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MÁSCARAS DA PANDEMIA - QUANDO O HORROR FAZ AFLORAR O QUE TEMOS DE MELHOR NA LUTA

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MÁSCARAS DA PANDEMIA - QUANDO O HORROR FAZ AFLORAR O QUE TEMOS DE MELHOR NA LUTA

Maurício Cintrão França

Bacharel em Comunicação Social (especialização em Jornalismo) formado pelo Instituto Unificado Paulista, com pós-graduação em Arte Educação e Cultura Regional de MS pela Faculdade Novoeste, graduando em Licenciatura em Artes Visuais pela Uniasselvi

mauricio.cintrao@gmail.com

“Porque quem deixa de lado, por vontade ou esquecimento, uma parte da verdade, cai mais adiante pela verdade que lhe faltou, que cresce na negligência e derruba o que se levanta sem ela”.

MARTI, 2011 Pág 20

RESUMO

Este Relato de Experiência narra a trajetória percorrida por um artista visual que vivenciou a importância da Arte Educação como instrumento de transformação pessoal e coletiva com crianças de uma escola de periferia de Campo Grande, MS. Um processo vivenciado em oficinas de confecção de bichinhos do Pantanal em biscuit realizadas em sala de aula há cerca de um ano e meio. Busco demonstrar como floriu a ideia de levar ao Ensino Fundamental a discussão de temas como subalternidade, discriminação racial e ancestralidade à luz de estudos decoloniais. Em 2019, foram realizadas quatro oficinas de biscuit em sala de aula com crianças de 4 a 6 anos de idade. Constituiu-se um acervo de mais de 100 peças para uma exposição na escola. Um processo de troca e aprendizados que me levou a continuar as pesquisas, problematizando as experiências. Inspirado pela lembrança da invisibilidade de crianças afrodescendentes e indígenas em sala de aula, o artista passou a produzir pequenas personagens como guerreiras, caciques e xamãs com características fenotípicas próprias. As peças “cresceram” ao longo dos estudos e viraram máscaras de papelão sugerindo guerreiros e guerreiras não-brancos. Produzidas a baixo custo e com materiais simples (caixas de pizza, arame, fita crepe, cola branca, papel de revistas, jornais e cadernos usados, além de tinta guache ou acrílica), as máscaras

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demonstraram várias possibilidades de criação para a sala de aula. Foram confeccionadas mais de 250 peças em variados tamanhos. As máscaras estão presentes historicamente tanto em culturas tradicionais quanto em culturas de matriz africana, o que revela sua propriedade para alimentar a ressignificação da ancestralidade e o debate das origens honrosas e ricas dos povos que foram subalternizados no Brasil. Máscaras guerreiras para enfrentamento da colonialidade que ainda impera nas Escolas Públicas do país.

O autor no escritório-ateliê com máscaras de sua autoria ao fundo (arquivo pessoal)

INTRODUÇÃO

É difícil pensar em alguma coisa positiva em relação ao horror que foi esse primeiro ano e meio de pandemia de Covid-19. De março de 2020 até agora, que escrevo este texto, perdi pessoas próximas e vi pessoas próximas perderem outras pessoas. Assistimos estarrecidos ao avanço avassalador do novo Coronavírus pelo mundo.

Por ser diabético e ter mais de 60 anos de idade, fui convidado pelo meu empregador (o Grupo CCR, que administra a BR-163, em Mato Grosso do Sul) a trabalhar remotamente desde casa, no chamado home office. A princípio, parecia um pequeno período de férias. Com o tempo, entretanto, o distanciamento social acompanhado pelo isolamento pessoal criaram uma atmosfera de ansiedade, solidão e abandono.

A alternativa de sobrevivência, até para não enlouquecer, foi me empenhar mais na produção de arte. Sou jornalista por formação e artista visual por paixão. Nos últimos anos, tenho dedicado parte do meu tempo a estudar e fazer arte nos intervalos do trabalho.

