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Alan Ricardo Pereira RESUMO. Palavras-chave: Kierkegaard; Ironia; Humor; Resignação; Cavaleiro da Fé. ABSTRACT

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Academic year: 2021

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Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A IRONIA E O HUMOR EM TEMOR E TREMOR

S OME CONS I DE R A TI ONS A B OUT THE IRONY AND HUMOUR IN FEAR AND TREMBLING

Alan Ricardo Pereira

RESUMO

O presente artigo procura discutir dois conceitos fundamentais no pensamento de Søren Kierkegaard – “ironia” e “humor”. Esses conceitos foram apresentados pelo pseudônimo Johannes de Silentio, na obra Temor e Tremor, publicada em 1843. Além disso, este texto procura analisar o significado do movimento da infinita resignação e a figura emblemática do Cavaleiro da Fé.

Palavras-chave: Kierkegaard; Ironia; Humor; Resignação; Cavaleiro da Fé.

ABSTRACT

This paper attempts to discuss two fundamental concepts in Søren Kierkegaard´s thought – “irony” and “humor”. These concepts were presented by the pseudonym Johannes de Silentio in Fear and Trembling, published in 1843. Furthermore, this text attempts to analyze the meaning of the movement of infinite resignation and the emblematic figure of the Knight of Faith.

Keywords: Kierkegaard; Irony; Humor; Resignation; Knight of Faith.

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Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.

1. Introdução

A ironia e o humor representam, no pensamento de Kierkegaard, importância capital. Não sem razão, a sua tese de doutoramento foi dedicada ao tema da ironia. O autor tencionava também dedicar a ela o tema do humor, mas foi desaconselhado por Paul Møller, o que o levou a consagrar tão somenteo derradeiro parágrafo a este último. Estamos falando, aqui, da tese Sobre o Conceito de Ironia

constantemente referido a Sócrates, de

1841, considerada, hoje, a porta de entrada para entender o pensamento do filósofo dinamarquês.

Chama atenção em Kierkegaard, ao longo de sua análise, acerca da ironia e do humor, a maneira com a qual ele as reveste, por meio de personagens emprestadas, quer sejam, do mundo real, quer sejam, do mundo literário. O fato também de, ora a ironia e o humor serem considerados conceitos qualitativamente distintos, ou seja, enquanto a ironia se atém à finitude, o humor avança em direção à infinitude; ora apenas quantitativamente, quer dizer, a ironia se torna também infinita, de modo que permanece apenas uma diferença de grau e não de essência entre ela e o humor; ora, ainda, serem tomados no mesmo pé de igualdade – como ocorre em Temor e

Tremor – abolindo, portanto, toda e

qualquer possível distinção que poderia haver entre eles. Quando isso acontece, a diferença essencial passa a ser entre eles, isto é, entre os conceitos, o de ironia e de humor para com a categoria da fé, visto que esta última confronta-se com o paradoxo, mas que, em todo caso, como teremos a oportunidade de constatar, assistimos a fé decorrer, justamente, da análise conceitual deles.

Em uma passagem tão densa quanto compacta, acerca dos referidos conceitos, Johannes de Silentio, em Temor e Tremor (Frygt og Bæven), assim se exprime: “Em nossos dias fala-se demasiado de ironia e de

humor [...]. Sei, por consequência, que são essencialmente diferentes da paixão da fé. A ironia e o humor refletem-se sobre si próprios e pertencem, por isso, à esfera da resignação infinita” (KIERKEGAARD, 1974, p. 281). Sobre essa frase, note-se bem, recairá nossa atenção, a fim de conceder à ironia e ao humor os significados reais que adquirem na obra em questão. Para tanto, responderemos na ordem inversa a que se seguem as três perguntas: em que consiste esta diferença denominada pelo autor de essencial, isto é, entre a ironia e o humor em relação à paixão da fé? O que é refletir sobre si próprio? O que é propriamente a esfera da resignação infinita?

2. O herói trágico

Segundo vimos, na citação acima, a ironia e o humor refletem-se sobre si próprios e pertencem, por isso mesmo, à esfera da infinita resignação. O agravante dessa afirmação consiste em que Johannes de Silentio parece fazer-nos acreditar, a todo instante, que o movimento da infinita resignação se efetua para fora, isto é, para o geral. Ora, como podem a ironia e o humor pertencer ao referido movimento, já que se refletem sobre si próprios? Ou existe outra espécie de infinita resignação, ou Johannes de Silentio pode ser considerado ininteligível e a ironia e o humor passam a estar tão distantes desse movimento quanto o céu da terra. A fim de lançar luz sobre esta questão convém examinar a figura do

herói trágico um pouco mais

demoradamente.

