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TRANS)GÊNEROS: É POSSÍVEL CRIAR CORPOS DIZÍVEIS FORA DOS

LIMITES DA MATÉRIA?

Denise da Silva Braga1

Resumo: As cenas emergentes colocam-nos o desafio de lidar com diferentes formas de pensar e de expressar os gêneros para além da perspectiva binária que, até recentemente, garantia certa estabilidade à nomeação dos corpos. Ademais à restrição imposta pela gramática normativa para a qual há toda uma configuração que enuncia o mundo como masculino ou feminino, presenciamos a incorporação de novas denominações como homens trans/mulheres trans que desorientam os esquemas normativos e nos obrigam a recorrer às descrições complementares e às comparações que reificam o masculino e o feminino para dizer (ou para compreender) os gêneros que não se enquadram na norma binária. Ainda que não saibamos dizê-lo, um mundo polimórfico se materializa, desnaturalizando as representações do que é ser homem e/ou mulher construídas, até então, de forma inequívoca a partir da genitália evidenciada nos corpos pelo arranjo biológico. Corpos produzidos, não apenas cosmética e cirurgicamente, mas reinventados pelo desejo e pela expressão criativa das identidades precipitam indagações as quais não estávamos habituados: como os corpos produzem gêneros para além da materialidade? Há limites para os corpos? Quem, ou o quê, os define? Neste texto, com o apoio teórico dos estudos transfeministas, discuto as reinscrições do gênero no contexto escolar, problematizando o impacto da visibilidade transgênera e a excrescência do discurso moral-biológico que fomenta o enfrentamento a uma propagada “ideologia de gênero”.

Palavras-chave:Sexualidades. Performatividade de gênero. Heteronormatividade.

1 Introdução

As cenas emergentes colocam-nos o desafio de lidar com diferentes formas de pensar e de expressar os gêneros para além da perspectiva binária que, até recentemente, garantia certa estabilidade à nomeação dos corpos. Ademais à restrição imposta pela gramática normativa para a qual há toda uma configuração que enuncia o mundo como masculino ou feminino, presenciamos a incorporação de novas denominações como homens trans/mulheres trans que desorientam os esquemas normativos e nos obrigam a recorrer às descrições complementares e às comparações que reificam o masculino e o feminino para dizer (ou para compreender) os gêneros que não se enquadram na norma binária.

Ainda que não saibamos dizê-lo, um mundo polimórfico se materializa, desnaturalizando as representações do que é ser homem e/ou mulher construídas, até então, de forma inequívoca a partir da genitália evidenciada nos corpos pelo arranjo biológico. Corpos “outros”, produzidos, não

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apenas cosmética e cirurgicamente, mas reinventados pelo desejo e pela expressão criativa das identidades precipitam indagações as quais não estávamos habituados: como os corpos produzem gêneros para além da materialidade? Há limites para os corpos? Quem, ou o quê, os define?

Neste texto, discuto as reinscrições do gênero e as repercussões que se evidenciam no contexto escolar, problematizando o impacto da visibilidade dos gêneros e sexualidades “outras” e a excrescência do discurso moral-biológico que fomenta o enfrentamento a uma propagada “ideologia de gênero”.

2 Eu nasci assim: nomeações e amoldamento social dos corpos

As premissas a partir das quais as sexualidades e gêneros são socialmente referidos ainda estão fortemente arraigadas nas concepções naturalizadas que reproduzem a ideia de que há apenas dois sexos que se evidenciam em corpos masculinos ou femininos, naturalmente distintos biológica e fisionomicamente e reconhecíveis em modos de ser diversos – mas, perfeitamente identificáveis, sobremaneira, pela genitália e pelo sistema reprodutivo. Dessa forma, prevalecem e são disseminados nos meios sociais, saberes que afirmam “o que” é e “como” ser homem ou mulher, restringem os corpos a uma performance estereotipada de masculinidade e de feminilidade e conformam os discursos sobre as sexualidades e gêneros às perspectivas de uma heterossexualidade hegemônica. Ou seja, os corpos e prazeres estão, desde sempre, submetidos a um conjunto de regulações sociais que os constituem como “[...] uma inteligibilidade e uma coerência entre sexo, gênero, prazeres e desejos e funcionam como princípio hermenêutico de auto-interpretação” (VIEIRA, 2006, p. 39). Neste sentido, o gênero não é, pois, o que somos, nem o que temos, mas o mecanismo através do qual as noções de masculino e de feminino são produzidas e naturalizadas (LANZ, 2014).

