221 Elisabete Bárbara, Do dizer e do voltar a dizer em Maria Judite de Carvalho: uma nova perspectiva | forma breve 2, 2004, p. 221-226
Elisabete Bárbara
Doutoranda – Universidade de Aveiro
D
o dizer e do voltar a dizer em Maria
Judite de Carvalho: uma nova
perspectiva
Palavras-chave: Maria Judite de Carvalho, reformulação, ponto de vista, lirismo.
Keywords: Maria Judite de Carvalho, rephrasing, point of view, lyricism.
Circunscrever o campo em que se move a escrita de Maria Judite de Carvalho leva-nos ao contacto ou ao reencontro com o universo do quotidiano, num exercício lucidamente intros pectivo sobre a nossa condição fi nita e humana.
Os seus contos confrontam-nos impiedosamente com a situação irremediável da solidão e da angústia humanas, levando «o observador a mergulhar num mundo em que se movimentam fi guras de ‘anti-heróis’, de homens e, principalmente, de mulheres fracassadas, desiludidas, desencantadas com a vida»1. De facto, as personagens de Maria
Judite de Carvalho dão corpo ao desencanto e ao desconforto existencial, exibindo uma solidão2 tão orgânica que nela se encontram defi nitivamente enclausuradas.
Este tema maior, que se vai fl exionando noutros complexos temáticos3 que o
sus-tentam, encontra no conto o seu lugar expressional e manifestativo. Não iremos aqui alongar-nos em considerações de carácter genológico4, sujeito que está o conto a
inú-1 Elza Carrozza, Esse incrível jogo do amor: a confi guração do relacionamento ‘homem-mulher’ na obra de
Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles, São Paulo, Editora Hucitec, 1992, p. 46. Também em João Gaspar Simões, «II. Paisagem sem barcos» in Crítica IV, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1981, p. 286, se pode ler: «Criaturas humanas combalidas e magoadas, feridas pela vida, tão delicadas e sensíveis que tudo as magoa, tudo as desilude, tudo as decepciona, eis as personagens de Maria Judite de Carvalho, eis a humanidade de seus livros, eis os seres, especialmente femininos, que ela anima e faz viver nas páginas de uma obra como outra ainda não havia na literatura portuguesa».
2 Álvaro Manuel Machado caracteriza esta solidão como narcísica: «(...) toda a solidão é essencialmente
narcísica (mesmo a chamada «solidão social»). Mas narcísica em que sentido? Não nos embrenhemos em teorias psicanalíticas de complexidade duvidosa, tanto mais que nem, por um lado, a literatura depende da psicanálise, nem, por outro lado, a atitude narcísica é forçosamente patológica. Limitemo-nos pois à simples análise da atitude que, no simples fl uir da vida quotidiana, é súbita introspecção inerente a todo o ser humano. «La plus grande chose du monde c’est de savoir être à soi», dizia Montaigne. É precisamente neste sentido que as personagens de Maria Judite de Carvalho são narcísicas». (Álvaro Manuel Machado, «Maria Judite de Carvalho, A Janela Fingida», Colóquio/Letras, 32, Julho de 1976, p.85-86).
3 Esta é a designação que Elza Carrozza (op. cit., p. 46), utiliza para designar os temas e os motivos que
percorrem a produção literária de Maria Judite de Carvalho: masculino/feminino - o eterno contraponto e resignação e renúncia.
meras defi nições teóricas5 e poucas vezes consensuais, apenas relembrar que a relação
conjuga da da narratividade e da brevidade que o caracterizam com segurança, ao po-tenciar uma forma particular quer da organização quer da transmissão do conhecimento, tanto ligado ao real ou ao quotidiano como ao imaginário ou ao fantástico, promove igualmente a sua aceitação e consequente vitalidade enquanto género literário.
Nos contos de Maria Judite de Carvalho, em que muitas vezes a dimensão fantástica6
convive com o mundo real, é evidente que também a brevidade condiciona a narra-tividade e o consequente tratamento das categorias da narrativa. Essa subordinação traduz-se, sobretudo, em concentração e em condensação, parecendo obrigar à recusa do supérfl uo ou acessório. Mas é igualmente evidente o recurso constante a proce dimentos linguísticos reformulativos que, corporizados na expansão verbal, parecem, pelo menos hipoteticamente, contrariar o princípio da contenção e da economia. Sendo um processo frequente em todos os textos da autora, escolhemos para demonstração, pela sua riqueza exemplifi cativa, o conto Seta Despedida7.
