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A PSICANÁLISE E SEU ENCONTRO COM A LINGUAGEM NA OBRA DE FREUD

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A PSICANÁLISE E SEU ENCONTRO COM A LINGUAGEM NA OBRA DE FREUD

DENISE RIBEIRO BARRETO MELLO1

RESUMO

O presente artigo objetiva apresentar um tema que tem sido alvo de minhas pesquisas não apenas no momento mas desde que ingressei no mestrado na UENF⁄RJ em 2005,

tendo defendido minha dissertação em Agosto de 2007. Trata-se do encontro psicanálise e linguagem. Sabemos que Lacan aproximou a Psicanálise da Lingüística de Saussure e, promovendo um retorno a Freud, construiu as bases deste encontro ao ressaltar a importância da linguagem para a constituição do campo psicanalítico como resultado da descoberta do inconsciente por Freud. Sabe-se que o fundador da psicanálise não pode ele mesmo propor a aproximação direta entre psicanálise e linguagem por não dispor dos avanços do campo da lingüística aos quais Lacan teve acesso. No entanto, as bases desta aproximação estão na obra freudiana e seguindo na trajetória nos seus textos estes fundamentos são encontrados e destacados neste trabalho. É o que se considera neste. Palavras chaves: Freud, psicanálise, linguagem, inconsciente.

ABSTRACT

This article presents a theme that has been the subject of my research not only at the time but since I joined the Masters in UENF / RJ in 2005, and defended my dissertation in August 2007. It's against psychoanalysis and language. We know that Lacan came to psychoanalysis and linguistics of Saussure, promoting a return to Freud, he built the foundations of this meeting to emphasize the importance of language for the constitution of the psychoanalytic field as a result of the unconscious discovered by Freud. It is known that the founder of psychoanalysis can not himself propose the direct approach between psychoanalysis and language by lack of progress in the field of linguistics to which Lacan had access. However, the foundations of this approach are in Freud's work and following the trajectory in his writings in these fundamentals are found and highlighted in this work. Is this what is considered.

Key-works: Freud, psychoanalysis, language, unconscious.

1 Pedagoga (FAFIC – 1996); Psicóloga (UNESA – 2004); Mestre em Cognição e Linguagem (UENF – 2007); Professora da Graduação de Psicologia, da Pós-Graduação em Psicanálise Teoria e Clínica e Coordenadora de Psicologia Clínica do SPA – Serviço de Psicologia Aplicada (ISECENSA – Campos RJ); Psicóloga da Prefeitura Municipal de Campos; Psicóloga da Faculdade de Medicina de Campos; Psicóloga Clínica e Institucional.

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INTRODUÇÃO

A linguagem está na atualidade na base dos estudos psicanalíticos. Um dos principais autores que se ocupam da sustentação deste encontro é Lacan que, provocando o retorno a Freud o quanto linguagem e psicanálise sempre estiveram entrelaçadas.

Não dispondo das ferramentas da lingüística para propor esta aproximação de forma direta e decisiva como o fez Lacan, Freud enveredou pela clínica através da associação livre, um método inovador baseado na fala e na escuta, sendo esta a regra fundamental da psicanálise postulada por ele.

Lidar dia-a-dia com o sofrimento das pessoas permitiu-lhe desenvolver uma teoria consistente sobre as dificuldades da vida humana. O contato clínico diário com pacientes e seus sofrimentos, ao contrário de estudos distanciados em laboratório, ao longo da história têm feito da psicanálise muito mais do que apenas um edifício teórico coeso. Os estudos psicanalíticos aproximam quem deles desejar dispor do que há de mais lindo e difícil que constitui o humano: sua singularidade que se mostra lá onde está a palavra, o discurso, a linguagem. E disto Freud não prescindiu.

Sendo assim, objetiva-se neste artigo apresentar um tema de grande importância no campo psicanalítico que diz respeito às aproximações entre psicanálise e linguagem presentes já na obra de Freud, embora abordada de forma direta por Lacan.

Embora tendo percebido a estreita relação entre inconsciente e linguagem, Freud não dispunha dos avanços do campo da lingüística promovidos por Saussure aos quais Lacan teve acesso. No entanto, as bases desta aproximação estão na obra freudiana. É o que passamos a apresentar.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Para se pensar a relação da psicanálise com a linguagem na obra de Freud este trabalho propõe traçar uma trajetória em sua obra a fim de evidenciar o quanto sua abordagem centrou-se indiretamente em estudar o inconsciente como uma forma de linguagem.

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Isto porque Freud não dispôs dos desenvolvimentos em torno do campo da lingüística que em muito favoreceram para que psicanálise e linguagem pudessem efetivamente se encontrar. Deixou este caminho aberto para que Jacques Lacan e outros pós-freudianos pudessem trilhá-lo, promovendo o estudo do inconsciente com as teorias sobre a linguagem de Ferdinand de Saussure. Mas este encontro não é de uma adequação da psicanálise às teorias da lingüística. Principalmente Lacan propôs uma aproximação das noções de significante e significado saussureanas conferindo-lhes conceituações originais para sustentar que o inconsciente se estrutura como uma linguagem.

