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Foucault e a Resistência: da Biopolítica à Estética da Existência

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Academic year: 2021

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Foucault and the resistance: from biopolitics to the aesthetics of existence Túlio Pascal1

Resumo: Nos anos 1980, com um recuo histórico até a Antiguidade, Foucault nos apresenta um sujeito que se forma de maneira mais autônoma a partir de práticas de liberação encontradas no cuidado de si, uma técnica de vida desenvolvida no interior da estética da existência, que será aqui apresentada como uma resistência e uma maneira de limitar o poder. Em nossa perspectiva o que permite apresentar a estética da resistência, retomada por Foucault dos gregos antigos, como uma resistência a um poder que nos é contemporâneo é a noção desenvolvida por ele de contra-conduta. A contra-conduta emerge durante a crise da tecnologia do poder pastoral através das ordens mendicantes e da reforma protestante, e consiste numa procura por outra maneira de se conduzir, reclama o direito do indivíduo de conduzir a si mesmo ou de ser conduzido por outras autoridades e por outras regras. Mesmo que os movimentos anti-pastorais não tenham se apropriado da estética da existência grega podemos apresentar a estética da existência reatualizada por Foucault como uma contra-conduta contemporânea. Assim, a contra-conduta nos serve como uma exemplificação do funcionamento da estética da existência enquanto resistência. Ora, a estética da existência procura criar um estilo de vida, uma conduta que seja bela e contrária ao modo de vida imposto pela biopolítica. É, portanto, no confronto com a maneira da biopolítica de conduzir a população que a estética da existência enquanto resistência assume essa forma de contra-conduta.

Palavras-chave: Resistência. Poder. Estética da existência.

Abstract: In the 1980's, with a historical return to the Antiquity, Foucault presents us a subject which is formed in a more autonomous manner from the liberation practice found in the self-care, a life technique developed in the inner aesthetics of existence, which will be presented here as a resistance in a way of limitating the power. In our perspective what allows to present the aesthetics of resistance, restored by Foulcault from the ancient greeks, as a resistance to a power which is contemporary to us, is the notion of counter-conduct developed by him. The counter-conduct emerges during the technology crisis of the pastoral power through the mendicant orders and the protestant reformation, and consists in a search for an other manner of self-guidance, demanding the individual's right to self-conduct or be conducted by other authorities and by other rules. Even if the anti-pastoral movements didn't make appropriation of the greeks' aesthetics of existence, we can present the aesthetics of existence revaluated by Foucault as a contemporary counter-conduct. Thus, the counter-conduct serves us as an exemplification of the aesthetics of existence function as resistance. Then, the aesthetics of resistance aims to create a life style, a conduct that is beautiful and contrary to the way of life imposed by biopolitics. It is, therefore, in the confront with the biopolitics' manner of conducting the population that the aesthetics of existence as resistance assumes this way of counter-conduct.

Keywords: Resistance. Power. Aesthetics of existence.

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1. A possibilidade da resistência em Michel Foucault

Michel Foucault recusa uma análise jurídica e econômica das relações de poder. A compreensão jurídica não satisfaz o filósofo porque o poder em termos de direito se apresenta apenas como repressão; o poder será entendido apenas em termos de uma lei que diz não. O poder assume um caráter estritamente negativo, nesses termos o “fundamental seria a força da proibição”.

De igual modo é recusado um poder cujo modelo é o econômico. Na análise empreendida pelo filósofo - uma análise não econômica do poder -: “o poder não se dá, nem se troca” (FOUCAULT, 2010, p.15). O efeito dessa conclusão é que o poder não seria mais uma mercadoria e nem mesmo um bem, ninguém estaria na posição de possuir o poder frente a quem não o possui. Nessa nova configuração, o poder é “analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem” (FOUCAULT, 2014a, p. 284).

