela separação do sujeito-objeto e pela construção de um objeto real e exterior que não possui relação com o sujeito que deve apreendê-lo, as ciências modernas organizaram, segundo Legros (LEGROS, 1995, p.165) os “cortes epistemológicos que retira-ram o pensamento científico do baixo mundo das ações humanas”, proclamando, desta forma, um caminho de conhecimento objetivo e desencarnado.

O “método científico”, que em sua constituição opôs-se aos ideais da tradição filosófica clássica, encontrou no empirismo e no naturalismo o seu núcleo duro, inter-pretando os fenômenos da vida numa perspectiva causal e compreendendo o real como expressão de fenômenos objetiváveis e, portanto, passíveis de co-nhecimento. Essa dessacralização do pensamentoque se organizou através de um métodotornou-se a chave de compreensão da história da ciência no sécu-lo XIX, possibilitando uma quantificação e matematização do conhecimento que marcou a vida moderna. Diante desta desconstrução impiedosa, a tradição metafísica, organizada por seus pretensos e “ingênuos” conceitos universais, viu-se despedaçada pela navalha nominalista de umaciência experimental e re-duzida aos restos fossilizados de uma tradição filosófica. Compreendido como fundamento das “teorias naturais” do conhecimento, o método científico

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pro-curou suplantar os variados e ingênuos idealismos da filosofia e das subjetiva-ções de conhecimento que, em certa medida,sofriam de um déficit significativo de realismo científico.

A objetivação de fenômenos físicos e psíquicos promovidos por esse novo cientismo,

“a natureza como domínio das puras res extensae”, segundo Husserl (2012, p.45), buscou interpretar realidades causais dentro de quadros materialistas, mensuráveis e quantificáveis, instaurando uma positivação que reduziu a pos-sibilidade de conhecimento a elementosobserváveis. Desta forma, a pergunta pelas origens da consciência, da concretude subjetiva do homem histórico, organizou-se dentro dos quadros dessa redução, afastando-se de questões filo-sóficas que se perguntaram pelo sentido do conhecimento, orientando-se por uma explicação causal que se engloba dentro dos limites mensuráveis das ciên-cias naturais. Instaurando um espaço de tematização da vida “como solo para um método matemático idealizador, de modo a encontrar leis para os homens e para os animais como seres psicofísicos, para as suas mentes, para o seu agir pessoal, assim como para os seus corpos” (HUSSERL, 2012, p.233), a atitude científico-naturalista organizou as formas de compreensão do homem dentro dos critérios matematizantes do universo científico moderno.Inaugurando uma espécie de des-subjetivação da consciência – reduzida a fatores naturais que podem ser positivamente objetivados e explicados.Conforme observou Jean Luc Petit, as ciências empíricas da consciência instauraram a dissolução da noção de “sujeito transcendental”– essa herança do cogito cartesiano – apli-cando uma forma de empirismo que solapou os conceitos metafísicos que de-ram forma ao sujeito em sua interioridade psíquica e experiência de

consti-tuição da realidade e, assim, procurou “explicar o psicológico tão somente por suas bases fisiológicas, neurológicas, não reconhecendo a sua dimensão espiritual, promovendoo objetivismo e o cientismo” (PETIT, 2006, p.126). Desprovidada de qualquer vocabulário filosófico, e, portanto, presa aos limites epistemológicos de um método, as ciências modernas encontraram-sediante de uma postura antirreflexiva, que – se considerarmos a crítica a ela endere-çada pela tradição fenomenológica –, caracterizou-se por um incontornável “déficit de explicação” (LEGROS,1995, p.165).

