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SOBRE O MAL: da radicalidade à banalidade

RESUMO

Maria Olilia Serra' Cacilda Bonfim e Silva"

Abordagem teórico-conceitual sobre a questão do mal em dois momentos específicos da história do pensamento, na modernidade, com lmmanuel Kant ena contemporaneidade com Hannah Arendt. Mostra-se o momento em que o problema do mal é deslocado das esferas da religião eda Teodicéia para a moral, propondo a retomada de suareflexão no âmbito político. Infere-se ainda, os conceitos de Mal Radical e Banalidade do Malmediante seus significados para a História.

Palavras-Chave: Kant;Hannah Arendt; mal,Mal Radical; Banalidade do Mal; moral; política.

ABSTRACT

Theoric-conceptual approach aboutthe question of evilin two specific moments of the thinking history, in the modernness with lmmanuel Kant and in the contemporaneousness with Hannah Arendt. The moment inwhich the evilproblem is dislocated from Theodicea and religion spheres to the moral, is showed, suggesting the retaking of the reflection about the evil inthe bounds of politics. Inferring still, the concepts of Radical Eviland Banality of Evilthrough it'smeanings tothe History,

Key-word: Kant;Hannah Arendt; evil;Radical Evil; Banality ofEvil; moral; politics.

1 INTRODUÇÃO

Desde que ohomem toma cons-ciência de sua existência como ser-no-mundo, direciona suas interrogações para este, para si próprio epara Deus. Entretanto, é historicamente admitido que dessas interrogações, a que se re-fere aopróprio homem é amais crucial, posto que engendra a significação para

que as outras indagações possam ser formuladas.

Perguntar a respeito do homem adquire toda sua relevância já entre os gregos, soloinauguralda Filosofia, prin-cipalmente no chamado período socrático. A questão que perpassa toda a filosofia de Sócrates: "o que é o ho-mem?", pode ser evidenciada em uma das passagens do diálogo Fedro, de

• Professora Assistente do Departamento de Filosofia da UFMA. ** AJuna do Curso de Filosofia da UFMA.

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Platão. Passeando com seu mestre Sócrates, Fedro ultrapassa asportas de Atenas. O mestre fica maravilhado com a paisagem e o discípulo pergunta:

"nunca cruzais a fronteira?" Sócrates responde:

É verdade, meu bom amigo, e espero que me desculpes qua n-do ouvires omotivo, isto é,que sou um amante do conhecimen

-toeoshomens que habitam na cidade sãomeus mestres, e não árvores nem o campo. (CASSIRER, 1984,p.20). Desde então, a preocupação demarcada por Sócrates adquire força e atualidade até o tempo presente insti-gando osautores dasmais diversas

áre-as a indagarem sobre o homem.

Conhecer sua natureza significa, de fato, refletir sobre a existência humana em todas as suas dimensões, seja do ponto devistasocial,político, religioso,

estético ou ético. Contudo, uma das questões mais desafiadoras para os estudiosos conceme à problemática do mal, com toda asua enigmaticidade, o seu "fundo tenebroso, nunca comple-tamente desrnistificado." (RICOEUR,

1988,p. 26).

O questionamento sobre o mal apresenta-se estruturado em diversos discursos nosníveis rnítico,filosófico e teológico. Mastodostêm como fio

con-dutor as seguintes perguntas: O que é o mal? De onde vem o mal? Por que fazemos o mal?

O mal é o maior dosdesafios para

a filosofia e a teologia, pois envolve o questionamento das concepções de Deus vigentes na cultura ocidental, a saber: como um Ser onipotente e

ab-solutamente Bom. É um desafio

por-que nos coloca diante de uma

contradição: a existência de Deus e a existência do mal - sofrimento, dor, morte. Sendo assim, o mal é um enig

-ma aser decifrado nos planos do pen-samento, dosentimento eda ação, esta última, entendida no sentido moral e político.

Após essas considerações histó

-ricas acerca da questão do mal, cum -preressaltar que nossa abordagem tem em vista apresentar o conceito de mal

em dois momentos específicos da h is-tória do pensamento filosófico e políti-co: na modernidade, com lmmanuel Kant(1724-1804) e sua doutrina do Mal Radical', ena contemporaneidade, com Hannah Arendt (1906-1975) e sua re-flexão sobre a Banalidade do Mal no contexto político.

