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JÁ DIZIAM OS VELHOS MESTRES QUE O BERIMBAU É O MESTRE DA RODA

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Academic year: 2021

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Revista de Humanidades e Letras ISSN: 2359-2354 Vol. 1 | Nº. 3 | Ano 2015

Diego Bezerra Belfante

JÁ DIZIAM OS VELHOS MESTRES QUE O

BERIMBAU É O MESTRE DA RODA

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RESUMO

Canções de capoeira são uma das dimensões pelas quais os capoeiristas podem buscar um referencial para se orientarem e assim agirem no tempo. Ao pé do berimbau escutam músicas que podem lhes falar do passado, das experiências de grandes capoeiras que se foram. As canções, então, são parte de um corpo de ensinamentos que ajuda na formação de uma consciência histórica dos capoeiristas. Servem como balizas para tomada de decisões no presente, ao se voltarem para o passado cantado. Na tentativa de entender com se forma tal mecanismo da consciência história, marcado por esse estilo narrativo cantado e pelo apego à tradição, é que investigamos a relação entre as tradições dos antigos mestres, as canções e as formas de entender o passado. Palavras-chave: CONSCIÊNCIA HISTÓRICA; NARRATIVAS CANTADAS; CANÇÕES DE CAPOEIRA

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ABSTRACT

Capoeira songs are one of the dimensions for which the capoeiristas can fetch a reference for guidance and so act in time. At the foot of the berimbau hear songs that can tell them of the past, large barns experiences that are gone. The songs are then part of a body of teachings that help in the formation of a historical consciousness of the capoeiristas. Serving as beacons for decision making in the present to turn to the past sung. In an attempt to understand this mechanism with forms of consciousness history marked by this sung narrative style and attachment to tradition, is that investigated the relationship between the traditions songs and ways to understand the past. Key Words: HISTORICAL AWARENESS; NARRATIVES SUNG; CAPOEIRA SONGS;

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes marcosclopes@unilab.edu.br Pedro Acosta-Leyva leyva@unilab.edu.br

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JÁ DIZIAM OS VELHOS MESTRES QUE O BERIMBAU

É O MESTRE DA RODA

Diego Bezerra Belfante1

Introdução

É como se o berimbau fosse uma entidade com vida própria e que em nada dependesse do mestre. No entanto, o que se pode ver aqui é uma importante função simbólica atribuída ao berimbau, regulada pelas circunstâncias do jogo e pelas experiências do mestre que conduz a roda. Em outras palavras, o berimbau comanda a roda, ditando o andamento rítmico da roda, sendo guiado a partir de seus toques e passadas. Cada toque de berimbau2 possui suas características próprias e exige que o capoeirista esteja atento para agir conforme o respectivo som. Mas o berimbau possui um papel muito maior para os capoeiristas; para eles, o instrumento de uma corda só é um elemento de ligação com a energia ancestral dos antigos mestres, o Axé, que se manifesta nas músicas cantadas pelos cantadores3. Agachado na boca da roda ou formando-a, os capoeiristas cantam e escutam as músicas de capoeira. Trazendo assim à presença o que não está presente, manifesta-o de forma simbólica, uma vez que o símbolo não é em si o que representa, mas manifesta uma presença em sua ausência, trazendo à mente, o presentifica na figura do símbolo (PESAVENTO, 2001). Assim, as canções de capoeira não são em si os velhos mestres, que partiram para as terras de Aruanda4, mas elas trazem à memória a força desses mestres.

1 Aluno da graduação em História da Universidade Federal do Ceará; bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre História e Documento: reflexões sobre fontes históricas – GEPHD. Orientador: João Ernani Furtado Filho: Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Co-orientador: Jailson Pereira da Silva: Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do departamento de História da Universidade Federal do Ceará; tutor do Programa de Educação Tutorial (PET) e coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre História e Documento: reflexões sobre fontes históricas – GEPHD.

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Existem vários tipos de toque de berimbau que expressam vários tipos de jogos e situações de jogo. Para um maior aprofundamento sobre os toques utilizados na roda de capoeira ver em: REGO, Waldeloir. CAPOEIRA ANGOLA: Ensaio Sócio etnográfico. Salvador: Itapoan, 1964.