Reagindo programaticamente aos efeitos e aos limites das ciências modernas, a atitude fenomenológica procurou superar este “déficit de explicação” quese tornou sintoma de uma postura que traduziu os limites e as aporias de uma abordagem cientificista. Os “deslizamentos de sentidos” e a perda, segundo Husserl, da “doação de sentido originária” foram reflexos de um “esvaziamento de sentido da ciência matemática da natureza pela tecnicização”(HUSSERL, 2012, p.36). A aritmetização da geometria, sua redução em “puras figuras numéricas” fo-ram percebidaspor Husserl, genealogicamente, como a raiz da perda de

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qual-quer relação com as realidades intuitivas, as fontes da experiência humana, nos afastando, como escreveu Vilella Pettit, “das intuições que nos dão acesso ao mundo, permanecendo indiferente aos níveis da realidade e ao sentido que podem assumir para nós” (VILLELA-PETIT, 2011, p.122). No aforismo 9 de

A crise das ciências europeias, intitulado “sobre a matematizaçãogalilaica da natureza”, Husserl demonstra como esta matematizaçãose apresentou como “um pensar apriorístico livre, sistemático e inteiramente liberto de toda a efe-tividade intuível” (HUSSERL, 2012, p.34). Assim,

Logo que é aplicado, com todas as suas ampliações, na geometria, em toda a matemática pura das figuras espaço-temporais, estas se tornam inteiramente formalizadas de modo algébrico com um propósito metódico. Surge, então, uma “aritmetização da geometria”, uma aritmetização de todo o domínio das puras figuras (das retas, dos círculos, dos triângulos, dos movimentos, das relações de lugar ideais etc.). [...] De certo modo, esta aritmetização da geometria con-duz como que por si mesma ao esvaziamento do seu sentido. As idealidades efetivamente espaço-temporais, tal como originalmente se expõem no pensar geométrico sob o título usual de “intuições puras”, transformam-se, por assim dizer, em puras figuras numéricas, em configurações algébricas; calcula-se, e só no fim se recorda que os números deviam significar grandezas. Não se calcu-la, porém, “mecanicamente” como nos cálculos numéricos habituais; pensa-se, inventa-se, fazem-se eventualmente grandes descobertas – mas com um sentido insensivelmente deslocado, “simbólico” (HUSSERL, 2012, p.36).

Para Husserl, esta postura está na raiz dos desdobramentos do cientismo moderno, “onde o pensar originário que confere propriamente sentido está posto fora do circuito”, transformando o conhecimento em uma “técnica calculatória” que “em nada difere no essencial do jogo de cartas ou de xadrez” (HUSSERL, 2012, p. 40). A perda de um possível sentido originário, determinantemen-te presendeterminantemen-te nos racionalismos e empirismos modernos, determinantemen-tem, assim, segundo Husserl, uma “pressuposição naturalista” que reduziu oespaço sensível do conhecimento a uma psicologizaçãocom “bases fisiológicas e neurológicas” (PETIT, J L; BERTHOZ, A, 2006, p.126).

A partir dos arrazoados apresentados, procuramos pensar como o programa fenomeno-lógico de Husserlpossuiu as entonações e as características de uma ascese

da razão, cujo conteúdo estaria enraizado nas porções fundamentais da tradição grega e dos seus desdobramentos no humanismo ocidental. Esta forma de ascese representaria o esforço do sujeito em ultrapassar a aporia científico naturalista e a consequente desconstrução do sentido da

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subjetivi-dade que, segundo Husserl, seria o centro constitutivo de toda a realisubjetivi-dade.Se- realidade.Se-parando o elemento espiritual do especificamente “mítico-religioso”1, Husserl

procura instaurar uma postura filosófica e crítica capaz de assumir a vocação espiritual de pensar questões prementes “acerca do sentido ou ausência de sentido de toda esta existência humana”.

Partimos de uma inversão da apreciação geral a respeito das ciências, surgida na viragem do século passado. Esta inversão não diz respeito à sua cientifici-dade, mas ao que a cientificicientifici-dade, ao que a ciência em geral tinha significado e pode significar para a existência humana. A exclusividade com que, na segunda metade do século XIX, toda a visão de mundo do homem moderno se deixou determinar pelas ciências positivas, e cegar pela “prosperity”a elas devida, significou um virar as costas indiferente às questões que são as decisivas para uma humanidade genuína. Meras ciências de fatos fazem meros homens de fatos

(HUSSERL, 2012, p.3).