Ao tratar da positividade do poder Foucault consegue desvinculá-lo de uma análise econômica e jurídica. Para ele, é fundamental a ideia de que o surgimento da resistência é intrínseca às próprias relações de poder. Para Foucault, a resistência e o poder são fenômenos contemporâneos. Sinal disso é que o poder se exerce sobre sujeitos ativos e livres. A liberdade é a condição para a existência do poder. A resistência é coextensiva ao poder, e, por isso, similar a ele. Para “funcionar”, assim como o poder, a resistência precisa ser “tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente”(ibidem, 2014a, p. 360).

Afastar o poder de uma noção proibitiva ou restritiva deixa claro o esforço do filósofo em defender a possibilidade da resistência: “Não é possível me atribuir à ideia de que o poder é um sistema de dominação que controla tudo e que não deixa nenhum espaço para a liberdade” (FOUCAULT, 2004, 277). Para o filósofo, a possibilidade de resistir faz parte do jogo agonístico das relações de poder, por isso, “jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa”(Ibidem, p. 360).

O Ocidente foi palco, nos séculos XVI e XVII, de uma resistência forjada no interior das instituições religiosas. As insurgências desse período, denominadas por Foucault de contra-condutas, colocaram em crise a tecnologia do poder da época, a

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saber, o poder pastoral. Esse tipo de poder é estruturante para a governamentalidade2 contemporânea. Foucault ao escavar a história dessa arte de governar religiosa percebe que houve um entrecruzamento entre a pastoral das almas e o governo político dos homens (FOUCAULT, 2008, p. 204). Dada essa familiaridade entre os dois tipos de poder, Foucault (Ibidem, p. 243) considera o pastorado o prelúdio da governamentalidade. Essa herança política3 faz das contra- condutas uma lupa importante para compreendermos as insurgências aos excessos poder na contemporaneidade, pois a governamentalização do Estado coloca em funcionamento uma biopolítica da população que terá por ocupação a condução das condutas e o governo da vida. Com efeito, as lutas que compõe a resistência à biopolítica reivindicará outro modelo de conduta, exigirá a condução por outras autoridades, por outras leis, por outros meios.

O poder pastoral é uma arte de governar os homens. Uma técnica de dirigir, levar, guiar, controlar e manipular os homens. Trata-se de uma arte que “tem função de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo da sua existência” (FOUCAULT, 2008, p. 219). Essa arcaica arte de governar, e que nos é absolutamente contemporânea devida sua continuidade na história da política, lança mão de diversas técnicas para conduzir a alma e a vida dos homens. A direção de consciência, a confissão, são alguns dos meios utilizados para extrair a verdade interior dos homens para, enfim, conduzi-los e assegurar sua salvação.

Diante de todo esse aparato do poder pastoral as ordens mendicantes e a reforma protestante passam a compor os filões da dissidência. Nos séculos XVI e XVII as maiores lutas giram em torno da tecnologia do poder pastoral, contudo os movimentos anti- pastorais não procuravam extingui-lo inteiramente, antes o objetivo era a recusa a certo tipo de condução, essa é a origem do termo contra-conduta. A palavra abriga uma precisão terminológica, pois a recusa em aceitar o poder pastoral estava conectada com a tentativa de “ser conduzido de outro modo, por outros homens, na direção de outros

2 Governamentalidade e biopolítica são conceitos que surgem num mesmo tempo cronológico na obra

de Foucault. A governamentalidade é um conjunto de técnicas de governo que tem por alvo a população. A biopolítica poderia ser compreendida como o estado atual da governamentalidade, ou como seu atual modelo de política. A biopolítica realiza um ajustamento entre técnicas disciplinares e técnicas de normalização, objetivando a gestão de fenômenos ligados à vida.

3 Sobre essa herança diz Foucault: “O estado moderno nasce, a meu ver, quando a governamentalidade

se torna efetivamente uma prática política calculada e refletida. A pastoral cristã parece-me ser o pano de fundo desse processo” (Ibidem, p. 219).