Entretanto, o sistema binário e dicotômico que reduz as possibilidade de corpo e sexo à cisgeneridade2 e à heterossexualidade encontra fissuras ante as identidades sexuais e de gênero que

2 Cisgênero: do latim cis = do mesmo lado. O termo é utilizado para indicar que a identidade de gênero está em

consonância com o gênero atribuído a pessoa no seu nascimento: quando sua conduta psicossocial expressa, nos atos comuns do dia-a-dia, aquilo que a sociedade tem como conforme ou desejável, de acordo com o seu padrão de feminilidade ou masculinidade. Indivíduos cisgêneros estão de acordo, e normalmente se sentem confortáveis, com os códigos de conduta e papéis sociais atribuídos ao gênero a que pertencem, ao contrário de indivíduos transgêneros que, de muitas e variadas formas, se sentem desajustados em relação aos rótulos de gênero que originalmente receberam ao nascer (LANZ ,2014). Tenho algumas dúvidas em relação à utilização do termo cis*, principalmente por reconhecer que ele universaliza masculinidades e feminilidades como se houvesse uma versão monolítica do que é ser homem e ser

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se evidenciam e desestabilizam as (hetero)sexualidades normativas nos espaços mais abertos da cena contemporânea. Constatadas a emergência e a visibilidade de novos/outros sujeitos cujas vidas não se comportam nas experiências restritivas dos corpos e as intensas discriminações e cerceamentos políticos de que são alvos as pessoas que não conseguem/podem inscrever-se na esfera da inteligibilidade social, enfatiza-se a necessidade de rompimento com o dispositivo binário que torna possível manter a relação mimética entre gênero e sexo, ao afirmar que o primeiro está determinado pelo segundo.

Butler (2003) instiga a construir uma forma de pensamento na qual o corpo deixe de ser um meio passivo sobre o qual se inscrevem os significados culturais e passe a ser pensado também como uma produção performativa. A autora argumenta que os atributos de gênero são melhor compreendidos se pensados como performativos e não como preexistentes de modo que, na prática reiterativa, os corpos não obedecem cegamente às normas reguladoras pelas quais sua materialidade é fabricada. Portanto, exatamente porque se torna necessária a repetição ritualizada daquilo que o corpo é, é que a lei reguladora pode ser aproveitada numa repetição diferencial. Desse modo, os corpos não se conformam integralmente às expectativas sociais e acabam produzindo identidades “outras” que, embora pretendam ser o mesmo, não o podem tornar-se.

O que escapa, desliza na reprodução performativa do gênero atua, portanto, como estratégia de subversão na criação de outras possibilidades de vida e ocasiona a sua ressignificação e a sua proliferação para além dos dispositivos binários. Por conseguinte, a repetição das normas da matriz hegemônica de inteligibilidade que reifica a cisgeneridade e a heterossexualidade torna-se ela mesma uma repetição subversiva, à medida que a ação reguladora, ao forçar a repetição, produz possibilidades de vida que não apenas ultrapassam os limites como, efetivamente, expandem as fronteiras do que é culturalmente inteligível. Neste processo