Para Husserl, a redução cientificista conduziu o pensamento ocidental a uma forma de niilismo técnico-científico desprovido de força noética, onde narrativas éticas e de sentido tornaram-se absolutamente desprovidas de fundamentos. É a par-tir desta constatação que procuramos reconhecer na postura fenomenológica husserliana uma espécie de Paidéia da razão que buscou reagir ao objetivismo positivista das ciências, revelando o interesse de Husserl pela perspectiva his-tórica dos modernos que, face a aporia cientificista, experimentou um colapso de sentido e um desenfreado enfraquecimento da razão que cedeu à força de um relativismo niilista e técnico-dependente. Encontramos, na atividade es-piritual da Paidéia husserliana, o desnudamento de uma krisis que procurou vencer a indiferença relativista e a erosão de sentido provocados pelas “ciên-cias de fatos” e o déficit noético que deu vida ao seu pragmatismo. Esta forma de Paidéia nasce do confronto direto com o niilismo, o relativismo agressivo que se depreende do coração de um mundo que se organiza a partir de uma prática sofística e técnico-científica desprovida de valor noético. Em um pará-grafo que procura desnudar as entranhas de um mundo visto da antessala das ciências e das janelas grisde um historicismo monótono, que nos revelam um universo frio e sonambúlico, Husserl (2012, p. 3-4) acena para a erupção de uma resistência que poderia estabelecer um espaço de sentido.

A verdade científica, objetiva, é exclusivamente a verificação daquilo que o mundo, de fato, é, tanto o mundo físico como o espiritual. Mas pode o mundo, e a existência humana nele, ter na verdade um sentido, se as ciências só admitirem como verdadeiro aquilo que é deste modo objetivamente verificável, se a história

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não tiver mais nada a ensinar senão que todas as figuras do mundo espiritual, todos os vínculos da vida que a cada passo mantêm o homem, os ideais, as nor-mas, se formam e voltam a se dissolver como ondas fugazes, que sempre assim foi e será, que a razão sempre terá de se tornar o sem-sentido, a benfeitoria, uma praga? Será que podemos nos satisfazer com isso, será que podemos viver neste mundo, cujo acontecer histórico não é outra coisa senão um encadeamento in-terminável de ímpetos ilusórios e amargas decepções?

A oposição fenomenológica à erosão de sentido provocada pelo esvaziamento da sub-jetividade e pelos irracionalismos e ceticismos que compõem a arquitetura desprovida de valores do mundo moderno possui um ponto de partida que remonta [na modernidade] a certa tradição filosófica que, genealogicamente, estende-se de Descartes à Kant – interpretados a partir de uma fenomenologia da encarnação, portanto, distante das abstrações de um cogito desencarnado do mundo da vida – que serviram como ponto de partida para uma Paidéia filosó-fica que procurou resistiraperda de mundo provocada pelas reduções cientifi-cistas que estiveram na base daquilo que Husserl denominou como “ciências dos fatos” (HUSSERL, 2012, p. 91). Reagindo às tendências biologistas que deram forma ao pensamento cientifico do século XIX e a primeira metade do século XX, as intuições husserlianastrouxeram como ponto constitutivo a fortuna crítica da tradição grega e humanista, encontrando na realidade subs-tancial do sujeito o núcleo de sua dignidade, que será o ponto estruturante da resistência e superação de um niilismo técnico-científico. Como já afirmamos anteriormente, procuramos compreender a atitude fenomenológica como uma forma de ascese da razão que se tornou expressão de uma resistência “religio-sa”, opondo-se aos reducionismos que compreenderam as origens da consciên-cia exclusivamente a partir de mecanismos externos e causais e proclamaram a existência de um sujeito desprovido de intencionalidade e capacidade crítica, onde a consciência não poderia ser considerada, devido a uma radical redução psicológica e biologista, como a forma primordial e absoluta da existência. TÉCNICA E NIILISMO

O século XIX foi compreendido como o século de realização da ciência. A racionali-zação da vida, compreendida por Heidegger como “objetificação de tudo e de cada coisa” (JANICAUD, 1984, p.107) caracterizou o século da industrializa-ção e da produindustrializa-ção técnica, assimilando o real aos critérios objetivos de uma ra-zão científica. Essa forma de consciência, compreendida por Heidegger como

a escatologia realizada dametafísica ocidental, apresenta-se, para a tradição fenomenológica, como uma consciência natural que buscou identificar-se a