O filósofo Immanuel Kant,emsua doutrina do Mal Radical recorre àn ar-rativa bíblica do pecado original e utili-za-a comoilustração simbólica dealgo que radica na própria natureza hu ma-na: umapropensão inextirpável para o mal. Com aradicação do mal na natu-reza humana, o Autor coloca a origem deste, na esfera inteligível do homem,

na esfera da liberdade, ou seja, da moralidade.

Por essa via apontada por Kant o mal só pode emergir deuma decisão IPara a formulação do Mal Radical, Kant recorre aduas tradições: ahistória das religiões ea filosófica. Na primeira, encontra uma cnncepção pessimista do mundo pois este começa com a vida no Paraíso,

portanto, com oBem, estado que logo desaparece. asegunda, identifica a concepção otimista na qual

o mundo progride do mal para o melhor, de forma in.interrupta, mesmo que não seja perceptível.

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nascida da liberdade em tomar como

máxima do livre-arbítrio, um motivo contrário à lei moraF. Em que pese

portanto, o apelo àlei moral para o c um-primento dodever. Ohomem, por cau

-sadolivre-arbítrio, pode escolher entre o bem e o mal. Aqui, o mal nasce das condições do exercício da liberdade sendo responsabilidade do homem e não mais de Deus. Desse modo, Kant abala abase dodiscurso ontológico em

que se edifica aTeodicéia', colocando

-a n-a esfer-a da"Ilusão Transcendental" tal como se apresenta na Crítica da Razão Pura.

Para apensadora contemporânea

Hannah Arendt, a tradição filosófica

não pôde conceber um Mal Radical sendo Kant, o único filósofo que sus-peitou de sua existência, embora, o ra-cionalizasse no conceito de "vontade

pervertida", que poderia serexplicada

por motivos compreensíveis.

Overdadeiro mal radical, segun -do a Autora, surgiu em um sistema no qual os homens tomaram-se supérf

lu-os, ouseja,foram tratados como meios enão como fins em si mesmos. O

sis-tema que transformou os homens em

seres supérfluos é ototalitário, mais es -pecificamente o Estado Totalitário, cujos pilares são a ideologia e o terror.

A legitimidade totalitária, diz

Hannah Arendt, desafiando alegalida -de e pretendendo estabelecer direta

-mente o reino da justiça na terra, exe-cuta a lei da História ou da natureza sem convertê-Ia em critérios de certo e errado que norteiam a vida indiv

idu-al.Assim, em um regime totalitário tudo é possível, tudo é permitido; os homens tornam-se supérfluos, e conseqüente

-mente os motivos também. Porém, quando os motivos se tomam supérflu -os, o mal ébanal.

2

O MAL RADICAL:

Kant Kant (1974, p.224) afirma em sua filosofia moral e política que o homem é um valor absoluto, pois é fim e não meio - para eletodo ser racional existe como fim em si mesmo e não como meio para o uso arbitrário das vonta-des. Assim, só o homem possui valor absoluto e o imperativo prático é: "age de tal maneira que uses a humanidade, tanto natua pessoa como napessoa de

qualquer outro, sempre e simultan ea-mente como fime nunca simplesmente como meio" -,posto que como ser ra

-cional elivre só obedece àsleisque ele próprio se estabelece enisto consiste a suadignidade.

Ora, se o homem é fim e não meio, deveria haver uma convivência harmoniosa ede respeito entre todos, o que não acontece na experiência. Po-rém, Kant detecta a seguinte queixa:

que omundo vaidemal apior.Écomo

2Alei moral éum princípio objetivo, válido pra todo ser racional, princípio segundo o qual ele deve agir; por isso alei caracteriza-se pela universalidade. Afórmula fundamental do imperativo categórico, pri

n-cípio formal detodos osdeveres, doqual se devem deduzir asmáximas que regulam a ação humana é:"Age de tal modo que a máxima vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como principio de uma legislação universal." (KANT, 1994, pA2).

3Expressão criada por Leibniz em sua obra: Estado de Teodicéia sobre aBondade de Deus, a Liberdade do Homem ea Origem doMal (1710) para demonstrar que existe justiça divina nasolução dos problemas

do mal eda liberdade humana.