[...] o sujeito não decide sobre o sexo que irá ou não assumir; na verdade, as normas regulatórias de uma sociedade abrem possibilidades que ele assume, apropria e materializa. Ainda que essas normas reiterem sempre, de forma compulsória, a

mulher que transcendesse a produção individual de corpos e gêneros que acontece nas diversas culturas e dentro de determinados grupos. Padrões de gênero sustentam práticas sexistas, heterossexistas e transfóbicas e referendar que existam tais padrões traz sempre o risco de manutenção da normalidade, ainda que pela inserção de um novo vocábulo. As opções, no entanto, são tão mais explicitamente arriscadas que opto pelo uso do termo, tentando ressaltar a sua potencialidade na construção de outra gramática que não seja aquela que nomeia corpos e gêneros biológicos, naturais ou normais. Politicamente, ainda que de modo não consensual, o uso do termo tem emergido nos ativismos e trabalhado pelas pessoas a quem as nomeações afetam mais direta e profundamente. É uma experimentação, portanto. Vejamos como essa tentativa repercutirá naquilo que tem sido o nosso esforço, dentro e fora da produção nesse campo acadêmico: criar formas mais humanas de narrar todas as vidas humanas.

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heterossexualidade, paradoxalmente, elas também dão espaço para a produção dos corpos que a elas não se ajustam. Esses serão constituídos como sujeitos “abjetos” – aqueles que escapam da norma. Mas, precisamente por isso, esses sujeitos são socialmente indispensáveis, já que fornecem o limite e a fronteira, isto é, fornecem “o exterior” para os corpos que “materializam a norma”, os corpos que efetivamente “importam” (LOURO, 2001, p. 549).

A noção de performatividade problematiza as oposições binárias entre sexos e gêneros e as hierarquias provenientes desses binarismos, evidenciando que essa forma de pensamento está fundada na determinação de posições EU/outro, NÓS/eles nas quais o “outro” aparece sempre em desvantagem. A lógica binária, como categoria ordenadora das práticas, dos saberes e das relações dos sujeitos, pressupõe o polo inicial (eu/nós) como normal, natural, compulsório – em oposição ao polo subordinado que aparece como antinatural, inferior, “outro” (FOUCAULT, 1998).

Há uma relação ambivalente entre a necessidade da repetição para a afirmação do que a norma é e o reconhecimento, ainda que não dito, de que é preciso constranger à repetição até que se institua como verdade aquilo que deve ser a norma. A potencialidade da repetição, neste sentido, é a possibilidade de subversão que a ela subjaz. Subversão que, neste aspecto, não se impõe como força evidente de oposição declarada e transparente à norma e que se situa fora dela, mas como operação ambivalente que age no interior da própria norma, produzindo deslocamentos e colocando em questão a ideia de que há uma norma verdadeira e inequívoca que deve ser contínua e fielmente repetida. Assim, a criação do anormal/outro é, ao mesmo tempo, efeito da repetição da norma e condição do seu funcionamento e, de modo ambivalente, é em relação a esse outro que faz sentido instaurar, validar e ratificar a norma. Afinal, para o funcionamento dos dispositivos binários é primordial que exista a oposição sobre a qual o poder normalizador possa ser exercido, visto que a legitimação de categorias universalizantes e a ação da autoridade que a impõe como central “[...] requer a produção de diferenciações, individuações, efeitos de identidade através das quais as práticas discriminatórias podem mapear populações sujeitas” (BHABHA, 2007, p. 161).

Assim, se é possível pensar que a norma se faz, se repete e se desvia em si mesma, resta ainda alguma tentativa de controle sobre os efeitos dessa desregulação do corpo? Como são vistos e ditos os corpos cuja referência sexo-gênero se volatizou? O que fazer com corpos, sexos e gêneros que não podem sequer ser nomeados na gramática disponível? Se o poder age a partir das hierarquizações originadas nas nomeações e nos binarismos, como operar sobre corpos que não podem ser lidos, nomeados, ditos? Não sendo ditos, como afirmar que esses “outros” corpos existem? Qual a possibilidade de tornar vivíveis “[...] pessoas que vivem em paradoxos identitários

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estão sujeitas ao não-reconhecimento por manterem uma relação crítica com as normas e, portanto, serem consideradas menos humanas do que as “ajustadas”, as “normais” [?] (PINO, 2007, p.165).