No entanto, nossa ênfase aqui é pensar nas possibilidades deixadas por Freud para que Lacan chegasse a este intento e a primeira delas diz respeito aos diálogos propostos por Freud com disciplinas afins verificadas especialmente em o interesse científico da psicanálise (1913).

Percebe-se que a psicanálise tem na teoria do inconsciente tal como proposto por Freud a centralidade de todas as outras teorias psicanalíticas que sobre esta vão se baseando. Mas muitos dos seguidores de Freud tal como Jung, Adler, Rank, Reich e outros, alteraram radicalmente este enfoque fugindo da originalidade do pensamento freudiano. Muitos deles aproximam por demais a psicanálise e a medicina, convertendo o saber psicanalítico “numa terapêutica adaptacionista, normatizante” e possibilitando que esta “se inscrevesse doravante no quadro da psicologia geral” (JORGE, 2000, p. 18).

Há que se considerar que a incontestável descoberta freudiana é no mínimo instigante: algo no homem atua a sua revelia, levando-o a agir sem saber ao certo porque fazem o que estão fazendo. Freud aponta para isto em vários momentos de sua obra como em 1917 no texto Uma dificuldade no caminho da psicanálise e As resistências a

psicanálise (1925). O pensamento freudiano vem esclarecer que o homem, ao contrário

do que afirma Descartes, não é senhor de sua própria casa, colocando a sua descoberta do inconsciente ao lado de outras duas que foram duros golpes a humanidade.

No texto de (1917), Freud afirma que a humanidade sofreu três grandes golpes em seu narcisismo. Este termo foi cunhado por Freud, a partir do mito de Narciso, para se referir ao sentimento que o sujeito nutre por si mesmo e que o leva a tomar a si mesmo como objeto de amor (FREUD, 1914, p. 77-108).

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Quanto aos três golpes, o primeiro deles foi o golpe cosmológico quando na Revolução coperniana se desfaz o pensamento que a terra era o centro do Universo. O segundo, dada a teoria da evolução de Darwin, o homem já não é mais superior aos animais como se imaginava no plano primitivo, logo não está no centro da criação; é o golpe biológico. O terceiro, mais forte e cruel, é o golpe psicológico. O homem que acreditava ser dono de si mesmo, de seus pensamentos e emoções, não tem como controlar suas pulsões sexuais inconsciente, pela quais sua vida é dominada.

“O ego não é o senhor de sua própria casa” (Freud, 1917, p.153 – grifos do autor), eis a conclusão freudiana que retira o homem de uma posição suposta de centralidade da consciência ao postular o inconsciente como determinante psíquico e, assim, subverte radicalmente o cogito cartesiano possibilitando a visibilização de uma lógica psíquica completamente nova.

As resistências e divergências em torno da psicanálise foram e são muitas. Ainda na época de Freud havia várias tentativas de alterar o pensamento psicanalítico tanto no plano teórico como clínico, o que veio provocar desde então muitas rupturas no interior da própria psicanálise. Em História do movimento psicanalítico (1914), Freud faz um recorte de alguns episódios para evidenciar o quanto à história da psicanálise é marcada pela resistência, já que os conceitos que formulou são concernentes não a psicanálise, mas a própria vida humana.

Tendo em Freud seu fundador, as bases conceituais e clínicas da psicanálise estão colocadas e nenhum profissional, seja apenas clínico ou pesquisador, arriscar-se-ia nomear-se psicanalista negando a fundamentação freudiana. Os processos mentais inconscientes, a consideração das teorias da resistência e da transferência, o método clínico da associação livre, a importância da sexualidade e o do complexo de Édipo na constituição da subjetividade humana são alguns dos principais temas da psicanálise e os fundamentos de sua teoria. Segundo Freud (1922, p. 264), “aquele que não possa aceitá-los a todos não deve considerar-se a si mesmo como psicanalista”.

O que está em jogo na psicanálise é a particularização dos sintomas na história de um sujeito, cuja realidade psíquica é o norte, ou seja, a sua inserção no mundo simbólico permite a expressão ou a construção em análise do sentido de uma doença, constituindo-se como uma outra forma de olhar para o sujeito em adoecimento.

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As bases para esta concepção estão em Freud e em toda a construção do arcabouço psicanalítico, principalmente nos Artigos sobre técnica (1911-1915), em que delimita o atendimento em psicanálise diferenciando-o de outras formas de abordagem.

Antes da psicanálise, entendia-se que as doenças eram causadas por agentes externos. De modo revolucionário, muitos conceitos, tradições e teorias foram sendo modificados pela inserção da psicanálise, entre estes, a concepção de que toda a forma singular presente nas patologias se expressam pela fala do sujeito sobre a sua dor, o seu sofrimento, o seu sintoma, constituindo-se como uma possibilidade original sobre um modo de tratamento inovador até então não contemplado.

Neste sentido os Estudos sobre a histeria (1893-1895) e Fragmentos da Análise de

um Caso de Histeria (1905), mais conhecido como Caso Dora, são obras importantes em

que Freud demonstra como pode chegar ao método clínico de acesso ao inconsciente, a associação livre e a transferência. Neste último, Freud demonstra “a estrutura íntima da doença neurótica e o determinismo de seus sintomas” (FREUD, 1901, pp. 13-4, 15).