Estamos perante uma narrativa na terceira pessoa, mas arquitectada, desde o início, sob o ponto de vista da protagonista. É no leito da memória, onde todas as recordações e todas as vivências vêm à superfície como num espelho de vida, como num «lago imóvel» onde se refl ectem as imagens «com nitidez na água de vidro» que fl utua a
4 Sem entrar na noção de género, são muitas as defi nições de conto. Enrique Anderson Imbert fala mesmo
de «mosaico de defi niciones», começando pela proposta de Edgar Allan Poe («El cuento se caracteriza por la unidad de impresión que produce en el lector; puede ser leído en una sola sentada; cada palabra contribuye al efecto que el narrador previamente se ha propuesto; este efecto debe prepararse ya desde la primera frase y graduarse hasta el fi nal; cuando llega a su punto culminante, el cuento debe terminar; sólo deben aparecer personajes que sean esenciales para provocar el efecto deseado») e acabando com a sua própria defi nição: «El cuento vendría a ser una narración breve en prosa que, por mucho que se apoye en un suceder real, revela siempre la imaginación de un narrador individual. La acción - cuyos agentes son hombres, animales humanizados o cosas animadas - consta de una serie de acontecimientos entretejidos en una trama donde las tensiones y distensiones, graduadas para mantener en suspenso el ánimo del lector, terminan por resolverse en un desenlace estéticamente satisfactorio». (Enrique Anderson Imbert, Teoría y técnica del cuento, Editorial Ariel, S.A., 1992, p.39-40).
5 António Manuel Ferreira, ao mesmo tempo que diz que «A valorização do conto como género narrativo
independente da tutela “imperialista” do romance constitui hoje matéria teórica e analítica amplamente divulgada em países de língua inglesa e espanhola», chama a atenção para o crescente interesse que a teoria e a prática do conto têm vindo a reclamar em Portugal: «No entanto, notam-se algumas mudanças, tanto no plano da edição como no domínio dos estudos académicos». (António Manuel Ferreira, «O fl orir do encontro casual», Forma Breve, 1, 2003, p. 200.
6 A este propósito, leia-se Maria Alzira Seixo, Discursos do Texto, Amadora, Livraria Bertrand, 1977, p.
113-114: «Qual a função, nesse caso, de elementos fantásticos na obra de Maria Judite? Penso que, embora novidade técnica, deriva de um pressuposto temático que persiste, na obra da autora, desde Tanta gente, Mariana... - o desejo de evasão. As personagens de Maria Judite procuraram normalmente fugir (de um universo que as oprime, de uma situação que as acabrunha, de alguém cujo encontro as atemoriza, de uma ideia que se tornou obsessão, de um estado de espírito que as angustia). (...) a que mais nos toca, como novidade, é precisamente essa fuga para um outro universo com leis distintas das do real - o sobrenatural, o fantástico».
7 Maria Judite de Carvalho, Seta Despedida, Publicações Europa-América, 1995. Diz José Manuel da Costa
Esteves: «O conto epónimo Seta Despedida é o relato da história de uma cleptómana reincidente, mas pode também ser lido como uma constatação terrífi ca da inexorabilidade do destino, através de pequenos episódios (mais próximos do registo da crónica) onde se insinua o esquecimento, a morte, a indiferenciação». (José Manuel da Costa Esteves, «Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho: Uma forma abreviada sobre a difi culdade de viver», in O Imaginário de Maria Judite de Carvalho, Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 1999, p.27).
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personagem principal deste conto.
Esta mulher, que se sabe desorientada e «sem bússola», mergulha conscientemente na oscilação temporal que se gera entre a sua infância e a sua vida adulta, numa nítida interpenetração de momentos tão entrelaçados que se tornam diluídos e sem contornos específi cos. Esta confusão entre momentos, numa subversão nítida do tempo clássico narrativo pela desordenação, leva a que o leitor tenha difi culdade em distinguir as vozes narradoras8. Por outras palavras, a omnisciência do narrador de terceira pessoa alterna
tão habilmente com o ponto de vista da personagem que as vozes não só se sucedem como se confundem9.