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objetivos que não o proposto pela governamentalidade oficial, aparente e visível da sociedade” (FOUCAULT, 2008, p. 262).

Se a contra-conduta enquanto resistência emerge no interior da crise do pastorado iniciada no século XVI, no limiar da modernidade ela irá gravitar em torno da vida. Para Foucault, um dos fenômenos essenciais do século XIX foi a “assunção da vida pelo poder”. A tecnologia do poder passa a estar centrada sobre a vida, o soberano acolhe como tarefa “melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde” (FOUCAULT, 2014a, p.425). A arte racional de governar da biopolítica, cujo quadro de inteligibilidade é o liberalismo, adota uma noção de governo cujo “mecanismo e procedimento [é] destinado a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens”(FOUCAULT, 2014b, p. 13); modelo de governo que, como vimos, pode ser encontrada ao longo da história do poder pastoral. A condução dos homens como objeto do governo da vida faz parte dessa herança pastoral. É a partir desse terreno histórico que as resistências contemporâneas irão se desenvolver na forma de uma contra-conduta.

A partir do século XVIII a biopolítica considerou a saúde das populações, a morbidade, o trabalho, o controle do tempo, a urbanização das cidades para evitar miasmas, o discurso sobre a sexualidade, etc, como um problema político, instalando assim um campo de interferência na vida humana. A população a partir do século XVII será considerada um problema político, fenômeno que levou Foucault a investigar “a racionalização da gestão do indivíduo”, isto é, como, de que modo, e através de quais procedimentos racionais a vida, a população, o prazer, o corpo, a conduta, passaram a ser objeto da política. Esse percurso filosófico de Foucault irá contribuir para definir uma das tarefas atribuídas por ele à filosofia, qual seja: “questionar todos os fenômenos de dominação em qualquer nível, política, econômica, sexual, institucional” (FOUCAULT, 2004, p. 287). É a partir de uma análise histórica que procuramos perscrutar a possibilidade de um novo tipo de conduta que não esteja submetida ao controle do corpo e ao governo da vida, torna-se necessário examinar a possibilidade de uma conduta que não esteja atrelada à sujeição do poder e que nos conduza a uma vida filosófica e bela. Foucault percebeu na estética da existência uma alternativa às injunções do biopoder, mesmo que essa seja uma discreta esperança. Se a estética da existência evoca um modo de vida contrário ao estilo de vida imposto pela biopolítica devemos nos perguntar como é possível fazer do estilo de vida um grande problema filosófico, como é possível fazer da estética da existência um modelo de resistência?

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2. Foucault e a ética antiga: caminhos para a resistência

Embora haja uma guinada no pensamento de Foucault, na “última fase” de sua obra para a ética, não podemos esperar dele um modelo de ética. A ética aqui é entendida como a prática da liberdade, da liberdade de se a “autoformar”, de se superar, de dominar seus apetites, a ética como um éthos, um éthos que se forma com um trabalho de si sobre si mesmo (FOUCAULT, 2004, p. 270). É em sua genealogia do poder que Foucault se ocupa da constituição de um sujeito passivo – período em que estudou o asilo, as prisões, os hospitais. Todavia, em sua genealogia da ética, trabalho desenvolvido nos anos 80’, o sujeito assume outra natureza. Não é mais um sujeito submetido aos excessos do poder e sim um sujeito capaz de constituir a si mesmo de maneira ativa (Ibidem, p. 276).

A ética4 segundo Foucault se vincula a uma relação do indivíduo consigo mesmo, não reduzindo a relação do indivíduo a um conjunto de prescrições, a um conjunto de normas e de leis restritivas. Essa orientação ética dá ênfase às relações consigo, aos exercícios e técnicas que permitem ao individuo “transformar seu próprio modo de ser” (Ibidem, p. 38), modificar sua existência e conferir a ela uma forma bela. A ética, para Foucault, como assinala Vera Portocarrero, “é fundada numa estética da existência, numa arte de viver, cuja finalidade é dar ao governo da própria vida a forma mais bela possível” (PORTOCARRERO, 2011, p. 425).