Deste modo, observamos,

inicialmente, que, à luz de várias parábolas, Johannes de Silentio, faz emergir, a partir de seu método lírico dialético (Dialektisk

Lyrik), como dá a entender o subtítulo de Temor e Tremor, a figura do herói trágico,

também chamado por ele de cavaleiro da infinita resignação. O movimento da resignação infinita, quase sempre está relacionado com a capacidade do herói de

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despojar-se de tudo, de renunciar a tudo. Este movimento dificílimo, executado por ele, implica, o mais das vezes, um bem maior, daí o sugestivo nome de herói a ele atribuído. Acercamo-nos de um exemplo, tendo em vista que todos os exemplos dados são, em última análise, para diferenciar o cavaleiro da infinita resignação e, principalmente, o cavaleiro estético, do cavaleiro da fé. Trata-se, pois, de Agamemnon1, circunscrito na obra de Eurípedes, Ifigênia em Áulide.

Grosso modo, esta obra de Eurípedes, trata do sacrifício de Ifigênia. Este episódio tem sua origem no rapto de Helena, executado por Paris. Isto se deve ao enamoramento mútuo de Helena e Paris. Diante dos fatos, Agamemnon fez reunir, sob seu comando, o exército grego para guerrear contra Troia. Mas, devido às circunstâncias serem desfavoráveis e, de acordo com, o oráculo de Calcante, os deuses exigiam que Ifigênia fosse sacrificada, em honra de Artemisa, para que os ventos que eram, até o momento, desfavoráveis, favorecessem ao exército e, então, os gregos pudessem partir para a guerra (Cf. EURIPIDE, 1983).

O agravante desta história consiste em que Agamemnon, pai de Ifigênia, teria que aceitar que ela fosse sacrificada, uma vez que a previsão tornou-se pública. Ao término do sacrifício, naturalmente, ele seria aclamado e louvacionado como herói, acrescido do adjetivo trágico, pois salta aos olhos a dor na qual ele estaria submerso, caso o sacrifício realmente acontecesse.

Quando Agamemnon, Jefté, Brutus, no

instante decisivo, dominam

heroicamente a dor, quando, perdido o objeto do seu afeto, apenas lhes resta cumprir o sacrifício exterior, pode por

1

Completam a tríade junto a Agamemnon, Brutus e Jefté, sendo que Brutus condenou seu próprio filho à morte para fazer valer a lei romana e Jefté imolou sua filha, a fim de salvar Israel. Ambos os casos mostram como que deve prevalecer o geral em detrimento do singular (Enkelt) oculto.

ventura existir no mundo alguma nobre alma que não verta lágrimas de compaixão pelo seu infortúnio e de

admiração pela sua façanha?

(KIERKEGAARD, 1974, p. 286). Esse ato heróico nada mais é do que o movimento da resignação infinita a partir do qual a ética vem à luz, já que “a ética exige a manifestação” em favor do geral, isto é, do universal. É preciso não perder isto de vista: o herói trágico sempre atua em favor do geral, em detrimento do qual ele sacrifica um bem pessoal, enquanto a ironia e o humor “encontram seus motivos no fato de o indivíduo ser incomensurável com a realidade” (KIERKEGAARD, 1974, p. 281). Isso significa o desprendimento em relação a qualquer coisa, inclusive em relação à instância ética.

3. A ironia e o humor sob o ângulo da infinita resignação

Dito isso, podemos avaliar o significado da respectiva frase: “A ironia e o humor refletem-se sobre si próprios e pertencem, por isso, à esfera da resignação infinita”; (KIERKEGAARD, 1974, p. 281). Devemos chamar a atenção para o

refletem-se sobre si próprios e para o pertencem.

Isto porque, refletir sobre si próprio implica interiorizar-se cada vez mais, de modo que, a instância ética, ou seja, o manifestar-se, fica comprometido, dado que o movimento se efetua de dentro para cada vez mais dentro, ou seja, para as profundezas abissais da subjetividade que, no entender de Johannes Climacus, autor pseudonímico de Kierkegaard, se identifica com a verdade: “A subjetividade é a verdade” (KIERKEGAARD, 1972, p. 242).