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Cantador é a pessoa que canta as músicas de capoeira. O termo é usado ao invés de cantor devido à distinção feita pelos capoeiristas de que um cantor canta para alguém, enquanto o cantador canta em conjunto com os demais na roda que respondem o coro. Em uma roda de capoeira geralmente existem vários cantadores que se revezam. Do ponto de vista prático, qualquer um pode ser um cantador, bastando para isso saber cantar obedecendo ao ritmo. A função exercida pelo cantador está ligada diretamente ao andamento da roda e, por isso, em algumas rodas apenas algumas pessoas cantam como cantador, uma vez que essa é uma função de valor simbólico da mais alta relevância na qual estão presentes questões de cunho ritualístico, pedagógico e emocional da roda.

4 Segundo Waldeloir Rego, Aruanda seria uma corruptela lingüística que designava o porto principal de Angola, Luanda. Hoje o termo é usado para designar um espaço espiritual que segundo a mitologia afro-brasileira e religiões de matriz africana no Brasil, como na umbanda, passou a ser um lugar de felicidade após a morte, um paraíso da liberdade perdida.

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Essas representações são possíveis na medida em que estão ligadas a experiências dos mestres e alunos, mesmo que tais experiências se façam através do não vivido por aquela geração de capoeiristas, mas sim pelo que foi acumulado e transmitido pela tradição. Como Thompson coloca em a Formação da Classe Operária Inglesa, sobre a experiência de uma classe: esta não é algo que se possa isolar e definir como um dado a priori; a classe se realiza a partir de suas experiências, quando os que a compõe passam a se enxergarem como pertencentes a ela, em geral, vendo-se em discordância com as demais. Em outras palavras, seus membros têm desejos diferentes das demais classes, muitas vezes seus objetivos não são apenas diferentes, mas conflitantes (Thompson, 1963). Em um dado momento na trajetória histórica da capoeira, os seus praticantes se viram ligados como parte de algo em comum e diferente de outras experiências. Não tomamos os capoeiristas como uma classe em si, mas sim como um grupo heterogêneo, que em meio a uma série de narrativas também heterogêneas que buscam uma identidade comum, passam a partilhar de uma base comum de narrativas e normas de conduta. O uso dos termos de Thompson sobre a classe, mesmo não se tratando de uma classe em si, é feito aqui devido à hipótese sustentada nesse texto. De uma forma geral, os capoeiristas partilham de uma comunidade de sentidos mínima, que os possibilitam se reconhecerem como membros de um mesmo grupo, como relatam certas canções que falam sobre o ser capoeira.

Um exemplo entre muitos, possível de tal uso para as canções, está na letra de Sou Capoeira de autoria de mestre Suassuna. Essa canção foi regravada algumas vezes por esse mestre vem falando sobre as sensações, sentimentos, jeitos e atitudes do capoeira. Nessa música não estão descriminados o grupo do capoeirista ou estilo, seu mestre ou qualquer outra diferenciação. Nas estrofes só se diz “Sou capoeira olha eu sei que sou...”, tal afirmação pode ser pensada como instrumento de criação de laços que pertence a uma comunidade de sentidos. Comunidade que busca ligar os capoeiristas de todos os matizes e regiões; afinal, não é o angoleiro ou apenas os alunos de mestre Bimba que são “astutos”; é também “... inimigo do perigo e confusão...” e que por isso mesmo “... sabe o valor de uma vida e por isso corre de briga ele quer mais é vadiar...”, quem possui esses predicados são os capoiras como um todo. É claro e patente que a música de mestre Suassuna joga com idealizações sobre o ser capoeirista.