A estética da existência, recuperada da Antiguidade por Foucault, é delineada como:

[...] práticas refletidas e voluntárias através da quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e que responda a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 2014d, p. 16).

A estética da existência é uma tékhne toû bíou - arte de viver, cujo objetivo de sua tékhne é produzir uma vida boa; uma vida que seja bela (FOUCAULT, 2010, p. 380). Para que o sujeito possa se transformar nessa obra bela, para que ele possa finalmente se modificar ao ponto de determinar sua própria condução, a estética da

4 Foucault propõe uma distinção entre moral e ética. A ética, segundo Foucault, passa por uma relação do

invíduo consigo mesmo, que desemboca numa relação com o outro e com a natureza. Moral é para ele “um conjunto de valores e regras de ação proposto aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos e diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas etc”(FOUCAULT, 2014d, p.32).

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existência absorve o princípio socrático do cuidado de si. Através do cuidado de si Foucault descreveu certas técnicas da existência, onde o sujeito constrói uma relação consigo e dá forma à sua existência. Ao atribuir forma à própria vida, constituir um bíos, o cuidado de si é alçado no cerne das artes da existência. O cuidado de si é considerado por Foucault como “uma atitude, uma maneira de se comportar (que) impregnou formas de viver” (FOUCAULT, 1985, p.50). Formas de viver largamente experimentadas nas escolas filosóficas do helenismo, por meio de uma relação consigo mesmo através de uma conversão ao Eu, que tem como finalidade constituir-se de maneira livre.

Penso que o sujeito se constitui através das práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação, de liberdade, como na Antiguidade – a partir, obviamente de um certo número de regras de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural. (FOUCAULT, 2004, p.291. Grifo nosso).

Estudar o cuidado de si exigiu de Foucault um retorno aos gregos e a recuperação de sua ética. Esse recuo histórico-filosófico não é nostálgico ou um movimento do pensamento que pretende restaurar uma época de “ouro” perdida. Diz Foucault: “seria um contrassenso fundamentar a moral moderna na moral antiga” (Ibidem, p. 263). Foucault não procurou fazer uma transposição da cultura de si grega para a modernidade; o que ele faz é de outra natureza:

Foucault constrói novas pontes para o passado, revive e renova a tradição, mostra-nos antigas experiências de autonomia, em nosso próprio passado, construídas a partir da liberdade, rompidas, perdidas, silenciadas. (RAGO, 2015, p.263)

Foucault não pretendeu resolver problemas contemporâneos através das respostas que os gregos deram aos seus próprios problemas. O que motiva o seu retorno à Antiguidade é o fato de que a estética da existência, que surge no interior da cultura de si, não tenha desaparecido ou sido encoberta. “Encontramos diversos elementos que foram simplesmente integrados, deslocados, reutilizados no cristianismo” (FOUCAULT, 2004, p. 324). Entretanto a estética da existência não perdura no pensamento ocidental apenas em decorrência da apropriação realizada pelo cristianismo. Outros pensadores se esforçaram em mostrar que a filosofia antiga ainda permanece viva. Dentre eles o mais proeminente é o historiador e filósofo Pierre Hadot, contemporâneo de Foucault. Hadot é contundente em sustentar essa

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continuidade histórica: “a ideia antiga da filosofia como modo de vida, como exercício da sabedoria, como esforço na direção da tomada de consciência vivaz da totalidade, mantém para mim um valor sempre atual” (HADOT, 2014, p. 281). Pierre Hadot também reconhece que não estava sozinho ao ter a compreensão de que a filosofia antiga permanece relevante para a atualidade.

Considero como um sinal dos tempos o fato, aos meus olhos inesperado e desconcertante, de que neste final de século XX Foucault, eu próprio e certamente muitos outros ao mesmo tempo que nós, no final de itinerários totalmente diferentes, tenhamos nos encontrado nessa vivaz redescoberta da experiência antiga. (ibidem, idem p. 281).