O fato de refletirem sobre si próprios, já de antemão, distancia-os do herói trágico, compreendido heroicamente, portanto eticamente, já que esse último exige a manifestação no geral. Segue-se que a ironia e o humor caracterizam mais precisamente, neste caso, o herói estético, já

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que o esteta paira livre sobre a realidade, caso em que poderia ser representado por Agamemnon se ele, no momento em que Ifigênia fosse sacrificada, roubasse a cena e colocasse no lugar dela algum servo, por exemplo. Isso significa que ele não levaria em consideração o geral, porquanto a exigência consistia em que Ifigênia fosse sacrificada e não um servo qualquer. Se assim sucedesse, o particular se sobreporia ao geral e, igualmente, o estético ao ético.

A julgar pelo que Johannes de Silentio diz, a saber, que o “movimento da ironia fundamenta-se, [...] na superioridade do subjetivo sobre o real, podemos dizer que a ironia é a absolutização do indivíduo referente a qualquer realidade” (KIERKEGAARD, 1972, p. 320). Essa é, também, a situação do humorista, visto sê-lo identificado com o ironista em Temor e

Tremor. Em outras palavras: uma vez que o

humor tem o mesmo significado da ironia, ao menos nessa obra, ele é entendido com uma definição correspondente à definição dada à ironia.

Do aduzido, segue-se, que o ironista e o humorista estão muito mais próximos de Abraão, o cavaleiro da fé, no sentido de ocultamento, quer dizer, de uma dialética que se desdobra no interior do indivíduo, ele mesmo, do que do herói trágico na esteira da ética. No entanto, diz Johannes Climacus: “A impossibilidade de manifestar-se, o segredo, aqui é o espantoso em comparação com o qual o segredo estético não é senão uma brincadeira de criança” (KIERKEGAARD, 1972, p. 51).

Johannes Climacus continua, ademais, com suas considerações a respeito de Johannes de Silentio, dizendo que ele não se apresentou como esse homem existente – quer dizer, como o cavaleiro da fé – “porque o caráter penoso do combate enquanto exige liricamente a mais extrema paixão, retém dialeticamente sua expressão num mutismo absoluto” (KIERKEGAARD, 1972, p. 51). Ou seja: se Johannes de Silentio se manifestasse, ele mesmo, como esse homem combatente, ele cometeria o

que se chama hoje de contradição performativa. Eis a razão pela qual o livro gira em torno do silêncio: o autor pseudonímico do livro se chama João do Silêncio, a epigrama com que Kierkegaard abre o livro se remete ao silêncio e, finalmente, Abraão também não pode falar. De qualquer modo, a definição que Johannes Climacus dá, a respeito de Johannes de Silentio, é a seguinte:

Ele é um pensador que, com o herói trágico como terminus a quo, com o interessante como confinium e a irregularidade religiosa paradigmática como terminus ad quem, não cessa, por assim dizer, de ferir de frente a razão, enquanto o golpe de recuo faz reagir o lírico (KIERKEGAARD, 1972, p. 51). Johannes Climacus conjectura, por conseguinte, que não poderia acreditar que Johannes de Silentio fosse capaz de fazer uma comunicação direta, e acrescenta que não saberia dizer ao certo, porque não o conhecia pessoalmente. Seja como for entendido, nos interessa na citação supracitada, o fato de o “interessante” ser, para Kierkegaard, uma categoria muito afim à categoria da ironia. Isso se deve à custa de o interessante ser uma categoria do momento crítico, isto é, um limite entre o estético e o ético (Cf. REICHMANN apud KIERKEGAARD, 1972, p. 362). Sobre a categoria do interessante falaremos mais adiante.

Pode-se dizer, talvez, que, se por um lado o ironista e o humorista se encontram aquém do herói trágico, isto é, na esfera estética, igualmente pode-se dizer, não obstante, que, por outro, eles estão além dele, porquanto se assemelham à esfera religiosa. Mas, note-se bem, ao religioso A e/ou geral e não ao religioso B e/ou paradoxal na terminologia climaqueana, visto que esse último status de religiosidade estar reservado a Abraão, porquanto somente ele é capaz de executar o movimento em virtude do absurdo (i Kraft

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Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. af det Absurde).