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Tanto que, há pouco mais de seis meses, decidi cursar Licenciatura em Artes Visuais. Quero me tornar professor de crianças.

Nestes tempos de isolamento, pratiquei possibilidades de produção de arte com vistas à realização de oficinas tão logo aconteça a retomada das aulas presenciais nas escolas. Um movimento pessoal que não aconteceu por acaso. Fui inspirado por uma experiência concreta ocorrida pouco antes da chegada da Covid-19 ao Brasil.

Essa experiência foi sistematizada originalmente no Relato de Experiência “A decolonialidade na prática da arte educação: a modelagem de bichinhos do Pantanal em biscuit com alunos do ensino fundamental”, apresentado por mim e pela professora Ângela Cologniesi em 27 novembro de 2019 ao final do IV Seminário de Cultura e Educação da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.

O desafio fundador

Em maio de 2019, eu ainda estava cursando pós-graduação presencial em Arte Educação e Cultura Regional na Faculdade Novoeste, em Campo Grande, MS, onde resido há sete anos. Na época, a Arte Educadora Ângela Cologniesi lançou um desafio aos artistas que a seguiam em suas mídias sociais.

“Aos Artistas Visuais de Campo Grande... quem gostaria de participar de um projeto cultural poderia me mandar um alô inbox?”. O chamamento foi feito no mês de maio de 2019. A proposta era apresentar os artistas visuais “ao vivo” para os alunos, demonstrando suas técnicas em oficinas na escola, oferecendo na prática a experimentação do que é fazer arte.

O convite integrava uma estratégia da Escola Municipal Harry Amorim Costa, que mobilizou todas as suas séries para realizar o projeto “Cultura pantaneira - Riquezas da Nossa Terra”. A conclusão do projeto se daria no segundo sábado de setembro, com uma grande festa cultural. A ideia era promover atividades culturais visando a conscientização sobre a preservação e valorização do Pantanal.

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Localizada em uma região conhecida como Anhanduizinho, a E. M. Governador Harry Amorim Costa fica na periferia de Campo Grande, no bairro Guanandi. Com uma população de 11.678, o bairro conta com renda per capita de R$ 607,39 (PLANURB, 2020). A escola tem 28 funcionários e 546 alunos, atendendo aos anos iniciais, de 1ª a 4ª série ou 1º ao 5º ano, e anos finais, de 5ª a 8ª série ou 6º ao 9º ano (EDUQ 2020).

O desafio feito por meio das mídias sociais pela professora Ângela foi atendido por vários artistas. Eu fui um deles. Na época, nem imaginava em aplicar os conhecimentos adquiridos nos estudos de especialização. Fui por conta do desejo de participar e pela curiosidade. Como seria atuar em uma sala de aula com crianças pequenas?

Formulei para a professora uma série de propostas de oficinas: pintura com tinta acrílica, decoração de prendedores de roupa, escultura em biscuit e teatro de sombras. A escolha foi feita pela autora do convite e contemplou a confecção de bichinhos do Pantanal em biscuit. O biscuit é conhecido no Brasil desde a década de 1980. Consiste em uma massa plástica produzida com cola branca (acetato de polivinila), amido de milho e conservantes. Apresenta elasticidade semelhante à massinha de modelar comumente usada em escolas públicas.

A professora Ângela Cologniesi, o autor e os tucaninhos feitos pelos alunos (foto: Ângela Cologniesi)

Onde fala a realidade

As oficinas aconteceram entre os meses de agosto e setembro de 2019, em regime de voluntariado (todo o material foi oferecido pelo artista, inclusive). Abrangeram cerca de 60 alunos na faixa etária compreendida entre 4 e 6 anos, em três classes, as turmas de

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Educação Infantil dos prés 1 e 2 e 1º ano do ensino fundamental. Foram concebidas para permitir a prática artística em sala de aula, como uma troca entre o artista e as crianças, com a mediação da professora.