A estética da existência toma a vida como objeto central de sua atividade filosófica. Essa antiga ideia não é estranha, para Foucault. Na verdade, exercia um fascínio sobre ele:

A ideia do bíos como um material para uma peça de arte estética é algo que me fascina. Também a ideia de que a ética pode ser uma estrutura de existência muito forte, sem nenhuma relação com o jurídico per se, com um sistema autoritário, com uma estrutura disciplinar. Tudo isso é muito interessante. (FOUCAULT, 2004, p. 304)

Nesse recuo à Antiguidade Foucault percebe que a re-atualização dessa cultura de si, que procura transformar a vida numa obra de arte, fez da vida um exercício de resistência face ao biopoder. O cuidado de si derivado da estética da existência é, para Foucault, “efetivamente uma maneira de controlá-lo e limitá-lo” (FOUCAULT, 2004, p. 272). Todavia, diz Foucault: “de forma alguma faço isso para dizer: ‘infelizmente esquecemos o cuidado de si; pois bem, o cuidado de si é a chave para tudo’”(ibidem, p. 280).

É na tensão entre biopolítica e estética da existência que a vida emerge como o principal campo de disputa ético-política. Surpreendentemente, a vida “como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlá-la. Foi a vida, muito mais que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas” (FOUCAULT, 2014c, p. 157). É ao lado vida, mais do que ao lado do direito, que a reinvindicação das lutas modernas delineia suas estratégias, diz Foucault: “o que é reivindicado e serve de objeto é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a

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plenitude do possível” (ibidem, 156-7). A vida se tornou o centro do poder político o centro da estética da existência. Por isso, Foucault dirá que “a existência (o bíos) foi constituída no pensamento grego como um objeto estético, como objeto de elaboração e percepção estética: o bíos como uma obra bela”. (FOUCAULT, 2011, p. 141; itálico no original)

Embora a existência, ao ser transformada em um campo de disputa, tenha integrado os cálculos da racionalidade política, ainda assim, os focos de resistência não foram completamente subjugados, a vida “lhes escapa continuamente” (FOUCAULT, 2014c, p.154). É com a estética da existência que esses focos ainda continuam ativos. O cuidado de si permeia um esforço do sujeito de governar a si mesmo, de se conduzir por outros meios, de modificar sua subjetividade.

A retomada da filosofia antiga realizada por Foucault constitui parte integrante de suas estratégias para o enfrentamento do governo da vida. É preciso compreender esse recuo:

[...] como uma estratégia de investigação crítica da nossa constituição moderna enquanto sujeitos, que se inscreve na tentativa de pensar possibilidades de constituição de si que escapem ao nexo saber-poder, rejeitando as imposições do poder político moderno. (GRABOIS, 2013, p. 68)

Reclamar o direito de governar a si mesmo, de tomar a direção da própria conduta, constitui a coluna dorsal das lutas contra a submissão da subjetividade. No entendimento de Foucault, é essa luta que tem se tornado mais relevante em nossa época.

3. Considerações finais

Foucault legou uma obra volumosa para a contemporaneidade. Contudo, a relevância de sua obra não repousa apenas no fato de que dela emergem temas novos capazes de modificar a cultura e o rumo de diversos saberes como o direito, a história, a psiquiatria e até mesmo a geografia. O que define sua filosofia é a problematização de terrenos já lavrados5 pela história do pensamento. Exemplo disso é o conceito de cuidado de si, que possui na última fase de suas pesquisas uma importância decisiva. Foucault ao recuperar esse conceito de maneira criativa coloca em cena novamente um

5 “Os problemas tratados nos meus livros não são novos. Não fui eu que os inventei” (FOUCAULT, 2011,

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conceito muito caro para a Antiguidade e que havia sido marginalizado ao longo de vários séculos, permanecendo por muito tempo nos porões da história da filosofia. A recuperação do cuidado de si permite a Foucault conceber a filosofia como uma atividade do pensamento sob o próprio pensamento possuindo a capacidade de transformar a existência humana. Sua preocupação estética com a vida fez desse conceito um caminho importante na investigação sobre a possibilidade de outro tipo de conduta; sobre a possibilidade de outra maneira de viver; de uma vida que seja verdadeiramente filosófica e brilhante.