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si mesma com um saber absoluto (JANICAUD, 1984, p.113). Compreendida dentro destes critérios, a racionalização técnica promovida pela modernidade consiste em uma expressão do saber natural que não é outra coisa senão a realização da metafísica, compreendida como “projeto grego de realização de um logos concebido como universalidade formal e vazia” (VIOULAC, 2005, p.22). Para Janicaud (1984), uma fenomenologia do mundo técnico já foi em grande parte realizada por Herbert Marcuse, em sua obra O Homem

Unidimen-sional, que demonstrou as dinâmicas de um mundo racionalista que tem como forma a “produtibilidade de todo o ser”. Para o autor,

o livro descreve, em efeito, uma forma nova de consciência social (caracterizada pela dominação de critérios de produtibilidade e rentabilidade), a extensão de um mundo de racionalidade (técnica) a todos os domínios da vida, o desenvol-vimento de novas formas de controle e de integração de toda critica, enfim – fi-losoficamente – o triunfo de um pensamento positivo (analítico-positivista) que não procura mais compreender a realidade (JANICAUD, 1984, p.113).

Compreendido como realização de uma consciência natural e objetiva que se interpre-ta a partir de critérios empíricos, o pensamento positivo ofereceu os quadros epistemológicos a partir dos quais as ciências na modernidade se organizaram. O triunfo desse pensamento analítico-positivista elaborou uma narrativa que concebeuo real como uma exterioridade objetiva e que deveria ser positiva-mente desvendada e quantificada pela razão científica. Esse empirismo,

jáan-tevisto pelo pensamento naturalista de Locke e Hume, ganhou seu acabamento na atividade dos homens da ciência do século XIX e XX, que empreenderam uma redução do pensamento a uma atividade cognitiva, procurando explicar a

realidade a partir dos métodos científicos das ciências naturais2.Neste

proces-so de objetivação da vida, inaugura-se um novo comportamento proces-social, uma nova forma de ser nomundo, como adequação do homem à idade da técnica, proporcionando um “novo conformismo”, que foi consequência de um “com-portamento social influenciado pela racionalidade tecnológica” (JANICAUD, 1984, p.114).

O mundo técnico e produtivista do século XIX realiza-se como uma desconstrução do sentido e da subjetividade, que se dissolve no processo de objetivação e positivação do conhecimento e da realidade. Perdido em meio às entidades abstratas das ciências, o homem moderno viu-se imerso em um círculo de

objetivação de todo ser, preso em uma dinâmica produtivista de um mundo técnico, o modo moderno de produtibilidade. Produto direto e banal de uma forma de vida que se funda em um pensamento causal e objetivante, o niilismo moderno é a realização de uma forma de civilização incapaz de pensar a si

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mesma, pois se encontra presa aos quadros teóricos e asfixiantes de uma ciên-cia positiva. A questão do sentido e da consciênciên-cia se dissolve nos contornos de objetivação da realidade de uma atitude natural irreflexiva que reduziu a consciência comoum objeto da ciência psicológica, tornando o homem refém de determinismos que o privam de sua [pretensa]apodicidade, tornando-se destituído como sujeito e preso aoscírculos desprovidos de sentido da ciência

positiva. A desqualificação do universo do sentido e da consciência, entregue aos determinismos de uma realidade técnica e positiva, priva a existência de uma experiência que possua força e capacidade noéticasuficientes para resistir às determinações do mundo natural e histórico.