A descoberta do inconsciente e a conseqüente constituição da psicanálise permitiram a Freud o estudo dos sonhos, dos lapsos de linguagem, a estruturação do modelo de aparelho psíquico e a reflexão sobre as relações entre o psíquico e o somático, presente em sua obra desde a década de 1890 atraído pelos fenômenos histéricos. Construiu pilares essenciais para a sustentação do campo epistemológico, clínico e teórico denominado psicanálise. Suas descobertas inéditas abrem muitas questões, aponta para diversos caminhos e possibilidades.

Inicialmente oferecendo-se de uma forma modesta como método de tratamento das psiconeuroses, a psicanálise aos poucos foi ampliando sua abrangência e hoje é chamada a intervir onde quer que haja atividade humana, teoricamente ou na prática clínica ou institucional.

Isto foi previsto por Freud em 1926, quando escreveu: “O emprego da análise para o tratamento das neuroses é somente uma das suas aplicações; o futuro talvez demonstre que não é o mais importante” (FREUD, 1926, p. 28).

No entanto, é preciso considerar que a clínica foi o caminho que permitiu a Freud abrir todas as outras possibilidades, fazendo com que a psicanálise ocupe hoje um lugar

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de diálogo com muitos outros campos, provocando avanços epistemológicos significativos e expandindo-se cada vez mais a partir dos benefícios obtidos pelos sujeitos em análise.

Tudo isso não seria possível sem o encontro com a linguagem. É o que passamos a considerar.

O INCONSCIENTE FREUDIANO E A LINGUAGEM

Freud impactou a humanidade com suas descobertas e teorizações sobre a estruturação do psiquismo humano. Ao postular que o homem é regido por forças de outra ordem que não a consciência, ele demonstra o quanto o homem é estranho a si mesmo.

Desde então, o saber psicanalítico tem sido marcado pela experiência que foge a qualquer tipo de objetivação própria do discurso científico. Isto se deve ao fato de que a psicanálise tem se voltado muito mais para a compreensão do psiquismo humano do que para explicações totalizantes e universais a respeito do homem, razão pela qual Freud foi buscar nos sintomas histéricos, ignorados pela medicina de seu tempo, recursos para tecer suas teorias, já que não encontrava na lógica da consciência, meios para abordar a dimensão do indizível.

Mas, para chegar a isto, Freud não precisou adentrar territórios obscurecidos para descobrir o inconsciente. Ao contrário, no dia-a-dia das pessoas, em suas falas e expressões cotidianas, nos sonhos relatados, nos trocadilhos das palavras, ele encontrou os caminhos para “des-cobrir” o inconsciente. A utilização do termo descobrir aqui não é acaso, uma vez que etimologicamente significa tirar do encobrimento. Ou seja, outros pesquisadores já falavam sobre o inconsciente, mas deve-se a Freud o mérito de ter tirado o que o encobria, teorizando-o e colocando-o numa posição central da psicanálise.

O homem é um ser de fala e, portanto, de linguagem que em seu dinamismo cria e recria contextos e realidades. Como qualquer outro fenômeno simbólico, a linguagem é fundamental à vida humana. Por meio dela todo o universo ganha sentido, mas nem por isso torna-se conhecido porque se a linguagem porta um simbolismo cuja marca principal

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é a descontinuidade, o conhecimento, por sua vez, tem na continuidade sua característica fundamental.

Como elemento organizador, a linguagem permite a aproximação do homem e do mundo por meio de significações precárias: “O mundo e a natureza são estranhos e absurdos para o homem até que possam se aproximar de nós pela mediação simbólica da linguagem que irá, então, modelar de sentido a realidade” (LONGO, 2006, p. 12).

Sem encontrar um sentido o homem não consegue sobreviver; ele se agarra a uma significação ainda que falsa. Fantasias, sonhos, medos e silêncios ganham sentido por meio da linguagem e o homem tem, assim, a sensação de conhecer. Quanto mais se aproxima do saber mais o deseja. Assim, o redimensionamento do conhecimento humano é permitido pela reflexão sobre a linguagem, já que é resultante da capacidade humana de simbolizar: o símbolo representa algo na sua ausência. A linguagem humana é aberta, está dinamicamente sendo criada e construída. Os animais inferiores não têm a capacidade de representar, levam a vida sem nada mudar ou construir. O homem, no entanto, está inserido na linguagem que comporta uma falha que provoca flutuações contínuas dos sentidos que fazem as palavras deslizarem nos equívocos, lapsos, chistes, atos falhos, repetições, esquecimentos, lacunas, tropeços e silêncios.

É a falta que exige o símbolo, a linguagem; no anseio de representar criamos e inventamos e nunca parece suficiente, estamos sempre desejando... Utiliza-se o símbolo na tentativa de preencher a falta, mas como não encontramos a representação “perfeita”, continuamos inquietos e desejantes.

Desde seus primeiros trabalhos, Freud desenvolveu a psicanálise relacionando-a de modo indireto à linguagem que está presente permeando toda sua obra. O autor atribui grande importância às palavras em toda sua teorização: tudo se passa pela e na linguagem.