Motivo de orgulho da população do Centro-Oeste, o Pantanal é Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera pela Unesco. Ocupa uma área total de 220 mil km², sendo 120 mil km² em solo brasileiro, nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, abrangendo 22 cidades da região. Abriga 3,5 mil espécies de plantas, 325 espécies de peixes, 53 espécies de anfíbios, 98 espécies de répteis, 656 espécies de aves e 159 espécies de mamíferos (MATIAS).

Antes das oficinas, as crianças foram estimuladas pela professora com projeção de imagens e informações gerais sobre o Pantanal. Um reforço adicional para falar de um bioma que é referência viva na cultura dos sul-mato-grossenses, inclusive das crianças campo-grandenses. O bioma está a cerca de 2 horas de ônibus da Capital. Além disso, a cultura pantaneira está presente na vida das crianças por meio da música, da dança e da culinária. E parte da fauna pantaneira também está em Campo Grande, cidade que conta com parques que abrigam muitos exemplares como capivaras, quatis, cotias e aves como tucanos e araras.

A confecção dos bichinhos foi proposta em clima de diversão. Já que ararinhas, tucaninhos e capivarinhas não poderiam ir à aula, os alunos fariam a mágica de transformar pedaços de massinha em imagens de bichinhos. Um jogo de representação por meio da modelagem. Acostumados a trabalhar com massinhas de modelar, os alunos não estranharam o biscuit. Para evitar que a massa plástica endurecesse antes de terminadas as peças, ela foi separada por cores em pequenas porções individuais, para rápida modelagem. A proposta de trabalho foi muito bem recebida pelas crianças em todas as salas. E todos fizemos arte em ritmo de brincadeira.

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Exercitando a modelagem da ararinha azul junto com as crianças na sala de aula (foto: Ângela Cologniesi)

Enquanto trabalhamos, foi comum às crianças a lembrança de “causos” relativos ao Pantanal, seja de vivências pessoais ou de histórias ouvidas. Alguém que havia sido picado por cobra, outro que ajudava a dar frutas para as aves, mais um que já tinha tirado foto com capivaras. O exercício mobilizou o repertório de lembranças de meninos e meninas. E o Pantanal esteve vivamente presente na escola bem antes da festa, a partir das lembranças das crianças.

Em uma das oficinas, a professora Ângela foi provocada pelos alunos para pegar seu violão e cantar “Trem do Pantanal”. A música de Geraldo Roca e Paulo Simões, ficou nacionalmente conhecida na voz de Almir Sater, aliás, todos artistas sul-mato-grossenses e apaixonados pelo Pantanal. Foi um momento emocionante cantar com a professora e os pequenos, que conheciam a letra inteira da música e, a partir de então, também conheciam a transformação de massinha de biscuit em Pantanal.

Enquanto este velho trem atravessa o Pantanal As estrelas do Cruzeiro fazem um sinal De que este é o melhor caminho Pra quem é como eu, mais um fugitivo da guerra (Trem do Pantanal, Roca e Simões)

Na medida em que as crianças se sentiam mais à vontade com a presença do artista em sala de aula (e o artista se sentia também mais à vontade), passaram a demandá-lo mais vezes. “Professor, não consigo fazer o biquinho”, “professor, fica bom assim?”, “ah, a minha massinha ficou dura”, “professor, fala pro Paulo prestar atenção na massinha”... e,

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de mesa em mesa, de aluno em aluno, o artista foi construindo uma relação cada vez mais forte com as crianças, brincando, ensinando, elogiando e se sentindo pertencente. Depois da primeira oficina e, mais tarde, com a realização de outras “aulas”, a chegada do artista na escola passou a ser acompanhada de cumprimentos, brincadeiras e abraços dos alunos. O artista passou a integrar a comunidade da escola.

O tempo de produção das peças variou de turma para turma. Entre os menores, a rapidez foi tamanha (confeccionaram jiboinhas) que sobrou tempo para um exercício diferente: inventar monstrinhos. A brincadeira foi: o Pantanal está sendo ameaçado. Vamos salvá-lo com monstros protetores. E surgiu um exército de seres imaginários criados pelas crianças.