Reduzindo-se a uma realidade natural e objetivamente dada, carente de uma postura reflexiva que procura compreender-se, a narrativa da civilização na moderni-dade técnica possuiu como destino uma emancipação que se reduziu a uma engenharia (biotecnologia) que concebeu a realidade pelos filtros objetivos de um olhar técnico e científico, transformando-se, conforme observou

Levi-nas (1972, p. 67-68), em uma “ideologia sem traços humanos”. Essa atitude redutora, que se tornou incapaz de pensar a si mesma, pois mergulhada em uma realidade quantitativa, manifestou-se como expressão de um espírito na-tural e irreflexivo que se tornou incapaz de ultrapassar os determinismos de uma racionalidade técnica e positiva. Essa aporia do conhecimento natural, que compreendeuo homem dentro de uma circularidade causal biologizante, reduzido a fatores externos, desconstruiu a noção de subjetividade, reduzindo a consciência a um fenômeno passível de ser objetivado, refém de uma defi-nição e explicação causal e imersa em um círculo de positivação do

conheci-mento que se reduziuàs apreensões cognitivas das ciências. Essa redução do homem“manifestou-se como a mais forte expressão de um anti-humanismo, que ligado ao niilismo, colocou a história do século XX dentro da mais violen-ta barbárie” (ZARKA, 2005, p. 3).

PAIDEIA E ASCESE

Reagindo ao universo positivista em sua ação pragmática e perversa – a aniquilação da face humana dissolvida na hegemonia das ideologias totalitárias nazi-fascistas que reduziram a vida a mecanismos de uma engrenagem – a fenomenologia de Husserl afirmou-se “como uma forma de existência que procurou influenciar o curso da história da humanidade” (BIEMEL, 1984, p. 103), organizando uma narrativa que se alimentou da fortuna critica da filosofia da “Grécia Antiga dos séculos VII e VI a.C” e dos seus desdobramentos no pensamento ocidental, compreendendo-a como uma forma de vida que não perde a confiança na força da razão.

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Como resultado de uma aporia cientificista que mergulhou o homem em uma abstração racionalista, privando-o de sua fundamental experiência de si, [compreendida como “verdade de homens que criam por vocação a vida filosófica” (HUS-SERL, 2012, p.263)], uma ideologia positivista afirmou-se em detrimento da autonomia de um sujeito privado de subjetividade e capacidade crítica, refém de um cientismo sem traços humanos que toma sua própria atividade técnica como verdade. Esse anti-humanismo teórico que destitui e desqualifica o ho-mem como sujeito – privando-o da subjetividade que o institui como origina-riamente responsável por si mesmo – afirma a dimensão niilista de uma postu-ra que, aniquilando a subjetividade do homem, faz dele um mero coadjuvante de uma história de abstrações técnico-científicas. A reação fenomenológicaque

resiste à redução naturalista das ciênciaspoderia ser classificada, neste sentido, como uma forma de ascese que resiste ao apagamento da subjetividade e dos traços humanos [Levinás],provocados por uma ciência positiva que, presa a uma atitude natural, encontra-se determinada por uma racionalidade técnica incapaz de refletir sobre si mesma. Conforme Legros (1995, p. 163),

Qual tenha sido sua orientação, quer se trate de Husserl ou de Heidegger, de Merleau-Ponty ou de Arendt, a fenomenologia, sabemos, é fundamentalmente motivada por uma crítica ao positivismo, ao naturalismo, ao pensamento cau-sal-objetivante e em particular por uma crítica ao que Husserl chamou de teo-rias naturais do conhecimento. Na medida em que elas são naturais, desde que elas adotem o ponto de vista das ciências naturais, por exemplo a biologia ou a psicologia, as teorias do conhecimento, depois da fenomenologia, são incapazes de instaurar a possibilidade de conhecimento, ou de esclarecer o sentido ou a essência do conhecimento e são, por isso mesmo, destinadas ao fracasso. Toda teoria natural do conhecimento que parte de um ponto de vista dos resultados de uma ciência natural, por exemplo, a biologia, a antropologia, a história ou as matemáticas, está condenada a fracassar, pois ela é necessariamente levada a se fechar dentro de suas contradições insolúveis e em uma metafísica que a desloca do sentido mesmo da experiência.