Nas cenas emergentes visibilizam-se sujeitos que, embora deslizem daquilo que se afirma como norma, são constituídos por ela e, mesmo que as suas vidas evidenciem a possibilidade de ser “outro”, também os colocam como figuras contraditórias, alvo de tentativas de apagamento, “[...] invisibilizados e desfeitos como se não fossem parte do que se considera humano” (PINO, 2007, p. 165. Grifo da autora). É nesse contexto que se encontram os “corpos estranhos” das pessoas não-binárias, travestis, transexuais, intersexuais, dragqueens, genderqueer: corpos que extrapolam os limites convencionais, escapam à inteligibilidade e vivem dentro dos discursos como figuras não questionadas, indistintas, como se não tivessem conteúdo ou se não fossem reais, mas que, ainda assim, produzem outras estéticas, outros prazeres, outras formas de ser e de não ser homens e/ou mulheres. São pessoas que, fora dos limites da heteronormatividade, experimentam processos de desterritorialização do corpo e resistência aos mecanismos de construção da normalidade (PRECIADO, 2002). Tais pessoas convertem as representações negativas e as tecnologias médicas de amoldamento dos corpos às estéticas socialmente desejáveis na produção de corpos cada vez mais desviantes, imprecisos, inclassificáveis e exóticos, optando pelo uso radical dos recursos políticos da produção performativa das identidades desviadas (PRECIADO, 2002) e mobilizando as suas posições de sujeitos abjetos para produzir pertencimentos fronteiriços, dissidentes.

Para os sujeitos cuja condição desliza para a margem da norma é criado todo um aparato social para instaurar o seu lugar de “outro”. Ser “outro”, neste sentido, equivale a não ser, a algo que saiu errado, que não é real. As práticas de afirmação do lugar subalterno do “outro” se expressam na materialização das suas condições de vida, assinalando que não é importante assegurar o seu pertencimento e dignidade. Por isso: prevalecem inquestionadas as separações dos banheiros para homens (com pênis) e para mulheres (com vagina); o nome “válido” é o que consta nos registros oficiais de nascimento; a gramática se compõe de apenas dois gêneros.

3 Esse “outro” que não sei dizer o nome: sobre-viver fora da norma

O evidenciamento de corpos-outros no espaço-tempo hodierno nos possibilita, ao menos, vislumbrar a materialidade corpórea para além da expectativa cisgênera. O evidenciamento das rupturas na sequência heteronormativa amplia o cenário das vidas possíveis mas, também, funciona como estratégia de controle, pois, ao identificar tais possibilidades de ruptura, permite colocar em

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ação o que Preciado (2002) chama uma “tecnologia sexual heteronormativa”. Ou seja, um conjunto de aparatos institucionais que corrige e produz corpos-homens e corpos-mulher (PRECIADO, 2002, p. 29). Neste sentido, os atos “[...] performativos do gênero são fragmentos de linguagem carregados historicamente do poder de investir um corpo como masculino ou como feminino, bem como sancionar os corpos que ameaçam a coerência do sistema sexo / gênero até o ponto de submetê-los a processos cirúrgicos de ‘cosmética sexual’” (PRECIADO, 2002, p. 29).

A emergência dos corpos e gêneros “outros” no espaço público tem, pois, um papel ambíguo, à medida que

O gênero é, antes de tudo, um conceito necessário para a aparição e o desenvolvimento de um conjunto de técnicas de normalização/transformação da vida: a fotografia dos “desviados sexuais”, a identificação celular, a análise e o tratamento hormonais, a leitura cromossômica, a cirurgia transexual e intersexual (PRECIADO, 2009, p. 22).