Além do debate de cunho ambientalista, propriamente dito, as oficinas permitiram discutir na prática a transformação proporcionada pelo processo criativo. As crianças reagiram com curiosidade na medida em que conseguiam compreender, na prática, que a modelagem transforma a massa em formas geométricas que, unidas, divididas e multiplicadas, geram corpinhos, asinhas, olhinhos, biquinhos e toda sorte de formas. E isso prendeu a atenção das crianças.

Prendendo a atenção dos alunos com as dicas de como manipular a massinha (foto: Ângela Cologniesi)

Hoje, olhando à distância, é possível identificar que, ao fazermos o esforço de transformar massinha em bichinho, provocamos o processo de criação de novos significados a partir da arte. As crianças não estavam apenas brincando, o que assegura o caráter lúdico do aprendizado, elas assumiram o papel de geradores da vida e cuidadores da natureza,

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firmando vínculos de afeto com o Pantanal. Nesse sentido, ecoamos Greimas. “Parece-nos que o mundo humano se define essencialmente como o mundo da significação. Só pode ser chamado de humano na medida em que significa alguma coisa” (GREIMAS, 1976, pág 11).

Não custa nada lembrar que as oficinas foram tão divertidas e marcaram tanto o cotidiano da escola que, nesta ou naquela sala de aula, contaram com a participação ativa de coordenadoras e supervisoras da escola, interessadas em também confeccionar seus bichinhos. A própria professora Ângela confeccionou seus bichinhos enquanto fazia a mediação entre o artista e as séries.

Foi um processo de construção de conhecimento (transformar massinha em bichinho) fora do contexto homogeneizante do currículo escolar. Um artista propôs às crianças o envolvimento afetivo com o objeto do estudo de forma a criar vínculos entre o ato de criar brincando e o produto da criação, a partir das experiências pessoais de cada uma delas. Mais do que esculturinhas, as crianças construíram suas próprias maneiras de enxergar o mundo à sua volta, sensibilizadas para os cuidados necessários com o Pantanal.

Sabe-se que crianças e adolescentes que têm maior contato com as artes não só abrem portas para o conhecimento como aprendem mais facilmente disciplinas tradicionais, uma tese que ganha impulso e respaldo científico (...) Não se trata de expor o aluno a espetáculos de música e dança para torná-lo mais sensível à arte. Hoje, o que se procura fortalecer são os elos entre o aprendizado da educação artística e a capacidade de produzir conhecimento e aprender outras disciplinas (ARRIAGA, 2009, pág XXII)

O saldo dessas oficinas foi de 38 peças de aproximadamente 10 cm de altura, sendo 18 tucaninhos e 20 oncinhas pintadas, além de 67 pequenos “bichinhos do Pantanal” (de três a cinco centímetros), dos quais 19 capivarinhas, 16 ararinhas azuis, 15 jiboinhas e 17 oncinhas pintadas. Tudo isso sem contar os “monstrinhos” do Pantanal. Difícil foi conseguir convencer os pequenos artistas a deixarem suas obras na escola. Afinal, as peças elas integrariam o acervo da exposição na festa pantaneira. Ao final de muita conversa, as crianças aceitaram que a professora guardasse as peças e a escola apresentou (pretensão à parte) uma exposição muito mais bonita e colorida no segundo sábado de setembro. Cada peça foi marcada com o nome do(a) seu(ua) autor(a), o que aumentou ainda mais a identificação das crianças com suas obras.

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Parte da exposição das peças na festa da escola: oncinhas, tucaninhos e ararinhas azuis (fotos Ângela Cologniesi)

Sapinhos, capivarinhas, jiboinhas e os temíveis monstros protetores do Pantanal (fotos Ângela Cologniesi)

Depois dos bichinhos

É muito importante destacar que a teorização a respeito das práticas em sala de aula só veio depois das experiências. É evidente que o artista foi para a sala de aula com toda a carga de conhecimentos adquiridos na academia. Mas o “pensar a prática” só veio depois, com a conscientização de que muitos dos conceitos teóricos estiveram ali, na prática, em uma relação fora dos padrões da escola tradicional.