Reconhecendo-se dentro de uma tradição filosófica de matriz cartesiana, doadora de

sentido da filosofia crítica moderna [na medida em que reivindica um lugar para o sujeito, que se constitui como soberano3], o discurso fenomenológico

apresenta-se como resistência aos determinismos de uma metafísica positivista que dissolveu a consciência humana em um “reino de uma ordem não humana anônima onde a subjetividade não é mais que um subterfúgio e o homem um acessório em vista de manifestar essa ordem” (ZARKA, 2005, p. 5). A afirma-ção do sujeito transcendental e do primado da intencionalidade constitui-se

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assim como afirmação da primazia de uma consciência que é em si constitutiva de significações e, portanto, lugar de sentido. A fenomenologia, dessa forma, apresenta-se como uma “crítica da razão teórica”, demonstrando os“erros e as

perversões” da atitude natural que toma como verdade as abstrações de uma ciência positiva (ZARKA, 2005, p.6). Essa resistência crítica a atitude natural,

que coloca em questão a redução da realidade como objeto da ciência, afirma o postulado de uma consciência crítica que é forçada a passar de uma atitude natural para uma atitude reflexiva.

A afirmação categórica de uma apoditicidadeda razão, pressuposto da atitude

feno-menológica, afirma-se como autoconstituição de um sujeito transcendental,

estabelecendo uma oposição à postura natural e antirreflexiva, biológica ou

culturalmente determinada e incapaz de libertar-se dos preconceitos presentes nas ciências positivas, esse “preconceito natural” que consiste em uma “logi-cização do mundo da vida” (HUSSERL apud VIOULAC, 2005, p.211). Como forma de oposição e emancipação de um pensamento natural, que levou a Eu-ropa a experimentar a mais completa perda de sentido decorrente de um niilismo técnico e científico, a atitude fenomenológica procurou afirmar-se como uma

es-pécie de refundação de sentido da razão (VIOULAC, 2005, p. 211), postulando assim que a consciência constitui-se como um “absoluto fundamento”e que,na forma de ego transcendental, é a forma primordial da existência humana. Para Vioulac (2005, p. 211),

A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, verdadeiro testamento de Husserl, constitui sem nenhuma dúvida o texto mais importante, e o mais lúcido, sobre o estatuto da fenomenologia dentro da história, sobre a sua função e os seus efeitos. O problema mais constante ao qual Husserl se con-frontou, após as suas pesquisas sobre a validade das idealidades matemáticas, foi aquele do ceticismo, do relativismo e do positivismo, ameaças permanentes que pesam sobre o ideal da ciência, aos quais ele procura responder por uma refundação do sentido. Seu itinerário o conduz a alargar o domínio dessa crise do sentido, para finalmente, nos anos de 1930, abordá-lo como uma crise da civilização européia em sua totalidade, apreendido em seu fundo como “uma crise radical da vida”. Essa catástrofe do sentido, que toma sob os seus próprios olhos a forma de estado nacional socialista, impõe a Husserl a tarefa de pensar “a angustia vital” (Lebensnot) de “nossa época infeliz”: as questões que aborda a Krisis são “as questões relacionadas ao sentido ou a ausência de sentido de toda existência humana”. Quando um olhar retrospectivo lhe permite de situar a fenomenologia dentro da teleologia da historia européia, Husserl a define como uma reação ao aparecimento do niilismo. A conferencia de Viena, de maio de 1935, A crise da humanidade européia e a filosofia identifica muito precisamente

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“o perigo dos perigos” (Gefahr der Gefahren) que pesa sobre a Europa como um “grande esgotamento” (grosseMüdigkeit) e oferece como tarefa da fenome-nologia “sair do incêndio niilista” (... ausdemVernichtungbrand dês Unglau-bens), do fogo incontrolável de desespero que duvida da vocação espiritual do Ocidente em relação à humanidade.

A intuição de Husserl para a saída do niilismo acena para a afirmação de uma

cons-ciência transcendental, fundamento, ipso facto, de um sujeito reflexivo não determinado por mecanismos externos, portador de uma intencionalidade e

subjetividade capazes de resistir aos determinismos da história e de sistemas

político-culturais fundados em objetivações positivas de ordenação do mundo da vida.