Foucault é conhecido por praticar uma espécie de infidelidade com seu próprio pensamento. Abandona caminhos, realiza conversões para terrenos inesperados. Até os anos 70’ sua obra havia dado a impressão de que ele era um pensador “do aprisionamento, do sujeito submetido, coagido e disciplinado” (FOUCAULT, 2004, p. 248). Entretanto, na década de 80’, o filósofo deixa de conceber apenas a existência de um sujeito talhado pelas técnicas de dominação. Isso não significa, contudo, que Foucault descobre a liberdade nesse período de suas pesquisas. Ele “nos deixou problematizações sobre a liberdade mesmo quando tudo na paisagem de seus textos era só controle, domesticação, cerceamento” (FILHO, 2011, p. 17). Foucault esteve continuamente ocupado com a liberdade, com a liberdade do sujeito de constituir a si mesmo.

Pesquisar o cuidado de si como uma técnica de vida vinculada à estética da existência possui uma dupla importância. Além de estudar o conceito que sustenta a noção de resistência no pensamento foucaultiano, podemos examinar o recuo histórico até a Antiguidade realizado por Foucault. Tomar esse deslocamento de seu pensamento como parte da nossa pesquisa nos auxilia na tentativa de apresentar a relevância para nossa época de um conceito que faz com que Foucault caminhe de volta até a Antiguidade com o proposito de diagnosticar a nossa época. Essa escavação sob o terreno do nosso passado manteve Foucault com o olhar fixo no presente. Agamben sagazmente percebe em Foucault seu esforço para “responder às trevas do agora” através de uma relação com o passado: “as suas perquirições históricas sobre o passado são apenas a sobra trazida pela sua interrogação teórica do presente”(AGAMBEN, 2009, p. 72). Foucault ao fazer essa escavação histórica do cuidado de si procurou realizar um diagnóstico do presente, dizer o que somos hoje (FOUCAULT, 2014 e, p. 34). É esse esforço de dizer o que somos hoje, de examinar no que o homem ocidental se transformou, que o exame do cristianismo realizado pelo filósofo durante duas

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décadas encontra um sentido. Em virtude disso é que nossa pesquisa procura analisar a resistência sob o marco das contra-condutas surgidas durante a crise do pastorado cristão, pois a contra-conduta que emerge dos movimentos anti-pastorais nos serve como exemplo do funcionamento da estética da existência enquanto uma resistência que se opõe a um modelo de conduta imposto pela biopolítica. O que somos hoje é, para Foucault, parte de uma herança cristã, pois o homem ocidental aprendeu durante milênios “a se considerar uma ovelha entre as ovelhas. Durante milênios ele aprendeu a pedir sua salvação a um pastor que se sacrifica por ele” (FOUCAULT, 2008, p. 174).

Foucault ancora a resistência em três pontos históricos: as contra-condutas que surgiram com o pastorado cristão; a sublevação iraniana que depôs o Xá Reza Pahlevi e iniciou o duro regime islâmico e, a revolução francesa, a partir de sua leitura de Kant. A nosso artigo optou em analisar a resistência sob o marco da contra-conduta porque é durante a crise do pastorado que Foucault percebe a primeira revolta a um tipo de poder que se sustenta a partir da sujeição da subjetividade. Foucault viu nas contra-condutas “uma luta por uma nova subjetividade”6. Constituir a si mesmo de forma

livre, recusando uma subjetivação que há séculos nos foi imposta, é, sob a ótica das contra-condutas, a condição necessária para a resistência.

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Referências

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