AGVTE.: BANCO BRADESCO S/A
AGVDO.: INDÚSTRIA DE MÓVEIS MOVELAR LTDA.
RELATOR: O SR. DESEMBARGADOR FÁBIO CLEM DE OLIVEIRA
R E L A T Ó R I O
O SR. DESEMBARGADOR FÁBIO CLEM DE OLIVEIRA (RELA-
TOR):-Cuida-se de agravo de instrumento interposto pelo Banco Bradesco S/A contra decisão proferida pela MMª Juíza da 2ª Vara Cível e Comercial da Comarca de Linhares, que, em ação de recuperação judicial movida pela Indústria de Móveis Movelar Ltda., antecipou os efeitos da tutela pre-tendida, determinando ao agravante que, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, depositasse na conta bancária in-dicada pela agravada o valor de R$ 1.115.594,20 (um milhão cento e quinze mil quinhentos e noventa e quatro reais e vinte centavos) correspondente a créditos supostamente re-cebidos de forma indevida, sob pena de multa diária no va-lor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Aduz que a decisão agravada viola o disposto no § 3º do artigo 49 da lei 11.101/05, pois determinou a resti-tuição de valores oriundos de títulos que lhe foram cedi-dos fiduciariamente pela agravada como forma de garantir o pagamento de crédito rotativo a ela disponibilizado, títu-los que não se sujeitam aos efeitos da recuperação judici-al.
Alega, ainda, que a decisão é suscetível de lhe causar dano irreparável, pois, estando a agravada em pro-cesso de recuperação judicial, não haverá possibilidade de retomada do valor depositado caso comprovados seus argu-mentos ao final.
Afirma, também, que a multa fixada para a hipótese de descumprimento da decisão carece de fundamentação e ra-zoabilidade.
Requer a reforma da decisão agravada com a exclu-são de seus créditos dos efeitos da recuperação judicial e, subsidiariamente, a redução da multa fixada.
Decisão deferindo o pedido de efeito suspensivo às fls. 312-314.
Em contrarrazões (fls. 319-339) a agravada susten-ta que os créditos estão sujeitos a recuperação judicial, pugnando pela manutenção da decisão da MMª Juíza de 1º Grau.
Informações do juízo de origem às fls. 371-376. É o relatório.
Inclua-se em pauta.
Vitória-ES, 11 de março de 2010.
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V O T O
Senhor Presidente. Consoante prevê a Lei Nº 11.101/2005, via de regra, sujeitam-se à recuperação judi-cial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos (art. 49, caput).
Destaca-se que essa lei tem como finalidade prin-cipal reestruturar a situação financeira do empresário ou da sociedade, resguardando a continuidade de suas ativida-des, como preconizam os princípios da preservação e da função social da empresa.
Nesse sentido leciona Sergio Campinho:
“A recuperação judicial, segundo perfil que lhe reservou o ordenamento, apresenta-se como um somatório de providências de or-dem econômico-financeiras, econômico-produ-tivas, organizacionais e jurídicas, por meio das quais a capacidade produtiva de uma empresa possa, da melhor forma, ser
reestruturada e aproveitada, alcançando uma rentabilidade auto-sustentável, superando, com isso, a situação de crise econômico-fi-nanceira em que se encontra seu titular – o empresário -, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego e a composição dos interesses dos credores (cf. art. 47).” (Falência e Recuperação de Empresa” 3ª edi-ção revista e atualizada conforme a Lei n° 11.382/2006, Ed. Renovar, Rio de Janeiro -São Paulo - Recife, 2008, p. 10)
Por tal razão, somente de forma excepcional, de-terminados credores, expressamente previstos na legisla-ção, não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judici-al.
São duas as exceções previstas. A primeira é a do banco que antecipou ao exportador recursos monetários com base em contrato de câmbio (art. 86, inciso II). A segunda é a do proprietário fiduciário, do arrendador mercantil e do proprietário vendedor, promitente vendedor ou vendedor com reserva de domínio, quando o respectivo contrato (ali-enação fiduciária em garantia, leasing, venda e compra, compromisso de compra e venda e compra ou venda com reser-va de domínio) consta cláusula de irrevogabilidade ou ir-retratabilidade (art. 49, § 3º).
Na análise da segunda exceção, prevista no § 3° do art. 49 da Lei de Recuperação Judicial, deve-se considerar que a propriedade fiduciária de bens ali tratada é aquela prevista no Código Civil, pois, segundo as regras de her-menêutica jurídica, as normas que trazem exceção à regra geral são interpretadas restritivamente.
A propriedade fiduciária é direito real de garan-tia que tem como objetivo garantir uma obrigação assumida pelo alienante, em prol do adquirente, decorrente de um contrato de alienação fiduciária.