Resgatar a subjetividade como caminho para encontrar os traçosdo homem, seu rastro, conforme Levinas (1972), perdido nas ordenações objetivas da história, se torna

um imperativo ético que setornou o substrato que mantém vivo o lugar da tradi-ção humanista no pensamento ocidental. Não fora gratuitamente, conforme nos confirma Yves Zarka (2005, p.3), que a fenomenologia francesa – resistindo ao anti-humanismo que se apresentou no pensamento de Heidegger – preservou “o vínculo direto que sempre guardou com o pensamento de Husserl e, para além dele, com o pensamento do cogito e da liberdade em Descartes”, explicando em parte as “fontes de resistência que puderam se opor à onda explosiva de anti-humanismo à qual Heidegger forneceu as bases filosóficas e para a qual as ciências humanas e sociais foram os vetores decisivos na segunda parte século XX”. A apoditicidade do sujeito transcendental, capaz de resistir aos determinismos de uma história que foi e é cenário de espoliação da dignidade e liberdade humanas, poderia, para Husserl, ser o últimosuspiro ainda capaz de traduzir o tão desgastado conceito de

humanismo, afirmando, contra Heidegger [para quem “nem uma crítica da cons-ciência natural por uma teoria do conhecimento, nem mesmo uma abordagem do mundo contemporâneo por uma fenomenologia autônoma - mesmo que seja crítica - seriam suficientes” (JANICAUD, 1984, p.119)], que face às vítimas de

umabiopolítica e de um biopodercontemporâneos, é imperativo afirmar a resis-tência de uma consciência crítica –a “epoqué” husserliana – como manifestação

da liberdade absoluta do sujeito.

THE SAVIORS OF THE MEN: PAIDEIA AND ASCETICISM OF REASON IN ATTITUDE PHENOMENOLOGICAL

Abstract: this article evaluates the phenomenological attitude that we find in Husserl’s

testament, The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomeno-logy, as a form of Paideia of the reason that seek beyond the modern

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scientific--naturalistic aporia. Such phenomenological attitude seek affirm itself as a kind of rebuilding of the reason’s sense, putting that consciousness is made as an absolute foundation, and that, under the transcendental ego form, is made as the primordial form of human existence. We seek, in this sense, think how the phenomenological program of Husserl can be comprehended as a meditation that carries the intonations and the characteristics of an religious asceticism, whose content would be rooted in the critical literature of the Gre-ece Philosophy (century VII and VI bc) and its development of occidental thought. This way of asceticism represents the subject’s effort to overcome the scientific-naturalistic modern aporia and its consequent deconstruction of the subjectivity sense which, as say Husserl, would be the constitutive center off all reality.

Keywords: Phenomenology. Paideia. Asceticism.Nihilism-TechnicalScientific.

Notas

1 Para Husserl (2012, p. 261), “a atitude mítico-religiosa consiste, agora, em que o mundo, enquanto totalidade se torna temático e, decerto, temático de um modo prático; o mundo – tal quer naturalmente dizer, aqui, o mundo que é concreta e tradicionalmente válido para a correspondente humanidade (digamos, a nação), por conseguinte, o mundo miticamente apercebido. [...] Uma vez que o todo do mundo vale como mundo regido por poderes míticos, e que o destino do homem depende, mediata ou imediatamente, do modo como esses poderes exercem o seu domínio, a consideração mítico-universal do mundo é, possivelmente, incitada pela práxis e é, então, ela própria, uma consideração praticamente interessada. Motivados para esta atitude mítico-religiosa estão,compreensivelmente, os sacerdotes, pertencentes a uma casta sacerdotal que administra unitariamente os interesses mítico-religiosos e sua tradição”.

2 Segundo Husserl (2012, p. 69), nesta tradição de pensamento, “a mente é algo de encerrado, real por si, tal qual um corpo; no naturalismo ingênuo, assim, a mente é entendida, então, como um espaço por si, na sua famosa imagem: como uma lousa, sobre a qual os dados mentais vão e vêm. Este sensualismo dos dados, em conjunto com a doutrina do sentido externo e interno, domina a psicologia e a gnosiologia desde há séculos, e até hoje ainda, sem alterar o seu sentido fundamental, não obstante a luta frequente contra o “atomismo psíquico”.

3 Russerl considera Descartes como um precursor da fenomenologia e considera a dúvida cartesiana como a primeira expressão das “reduções fenomenológicas”. Ver Biemel (1984, p.87).

Referências

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