Quando escreveu a monografia Sobre as afasias: um estudo crítico (1891), Freud intentava “abalar uma tendência cômoda e atraente sobre os distúrbios da linguagem” com uma preocupação voltada não para a localização, mas para “as condições funcionais da linguagem” (GAY, 1989, p. 73).

No entanto, Freud não pôde ele mesmo produzir a síntese entre psicanálise e linguagem, mesmo tendo percebido a relação estreita entre linguagem e inconsciente. O

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motivo mais forte para isto é, sem dúvida, o fato de Freud não ter as ferramentas desenvolvidas pelos lingüistas na época em que desenvolveu suas teorias, deixando que seus predecessores chegassem a essa síntese. Porém, está claro que a linguagem perpassa de ponta a ponta todo o conjunto freudiano de articulações psicanalíticas. Isto é inegável.

No período compreendido entre 1885 e 1895 Freud construiu as bases de sua teoria sobre a etiologia sexual das neuroses, instigado pelo trabalho desenvolvido por Charcot. Neste tempo, Freud passou a ouvir as pacientes histéricas, o que lhe possibilitou uma nova compreensão destes casos clínicos em que, a partir disso, lançou as bases para o surgimento e consolidação da psicanálise.

Isto porque Freud não estava preocupado em encontrar verdades universais, sua clínica se baseava “na escuta de uma verdade que é do próprio sujeito, não necessariamente fundamentada em princípios teóricos”, já que o que está em jogo numa análise “é um saber que se caracteriza por estar intimamente associado à verdade do sujeito”, não se tratando da construção de um conhecimento acadêmico ou um saber doutrinário, mas de “um saber singular” que só pode emanar do próprio sujeito. A implicação mais radical dessa afirmação é que “o analista deve tomar cada novo paciente como se fosse o primeiro e escutá-lo em sua radical singularidade”, buscando tecer uma “reconstituição, aqui e agora, da história de um sujeito” (JORGE; FERREIRA, 2005, p. 20).

Foi sem dúvida o estudo da histeria que possibilitou a Freud a consolidação de seu projeto. Distanciando-se cada vez mais do estudo das bases anatômicas do funcionamento psíquico, ele descobre o grande valor das palavras no tratamento dos sintomas histéricos por revelarem aspectos simbólicos próprios do funcionamento psíquico presentes na dinâmica destes quadros.

Freud ao lado de Breuer, publica em 1893 “Estudos sobre a histeria: comunicação preliminar”. Mas este artigo não foi bem recebido pelos cientistas de Viena por acreditarem que os bons médicos não deveriam se preocupar com a histeria. No entanto, Freud percebeu que os comentários de seus colegas sobre a histeria, traziam sempre um componente sexual. Ele compreendeu, então, a sexualidade como causa da histeria e que aqueles médicos tinham esse conhecimento, mas não sabiam que tinham.

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Continuando seu trabalho, em 1895 nos Estudos sobre a histeria, Freud relata ao lado de Breuer a eficácia do método catártico adotado como técnica no tratamento das pacientes histéricas. O método catártico utilizado nestes tratamentos era uma técnica que se baseava na proposição de que os sintomas sejam um a um eliminados pelas recordações feitas pela paciente estando sob hipnose. Neste livro são apresentados vários casos clínicos, atendimentos realizados tanto por Breuer, como o caso Anna O., como por Freud no tratamento de Emmy, além dos tratamentos de Lucy R., Katharina e Elizabeth Von R.

Quanto a paciente Anna O., Breuer relata que estados de “ausência” foram observados quando ela “costumava parar no meio de uma frase, repetir as últimas palavras e, depois de uma breve pausa, continuar a falar” (FREUD, 1895, p. 60). Freud entendeu baseando-se nestes estudos que se tratava de uma perturbação psíquica que envolvia a fala.

Sob estado hipnótico a paciente “colocava para fora” toda a carga de conteúdos imaginários acumulados. Essa descarga emocional pela fala a tranqüilizava, mas depois voltava a ficar agressiva, desagradável e mal humorada. Ela denominou este método como “cura pela fala” quando falava sério e quando brincava, de “limpeza de chaminé” (op.cit., p. 67, 280).

Já os atendimentos realizados por Freud possibilitaram-lhe perceber algumas limitações da hipnose. Trata-se de um método de sugestão utilizado inicialmente por médicos como Charcot, Freud e Breuer, entre outros, que consiste em induzir artificialmente pacientes histéricas a recordar a cena traumática para que assim pudessem reconstruir recordações que de outro modo não chegariam a consciência, com o objetivo de extinguir os sintomas próprios da histeria (paralisias, cegueiras temporárias, dores físicas, etc.).

Os sintomas cediam, mas logo retornavam; as recordações obtidas sob hipnose não eram lembradas em estado de vigília. Além disso, nem sempre a paciente concordava em deixar-se hipnotizar, como no caso da paciente Lucy R., que colocou Freud diante de duas alternativas: abandonar o caso ou adotar um outro método de tratamento. Estes e outros motivos foram levando Freud a perceber que o método hipnótico era ineficaz.