Os recorrentes procedimentos reformulativos favorecem inquestionavelmente não só a alternância dos pontos de vista como também a confusão, ou até a identifi cação, das vozes narradoras. Vejamos então o que se passa logo na primeira página do conto (p.9): se as informações contidas na primeira frase são da responsabilidade do narra-dor de terceira pessoa («Às vezes faz um esforço e vê a casa como se ela fosse nova (…)»), já a estrutura «Então lembra-se da criança, das crianças que lá moraram (…)» lança a dúvida. Se, de facto, a forma verbal lembra-se aponta inequivocamente para a voz do narrador de terceira pessoa, já a expressão que se lhe segue se revela ambígua quanto a isso. Será que, de repente, se instaura a focalização interna10 e o leitor toma
conhecimen to do pensamento e das refl exões da personagem a partir de si própria ou será que o próprio narrador de terceira pessoa, através da reformulação, abdica da sua omnisciência?
Ainda nessa página inicial, nas últimas linhas, encontramos uma ocorrência que não passa despercebida: «Quando mostrava um sorriso, o que era raro, todos se sentiam – deviam sentir-se – muito gratifi cados(…)». Como interpretar este deviam sentir-se? Ex-pressa uma dúvida ou deixa perceber, de forma algo irónica, uma apreciação quanto a uma presumível obrigação a que, normalmente, os sentimentos não se sujeitam? E a que voz devemos atribuir esta reformulação perifrástica?
Estas refl exões intensifi cam-se à medida que outras estruturas semelhantes vão surgindo: «Tudo aquilo durou, deve ter durado, uma eternidade.» (p.14); «Pegou em livros e voltou a colocá-los no seu lugar entre outros dois livros que tinham – deviam ter – uma qualquer afi nidade» (p.25); «A caneca mandarim caiu-lhe das mãos – terá caído? – e fez-se em cacos» (p.25).
8 Maurice Delcroix e Fernand Hallyn falam de «psycho-récit» e distinguem dois tipos, «la dissonance», em
que a relação narrativa é dominada pelo narrador, e «la consonance», em que o narrador se deixa absorver pela personagem. E acrescentam: «C’est à partir des matériaux mentaux offerts (...) que le narrateur cons-truit son récit. (...) Il n’y a ici aucun indice de désaccord entre narrateur et personnage. Il y a, au contraire, une profonde sympathie». (Maurice Delcroix e Fernand Hallyn, Introduction aux études littéraires, Éditions Duculot, 1993, p. 180).
9 Leia-se Maurice Delcroix e Fernand Hallyn: «Ces fugitives réminiscences du discours intérieur du personnage
favorisent la confusion entre voix et point de vue (...) l’information narrative passe à travers le fi ltre de la conscience du protagoniste. Ou en termes genettiens: le récit est focalisé sur le personnage.» (Maurice Delcroix e Fernand Hallyn, Introduction aux études littéraires, Éditions Duculot, 1993, p. 184-185).
10 Acerca da questão da focalização interna, leia-se Carlos Reis, Estatuto e perspectivas do narrador na fi cção
de Eça de Queirós, Coimbra, Almedina, 1981, p.70-80. Consulte-se ainda, a propósito deste assunto e de outros que se prendem com o domínio da narratologia, Carlos Reis e Ana Cristina Macário Lopes, Dicionário de narratologia, Coimbra, Almedina, 2000.
Parece evidente que a dúvida, motivada talvez por limitações da memória ou da evocação do passado, funciona como elemento que vem questionar a assertividade das constatações e torná-las subjectivamente dependentes de uma visão interna e pessoal. São as permanentes lembranças que, mais ou menos precisas, mais ou menos sonoras ou mais ou menos coloridas, transformam a fugacidade dos tempos numa perenidade implacável e que continuamente vem à tona ou à «superfície» dos dias, como âncora da vida. Ou da morte. Sim, porque a presença constante do passado contamina a vivência do presente e essa estagnação que o anula mais não é do que uma antecipação da mortalidade.
Outras reformulações11 marcam o tecido textual, como, por exemplo, «Procurou a
moeda, sentou-se num degrau a comer, melhor, a devorar» (p.17); «Ela, encostadinha a melhor, a devorar» (p.17); «Ela, encostadinha a melhor uma árvore de um jardim qualquer, e, na sua frente, o pelotão de execução, melhor, o melhor, o melhor fuzilador» (p.18); «Nessa noite foi por entre risos e conversas decerto cheias de inte-resse para a maioria, que a ideia, melhor, o esboço da ideia, melhor, o esboço da ideia, melhor ou talvez o seu vislumbre, chegou» (p.21); «Entretanto sorria atenta e interessadamente aos olhos um pouco estrá-bicos de alguém que falava consigo, melhor, que dizia um monólogo em sua intenção melhor, que dizia um monólogo em sua intenção melhor (…)»(p.21)12.