O que seria apenas um exercício de contato superficial com as crianças, revelou-se muito mais profundo. As oficinas permitiram perceber que o relacionamento com as crianças ganhou características de troca. Na medida em que o artista se ajoelhava no chão ou sentava nas cadeirinhas para admirar as peças ou ajudar a modelar, as crianças aumentaram seu interesse pelo exercício. E o encantamento tornou-se recíproco: do artista que virou criança e das crianças que viraram artistas. Esse talvez tenha sido o maior exemplo de prática decolonial, de inversão da autoridade em um jeitinho caboclo de desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2008).

A experiência foi tão boa que levou ao desenvolvimento de outras personagens para novas futuras oficinas. Uma ideia baseada na ressignificação dos povos afrodescendentes e indígenas. Nas escolas de periferia, os descendentes desses povos são maioria. Vale lembrar que Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do Brasil

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(IBGE, 2012), apenas superada pelos indígenas do Amazonas. Por que não realizar oficinas focando objetivamente as questões de identidades? O que é bonito? O que é cabelo bom? Quais os significados das pinturas de rosto dos indígenas? Como aprender com a ancestralidade? Como discutir a racialização?

A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, como constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. (QUIJANO, 2005, pág 117)

Um primeiro exercício pessoal do artista levou à criação de personagens em biscuit para desenvolvimento em salas de aula: caciques, xamãs, Orixás, guerreiros, ativistas e artistas de biscuit. Um processo de pesquisa que levou a aprendizados e descobertas sobre como reproduzir em massinha penteados, arranjos de cabelo, cocares e outros fundamentais para discutir diferenças e os conceito de beleza. O tamanho das peças foi aumentando, também. Com tatos detalhes, as carinhas de biscuit – inicialmente com 3 a 4 cm de altura –, chegaram a dimensões viraram máscaras de papelão. É aí começou outro embate com (ou contra) a solidão da pandemia.

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Caciques, cacicas, intelectuais, ativistas e artistas em biscuit (acervo pessoal)

Da caixa de Pizza à transcendência

O reaproveitamento do papelão das caixas de pizza combinou com defesa do meio ambiente. O que iria para descarte, virou matéria-prima. Mais do que reaproveitar o descartável, criar máscaras de papelão é produzir cultura, é criar novos significados a partir da transformação que só a arte permite.

“Potes servem para guardar água, mas flores (pintadas) no pote servem para guardar símbolos. Servem para guardar a memória de quem fez, de quem bebe a água e de quem, vendo as flores, lembra de onde veio. E quem é. Por isso há potes com flores, Folias de Santos Reis e flores bordadas nas saias de camponesas” (BRANDÃO, 1984, pág 107)

Ajudar a ensinar às crianças essa transformação virou um objetivo meu. Esse também foi dos motivos de buscar a Licenciatura em Artes Visuais. Preciso do conhecimento e da autorização do currículo para fazer o que sei que faço bem. Sou um bom contador de histórias para crianças. Quero ser um bom professor de Artes. Apesar do desmantelamento do currículo feito pelos magos do Congresso Nacional na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que reduziram ao mínimo o conteúdo de Artes na grade de ensino da criançada.

Conforme destaca José Roberto Pereira Peres, em seu artigo “Questões atuais do Ensino de Arte no Brasil: O lugar da Arte na Base Nacional Comum Curricular”, a componente Arte perdeu a dimensão de área de conhecimento específico, “tornando-se subordinada à Área de Linguagens. No texto da BNCC, verifica-se o foco em práticas expressivas

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individualizadas, com ênfase no fazer e no fruir, desconsiderando a dimensão crítica e conceitual da Arte”. (PERES, 2017)

Mesmo assim é possível aproveitar as possibilidades que existem e usar os recursos da Arte para ensinar a pensar. É preciso aproveitar as brechas deixadas pela lei para continuar conquistando espaços de reflexão. Ao confeccionar máscaras de papelão, faço muito mais do que apenas decorar paredes. Me coloco como intérprete do momento de violência e opressão representado pela pandemia.