É possível ser qualquer outra coisa que não seja adesão ou contestação da masculinidade ou da feminilidade hegemônica? É possível estar indefinidamente em trânsito? Como inscrever na esfera social uma reivindicação primeira não seja transformar-se, mudar de forma, ir de um corpo indesejável, inadequado, para outro inequivocadamente masculino ou feminino? Pessoas nascem em corpos equivocados, ou serão equivocadas as expectativas que as aguardam nesse mundo pronto, no qual apenas homens e mulheres podem existir – mesmo como corpos transformados? Por que ter pênis, seios e vagina - como condicionante sexual e de gênero – sobrepõe-se às identidades expressadas pelas pessoas para as quais o gênero não é um atributo adquirido, exclusivamente, a partir da genitália? Sujeitos sentem-se “pertencentes ao outro sexo”, ou apenas experienciam seus corpos de modos que não se compatibilizam com as expectativas sociais fundadas nos dispositivos binários?

As pessoas existem em corpos conformes, ou não. Elas vivem e produzem a sua própria experiência de viver em condições boas ou más, independentemente de serem aceitas, desejadas ou visibilizadas nos espaços de legitimidade social. São vidas que se produzem fora das convenções, dos enquadramentos, dos discursos colonizados que transformam em descrição, nomeiam e decidem lugares de pertencimento. E, sendo assim,

[...] uma figura viva fora das normas da vida não somente se torna o problema com o qual normatividade está fadada a reproduzir: está vivo, mas não é uma vida. Situa-se fora do enquadramento fornecido pela norma, mas apenas como um duplo implacável cuja ontologia não pode ser assegurada, mas cujo estatuto de ser vivo está aberto à apreensão (BUTLER, 2015, p. 22).

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Apreender uma vida é uma forma de conhecimento que, embora não possa assegurar um pleno reconhecimento, está “[...] associada com o sentir ou o perceber, mas de maneiras que não são sempre – ou ainda não são – formas conceituais de conhecimento” (BUTLER, 2015, p. 18). A gramática disponível é normativa: induz pensar que se pode falar de modo inteligível de cada possibilidade de vida que é possível nomear. Desta forma, ao narrar uma vida, nós a criamos como possível de ser relatada e as vidas vivíveis passam a se compor de descritores que são constituídos pela conjugação daquilo que podemos reconhecer como possibilidade e das formas disponíveis para imprimir a sua presença nos discursos. Isto não implica negar que corpos são, também, constituídos de materialidade: corpos são matéria. Porém não se trata de um projeto finalizado, mas de algo sobre o qual as pessoas agirão e criarão sentidos.

Corpos não-conformes denunciam a nossa reduzida capacidade de reconhecimento da multiplicidade de experiências corpóreas que, vivas, não se resumem às configurações binárias da linguagem. Mulheres com pênis, feitas e ditas por si mesmas; homens com vagina, com barba, com seios removidos cirurgicamente; prazeres fabricados em corpos que desafiam as formas colonizadas de falar sobre eles. Pessoas cuja ação criativa sobre si mesmas implica, não raramente, a sua exclusão dos esquemas socioculturais, como sujeitos de direitos.

Neste cenário em que se percebem com maior clareza as discriminações e onde há o compartilhamento do sentido de que todas as vidas devem se construir com direitos ao pertencimento e à participação social, são cada vez mais frequentes as lutas por visibilidade, parte inicial de um processo que deverá impulsionar práticas de reconhecimento. Tal processo torna necessário, de antemão, assumir que as discussões sobre os gêneros e as sexualidades são pauta política e que devem perpassar todos os espaços que produzem conhecimento, pois o reconhecimento

[...] caracteriza um ato, uma prática ou mesmo uma cena sujeitos, então a “condição de ser reconhecimento” caracteriza as condições mais gerais que preparam ou modelam um sujeito para o reconhecimento – os termos, as convenções e as normais “atuam” do seu próprio modo, moldando um ser vivo em um sujeito reconhecível, embora não sem falibilidade ou, na verdade, resultados não previstos. Essas categorias, convenções e normas que preparam ou estabelecem um sujeito para o reconhecimento, que induzem um sujeito desse tipo, precedem e tornam possível o ato do reconhecimento propriamente dito. Nesse sentido, a condição de ser reconhecido precede o reconhecimento (BUTLER, 2015, p. 19).