Salientando que as transcrições realizadas não esgotam obviamente os exemplos de ocorrências reformulativas, parece-nos que a sua visível frequência não nos deixa considerá-las como meramente ocasionais ou inconsequentes. Pelo contrário, o registo desses casos e a sua apreciação permite-nos, desde logo, considerar este tipo de estra-tégia linguística e discursiva como uma das marcas mais importantes do estilo de Maria Judite de Carvalho, associada ao uso igualmente insistente de modalizadores como, por exemplo, talvez e talvez e talvez com certeza13.
Se, por um lado, e como dissemos, os procedimentos reformulativos favorecem a alternância dos pontos de vista, atestando assim a restrição de campo implicada por um
11 O sublinhado das partículas que operam as reformulações é da nossa responsabilidade.
12 Nota-se que, nos casos apresentados, é quase sempre a palavra melhor que marca a reformulação, mas é
possível encontrar outros marcadores como, por exemplo, ou. Assim, os actos reformulativos correspondem à estrutura tripartida «énoncé-source/marqueur/énoncé reformulateur» na proposta de Thomas Kotschi, «Pro-cédés d’évaluation et de commentaire métadiscursifs comme stratégies interactives», Cahiers de Linguisti que Française, 7, 1986, p. 213. Noutros casos, a reformulação não recorre a um marcador específi co, apare cendo apenas uma vírgula a separar os segmentos. Joaquim Fonseca apresenta algumas expressões ou fórmulas que introduzem ou que operam reformulações: ou, por outras palavras, ou seja, quer dizer, melhor dizendo, em suma, resumindo, numa palavra, não é (bem) isso que quero dizer, não quero com isto dizer, não se conclua que… Saliente-se que esta exemplifi cação não é, de todo, defi nitiva ou exaustiva, dado que a língua oferece múltiplas possibilidades de concretizar procedimentos reformulativos. Assim, também não podemos reconhecer um reformulador com base na sua identifi cação gramatical, uma vez que é a sua utilização concreta em situações específi cas que o defi ne. (Joaquim Fonseca, «As articulações discurso-metadiscurso e a sua exploração na didáctica do português como língua estrangeira», in Linguística e Texto/Discurso, Teoria, descrição, aplicação, Lisboa, ICALP, 1992, p.308-309).
13 O itálico é da nossa responsabilidade. Sobre a noção de discurso modalizante e de modalizadores,
con-sulte-se Carlos Reis e Ana Cristina Macário Lopes, Dicionário de Narratologia, p.350. Nessa mesma página, pode ler-se: «Este tipo de discurso presta-se obviamente à expressão de um conhecimento limitado e, conjugado com a focalização interna, confere uma certa verosimilhança à representação subjectiva de uma personagem (...)».
14 Enrique Anderson Ambert, dizendo que o discurso indirecto livre tanto apresenta as palavras pronunciadas
por uma personagem como apresenta os seus pensamentos não verbalizados, prefere, para esta última situação, falar de monólogo interior narrado. (Enrique Anderson Imbert, Teoría y técnica del cuento, p. 222).
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procedimento focalizador específi co e sustentando várias formas de discurso, entre as quais o discurso indirecto livre14, por outro lado pretendem sempre colmatar ou resolver
problemas de imprecisão conteudística ou formal: ou a informação dada precisa de ser rectifi cada ou a forma linguística utilizada para a sua transmissão, não se mos trando adequada e efi caz, obriga a um reajuste.
De qualquer forma, a reformulação pressupõe sempre um comprometimento do sujeito face à justeza ou à clareza da informação ou do enunciado, mostrando-se assim consciente da sua intervenção e negando, pela tentativa de actualização e fi dedignidade, qualquer laivo de alienação.