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seo mundo começasse pelo Bem,

mo-mento que é associado ao próprio P

a-raíso, lugar em que ohomem vivia em comunidade com seres divinos; e ago

-ra, encontra-se em um processo de

de-cadência acelerada para o mal,

aproximando-se da ruína final.

Contrária a essa opinião, há os que

acreditam que omundo caminha, mes

-mo imperceptivelmente, do mal para o

melhor, de acordo com uma ordem ins

-crita naprópria natureza humana. Mas

para Kant, essa crença não é tirada da

experiência, pois o moralmente bom ou

mauéumpressuposto, haja vista que a

fala da história depõe contra anatu

re-zahumana. Oque nos mostra a expe

-riência é que os homens vivem em

constante antagonismo, deixando-se

levar pelas inclinações, criando um

es-tado em quereinam ocapricho, a a

rbi-trariedade, enfim, um estado análogo

aohobbesiano: de guerra de todos co

n-tatodos.

Tal condição evidencia uma p

ro-pensão perversa do homem, oque leva

Kant a formular a seguinte proposição:

ohomem é mau por natureza.

O homem é mau, porque tendo

consciência da lei moral admite que

pode afastar-se dela. Essa afirmação

é feita por Kant na doutrina do Mal

Radical, quenos diz que ohomem en

-quanto gênero, não enquanto indivíduo

particular, émau por natureza.

Significa que isto vale para ele considerado em sua espécie; não que tal qualidade pudesse serdeduzida de seuconceito da espécie (deumhomem emgeral) pois então seria necessária, mas que, namedida que o conhece

-mos por experiência, não pode ser julgado de outro modo ... (KANT, 1974,p.376)

Esta afirmação contida em sua

obra: A Religião nos Limites da Sim-ples Razão escandalizou os c

ontem-porâneos do filósofo, pois foi

considerada como uma afronta aos

pressupostos da Aufklãrung (Esclare

-cimento), já que viam na doutrina do

mal a restauração do dogma do peca

-dooriginal, considerado uminimigo do

progresso indefinido da espécie huma

-na. Tal exposição, sódeixou de pasmar

ospensadores, já em pleno século XX,

com as experiências das duas grandes

guerras. Tristes experiências, com o

suporte da ciência, da técnica, enfim,

da razão ensandecida, que evidenciou

a crítica deKant à própria razão, pois

embora esta seja a instância suprema

dohomem, apresenta seus limites, pos

-to ser finita.

Sendo assim, o tema do malemer

-gena filosofia kantiana como doutrina

do Mal Radical naqual evidenciam-se

oslimites do agir moral e a insuficiê

n-ciada razão que, posta perante um o

u-tro que a envolve, se descobre ela

mesma incompreensível. No entanto, é

esta condição que constitui o cumpri

-mento do destino do próprio filosofar,

pois, desde o princípio, a razão tem

como tarefa certificar-se dos seus li

-mites.

Como a propensão para omal está

enraizada na própria humanidade, uma

pergunta deve ser feita: como se pode

provar a realidade do Mal Radical?

Segundo Kant, basta recorrer à expe

-riência com seus exemplos gritantes,

dispensando, assim,qualquer prova for

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mal. Pode-se também, tomar em con

-sideração os povos em suas relações

externas, pois há entre eles um gros

-seiro estado de natureza ou constante

disposição de guerra que não se

intenciona abandonar. Essa condição comparada com osprincípios das gran

-des sociedades chamadas Estados, só contradiz:

o quiliasmo filosófico, que

es-pera um estado de pazperpétua

fundado numa liga de povos

como república mundial, é uni -versalmente motivo de riso,

como fanatismo, bem como o

teológico, que espera uma me

-lhora moral de todo gênero

humano. (KANT, 1974,p.377).

Considera-se ainda,que para Kant a sensibilidade não pode fundamentar o mal moral, porque ela tomaria o ho

-mem moralmente bestial. Mas, a razão que libera da lei moral, o queseria uma razão ao mesmo tempo maligna, faria do sujeito umserdiabólico. Desse pon

-tode vista, resta observar que há lim

i-tes para o mal radical. Isto porque o

homem é mal, porque existe maldade na natureza humana, mas não é malda

-de pura e simplesmente, isto é,uma in-tenção de admitir o mal enquanto mal. Amaldade é uma perversão radical do coração, que também é denominado um coração mau. Este, provém da frag ili-dade da natureza humana, unida à im

-pureza, que consiste em não separar, segundo uma norma moral, osmotivos

que adota.