Neste sentido, ganha importância o fato de o ironista e o humorista pertencerem ao [e não serem o] cavaleiro da infinita resignação. E, para melhor compreender isso, é fundamental entendermos o significado do conceito de infinito. A propósito, como bem evidenciou Robert L. Perkins, existem várias formas de infinito, o efetuado no plano estético e o efetuado no plano ético, para citar os exemplos que ele

usa e, cujas exigências são,

respectivamente, a infinitude romântica, em que reinam a imaginação e a fantasia, da qual o sedutor destaca a infinidade de possibilidades e a infinitude considerada como tarefa (Cf. PERKINS, 1993, p. 172).

A primeira delas nos conduz naturalmente ao romantismo alemão, ao passo que, a segunda nos remete à filosofia grega, ou mais exatamente a Sócrates, respectivamente, à ironia romântica e à ironia socrática. Notamos, desse ponto de vista, que existe uma estreita relação entre a tese Sobre o Conceito de Ironia... e o opúsculo Temor e Tremor. Os conceitos estão familiarmente interligados. A ironia concebida de maneira socrática, por exemplo, poderia ser tomada de empréstimo, sem dúvida, do movimento da infinita resignação considerado em seu aspecto ético-dialético e, por isso mesmo, estético, assim como a ironia concebida nos moldes românticos poderia ser, também, tomada de empréstimo do movimento da infinita resignação na sua versão estética, porém, num nível inferior, ou seja, num nível não ético-dialético e/ou religioso A, portanto, puramente estético.

A ironia kierkegaardiana, isto é, a “verdade da ironia”, que executa, em certo sentido, a “síntese” entre a ironia socrática e a ironia romântica teria seu correspondente no movimento de Abraão, que realiza, por sua vez, a “síntese” entre o herói estético elevado a um grau superior, ou seja, ao grau do paradoxo, e o ético. Noutras palavras: trata-se do movimento da fé de Abraão que recobra o ético depois de a ele ter

renunciado, elevando o indivíduo (den

Enkelte) ao seu mais alto nível, onde se

torna possível relacionar-se de forma absoluta com o absoluto.

Não sem razão, o pseudônimo de Kierkegaard, Vigilius Haufniensis, autor de

O Conceito de Angústia, de 1844, numa

riquíssima nota de pé de página, ao referir-se a Temor e Tremor, legitima a tereferir-se acima dizendo que:

Aí o autor [Johannes de Silentio] leva várias vezes a idealidade desejada pela Estética a encalhar na idealidade exigida pela Ética, a fim de fazer surgir desses embates a idealidade religiosa como aquela que é justamente a idealidade da realidade efetiva, e por isso tão desejada quanto a da Estética e não impossível como a da Ética [...] (KIERKEGAARD, 2010, p. 19). Tanto para Kierkegaard – ironia dominada – quanto para Johannes de Silentio – movimento em virtude do absurdo – e que, para Vigilius Haufniensis, corresponde ao movimento da repetição: “A realidade adquire, portanto sua validade na ação. Mas a ação não deve degenerar em uma certa insistência estúpida, ela deve ter um a priori em si, que a impeça de perder-se numa infinitude sem conteúdo” (KIERKEGAARD, 2006, p. 279). Nesse sentido, fica fácil entender o duplo movimento de Abraão como se mostrará a seguir. Trata-se, pois, de um movimento inserido dentro da categoria do devir. Kierkegaard diz, aliás, que “temor e tremor significam que estamos num processo de vir-a-ser; e cada indivíduo singular, assim como a geração [isto é, a humanidade no tempo presente], deve estar consciente de estar no processo de vir-a-ser” (KIERKEGAARD apud GOUVÊA, 2009, p. 22).

Com isso, passemos a analisar a categoria do interessante, mencionada acima. Isso mostrará que Kierkegaard usa, especificamente, essa categoria para se

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contrapor à ideia hegeliana de que a fé é imediata. “Utilizando o conceito de interessante, Kierkegaard reforça a singularidade do caso de Abraão que o separa primeiramente de uma compreensão estética e romântica do indivíduo e, ao mesmo tempo, do universal, no sentido da ética” (PERKINS, 1993, p. 168), ou seja, no sentido socrático. Esta interpretação da ética e da estética surge, porque a ironia é característica de ambas (Cf. PERKINS, 1993, p. 175). Nesse sentido, ele, isto é, Sócrates, era ético, mas entendido como ético-religioso, vale dizer como “interessante”. Mas, então, “Abraão é um homem religioso, interessante?” (PERKINS, 1993, p. 170) pergunta Perkins. 4. Nota sobre o cavaleiro da fé