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Consequentemente, o abandono da hipnose leva ao rompimento com Breuer, em 1895. Freud esclarece que isto se deve a sua descrença no método catártico e na hipnose e, sobretudo, a sua convicção sobre a causa sexual da histeria. Assim, outras descobertas acontecem em sucessão: o complexo de Édipo em 1897; os primeiros escritos sobre as psicopatologias da vida cotidiana em 1898; a publicação em 1898 de mecanismos psíquicos do esquecimento; a construção do texto sobre os sonhos em 1899 e sobre a sexualidade infantil em 1905.

Foram as observações sobre o que acontecia na hipnose, a resistência das pacientes de submeterem ao método, que levaram Freud a descobrir outra possibilidade de tratamento e a desenvolver o método da associação livre que consiste em permitir ao sujeito falar sem reservas ou censuras morais sobre tudo que lhe vier a mente.

Este momento foi importante para a psicanálise, uma vez que possibilitou a Freud as primeiras descobertas e teorizações não apenas sobre o inconsciente mas também sobre a técnica e as possibilidades de leitura e interpretação sobre estes conteúdos, inclusive em sua relação com as doenças.

Voltando ao texto freudiano Sobre as afasias (1891) citado acima, Freud demonstra grande interesse pela dimensão das palavras, dando um passo a mais ao concebê-las palavras em seu valor para além da fala e da escuta, não propriamente como representantes ideacionais e conceituais da realidade e sim, em sua força criadora e potencialmente transformadora do psiquismo.

Vale ressaltar que este texto não figura entre a Edição Standard Brasileira das

Obras Completas de Sigmund Freud, mas tem sido considerado um texto inaugural da

teoria psicanalítica por apresentar o psiquismo como um aparelho de linguagem. Maiores referências do texto referido encontram-se em Garcia-Roza (2004).

Nele, Freud desenvolveu o que denomina “aparelho da fala” para esclarecer como o aparelho psíquico é constituído, abordando os distúrbios afásicos como distantes da comunicação verbal. O termo “fala” coloca aqui a dimensão da linguagem como ato que envolve o sujeito que atua como falante, central na psicanálise, distintamente do que se vê nas abordagens da linguagem em outros campos como a lingüística.

O que Freud ressalta neste texto é a dimensão subjetiva verificada pela valorização da atividade do sujeito na compreensão do que é falado ou ouvido. A palavra falada,

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enquanto substantivação de um verbo coloca o sujeito num processo ativo. O interesse de Freud concentra-se muito mais nos processos envolvidos na fala e na compreensão verbal do que na linguagem como um sistema referencial.

Ao escrevê-lo o objetivo de Freud é ressaltar a questão da linguagem nos distúrbios afásicos, o que ele leva as últimas conseqüências ao colocar-se contra o modelo localizacionista de Wernick, enfatizando de modo radical a indivisibilidade da percepção e da associação no processo de construção da fala. Seu estudo sobre as afasias passa a envolver necessariamente uma teoria da linguagem (RUDGE, 1998, 73).

Com base no estudo sobre as afasias, Freud pôde sustentar que o princípio do prazer opera numa relação de dependência com a linguagem, uma vez que ocupa o lugar das fantasias em que são predominantes as imagens visuais. A linguagem é essencial para que o universo representacional possa se constituir.

A fala da criança para Freud não tem como ser constituída sem a mediação do adulto. O ato de falar é constitutivo das representações por meio de deslizamentos entre as representações de objeto e palavra que não são definitivas, nem se esgotam a priori, já que não possuem significados acabados, e sim, por estarem inseridas num sistema abstrato, possuem sentidos mutáveis, flutuantes que podem se alterar de acordo com o contexto em que são empregados.

A aquisição da linguagem só é possível pela intermediação social. A criança não nasce sabendo falar, é em contato com os semelhantes que o “aparelho da fala” vai se constituindo por demonstrar o saber que a criança dispõe para interagir com as outras pessoas.

Esse posicionamento é reafirmado no Projeto para uma psicologia científica (1895). Na Parte III, Freud retoma a questão da linguagem ressaltando a importância da percepção e da consciência como elementos articulados que se expressam pela via motora. Os processos psíquicos são em princípio incapazes de percepção, isto é, de qualificar elementos; associam-se a imagens sonoras e visuais e a atos motores da fala. O que será percebido não é o mundo interno, mas o que é externo ao aparelho psíquico, o corpo e o mundo, assim como os afetos seja o prazer, seja a angústia.

É importante ressaltar que todo esforço freudiano realizado no texto sobre as afasias (1891) é um prenúncio da constituição do aparelho psíquico tal como

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desenvolvido no Projeto (1895), considerado como um texto de extrema importância no contexto teórico da psicanálise e que em vários momentos foi retomado por Lacan.

No Projeto (1895) Freud concebe o aparelho psíquico como um circuito integrado que pressupõe a circulação de energia que visa encontrar uma imagem que possa representar o objeto perdido. Na impossibilidade de encontrá-lo literalmente, a satisfação se dá por um objeto substituto. Mas se o que se trata é de uma representação, há um plano simbólico que se sustenta apenas sobre a consideração de articulações com a linguagem.