Assim, se o mal reside em algum lugar, só pode ser na ação do homem, na medida em que se dáprioridade aos motivos da inclinação, sob onome de

felicidade, situando o desejo acima do dever. Nesse sentido, o mal consiste

numa subversão das máximas da ação.

Estemal é radical porque corrom

-pe o fundamento de todas as

máximas; ao mesmo tempo

tam-bém, como propensão natural não pode ser extirpado por for

-ças humanas; porque não poderia ter lugar senão por in -termédiode máximas boas,o que

não sepode produzir quando o

fundamento subjetivo supremo de todas as máximas épressu

-posto como corrompido; da

mesma forma, énecessário

po-der dominá-Ia porque se

encontra no homem ente que age livremente.(KANT,1974,p.379). Se a reflexão de Kant sobre o Mal Radical pareceu estranha aos filósofos de suaépoca, considerando o contexto lluminista, nacontemporaneidade, ser

-viu de suporte para vários pensadores, dentre eles, Hannah Arendt.

3

A BANA

L

IDADE DO MAL:

Hannah Arendt

Hannah Arendt, pensadora judia

alemã que vivenciou as duas grandes

guerras da contemporaneidade, princi

-palmente a Segunda, dedicou todo o vigor de suas reflexões à condição hu

-mana. Não é à toa que uma de suas obras mais brilhantes e de cunho es

-sencialmente humanista intitula-se A Condição Humana.

Nessa obra a Autora examina a chamada VitaActiva através das at ivi-dades fundamentais que a integram: labor, trabalho e ação. Tais atividades têm relação com as condições mais 110 Cad.Pesq., SãoLuís, v. 12,n.1/2,p. 106-115, jan.rdez: 2001.

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gerais da existência humana: a natali-dade eamortalidade.

Labor, trabalho e ação têm raízes na natalidade, na medida em que esta tem como tarefa produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que vêm na qualidade de estranhos. Porém, a ação é a atividade mais intimamente ligada com a condição humana da na

-talidade. Tal ligação explicita-se por-que o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-che-gado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir.Nesse senti

-do, todas as atividades humanas pos

-suem um elemento de ação e,

portanto, de natalidade. Desse modo,

se a ação é a atividade política por

excelência, a Natalidade, e não a Mortalidade, pode construir a catego

-ria central do pensamento político. Com a reflexão sobre a condição humana, que constitui a sua antropolo-gia filosófica, Hannah Arendt tenta compreender os problemas suscitados com o Totalitarismo. Este leva aoiso

-lamento, que, por sua vez, destrói aca

-pacidade política, a faculdade de agir. O isolamento tem como característica a impotência, hajavistaque oshomens

isolados são impotentes por definição,

o quese traduz na incapacidade deagir.

Logo, como nos diz Arendt (1989, p.527):

o

isolamento é aquele impasse

no qual os homens se vêem

quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto

na realização de um interesse comum, é destruída.

Essa compreensão do Tota

litaris-mo é identificada por Hannah Arendt nosregimes nazista e stalinista, eviden-ciando que seus campos deconcentra

-ção serviam de laboratórios para

demonstrar a crença fundamental de que tudo épossível, doponto de vista dos detentores do poder. A conseqü

-ência foi o extermínio de milhares de

pessoas. Aqui começa o verdadeiro horror, porque retrata a destruição sis

-temática de corpos humanos,

calcula-da para aniquilar adignidade humana.

Os campos de concentração não sóreforçam acrença totalitária de que

tudo é possível, mas também, de que

tudo pode ser destruído. Oscrimes

ab-surdos das sociedades totalitárias

fo-gem à nossa compreensão e

ultrapassam as explicações fundamen

-tadas em motivos malignos, egoístas, de

ganância, cobiça eressentimento, bem

como do desejo de poder e da covar-dia.É desse modo que asociedade con -temporânea se defronta com uma espécie de "Mal Radical". E Kant, se

-gundo a Autora, foi o único filósofo que

suspeitou da existência desse mal.