Essa é uma visão moderna da capoeira, diga-se de passagem, uma vez que o imaginário popular sobre os capoeiristas como homens perigosos, valentes, não se deu no completo vácuo, e sim a partir de inúmeros casos de capoeiristas que participavam de confusões e arruaça, sendo que alguns desses tinham o orgulho de ostentar o título de valentões, como Josivaldo Pires Oliveira e Luiz Augusto Pinheiro Leal demonstram em Capoeira, identidade e gênero (2009). O próprio Suassuna canta sobre um capoeirista que tinha a fama de valente, o famoso Besouro, que

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segundo o próprio mestre “valente igual ele não tem...”. O nome de Manuel Henrique, vulgo Besouro, traz consigo o estigma de um negro metido a valentão e justiceiro, característica estudada por Vasconcelos (2009 e 2003). Parece aqui que o mestre acaba por se trair, uma vez que na canção Besouro Valente somos apresentados a um capoeira que foge dessa visão que o mestre tenta construir da capoeira. Visão que pode ser pensada como a adaptação ou transformação que a capoeira passou, ao sair da lista de práticas ilegais de “degenerados sociais”

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para patrimônio cultural do Brasil.

Dentro dessa transformação que a capoeira passou de forma mais aguda, desde o final da primeira metade do século XX, com a criação das primeiras academias, ela se firmou cada vez mais como prática esportiva e instrumento pedagógico na educação de crianças. Portanto, como justificar que o passado de violência apareça em canções atuais? Uma saída é dizer que se trata de um ato falho no qual o mestre, sem se dar conta, traz de volta um elemento do passado. Mas como justificar que tal canção tenha sido regravada algumas vezes? Talvez possamos acreditar que a negação da violência existente na capoeira fosse mais prejudicial do que admiti-la parte do seu passado. Uma vez que com tal atitude seriam negadas as tradições que ligam a capoeira a uma luta guerreira. Mas como justificar tal violência? Uma saída é definir qual tipo de violência é válida. Este artigo levanta a hipótese que, apenas quando ligada à luta por justiça e contra a escravidão, a violência não é apenas validada, como admirada. Figuras como Besouro, que podem ser então retrabalhadas dentro da categoria de herói, tendo diversas músicas dedicadas a ele. Por outro lado, corroborando a hipótese defendida aqui, capangas e outros capoeiristas vistos como cruéis e malvados para com as pessoas comuns como é o caso de Inocêncio Sete Mortes, não aparecem em canções. Portanto, aparentemente a violência é tolerada e até útil no discurso “oficial” da capoeira, uma vez que esta não deixou de ser luta, mas só quando serve aos propósitos de afirmá-la como luta por liberdade.

Essa luta pela liberdade no passado e a tradição dos antigos mestres nos parecem ser um ponto fulcral em que se alicerça essa consciência de grupo dos capoeiristas. Consciência fundamental para um sentimento de pertença que levou muito tempo para se formar e ainda hoje não é uniforme ou acabado. Algo que pode ser útil, na tentativa de entender tais mecanismos, é pensar como a cultura atua nessa intrincada relação. Nisso, parte da discussão sobre cultura de Terry Eagleton, ao tratar em seu livro A idéia de cultura de como pessoas de um grupo

5Os capoeiras e outros tipos sociais foram considerados como portadores de perigo para os “cidadãos de bem”, dentro da lógica de uma sociedade disciplinadora do trabalho com o desejo de ser civilizada nos moldes europeus. As práticas ligadas à cultura africana dos ex-escravos ou/e que fugissem da lógica do trabalho disciplinado eram perseguidas e colocadas na ilegalidade, como ocorreu com a capoeira que figurou no código penal.

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compartilham formas comuns de agir e pensar, aproxima-se do conceito de classe de Thompson, ao entendê-la como o fazer-se e a sua consciência como fundamento do conceito de classe.

Uma expressão como “cultura dos cafés” significa não só que pessoas freqüentam cafés, mas que algumas pessoas os freqüentam como modo de vida, o que presumivelmente não fazem quando se trata de seus dentistas. Pessoas que pertencem ao mesmo lugar, profissão ou geração nem por isso constituem uma cultura; elas o fazem somente quando começam a compartilhar modos de falar, saber comum, modos de proceder, sistemas de valor, uma auto-imagem coletiva. (EAGLETON, 2000. Pg. 58.)