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As sociedades se organizam educativamente utilizando-se de uma pedagogia especializada em garantir a consecução dos seus objetivos por meio da implantação de versões normalizadas de sujeitos que o currículo produz e põe em circulação. No que tange às sexualidades e gêneros, tal pedagogia se fundamenta em um projeto de formação cuja estratégia é o investimento na produção de sujeitos que respondam às expectativas sociais sobre seus corpos, sexos e gêneros. Ao mesmo tempo, práticas comumente referidas como de “reconhecimento e respeito à diversidade” intensificam processos de vigilância que permitem identificar e nomear o “outro”, o que abre a possibilidade do exercício do controle sobre o modo de ser “outro”, criando descrições que, novamente, encapsulam a possibilidade de emergência das subjetividades e das expressões particulares dos corpos e gêneros.

Apesar dos crescentes debates sobre a incorporação dos gêneros e sexualidades aos currículos escolares, especialmente a partir da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), nos cenários escolares prevalece o caráter prescritivo e disciplinador do currículo. Como apontam Meyer, Ribeiro e Ribeiro (2007, p. 229)

A compreensão de natural, muitas vezes compartilhada na escola, exclui o caráter de construção das identidades sociais, da multiplicidade, da provisoriedade e da contingência do humano, bem como dos aspectos históricos, sociais, culturais e políticos que envolvem a produção dos discursos em educação.

A pedagogia da sexualidade a partir da qual são discutidos e criados currículos que incorporam a diferença assume a perspectiva da “diversidade sexual e de gênero”. A demarcação do espaço de visibilidade das sexualidades e gêneros não-conformes (quase exclusivamente) no terreno da diversidade sancionam a ideia de que há um centro sobre o qual diferir e enfatizam posições de “outro” cuja matriz é a cisgeneridade e a heterossexualidade. Assim, as referências de sexo e gênero continuam inquestionadas, entendendo-se o gênero como uma construção social (“normal” ou “desviante”) constrangida por um sexo (genitália) dado no nascimento ao qual toda ação criadora será entendida como recusa ou subversão a um componente ontológico natural e inquestionável: ser homem/ser mulher.

Na perspectiva da diversidade, ainda que se admita um leque maior de expressões de gênero, elas sempre se darão pelo amoldamento, ou pela contestação de determinado padrão obtido pela recorrência ao que é próprio do masculino e do feminino. Deste modo, independente da proliferação das interpretações performativas do gênero, a exigência de uma filiação homem/mulher subordinada aos caracteres biológicos de nascimento mantém inalterado o pressuposto da normalidade. E, com isto, pouco se questiona a construção dos padrões de gênero que permanecem

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organizados pelas normas reprodutórias, binárias e conformes: mulheres têm vagina, homens têm pênis. Além, ratifica-se o pressuposto de que as possibilidades se resumem a dois gêneros: masculino e feminino.

Tais perspectivas, no espaço-tempo escolar, têm sido submetidas a intensos debates em vários segmentos sociais, principalmente a partir da supressão da discussão da questão do gênero do Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014). Neste contexto, ganhou evidência, também, o questionamento da escola como parte de um projeto de instauração da alardeada “ideologia de gênero”. Não obstante, o assunto entrou na pauta das mais reiteradas lutas políticas a partir do proposto no Projeto de Lei 1.859, de 2015 que acrescenta Parágrafo único ao artigo 3º da Lei de Diretrizes e bases da Educação nacional – LDBEN, n. 9.394/96 para “[...] prever a proibição de adoção de formas tendentes à aplicação de ideologia de gênero ou orientação sexual na educação”:

Art. 3º.………...………...

Parágrafo único: A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual.