O Código Civil define o instituto em seu artigo 1.361 ao dispor que “considera-se fiduciária a proprieda-de resolúvel proprieda-de coisa móvel infungível que o proprieda-devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”
No entanto, a propriedade fiduciária é tratada ainda em leis extravagantes. Sobre o tema e sob a coorde-nação do Ministro Cezar Peluso, a obra “Código Civil co-mentado: doutrina e jurisprudência: Lei n° 10.406, de 10.01.2002”, 2ª edição, Ed. Manole, Barueri - SP, 2008, p. 1364, traz a seguinte lição:
“Pode-se afirmar a atual coexistên-cia de triplo regime jurídico da pro-priedade fiduciária: o Código Civil disciplina a propriedade fiduciária sobre coisas móveis infungíveis, quan-do o crequan-dor não for instituição finan-ceira; o art. 66-B da Lei nº 4.728/65, acrescentado pela Lei nº 10.931/2004, e o Decreto-lei nº 911/69 disciplinam a propriedade fiduciária sobre coisas móveis fungíveis e infungíveis quando o credor fiduciário for instituição financeira; a Lei 9.514/97, também mo-dificada pela Lei 10.931/2004, disci-plina a propriedade fiduciária sobre bens imóveis, quando os protagonis-tas forem ou não instituições finan-ceiras (...)”
A cessão fiduciária de títulos de crédito está prevista no § 3º do art. 66-B, da Lei 4.728/65, com a re-dação dada pela Lei 10.931/2004.
A partir da vigência do citado dispositivo, nosso ordenamento jurídico passou a prever espécies distintas de propriedade fiduciária: 1) a alienação fiduciária de coisa
móvel ou imóvel, e 2) a cessão fiduciária de coisa móvel ou títulos de crédito.
Ressalte-se que se não fossem espécies distintas, bastaria ao legislador tratar ambas simplesmente como ali-enação fiduciária.
Todavia, não as igualou e nem poderia, pois a dis-tinção decorre do fato de que apenas na alienação fiduciá-ria o credor assume a condição de proprietário fiduciário da coisa.
O próprio texto da legislação especial faz essa diferenciação ao dispor que: “é admitida a alienação fidu-ciária de coisa fungível e a cessão fidufidu-ciária de direitos sobre coisas móveis, bem como títulos de crédito [...]”.
Assim, tenho que para a aplicação do art. 66-B da Lei n° 4.728/1965, é imperioso que haja menção expressa, o que não ocorre na Lei de Recuperação Judicial.
Vê-se pela análise do conjunto probatório acostado nos autos que as partes firmaram um contrato de abertura de crédito rotativo para financiamento ou aquisição de bens ou serviços (fls. 61-67), garantido por “Instrumento Particular de Constituição de Garantia - Cessão Fiduciária” fls. 68-73).
Essa cessão fiduciária que garante o contrato de abertura de crédito, prevista no § 3º do artigo 66-B, da Lei 4.728/65, transfere ao credor fiduciário a posse dos títulos, conferindo-lhe o direito de receber dos devedores os créditos cedidos e utilizá-los para garantir o adimple-mento da dívida instituída com o cedente, em caso de ina-dimplência.
Hipótese, portanto, que não se assemelha à exceção prevista na lei de recuperação judicial no tocante ao prietário fiduciário. Nesse caso, o que se pretende é pro-teger o credor que aliena fiduciariamente determinado bem móvel ou imóvel para a empresa, circunstância oposta ao que ocorre nos autos, já que aqui a empresa é que cedeu fiduciariamente os títulos ao banco.
Ressalte-se, ainda, que ao elencar as exceções, o § 3º do artigo 49 da Lei 11.101/05, em nenhum momento menci-ona a expressão “títulos de crédito”.
Além disso, o que se percebe da parte final do ci-tado dispositivo legal é que o legislador está se referin-do a bens móveis materiais, pois faz alusão expressa à im-possibilidade de venda ou retirada dos bens do estabeleci-mento da empresa no período de suspensão previsto no § 4º do art. 6º, circunstância que não se aplica aos títulos de crédito, pois os créditos em geral são bens móveis imate-riais.
Visando evitar quaisquer dúvidas nesse sentido, o Projeto de Lei nº 4.586/2009, que tramita no Congresso Na-cional, propõe a alteração do art. 49, caput, da Lei 11.101/2005, com a seguinte redação: “Estão sujeitos à re-cuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive aqueles garantidos por cessão fiduciária de títulos de crédito, ainda que não vencidos. ” (grifei).
Dessa forma, o banco agravante não é o proprietá-rio fiduciáproprietá-rio mencionado na exceção do artigo 49, § 3°, da Lei n° 11.101/2005 e, portanto, seus créditos estão su-jeitos aos efeitos da recuperação.
Nesse sentido já decidiu a Colenda Terceira Câmara Cível deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Espí-rito Santo.
“AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 030089000142 AGRAVANTE: BANCO ABC S/A AGRAVADA: INDÚS-TRIA DE MÓVEIS MOVELAR LTDA. RELATOR: O EXMº SR. DES. JORGE GOES COUTINHO EMENTA: PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA DE TÍTULOS DE CRÉDI-TO. SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JU-DICIAL. NÃO INCIDÊNCIA DA EXCEÇÃO PREVISTA NA LEGISLAÇÃO FALIMENTAR.