Portanto, dentro dessa perspectiva, tanto a cultura como a consciência de classe se manifestam a partir da atuação e do sentimento de pertencimento. Não é nosso objetivo aqui discutir quando se deu tal percepção; essa é uma discussão para outro momento. O que pretendemos aqui é pensar como a partir dessas experiências, que as tradições da capoeira trazem, é possível para os capoeiristas criarem narrativas para sua história, buscando compreender os mecanismos que fundamentam tais construções que se realizam nas músicas de capoeira. Para nós essas músicas são um importante local, em que essas representações do passado se dão a perceber. Seu papel no universo da capoeira é muito grande. As músicas de capoeira ocupam importantes funções na dinâmica do jogo de tal forma que hoje é impossível imaginar a roda de capoeira sem suas canções. As imagens que vêm à mente quando se fala em roda de capoeira estão fortemente marcadas pela presença da bateria de instrumentos6 que produz a sonoridade característica do espaço. Tais imagens se enraízam profundamente nos imaginários da capoeira.

Roda, músicas de capoeira e consciência histórica

Não há roda de capoeira sem música! E as canções só são possíveis a partir do ritmo que o berimbau cria, ou seja, sem berimbaus é impossível haver uma roda. Por isso, essas músicas são partes essenciais da prática da capoeira. Elas são responsáveis, como mencionado antes, por uma série de funções no andamento da roda e das práticas da capoeira, como as ritualísticas, que servem de aviso de perigo, entre outras. Sendo as canções mais do que um simples acompanhamento rítmico para a prática da capoeira, trazem consigo mais do que emoções, tão presentes nas músicas cantadas nas rodas de capoeira. As músicas são um instrumento

6 A bateria de instrumentos constitui-se do conjunto de instrumentos utilizados para a prática do jogo de capoeira. Existem várias formas de se organizar a bateria, dependendo do estilo e escola; mas em todas as formações a presença do berimbau é fundamental. Para mais informações sobre a formação da roda de capoeira e a organização

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pedagógico7. Dentro dessa perspectiva, esse artigo busca se deter na análise da função que pretende construir narrativas sobre o passado, presentes em muitas músicas de capoeira, fazendo assim a ligação entre os novos capoeiristas e os mais velhos. Assim, as canções de capoeira são aqui entendidas como uma das formas pelas quais os capoeiristas transmitem às novas gerações suas concepções e suas orientações sobre o passado que, seguindo Jörn Rüsen, podemos chamar de consciência histórica. Por essas características, as músicas de capoeira nos ajudam a compreender, em parte, como se constrói a consciência histórica da capoeira. Para nos ajudar a pensar sobre o que é e como se processa a consciência histórica usamos aqui, não sem tomar os cuidados de adaptar o conceito à realidade estudada, a definição de Jörn Rüsen:

A consciência histórica é, assim, o modo pelo qual a relação dinâmica entre experiência do tempo e intenção no tempo se realiza no processo da vida humana (O termo “vida” designa, obviamente, mais do que o mero processo biológico, mas sempre também – no sentido mais amplo da expressão – um processo social.). Para essa forma de consciência é determinante a operação mental com a qual o homem articula, no processo de sua vida prática, a experiência do tempo com as intenções no tempo e esta com aquelas. Essa operação pode ser descrita como orientação do agir (e sofrer) humano no tempo. Ela consiste na articulação da experiência e intenções com respeito ao tempo (poder-se-ia mesmo falar de tempo externo e tempo interno): o homem organiza as intenções determinantes de seu agir de maneira que elas não sejam levadas ao absurdo no decurso do tempo. A consciência histórica é o trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir conformes com a experiência do tempo. Esse trabalho é efetuado na forma de interpretações das experiências do tempo. Estas são interpretadas em função do que se tenciona para além das condições circunstanciais dadas da vida. (RÜSEN. 1983. Pg. 58 a 59).

Com base nessa perspectiva de Rüsen sobre a consciência histórica, podemos então tomá-la não como uma faculdade mental reservada apenas aos iluminados, com uma capacidade de discernimento capaz de dizer com precisão a utilidade da história e do passado, mas como algo vital ao agir do homem no tempo. A consciência histórica passa a ser vista como uma resposta para a necessidade que todos os homens possuem de se orientar e agir no tempo. É uma atividade intelectual na qual os seres humanos buscam organizar seu mundo com base em suas experiências e suas expectativas.