Feito esses apontamentos, é oportuno analisarmos o movimento do cavaleiro da fé, a fim de sugerir, primeiramente, uma resposta para a pergunta acima estabelecida, para, posteriormente, considerarmos o aspecto final da frase que estamos analisando detidamente, isto é, a de que a ironia e o humor “são essencialmente diferentes da paixão da fé” (KIERKEGAARD, 1974, p. 281). Por quê? Seguramente, porque outro é o cume, onde se encontra Abraão. Nesta região não se pode querer ir acompanhado, como bem evidenciou o poeta lírico dialético, Johannes de Silentio, pois, para ele, “a dialética da fé é a mais sublime e notável de todas” (KIERKEGAARD, 1974, p. 271).

O movimento do cavaleiro da fé consiste a todo o momento em, uma vez ter efetuado o salto para o infinito e/ou eterno, recuperar o finito e/ou temporal. Este duplo movimento é a causa do espanto de Johannes de Silentio, porquanto além de ferir a ética de frente, isto é, de abandonar o universal, o que em todo caso seria uma ação compreensível, requer suficiente esperança para reencontrar o objeto antes renunciado, o que é totalmente

incompreensível. É nisto que consiste o absurdo do ato de Abraão. Aliás, constata Johannes Climacus na sua deixa sobre

Temor e Tremor: “A ética é a tentação. Foi

colocada a relação com Deus. A imanência do desespero ético foi rompida. O salto realizado. A notificação consiste no absurdo” (KIERKEGAARD, 1972, p. 52).

Dito isso, podemos perseguir, em

Temor e Tremor, algumas citações retiradas, sobretudo, da parte dedicada ao “Elogio sobre Abraão” (Lovtale over

Abraham) que, demonstram a nobreza de

seu ato, o que confere a ele, não obstante, o cognome de “pai da fé”. Citamos, por exemplo, quando ele foi posto à prova e, “vencida a tentação sem perder a fé, recebia, contra toda expectativa, o seu filho pela segunda vez (KIERKEGAARD, 1974, p. 255), pois, “se refletisse no absurdo da

viagem, nunca teria partido”

(KIERKEGAARD, 1974, p. 260). Importa observar, a esta altura, que, o que confere singularidade à ação de Abraão é o duplo movimento caracterizado pelo movimento de ascendência e de descendência. Abraão acreditou que, ao sacrificar Isaac (movimento de ascendência) ele o receberia novamente (movimento de descendência) e acreditou para esta vida. Eis o absurdo!

“Grande é alcançar o eterno, mas maior ainda é guardar o temporal depois de a ele ter renunciado” (KIERKEGAARD, 1974, p.161), precisa Johannes de Silentio. No entanto, ressalta que não se deve omitir na história do patriarca, como comumente se omite, a angústia. A subida ao monte Morija, ao contrário do que o pastor eloquente pensa, não acontece num abrir e fechar de olhos; a subida ao monte Morija implica as mais diversas contrações espirituais.

O absurdo do sacrifício, portanto, consiste em que Deus, pedindo a Abraão que sacrificasse Isaac, revogasse, de uma maneira ou de outra, seu pedido no instante seguinte (Cf. KIERKEGAARD, 1974, p. 270). Após tais considerações sobre o cavaleiro da fé, podemos finalmente

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acentuar uma comparação entre ele e o herói trágico, assim como, podemos contrapor ambos à ironia e ao humor. 5. O herói trágico, a ironia e o humor

versus o cavaleiro da fé

Comecemos, então, fazendo uma longa citação:

A moralidade é, como tal, o geral e a este último ainda o manifesta. Definido

como ser imediatamente sensível e psíquico, o Indivíduo é ser oculto. A sua tarefa consiste então em se libertar do secreto para se manifestar no geral. Todas as vezes que quer permanecer oculto, comete um pecado e entra numa crise de onde só pode sair pela manifestação. [...] Se não há um interior oculto, e justificado pelo fato de o Indivíduo como tal ser superior2 (høiere) ao geral, a conduta de Abraão é insustentável, porque desdenhou as instâncias morais intermediárias. Mas

se possui esse interior oculto, estamos em presença de paradoxo irredutível à mediação visto que repousa no fato de o indivíduo, como tal, estar acima do geral, e de este ser mediação (KIERKEGAARD, 1974, p. 301, grifo nosso).