Contudo, foi o estudo dos sonhos de 1900, texto intitulado A interpretação dos

sonhos, que permitiu a Freud teorizar sobre o inconsciente. Logo percebeu que o

recalque se manifestava pelos sonhos, chistes, atos falhos e sintomas. Estas formações não se apresentam claras, ao contrário, pedem decifração e possuem um sentido e intenção, mesmo que pareçam estranhas, desconexas e incoerentes.

Na realidade, o texto foi escrito em 1899, mas Freud solicitou ao editor que adiasse a sua publicação para um ano depois por acreditar que seria um marco para o século que se enunciava. Contrariando esta expectativa o livro vendeu apenas 351 exemplares ao longo de seis anos (JORGE; FERREIRA, 2005, p. 27).

O que é recalcado sempre retorna sob um disfarce, uma forma substituta como o sonho, por exemplo, que não permite que o sujeito reconheça aquilo que não quer saber. O sonho se oferece a decifração. Ele não quer comunicar, compõem-se de imagens que antes eram pensamentos e que se apresentam confusas, deformadas.

Os sonhos são realização de desejo inconsciente e neles atuam mecanismos inconscientes que têm como função deformar o desejo recalcado que compõem o pensamento original que permitiu a formação dos sonhos. Mas este pensamento latente passa por muitas deformações mostrando-se então como um conteúdo manifesto bastante distanciado daquela forma original. É sobre o pensamento latente que operam os mecanismos do sonho: deslocamento, condensação, recurso a figurabilidade e elaboração secundária. Os dois primeiros atuam, respectivamente, para deslocar o acento psíquico importante para um outro sem relevância, como para condensar vários elementos em um só, tornando o sonho breve, conciso e repleto de lacunas. O recurso a figurabilidade visa encontrar uma imagem que represente o desejo e a elaboração

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secundária dar um sentido verbal para o que foi sonhado. Os sonhos comportam uma linguagem arcaica e existem elementos nele que não devem ser interpretados em virtude de sua função de ligação. A linguagem presente nos sonhos é a via de expressão do método que rege toda a atividade psíquica inconsciente. Por isso, cabe ao sonhador decifrar seu próprio sonho.

A elaboração onírica trabalha para dar ao sonho um outro sentido distante daquele que lhe originou: A revisão secundária é um exemplo da natureza e das pretensões do sistema consciente: existe em nós uma função intelectual que exige unidade, conexão e inteligibilidade de qualquer material da percepção ou do pensamento que caia em seu domínio e se não pode estabelecer uma conexão verdadeira, não hesita em fabricar uma falsa (LONGO, 2006, p. 24).

Ainda neste texto (FREUD, 1900, p. 184), Freud menciona que nos sonhos aparece um emaranhado de imagens que se misturam a pensamentos, o que ele denomina “saber” no sonho. Esta idéia aparece em outra passagem, nas Conferências

Introdutórias sobre a psicanálise dedicada aos sonhos, a Conferência VI, intitulada Premissas e técnicas de interpretação (1916-17). Referindo-se ao ato do sonhador de

dizer que não sabe o que o seu sonho significa, Freud afirma que ele sabe, “apenas não

sabe que sabe, e, por esse motivo, pensa que não sabe” (FREUD, 1916-17, p. 106 –

grifos do autor).

Desse modo, Freud se distanciou das propostas da medicina localizacionista de sua época, para colocar em destaque o sujeito da doença, do sintoma, do desejo, do inconsciente. E este distanciamento tem como marco a obra sobre os sonhos de 1900, reveladora para a vida humana de que os mecanismos que operam nos sonhos são equivalentes aos mesmos sobre os quais opera o inconsciente.

Em 1901, Freud escreveu Psicopatologia da vida cotidiana, obra em que destaca os equívocos e lapsos de linguagem cometidos pelas pessoas no seu cotidiano denominados “ato falho”. O texto de Freud ressalta que estes fenômenos estão presentes tanto no cotidiano da vida das pessoas consideradas “normais” como na patologia. Na tradução em português o termo aparece como parapraxias (CARONE, 1985; MOISÉS, 1978).

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associados a motivos inconscientes, tornando-se equivalentes a outras formações tais como os sonhos e os sintomas, uma vez que há um compromisso do desejo recalcado com a intenção do sujeito.

No último capítulo desta obra, Freud aborda a questão do determinismo psíquico inconsciente, afirmando que os atos, vontades, ditos, tendência desenvolvida pelo sujeito estão sob esta determinação, incluindo a regra fundamental, associação livre, que de fato nada tem de livre porque também se dá sob esta determinação inconsciente.

Antes de Freud estes fenômenos corriqueiros do cotidiano não tinham sido agrupados nem recebido uma conotação conceitual tal como a elaboração freudiana lhe confere. Sendo considerados de importância, os atos falhos aparecem em vários momentos da obra de Freud depois de 1901, tal como em 1913 no texto O interesse

científico pela psicanálise, em que discute a questão da fala como expressão do

pensamento em palavras, gestos, escrita, etc. Retoma a questão nas Conferências

Introdutórias sobre Psicanálise (1916-17), dedicando as quatro primeiras Conferências ao

estudo do tema.

Na Conferência I (1916-17) Freud responde a indagações sobre a eficácia da psicanálise, argumentando sobre o poder utilitário das palavras para intervir nas doenças. As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir as palavras trocadas entre o analista e seu paciente (FREUD, 1916, 27).