Trazendo isso para a capoeira, podemos então pensar que as músicas de capoeira cumprem pelo menos em parte essa função de orientação. Uma vez que não são raras as canções que tratam das maneiras de agir dos capoeiristas, fazendo menção muitas vezes ao passado da capoeira, constituindo, por assim dizer, as histórias exemplares da capoeira. Músicas dedicadas às memórias de antigos mestre e outras figuras da história da capoeira são muito comuns, servindo assim de guias para as novas gerações. Os próprios capoeiristas, ou pelo menos parte deles, parecem estar cientes desse aspecto pedagógico das músicas. Muitos cantadores têm

7 Por instrumento pedagógico entendemos a capacidade que as músicas de capoeira têm como ferramenta de ensino e aprendizagem das práticas e códigos socioculturais da capoeira pelos novos capoeiristas.

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dedicado canções de capoeira para afirmar o peso e a responsabilidade das canções e de quem canta. Canções como Saga de um Cantador, do mestre Boa Voz; Capoeira Cantou, do mestre Suassuna, entre tantas outras, trazem em suas letras questões referentes à importância das próprias canções.

No entanto, um dos exemplos mais contundentes conhecido por essa pesquisa é a fita cassete Os fundamentos da malícia, uma publicação homônima do livro do mestre Nestor Capoeira, agora em parceria com outro capoeirista reconhecido, Toni Vargas. Nesse registro, Mestre Nestor Capoeira e Mestre Toni Vargas realizam, com o auxilio de algumas canções e toques de berimbau, uma discussão sobre as tradições da capoeira, exemplificando com músicas, toques e nos seus diálogos, como a tradição é importante para os novos capoeiristas. Servindo como uma espécie de curso, por assim dizer, com o intuito de formar as novas gerações. Mas acima de tudo, tem como objetivo resguardar a tradição da capoeira (até que ponto tais tradições são tradições antigas ou mais novas faz parte de outra discussão), para isso são evocados toques específicos de berimbaus, bem como formações de baterias de instrumentos, exemplificando as variedades existentes na capoeira.

Como toda fita cassete, divida em lado A e lado B, essa não poderia ser diferente. A divisão em lados foi usada pelos mestres para dividir a fita em duas discussões. O primeiro lado se destina a toda uma conversa sobre a capoeira angola, trazendo seus vários toques de várias escolas com seus diversos mestres, da Bahia do inicio do século XX. Assim como a função dos diversos tipos de canção, explicando o uso das ladainhas e dos corridos. O lado B, por sua vez, trata de questões referentes à capoeira regional, comentando o uso de toques e tipos de corridos, bem como a importância da figura de mestre Bimba. O que fica bem claro em ambos os lados dessa fita é a preocupação com a tradição e a transmissão desta aos novos capoeiristas.

No entanto, segundo Nestor Capoeira, sua intenção não é padronizar a execução e sim, como expressa Toni Vargas, preservar e fazer com que os mais novos aprendam e apreendam tais tradições e relatos que, segundo estes mestres, vêm de tempos remotos da capoeira. A partir da análise desse material, podemos notar um esforço desses dois mestres para tal preservação, na tentativa de salvar do esquecimento essas tradições que julgam importantes para manutenção da “verdadeira” essência da capoeira. Tal esforço, para esquecer ou pelo menos não citar os conflitos no interior da capoeira, pode ser entendido como trabalhos ativos da memória, os quais são seletivos e buscam dar sentido e coesão ao passado.