Toda a temática do livro Temor e

Tremor, pelo que já observamos, parece

girar em torno do oculto, uma vez que é mais fácil confundir Abraão com um esteta do que com um ético, pois ambos atuam na dialética imanente. É preciso conferir, então, ao estético e ao religioso, cada um a seu modo, o interior oculto que lhe é de

2

Tradução ligeiramente modificada dos Søren Kierkegaards Skrifter. O tradutor de Temor e

Tremor para a língua portuguesa, talvez, a partir da

tradução francesa ou inglesa, confundiu, provavelmente, o termo dinamarquês høiere, traduzindo-o por inferior, quando na verdade a tradução correta seria superior. Conferir a edição eletrônica de Frygt og Bæven do Søren Kierkegaard Forskningscenteret 1997 na página 86 no respectivo site: http://sks.dk/fb/txt.xml.

direito, pois, sob este ponto, reside a gritante diferença entre o silêncio de ambos e que, como vimos acima, na definição dada por Johannes Climacus, o silêncio estético, comparativamente ao silêncio religioso paradoxal, é apenas brincadeira de criança. Isso ainda servir-nos-á para localizarmos bem o lugar que a ironia e o humor ocupam em Temor e Tremor, nosso interesse maior nesta investigação.

Pois bem, o silêncio estético, como ficou demonstrado, está aquém do cavaleiro da infinita resignação entendido eticamente, logo heroicamente. Em contrapartida, o silêncio religioso está no mesmo patamar ou além, considerado nas suas acepções respectivas de religiosidade universal (A) e de religiosidade paradoxal (B).

Sócrates é representado como modelo de religiosidade A, ou seja, como indivíduo, sob a égide da dialética imanente. É sabido que Sócrates, na visão de Johannes Climacus, pode ser considerado como um indivíduo ético, porém, na fronteira da religiosidade paradoxal. Daí que ele diz haver algo de análogo à fé na vida de Sócrates. Então qual é a distinção entre a ética sob o estereótipo do herói trágico e a ética entendida no sentido socrático? Vejamos.

O religioso A e o ético do ponto de vista dialético se mantêm no mesmo grau, mas, do ponto de vista antropológico, não. O ético tem por questão a afirmação de si pela escolha, já o religioso A acentua o acordo do homem com ele mesmo ou com a natureza (Cf. CLAIR, 1976, p. 291). Ao se afirmar o homem ético se afirma dentro de uma forma de vida perene plasmada no geral, ao passo que o religioso A e/ouético se basta a si mesmo. Nesse sentido, pode-se dizer que a ironia e o humor são, de um lado, conceitos estéticos e, de outro, conceitos éticos, no sentido dialético, quer dizer, no sentido socrático, portanto, novamente estético. Donde se segue que Sócrates “é um herói trágico intelectual” (KIERKEGAARD, 1974, p. 323).

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como modelo de religiosidade B. Com Abraão se torna possível suspender teleologicamente a instância ética; mostra-se, com ele, que há um dever absoluto para com Deus e, ademais, seu silêncio é moralmente justificado. Com Abraão são respondidas afirmativamente as três questões chave do livro: 1) “Há uma suspensão teleológica da moralidade?” (KIERKEGAARD, 1974, 238); “Há um dever absoluto para com Deus?” (KIERKEGAARD, 1974, 292); “Pode moralmente justificar-se o silêncio de Abraão perante Sara, Eliezer e Issac?” (KIERKEGAARD, 1974, 301).

“O seu silêncio não teria, como motivo, a vontade de entrar como Indivíduo em relação absoluta com o geral, mas no fato de ter entrado como indivíduo numa relação absoluta com o absoluto” (KIERKEGAARD, 1974, p. 308). Note-se bem: o silêncio estético é constantemente perturbado pelas exigências da ética. Mas seja como for, o esteta acaba trabalhando em favor do religioso. Curiosamente, somente o religioso “é capaz de salvar o estético na luta que trava com a ética” (KIERKEGAARD, 1974, p. 308). Com Abraão estamos em presença do paradoxo. Mas é preciso ressaltar que este paradoxo só pode ser considerado para um terceiro, ou seja, para aquele que assiste o movimento em virtude do absurdo e não para quem executa tal movimento.