Os atos falhos dizem respeito a esquecimentos (de palavra, nomes, etc.), lapsos de língua e escrita, e erros e enganos de diversas ordens que não acontecem aleatoriamente. Segundo Freud, eles possuem significado, são sobre-determinados uma vez que estão associados a conflitos psíquicos. Estes “equívocos” são formas substitutivas encontradas pelo inconsciente de expressar o desejo e, como tal, são formações que passam pelos mecanismos de condensação e deslocamento descritos

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anteriormente.

Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) é outro texto freudiano em que

a relação da linguagem com as formações do inconsciente são indiretamente abordadas. Freud ressalta a importância destas formações, caracterizando-os por sua comicidade, desconcerto e brevidade. Ao emitir uma palavra em lugar de outra e ao tentar consertar o equívoco, surge uma afirmação cômica que faz rir o sujeito emissor e, às vezes, o receptor. O riso surge como uma reação a algo provocador de angústia no sujeito.

Os chistes como todas as formações inconscientes se assemelham de modo análogo aos sonhos: enquanto que o texto original é longo, o registro é breve. Segundo Freud, eles se formam quando um pensamento passa do inconsciente para o sistema pré-consciente sem uma revisão prévia e é rapidamente capturado pela percepção pré-consciente (op.cit., p. 183-206).

Ao contrário dos sonhos, sintomas e atos falhos que ficam privados ao próprio sujeito, os chistes são partilhados socialmente: “é a única expressão social do sujeito do inconsciente”, inclusive ao provocar um “momento de relaxamento e enorme prazer (...) um prazer compartilhado pelo riso e pelo alívio das tensões por parte de quem faz e de quem ouve e entende” (LONGO, 2006, p. 29).

Chegando a 1910, Freud escreve A significação antitética das palavras primitivas, texto em que examinou as alterações de muitas palavras baseando-se no sentido antitético bem como nas alterações sígnicas ao longo do tempo, afirmando que a psicanálise poderia ser uma ferramenta de utilidade para estudos em linguagem. Nele, relaciona a elaboração onírica com uma língua egípcia primitiva, em que palavras “com duas significações, uma das quais é o oposto exato da outra”, são apresentadas (FREUD, 1910, p. 142). Ou seja, muitas palavras comportavam uma dupla significação simultânea entre uma coisa e seu oposto. Freud percebe nesta descoberta do filólogo Karl Abel em 1884 que a estrutura das palavras primitivas seriam úteis para o estudo dos fenômenos inconscientes.

Freud aborda a questão dos pares antitéticos de grande importância em psicanálise para se compreender melhor as idéias colocadas em pares (sadismo/masoquismo, por exemplo), o que perpassa toda a sua obra. Convêm salientar que a teoria de Freud como um todo, muitas vezes tem sido compreendida como dualista.

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Se isso se refere a pares de idéias como colocadas a pouco parece coerente, mas se a idéia é de exclusão, já contraria o pensamento freudiano, pois, como observa Garcia-Roza, Freud não propõe um dualismo tal como Descartes entre res cogitans/res extensa, mas propõe “categorias que se opõem dialeticamente, e cujos termos implicados nessa oposição não existem fora da relação de oposição” (GARCIA-ROZA, 2000, p. 276).

Em 1911, no texto Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico, Freud afirma que os processos primários e secundários são processos psíquicos intermediados pela linguagem, pelo pensamento articulado entre o princípio do prazer e da realidade. Ele conclui mencionando que “com a introdução do princípio da realidade, uma espécie de atividade de pensamento foi separada, mantida livre do teste de realidade e ficou subordinada apenas ao princípio do prazer” (FREUD, 1911, p. 240-41).

Desse modo, Freud empreende que os dois princípios, de prazer e de realidade, dirigem os processos secundários, pensamentos articulados pela linguagem. Note-se que se já há uma atuação do processo secundário, vivências valorativas se fazem presentes, tornando os processos de pensamento em produções de subjetividade, tendo como pré-condição para a prova de realidade a perda de um objeto que supostamente trouxe satisfação. Os julgamentos baseiam-se numa identificação com tal objeto mesmo que jamais tenha sido encontrado.

O princípio do prazer postulado por Freud baseia-se na observação de que a realidade psíquica é orientada pela dinâmica entre buscar o prazer e evitar o desprazer. Enquanto qualidades psíquicas são dois elementos que estão presentes desde o início da vida. Em outras palavras, as percepções do mundo interno são reduzidas ao prazer e ao desprazer, embora as qualidades do mundo interno possam ser diversamente percebidas (LAPLANCHE, 2001, p. 364-373).

Em 1915, nos Artigos sobre Metapsicologia encontram-se as relações estreitas entre linguagem e inconsciente pelo viés da pulsão. Num deles denominado “O inconsciente”, Freud toma a linguagem como critério para delimitar os processos inconscientes e pré-conscientes. Este último mantém ligações com representações verbais, enquanto que no recalque há um desligamento entre representação de palavra e de coisa.

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Ao longo da obra de Freud, o termo representação (Vorstellung) persiste em contextos diversos, sob pelo menos duas conotações mais usuais: uma que se refere ao conteúdo de um pensamento e outra a representação como substituição, aquilo que é representante de algo, pessoa ou objeto.