Não negando as suas outras funções, as músicas de capoeira são, em conjunto com os ensinamentos dos mestres, a base reflexiva do pensamento sobre a história da capoeira e parte da trajetória dos negros no Brasil, criando versões no plural de sua história e de seus personagens

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ilustres. Nessas narrativas sobre a história do Brasil, o negro passa a figurar como sujeito principal da trama, sendo ele muitas vezes relatado como um guerreiro quilombola que luta para libertar seus irmãos do cativeiro, como a música Guerreiro do Quilombo, de mestre Barrão. Nessa música é narrada a trajetória de um negro quando de sua chegada ao Brasil, passando por seu tempo de cativeiro, até o momento que se torna um guerreiro de Zumbi dos Palmares:

Guerreiro do Quilombo

(Mestre Barrão Axé Capoeira especial) Sou Guerreiro do Quilombo, Quilombola Lê lêlê ô

Eu sou Negro dos Bantos de Angola Negro nagô

Fomos trazidos pro Brasil Minha família separou Minha mana foi vendida Pra fazenda de um senhor O meu pai morreu no tronco No chicote do feitor

O meu irmão não tem a orelha Porque o feitor arrancou Na mente trago tristeza E no corpo muita dor Mas olha um dia Pro quilombo eu fugi Com muita luta e muita garra Me tornei um guerreiro de Zumbi Ao passar do tempo

Pra fazenda eu retornei Soltei todos os escravos E as senzalas eu queimei A liberdade

Não tava escrita em papel Nem foi dada por princesa Cujo nome Isabel

A liberdade

Foi feita com sangue e muita dor Muitas lutas e batalhas

Foi o que nos despertou

Sou Guerreiro do Quilombo Quilombola Lê lêlê ô

Eu sou Negro dos Bantos de Angola Negro nagô

Sou Guerreiro do Quilombo Quilombola Lê lêlê ô

Eu sou Negro dos Bantos de Angola Negro nagô

A canção Guerreiro do Quilombo tende a tratar dos acontecimentos na vida de um negro que, quando trazido ao Brasil, em conjunto com sua família, sofre as agruras da escravidão. Tal narrativa poderia representar o imaginário da realidade escravagista no Brasil. Filmes, novelas e obras literárias corroboram essa visão da situação do negro (pelo menos a realidade dos senhores malignos e cruéis vilões típicos de novelas das seis). Mas se as narrativas começam de forma semelhante, o seu desfecho é diferente. O negro nesta narrativa não fica à espera da ação

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providencial de um sinhozinho bondoso que se ergue como um protetor dos pobres e passivos negros, sofredores; ao contrário, é um agente forte e atuante que luta de forma feroz. Inegavelmente existe aqui uma idealização sobre a ação dos quilombolas e da própria figura de Zumbi dos Palmares. Assim, as músicas criam narrativas do passado que servem para construção de um passado idealizado da capoeira.

Essas narrativas se manifestam nas canções de capoeira. Sejam aquelas que foram criadas por mestres do passado, retomadas por capoeiristas de hoje, ou usadas na criação de novas canções, como forma de homenagear os mestres de outrora, tidos como marcos importantes da capoeira. No entanto, os discursos sobre o passado não param apenas nessas duas formas. As letras das músicas muitas vezes fazem menção à história do Brasil, relatos da escravidão e à própria história da capoeira. Seria o que podemos chamar de passado cantado. Mas as músicas de capoeira possuem um papel que ultrapassa essas narrativas, pois elas estão diretamente ligadas às funções estruturantes das rodas de capoeira. Essas funções das músicas, e suas possibilidades, são analisadas por Luiz Renato Vieira, de forma que o autor separa em três grandes grupos funcionais e não estanques:

[...] uma função ritual, fornecendo a animação da roda, juntamente com as palmas e a instrumentação. No tocante ao seu conteúdo, o cântico de capoeira cumpre o papel de elemento mantenedor das tradições, reavivando a memória da comunidade da capoeira acerca dos acontecimentos importantes em sua história (as lutas pela libertação, os quilombos, a ida – forçada, obviamente – dos capoeiristas à Guerra do Paraguai, as fugas da polícia, etc.) e dos nomes famosos nas rodas de capoeira. Além de ser um reavivador da tradição, o cântico da capoeira atua como espaço dinâmico de constante repensar dessa mesma história, dos princípios éticos nas rodas e da inserção da capoeira e do elemento negro na sociedade. (VIEIRA, 1996, pg. 45)

Podemos pensar que as funções das canções de capoeira como a de “elemento mantenedor das tradições e espaço de constante repensar da história da capoeira” cumprem, em conjunto com outras práticas, o papel de formação da consciência histórica dos capoeiristas. Uma vez que elas nos fornecem vários conjuntos de narrativas sobre o passado, que valorizaram determinados fatos e personagens da história da capoeira e do Brasil, e dão a eles papéis e sentidos ao passado. Narrativas que não são homogêneas ou constantes, variando dentro dos diferentes grupos de capoeira e com as gerações de capoeiristas. Essas narrativas se baseiam no imaginário que os capoeiristas têm sobre o passado da capoeira, mas se constituem através das experiências de cada capoeirista e nas tradições “herdadas” dos velhos mestres.