Concordando com Biroli (2015), o uso da expressão “ideologia de gênero” é muito sintomática da orientação ideológica a que se refere o Projeto, orquestrado por setores conservadores da sociedade que intencionam eliminar das diretrizes educacionais orientações para a valorização e respeito à diversidade sexual e para a superação das desigualdades de gênero e sexuais. Como potência, o ataque a uma política educacional que reconheça e valorize uma perspectiva contra hegemônica de viver corpos e sexualidades abre um espaço importante de discussões e visibilidade que tensiona o discurso de uma sociedade que se declara multicultural, mas que se organiza de forma sexista e heterossexista, produz e silencia violências.

5 Considerações finais

O constante tensionamento das vozes que, ora declaram a fluidez e a multiculturalidade do espaço social contemporâneo, ora empenham-se em produzir estratégias de contenção da diferença evidencia a necessidade de problematizar de forma mais vigorosa os dispositivos normativos que, ainda que reinventados, continuam a instituir modos únicos de vida.

A visibilidade desses novos/outros sujeitos e seus modos de vida nos cenários comuns, inclusive nos currículos escolares, acentua a necessidade de novas abordagens que incluam as sexualidades e gêneros “outros” no espaço de inteligibilidade habitado, quase exclusivamente, pelos sujeitos que se vinculam à norma heterossexual e cisgênera. A tarefa que se impõe é pensar formas

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de combate aos sexismos, confrontar as normas de gênero e, ao mesmo tempo, lidar com a necessidade do reconhecimento social de sujeitos cujos discursos não conseguem traduzir, conferir materialidade, decodificar, porque os seus referentes não estão construídos na linguagem. Isto, sem criar novos espaços de colonização que, novamente, reduzem as possiblidades de identificação às tentativas de reprodução e ao enquadramento ao que está previamente descrito (ainda que como “outro’).

Referências

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BIROLI, Flávia. O que está por trás do boicote religioso à “ideologia de gênero”. Revista Forum Online, junho, 2015. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br. Acesso em: 06 de junho de 2017.

BRASIL. Plano Nacional de Educação 2014-2024: Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014. (Série legislação, n. 125)

BRASIL/MEC/Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: pluralidade cultural e orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997.

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização

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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 13 ed. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

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LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. 4 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

MEYER, Dagmar E. Estermann; RIBEIRO, Cláudia; RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. Gênero, sexualidade e educação: ‘olhares’ sobre algumas das perspectivas teóricometodológicas que

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instituem um novo G.E. In: 27ª Reunião Anual da ANPED, 2007. Disponível em:< http://www.ded.ufla.br/gt23 /trabalhos_27.pdf> . Acesso em 06 jun.2017.

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VIEIRA, L.L.F. A pulsão como princípio da diferença. In: VIII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental (Anais), v. 2, 2006, São Paulo, p. 35-45.

(Trans)Genders: is it possible to create saying bodies outside the limits of matter?

Abstract:Emerging scenes pose the challenge of dealing with different ways of thinking and expressing genres beyond the binary perspective that, until recently, guaranteed certain stability to the naming of bodies. Moreover to the restriction imposed by normative grammar for which there is a whole configuration that enunciates the world as masculine or feminine, we witness the incorporation of new denominations as trans men/trans women that disorient our normative schemes and force us to resort to complementary descriptions and comparisons that reify the masculine and the feminine to say (or to understand) the genres that do not fit into the binary norm. Although we do not know how to say it, a polymorphic world materializes, denaturalizing the representations of what it is to be a man and /or a woman built, until then, unequivocally from the genitalia evidenced in the bodies by the biological arrangement.Bodies produced, not only cosmetically and surgically, but reinvented by the desire and the creative expression of identities lead to questions we were not accustomed to: how do bodies produce genres beyond materiality?

Are there limits to the bodies? Who, or what, defines them?In this paper, with the theoretical support of the transfeminist studies, I try to discuss the reinscriptions of the genre in the scholl context, problematizing the impact of transgender visibility and the excrescence of the moral-biological discourse that foments the confrontation against a propagated "gender ideology".

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