Os conceitos de pulsão e desejo redimensionaram a concepção de representação dando-lhe o que se poderia denominar como “verdadeira” conotação psicanalítica. Mas qual é a relação entre linguagem e representação? Segundo Michel Foucault, na Idade Clássica a linguagem se esgota em sua função meramente representativa, cuja gramática visava apenas o estudo do discurso em que os signos verbais são colocados em sucessão. A primazia da nominação característica deste período denota a aproximação entre palavras e coisas, entre algo e aquilo que o representa.

Somente a partir do século XIX estas concepções, favorecidas por significativas mudanças antecedentes, são radicalmente alteradas. O ser da representação passa a ser enfatizado passando a valorizar o sujeito da representação, demarcando o seu lugar e de sua função simbólica. A partir de então, as representações passam a estar associadas aos juízos (FOUCAULT, 1999, p. 308 e 319).

A linguagem então se vê separada daquilo que representa, relacionada a atividade subjetiva que não mais se esgota numa representação apriorística. Foucault percebe este momento como possibilitador da linguagem como objeto, condição de todo o conhecimento (op.cit., p. 322). Na modernidade vê-se a passagem da representação como originária da linguagem por ser um efeito dela e de suas leis.

Estas nuances históricas se colocam como condições de possibilidade para as originais articulações freudianas em torno dos conceitos psicanalíticos, entre eles, o de representação. Colaboram para evidenciar que todo processo psíquico é intermediado pela linguagem que pela sua natureza simbólica enquanto processos sociais relacionam-se com o processo relacionam-secundário, correlato aos aspectos convencionais.

Após a guerra, diante da desesperança que se instalou, a psicanálise passou a ser mais solicitada nos diversos âmbitos sociais no intuito de dar conta dos traumas e angústias daqueles que a ela sobreviveram. No entanto, as resistências em relação à sexualidade continuavam constantes, enquanto que as questões referentes ao inconsciente, aos mecanismos do recalque e a formações dos sintomas passavam a ser

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mais aceitos. Isto porque a comunidade científica ainda não havia percebido a ligação do sintoma, do recalque, do inconsciente com a questão da sexualidade tal como Freud propunha.

Em O estranho (1919) Freud examina o sentimento de estranheza diante de certas situações que nos são familiares. Investigando o sentido da palavra heimlich usada tanto para designar familiar como assustador, ele conclui que a mesma palavra associada ao prefixo de negação ficando unheimlich remete aquilo familiar que retorna do recalque. Diz ele: “o um é a marca do recalque” (FREUD, 1920, p. 220).

Em 1920, em Além do princípio do prazer, esta possibilidade de articulação torna-se ainda mais palpável, posto que o “além” freudiano aponta para a dimensão da falta, do que transcende o plano consciente e não se deixa dizer no inconsciente. A experiência de análise se tece em torno deste além pulsional.

Em 1923, quando anuncia a segunda tópica em O ego e o id, Freud reitera o papel das representações de palavras como mediadoras dos processos de pensamento possibilitando assim que se tornem conscientes. A linguagem se articula ao pulsional, ligado necessariamente ao Id (Isso).

O termo tópica deriva do grego que quer dizer “lugar”. A segunda tópica refere-se ao momento em que Freud a partir de 1920 passa a conceber as instâncias psíquicas em Isso, Eu e Supereu, enquanto que a primeira concepção conhecida como primeira tópica estruturava-se como inconsciente, pré-consciente e consciente (ROUDINESCO, 1998, p. 755).

Em A negativa (1925), por exemplo, ele considera que “a antítese entre o subjetivo e o objetivo não existe desde o início” (FREUD, 1925, p. 267). Ou seja, não se pode separar a percepção da representação. A linguagem, ao lado das pulsões, torna-se, pois, condição de toda e qualquer representação, o que acentua o caráter singular da atividade representativa.

Fez-se aqui um recorte de alguns momentos da obra de Freud a fim de clarificar que “a linguagem é condição do inconsciente ou o inconsciente é condição da linguagem. A linguagem existe porque existe o inconsciente, ou vice-versa. É difícil determinar alguma anterioridade, e provavelmente desnecessário” (LONGO, 2006, p. 22).

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A concepção de linguagem acompanha de modo indireto todas as etapas das formulações freudianas e retomá-las sob este prisma foi o empreendimento lacaniano. No entanto, mesmo diante do pouco desenvolvimento do campo da lingüística nos tempos de Freud, o papel da linguagem em sua obra não se reduz apenas ao valor que ele atribui à palavra, mas de toda a estruturação do psiquismo fundamentado na linguagem.

Outros textos poderiam ter sido comentados, no entanto não se pretendeu esgotar o tema, e sim destacar a relação entre inconsciente e linguagem presente na obra de Freud. Aliás, todo o empreendimento freudiano em criar a psicanálise deixou muitos caminhos em aberto para serem trilhados por outros que o tem sucedido. Um deles foi esta questão que somente se iniciou e está longe de se esgotar. Daí a necessidade de mais estudos e pesquisas mediante seu alto valor clínico.

REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS

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