Construir máscaras coloridas de papelão pode até ser interpretado como uma atividade de entretenimento. Mas, Arte não é só entretenimento. Arte é uma maneira de interpretar o mundo. Então, Arte é instrumento de compreensão da realidade.

Arte é linguagem. Ou como dizem MARTINS, PICOSQUE e GUERRA (1998, pág. 37) “a linguagem é a forma essencial de nossa experiência no mundo e, consequentemente, reflete nosso modo de estar no mundo”. Ou seja, é por meio da linguagem que agimos e nos tornamos conscientes da realidade.

Hoje, contabilizo mais de 250 máscaras produzidas nos mais variados tamanhos, da “gigantona” (1,20 m X 0,80 m) às pequeninas (6,0 cm X 8,0 cm). Boa parte vai virar objeto de doação para amigos e parentes. Se não fosse a pandemia, mais máscaras teriam sido doadas. Curiosamente, as máscaras provocam espanto porque são feitas em papelão. Imagino como será quando estiver confeccionando-as com as crianças em sala de aula, enquanto conto histórias de Orixás, guerreiros, caciques, guerreiras, xamãs e mães de santo.

Porque as máscaras abrem espaços para ressignificar a ancestralidade e debater de forma libertadora as origens honrosas dos povos tradicionais e dos povos africanos que viveram aqui a sua diáspora. A escola pública é o lugar de boa parte da população subalternizada a partir da fenotipia. É preciso vencer a invisibilidade de afrodescendentes e indígenas em sala de aula

Gosto de Ana Mae Barbosa desde o primeiro encontro com seus textos nas aulas de pós-graduação em Arte Educação, em Campo Grande. Demorei para conhecê-la, apesar de ter sido aluno de professores que seguiam seus ensinamentos. A arte educadora é uma

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grande inspiração para mim e para muitos artistas que se descobrem educadores. Inspiração refletida em muitas crianças que se descobriram cidadãs.

Durante uma homenagem feita a ela, em 2016, como ganhadora do Prêmio Ícone de Educação, concedido pelo Instituto Europeo di Design, a professora falou:

“O artista acha que, por si só, não ensina. Ele acha que não consegue estabelecer essa relação. Mas, necessariamente, por ser artista, ele tem o que ensinar. É preciso ter desejo de ensinar. Mas, no Brasil, infelizmente, há um desprezo por nossa educação pública, que acaba convertendo-se em uma instituição que vai formar apenas capacidades empregatícias de nosso povo, deixando todo o resto de lado”. (BARBOSA, 2016)

Pretensiosamente, quero seguir os conselhos da Mestra e contribuir com a Educação Pública. Já estou estudando. Logo descubro o caminho.

Não terminou em Pizza

Este relato de experiência busca traduzir o que foi para mim (e o que acredito ter sido para as crianças) a experiência de oficinas em escola pública de ensino fundamental. Eu não tinha experiência com crianças pequenas em sala de aula. Já havia feito algumas oficinas de arte com adolescentes em São José do Campos, cidade de onde vim para Campo Grande. Hoje, faria algumas coisas diferentes, a partir da experiência adquirida. E voltaria com menos insegurança.

As crianças conhecem o discurso de defesa do meio ambiente e conhecem o Pantanal, seja pessoalmente, seja por relatos dos parentes. Mas ficou claro que as oficinas permitiram que houvesse uma ligação diferente para eles e o respeito pela natureza. O Pantanal adquiriu vida própria no imaginário daqueles alunos. Penso em voltar à escola quando o arrefecimento da pandemia permitir para fazer uma pesquisa com meus pequenos amigos: o que ficou daquelas oficinas?