É digno de nota que a atualidade da reflexão acerca do mal em sua

rela-ção com o Totalitarismo pode ser

com-provada com a seguinte citação de Arendt (1989,p.511):

As soluções totalitárias podem muito bemsobreviversob a for

-ma de fortes tentações, que surgirão sempre quepareça pos

-sível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno dohomem.

Em que consiste a Banalidade do

Mal?

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Numa conferência pronunciada em 30 de outubro de 1970, na New School for Social Research, intitulada: "Pensamento e Conside ra-ções Morais", Arendt (1993, p.145) registra que:

Há alguns anos, em um relato sobre ojulgamentode Eichmann em Jerusalémmencionei a'b a-nalidadedomal'[...].Nãoquis, referir-me ateoriaoudoutrina de qualquer espécie,mas antes a algo bastante factual,o fen ô-meno dos atos maus,cometidos em proporções gigantescas -atoscuja raiznãoiremosenco n-trar emuma especialmaldade, patologia ou convicção ideoló -gica do agente; sua personalidade destacava-se unicamente por sua extraordi -nária superficialidade.

A formulação sobre o problema dabanalidade do mal tem seu lugar na

obra: Eichmann em Jerusalém, na

qual Hannah Arendt narra o julgamen -to do carrasco Adolf Eichmann, a cu-sado de participar do extermínio de milhões de judeus durante o regime n a-zista. Ofoco do relato é,portanto, um homem de carne e osso, com uma his

-tória individual, uma pessoa como ou-tra qualquer. Entretanto, era também um burocrata do regime nazista ou mais especificamente, um instrumento de destruição de milhares de pessoas. O que Arendt ressalta portanto, é que Eichmann era um homem comum, sem grandes motivações ideológicas e engajamento político, apenas um ho -mem banal, ou seja, nem um monstro, nem a encamação do demônio. Aúni

-112

ca característica que podia ser capta -da em seu comportamento era uma "curiosa e bastante autêntica inca

-pacidade de pensar". (ARENDT,

1993,p.145).

Essa ausência de pensamento atraiu o interesse de Hannah Arendt para o desenvolvimento de suas refle -xões acerca do mal suscitando as se -guintes indagações:

Seráque fazeromal, enão so -menteosmalesdaomissão,mas também osmalesdaação,é po s-sível na ausência não só de 'motivos torpes', masdeabso -lutamente qualquer motivo, qualquer estímulo especial ao interesse ou à vontade? Será que amaldade,como quer que definamos esse 'estar d etermi-nado aserumvilão" nãoéuma condição necessáriaparase fa-zer o mal? Será que nossa capacidade de julgar,dedistin -guiro certodo errado,o belo do feio,dependedanossacapaci -dade de pensar? Serão coincidentes a incapacidadede pensareumfracassodesastro -so daquilo aque normalmente chamamos de consciência do mal? (ARENDT,1993,p.l46). Durante o julgamento de Eichmann, Hannah Arendt assinala que ficoutão aturdida com a superficialida -de do agente, que era impossível retraçar o mal incontestável dos seus atos, em níveis mais profundos. O que ele fez,não foi algode extraordinário e nem que pertença ao cotidiano, e no entanto seusatosforam hediondos. Eis abanalidade do mal, cuja condição foi o vazio de pensamento, ou a falta da Cad. Pesq., São Luís, v. 12,n.1/2, p. 106-115, jan.Zdez: 2001.

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capacidade de julgar o que é certo ou

errado, bem ou mal. Sendo que, para

estabelecer essa conexão entre a Ba

-nalidade do Mal e o vazio de pen

sa-mento, a Autora recorre à distinção

entre Pensar e Conhecer, estabeleci da

por Kant na qual: o Pensar pertence a

esfera da Razão, e o Conhecer a esfe

-ra do intelecto. O pensamento sempre

lida com objetos ausentes, afastados da

percepção direta dos sentidos. Por isso,

um objeto de pensamento é sempre

uma representação. Nas palavras de

Arendt (1993, p.1SO):

Alguma coisa ou alguém que na verdade está ausente, presente somente ao espírito, que por

meio da imaginação, consegue torna-Ia presente na forma de uma imagem [...] quando estou

pensando, desloco-me para fora do mundo das aparências, mes

-mose meu pensamento lidacom

os objetos que foram original

-mente dados pelos sentidos, e não com invisíveis, tais como conceitos e idéias

Hannah Arendt chama atenção

para o fato de que geralmente apren

-demos que o mal é algo demoníaco e

que sua encarnação é Satã ouLúcifer,

cujo pecado é o orgulho, o querer igua

-lar-se aDeus. Écomum ainda sedizer

que oshomens maus agem por inveja,

fraqueza, ódio ou cobiça, apontando

estaúltima, como raiz detodo mal.Po

-rém, o que ela havia visto em Eichmann

era apenas a banalidade, a irreflexão.