Procedimentos desta natureza são característicos não da escrita mas sim da orali-dade, o que certamente confi rma a captação da realidade através das lembranças e das refl exões da personagem que, como se pensasse em voz alta ou falasse sozinha, nos faz chegar a informação narrativa assim fi ltrada. A consideração desta possível co-loquialidade encontra apoio em algumas estruturas que são, claramente, mais usuais no discurso oral: veja-se a ocorrência de algumas expressões idiomáticas como, por exem-plo, «se agarrou com unhas e dentes» (p.17) e «adormeceu como uma pedra» (p.16) e o emprego de outras expressões como «deitou a correr pela rua» (p.17) e «fi cou por assim dizer» (p.21).
Também o truncamento frásico, frequente na oralidade, não é normalmente marca do registo escrito. Todavia, atente-se no exemplo «Porque o que lhe caíra aos pés dizia que a rotina, pois claro, mas a rotina do marido» (p.22), ilustrando, pela presença do mo-dalizador e pela construção sintáctica, um procedimento normalmente conversacional. Retomando uma ideia lançada na parte inicial deste trabalho, que outra pretensão não tem senão a de partilhar uma leitura e algumas ideias sobre Maria Judite de Carva-lho, parece-nos que a reformulação, sendo um processo que expande ou dilata um segmento linguístico anterior, pode de alguma forma contrariar a ideia de que o estilo da autora se identifi ca linearmente com a economia e a contenção, não só narrativa, mas também verbal15. Tal facto, no entanto, não interfere com o rigor e com a incisividade
que as suas palavras perseguem, antes pelo contrário.
As constantes reformulações, pela sua recorrência e pela sua especifi cidade estrutural, conferem, do nosso ponto de vista, um certo ritmo ao texto, um ritmo de fl uxo e refl uxo que mimeticamente representa, ou poderá representar, o das águas inquietas da memó-ria. Esta estratégia de manejo temporal, ao mesmo tempo que explora as virtualidades recônditas da memória, «insinua uma visão lírica, melancólica, da vida, que tem raízes na tradição literária portuguesa»16.
Se pensarmos que ao fatalismo (talvez o roubo dos objectos, sobretudo o do isqueiro em Seta Despedida, possa consubstanciar a necessidade de contrariar o estabelecido, como se tal atitude desafi asse o lugar e o tempo das coisas, como se a personagem pudesse, assim e por fi m, ser senhora de um qualquer destino; afi nal, é esse o desígnio dos deuses e ela, como Ísis, que também roubou a Rá o nome secreto do deus supremo, dos deuses e ela, como Ísis, que também roubou a Rá o nome secreto do deus supremo,
15 Jacinto do Prado Coelho, «Maria Judite: As Palavras Poupadas» in Ao contrário de Penélope, Lisboa, Livraria
Bertrand, 1976, p. 278: «O estilo de Maria Judite não apresenta um sinal de rebusca ou uma palavra a mais. Pelo contrário: sugere, penetra, defi ne, magoa, pela estrita economia das palavras, por uma admirável contenção, o mesmo pudor que singularizam a confi ssão de Graça».
17 Consulte-se Ricardo Gullon, La novela lirica, Ediciones Cátedra, 1984. Na página 11, o autor afi rma: «El fl ujo
de la mente importa más que la información reportada, y cuanto más fi elmente se observe aquél menos necesario parece el reportaje en sí».
18 Maurice-Jean Lefebve, Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa, Coimbra, Almedina, 1980, p.
153-pode manifestar o seu 153-poder alterando a ordem das coisas) se associa o simbolismo poético; se pensarmos que à brevidade se associa a subjectividade; se pensarmos que as imagens e as metáforas se associam a um certo tom confessional, reconhecemos que de todos estes aspectos emerge uma indesmentível tonalidade lírica17.
Se pensarmos, sobretudo, que «tanto a poesia como a narrativa apresentam as mesmas características de materialização e de valor conotativo do discurso e visam o mesmo fenómeno de presentifi cação» e que talvez seja «legítimo identifi car a presenti-fi cação com o sentimento “poético”(trata-se sempre, com efeito, de pôr em evidência a Realidade estética, de dar-no-la a viver nos mais diversos objectos e representações)»18,
talvez também cheguemos à conclusão de que as fronteiras que supostamente suportam a distinção entre a poesia e a prosa não têm razão de ser e que a tónica deve antes colocar-se nas especifi cidades dos respectivos discursos.
Resumo
A escrita de Maria Judite de Carvalho, revelando a solidão humana, sobretudo a feminina, é fértil em procedimentos linguísticos reformulativos cujos valores merecem especial atenção.