Sei pela professora Ângela que alunos de outras séries manifestaram interesse em também participar de oficinas de confecção de bichinhos do Pantanal. Aliás, alunos de outra escola onde a professora dá aula também pediram oficinas. Quem sabe a gente consiga ampliar o público atendido. Aproveito para registrar meus agradecimentos à parceria da professora Ângela Cologniesi para realização dessas oficinas. O ensino precisa de mais

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professores como ela, com coragem para sair do lugar-comum e buscar o “modo otro” (WALSH, 2014) para conquistar novas maneiras de ensinar e aprender. Por conta desse exemplo dado por ela, hoje, é mais fácil me imaginar ensinando.

Minha ideia é promover oficinas de construção de máscaras de papelão e discussão de diferenças, identidades, ancestralidades e futuro colaborativo. Posso voltar aos bichinhos do Pantanal e à confecção de carinhas de indígenas e afrodescendentes. O importante é ter em mente que arte na sala de aula não é atividade irrelevante, mas ferramenta de transformação e conhecimento. Enfim, atualmente até é possível pensar em um projeto cultural para ser apresentado às autoridades municipais em busca de patrocínio, para tornar as oficinas em um processo mais duradouro. São todas ideias para o amanhã. Envolvido pelas máscaras de papelão, saio dessas experiências mais rico e mais devedor ao menino que fui. Não se chega à realização de sonhos sem ter sonhado antes. Apesar das dificuldades de minha infância, fui ensinado a sonhar por alguns professores inspiradores, a quem sempre rendo minhas homenagens. É preciso valorizar a construção de memórias e a valorização de trajetórias de vida como ferramentas de construção do futuro. Espero um dia ser capaz de também inspirar crianças em direção a um mundo solidário, tolerante e criador de futuros gentis.

Dedico este texto ao Prof. Dr. Álvaro Banducci Júnior que, do alto da sua bondade inspiradora, incentivou este futuro professor a mergulhar em um relato de experiência. Gratidão! Axé!

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BIBLIOGRAFIA

ARRIAGA, Imanol Aguirre in BARBOSA, Ana Mae, A Imagem no Ensino da Arte – São Paulo, 2009, Perspectiva

Barbosa, Ana Mae, Ana Mae Barbosa reforça: Todo artista tem o que ensinar. Portal Aprendiz UOL, 12/08/2016, Disponível em

https://portal.aprendiz.uol.com.br/2016/08/12/pioneira-da-arte-educacao-ana-mae-barbosa-reforca-todo-artista-tem-o-que-ensinar/

Acessado em 22/03/2021

BRANDÃO, Carlos Rodrigues, O que é Folclore, São Paulo, 1985 Editora Brasiliense IBGE 2012 - Os indígenas no Censo Demográfico 2010, primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de Janeiro, RJ Disponível em

https://indigenas.ibge.gov.br/images/indigenas/estudos/indigena_censo2010.pdf Acessado em 14/04/2021

MATIAS, Átila. Pantanal; Brasil Escola, sem data. Disponível em:

https://brasilescola.uol.com.br/brasil/o-pantanal.htm. Acesso em 03/06/2021 MARTÍ, José – Nossa América = Nuestra América, Brasília, 2011, Editora Universidade de Brasília, UnB.

MARTINS, Miriam Celeste, PICOSQUE, Gisa e GUERRA, M. Terezinha Telles, em

Didática do Ensino da Arte, A linguagem do mundo, São Paulo, 1998, FDT

MIGNOLO, Walter em Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o

significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê:

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PERES, José Roberto Pereira, Questões atuais do Ensino de Arte no Brasil: O lugar

da Arte na Base Nacional Comum Curricular, Revista do Departamento de Desenho

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REIS, Ângela Cristina Cologniesi et FRANÇA, Maurício Cintrão, A decolonialidade

na prática da arte educação: a modelagem de bichinhos do Pantanal em biscuit com alunos do ensino fundamental, Relato de Experiência apresentado em 27

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WALSH, Catherine Pedagogías decoloniales caminando y preguntando.

Notas a Paulo Freire desde Abya Yala Revista Entramados - Educación Y Sociedad -

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