1. A redação do artigo 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005 estatui, claramente, que os créditos daqueles em posição de
proprietá-rio fiduciáproprietá-rio de bem móvel e imóvel não se submetem aos efeitos da recuperação judici-al.
2. Assim como o próprio agravante in-siste em afirmar em suas razões recursais, o mesmo se revela como proprietário fiduci-ário de títulos de crédito que, por óbvio, não se confundem com a classificação de bens móveis ou imóveis.
3. Se a legislação admite a cessão fi-duciária tanto de coisa móvel quanto, como no caso em apreço, de títulos de crédito, deveria esta última hipótese também estar prevista, de modo expresso pela lei especí-fica, como excluída dos efeitos da recupe-ração judicial, o que não é o caso.
Vistos, relatados e discutidos os pre-sentes autos, acorda a Egrégia Terceira Câ-mara Cível, em conformidade com a ata e no-tas taquigráficas respectivas, à unanimida-de, negar provimento ao recurso.”
(TJES, Classe: Agravo de Instrumento, 30089000142, Relator : JORGE GÓES COUTINHO, Órgão julgador: TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 24/06/2008, Data da Publica-ção no Diário: 07/07/2008)
Ademais, ressalva-se que assegurar a continuidade da atividade econômica da empresa é medida imprescindível à sua recuperação. Na hipótese dos autos, inequivocamente, a preservação do capital de giro da sociedade limitada deve ser assegurado, a fim de se atingir o objetivo prin-cipal que é a superação da crise econômico-financeira, sendo esta a finalidade preponderante da Lei de recupera-ção judicial.
Vale consignar, ainda, que conforme informação da MMª Juíza de 1º Grau às fls. 371-376, o plano de
recupera-ção foi aprovado pela Assembléia de Credores. Logo, as disposições nele constantes é que deverão ser observadas pelos credores para a satisfação de seus créditos.
No tocante à fixação de multa diária pelo descum-primento da ordem judicial, o legislador não estabeleceu qualquer teto. Não obstante, a jurisprudência de nossos tribunais tem se ocupado em fixar-lhe a justa medida, a fim de que não seja tão baixa, que se esvazie sua função coercitiva, ou tão alta, que favoreça o enriquecimento sem causa.
A multa não pode chegar a se tornar mais desejável ao credor do que a própria satisfação da prestação princi-pal, ao menos não a ponto de ensejar o enriquecimento sem causa.
Deste juízo cito precedentes.
“PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE DECI-SÃO JUDICIAL. EXCESSO. REDUÇÃO.
A multa pelo descumprimento de decisão judicial não pode ensejar o enriquecimento sem causa da parte a quem favorece, como no caso, devendo ser reduzida a patamares ra-zoáveis. Recurso especial parcialmente co-nhecido e, nessa extensão, provido."
(REsp 793491/RN, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4ª Turma, DJ 06.11.2006)
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CLÁUSULA PE-NAL E ASTREINTES. DISTINÇÃO. ART. 920, CC/1916. APLICAÇÃO NA EXECUÇÃO DE SENTENÇA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. RECURSO DESACOLHIDO.
I - Na linha da jurisprudência desta Corte, não se confunde a cláusula penal, instituto de direito material vinculado a um negócio jurídico, em que há acordo de
vontades, com as astreintes, instrumento de direito processual, somente cabíveis na execução, que visa a compelir o devedor ao cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer e que não correspondem a qualquer indenização por inadimplemento.
II - A regra da vedação do enriqueci-mento sem causa permite a aplicação do art. 920, CC/1916, nos embargos à execução de sentença transitada em julgado, para limi-tar a multa decendial ao montante da obri-gação principal, sobretudo se o título exe-qüendo não mencionou o período de incidên-cia da multa.
III - Sendo o processo "instrumento ético de efetivação das garantias
constitucionais" e instrumento de que se utiliza o Estado para fazer a entrega da prestação jurisdicional, não se pode utili-zá-lo com fins de obter-se pretensão mani-festamente abusiva, a enriquecer indevida-mente o postulante."
(REsp 422966/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, DJ 01.03.2004)
No caso, considerando a natureza da demanda, a ne-cessidade de se imprimir agilidade e efetividade ao plano de recuperação da agravada, já homologado no Juízo de ori-gem, e a capacidade financeira do agravante, tenho que o valor arbitrado, R$ 10.000,00 (dez mil reais), nesse mo-mento, não transpõe os limites da razoabilidade.
Vale consignar que vindo a se tornar desproporcio-nal à fidesproporcio-nalidade a que se destina, a multa poderá ser re-duzida a patamares razoáveis.
Ante o exposto, conheço do recurso, mas lhe nego provimento.
É como voto.
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V O T O S
O SR. DESEMBARGADOR CARLOS SIMÕES FONSECA:-Acompanho o voto do Eminente Relator.
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O SR. DESEMBARGADOR HELIMAR PINTO:-Voto no mesmo sentido.
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D E C I S Ã O
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: à unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator.
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