4 CONCLUSÃO

O tema sobre o mal sempre este

-ve presente nosdiscursos literários, teo

-lógico efilosófico. Neste último, o mal

sempre foi considerado um desafio para

a nossa compreensão, um enigma a ser

decifrado para que não sejamos devo

-rados pela esfinge. Até o tempo pre

-sente não sabemos dizer com certeza

o que é o mal, qual a sua origem, mas

sabemos que, tal como o segredo da

esfinge, o mal é da esfera do humano,

da ética e da política, além de ser um

tema polêmico, principalmente num

momento da História em que registra

-se um recrudescimento da violência, o

que evidencia a presença do mal.Epor

outro lado um clamor pela paz,porum

retomo à ética e por políticas econômi

-cas que tenham o homem como valor

absoluto, isto é, como fim e não sim

-plesmente como meio.

Tanto Hannah Arendt quanto

Kant não comungam o tratamento dado

pelas doutrinas tradicionais à questão

domal.

Para Immanuel Kant, o mal situ

a-se na própria natureza, mais especif

i-camente em uma propensão, opondo-se

assim, à negatividade domal, presente

em outras especulações e afirmando de

forma categórica a sua positividade.

Afirmar a positividade domal significa

pensá-Ia não como simples negação do

bem; pois ele é a privatização positiva

dobem; no mal, surge a realidade posi

-tiva donegativo.

Talfato significaque ohomem traz

em si um primeiro fundamento, inson

-dável para nós, de aceitação de máxi

-mas más, ou seja,contrárias àlei moral.

Essa aceitação não diz respeito a um

homem em particular, mas ao caráter

da espécie, o que leva Kant a afirmar

que omal é inato.

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Leitora de Kant, Hannah Arendt encontrou no autor a diretriz para ana-lisar aquestão do mal que apareceu no Totalitarismo. Porém, para a Autora, o malradical ultrapassa os limites do si

g-nificado dado por Kant, pois trata-se

de uma nova forma de violência, que

vaialém doslimites daprópria solidari

-edade e do pecado humano.

O mal não éRadical mas é Ba

-nal, é extremo e não possui profundi

-dade e nem dimensão demoníaca.

Entretanto, o mal nunca é banal. Ao

usar esta expressão a Autora se refere à aparência domal, a um fenômeno que se dá a aparecer. Isto significa que o

mal não pode ser banalizado emdeter

-minadas contingências históricas e, sendo assim, o mal cometido pelo ho-mem pode mostrar-se banal no Tota li-tarismo. Talfato explicita-se na medida emque essas ideologias totalitárias não

visam à transformação do mundo

ex-terior ouà transformação revolucioná

-ria da sociedade, mas sim à

transformação daprópria natureza hu

-mana. Para esse intento, destrói a es

-fera da ação, do espaço público, o

espaço político por excelência.

Para a Autora, Deus criou o ho

-mem livre porque este é o começo,

en-tão, no nascimento de cada homem

esse começo, a liberdade, é reafirma-da. O homem éum início eum in icia-dor e nesse caso, não é descartada a possibilidade de criar e desencadear formas degeneradas de ação.

Além de todas as questões que aqui foram abordadas fica ainda a pro

-posta de reflexão de que para Hannah

Arendt, Eichmman é o retrato do ho

-mem contemporâneo, o homem da

massa, prisioneiro das necessidades e

transformado em animal laborans.

Um homem comum como todos nós.

No entanto, sem vontade, consciência moral, capacidade política e de pensa-mento, istoé,de julgamento, e por isso mesmo, passível de cometer banalmen

-te omal.

Por fim, pode-se dizer que falar

da Radicalidade e da Banalidade do

Mal, significa que a reflexão de Kant sobre omal,no âmbitomoral,possib ili-toua Hannah Arendt pensá-lo na esfe-ra da ação política.

REFERÊNCIAS

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Referências

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