Conclui-se, deste modo,

distinguindo o herói trágico intelectual, isto é, Sócrates, do cavaleiro da fé, isto é, Abraão, que “ou o Indivíduo pode, como tal, estar em relação absoluta com o absoluto, e neste caso a moralidade não é o supremo estádio, ou então Abraão está perdido; não é um herói nem trágico nem estético” (KIERKEGAARD, 1974, p. 320). 6. Considerações finais

Alcançamos, ao longo da análise, alguns resultados. Uma obra que invariavelmente é catalogada pela crítica, e

inclusive pelo próprio Kierkegaard, como estética, demonstrou-se ser muito mais do que isso, sem prejuizo, entretanto, para essa primeira impressão. Nela se discute, ainda que nas entrelinhas, as esferas: estética, ética e religiosa. Portanto, denominar

Temor e Tremor ou o seu autor

pseudonímico, Johannes de Silentio, com o epíteto estético, ético ou religioso torna-se absolutamente incongruente. Para P. Mesnard, por exemplo, Temor e Tremor seria, talvez a melhor introdução ao plano religioso (Cf. MESNARD, 2003, p. 31). O mais apropriado então seria considerar cada obra de Kierkegaard como ele mesmo sugere em Ponto de Vista Explicativo de

Minha Obra como Escritor, de 1855, como

integrada no todo da discussão, assim, por exemplo, nós vimos que existe uma íntima relação dela com a tese Sobre o Conceito de

Ironia...

Sendo assim, as indicações ao longo deste texto mostraram que se encontram no seio da discussão, de Temor e Tremor dois conceitos que estão, aparentemente, fora de contexto. São eles: o conceito de ironia e o conceito de humor. O que se pôde notar, ao contrário, foi uma absorção deles pela estética, bem como pela ética na fronteira da religiosidade B. Vimos que existe uma estética que acentua a superioridade da subjetivida frente a qualquer realidade e é a ironia e/ou o humor; mas existe, também, uma ética que faz oposição à estética, acentuando a superioridade do geral em detrimento do particular, que é o herói trágico. Existe, além disso, uma ética dialética, isto é, uma religiosidade estética que é novamente caracterizada pela ironia e/ou o humor. Há, por fim, uma reapropriação da subjetividade pela fé de Abraão, para o qual, a ética é inicialmente suspendida para posteriormente ser conservada.

Feito este percurso, é preciso concluir. Quisemos, ao refletir sobre Temor

e Tremor, é verdade, sair dos

lugares-comuns em que a crítica especializada constantemente submete essa obra, a saber:

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no debate entre a fé e a razão, corroborar ou não a tese segundo a qual esta obra teria sido escrita para Regina Olsen, etc. Seja como for entendida, o que se pôde notar nela, aqui, ainda que veladamente, foi, naturalmente, um debate acirrado com a tradição filosófica alemã, ou mais exatamente, com o Idealismo, quer seja na sua vertente romântica, quer seja na sua vertente filosófica acerca do tema da ironia amplamente estudada neste período. Dito isso, sem maiores pretensões, mas com o intuito de aprofundar nossa investigação acerca dos temas da ironia e do humor ao longo da produção de Kierkegaard, em uma outra ocasião, findamos nossa exposição.

Referências

CLAIR, André. Pseudonymie et Paradoxe - La pensée de Kierkegaard. Paris : Vrin, 1976.

EURIPIDE. Iphigénie a Aulis. Tomo VII. Paris: Les Belles Lettres, 1983.

GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Palavra e o

silêncio. Kierkegaard e a Relação Dialética entre a Razão e a Fé em Temor e Tremor. 2

ed. São Paulo: Fonte, 2009.

KIERKEGAARD, Søren A. Frygt og

Baeven. Edição eletrônica. Søren

Kierkegaard Forskningscenteret

Københaven 1997 http://sks.dk/fb/txt/.xml. ______. Temor e tremor. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 249-327. (Coleção Os Pensadores).

______. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2010.

______. O conceito de ironia

constantemente referido a Sócrates. 3 ed.

Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006.

______. Textos selecionados de S. Kierkegaard. Por Ernani Reichmann. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1972.

MESNARD, Pierre. Kierkegaard. Lisboa: Edições 70, 2003.

PERKINS, Robert L. (ed.). Fear and

Trembling and Repetition, International Kierkegaard Commentary. Macon: Mercer

Referências

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