Esse papel das músicas é reconhecido pelos próprios capoeiristas. Colocando de forma bem simplificada, os capoeiristas vêm e compreendem a importância das músicas que, em conjunto com o cantador, dão o ritmo e o tom para a roda. O que podemos notar a partir de músicas como A saga de um cantador ou Berimbau mandou benzer, ambas de autoria do mestre

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Boa Voz, presentes no álbum Mestre Boa Voz Volume I, é a importância dada ao que é cantado e aos ensinamentos que tanto o cantador como o berimbau trazem para os novos capoeiristas. A primeira é uma ladainha8 e a segunda uma quadra9. Avisam assim da importância do cantador e como o berimbau comanda o jogo. Mestre Boa Voz nos chama a atenção, nessas duas canções, que é necessário para o praticante de capoeira sentir uma ligação emotiva ao se ouvir o toque dos berimbaus. Mas não apenas isso: é necessário respeito pelos berimbaus e pela função que desempenha o cantador. O mestre Nestor Capoeira, em seu livro Capoeira: Os fundamentos da Mandinga, fala sobre como tal relação é importante para o capoeira: “Quando o iniciante ouve o berimbau, assiste ao jogo, presencia sua primeira roda, fica deslumbrado. Sente algo no coração e, intuitivamente, compreende o que é o jogo da capoeira.” (NESTOR CAPOEIRA, 1992, pg. 154). Sem essa emoção, esse sentimento de ligação, é impossível a manutenção e reprodução da capoeira. Portanto, podemos dizer que a roda de capoeira é um espaço de experimentação, onde os capoeiristas novos e antigos vivenciam uma ligação entre si e o passado que desejam partilhar. A roda é o local onde as músicas de capoeira se manifestam e podem proporcionar reflexões sobre o passado, uma reflexão que se faz com as experiências daqueles que participam da roda. Essas reflexões foram construídas historicamente. Colocando de outra forma: essas relações que as rodas de capoeira e as canções produzem foram forjadas no decorrer dos processos históricos que tornaram a capoeira o que ela é. Sem nos esquecermos de que tais processos não findaram ou pararam. A capoeira não está parada no tempo, ao contrário, como toda manifestação cultural, ela está sujeita a transformações e a reelaborações de seus praticantes. O papel da roda de capoeira e das músicas de capoeira em conjunto, apesar de suas mudanças, ainda é, hoje em dia, o de realizar uma ligação com o passado, como nos relata José Gerardo Vasconcelos:

Apesar das mudanças ocorridas ao longo da história, a música, na contextura de hoje, é elemento indispensável na roda de capoeira. A partir dela é que a memória é celebrada. Os mitos são contados e recontados. Seus feitos relembrados. Podem transmitir ensinamentos, relatar acontecimentos ou celebrar as dores vividas e a resistência do negro na sociedade. (VASCONCELOS, 2009, pg. 75)

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Uma das formas que as canções de capoeira podem assumir. Sendo outras o corrido e a chula. A ladainha se caracteriza por ser uma música sem coro, na qual é narrado algo e geralmente possuem mensagens para os participantes da roda. São músicas cadenciadas com um tom melodioso, melindroso, muitas vezes triste, contendo lamentações ou conselhos aos presentes. A ladainha abre a roda de capoeira dando o tom para a roda. Cantada no inicio da roda de capoeira angola, por um mestre ou pessoa que toma conta da roda, é seguida por uma louvação, esta é a parte em que geralmente o cantador canta “iê viva meu Deus”, ou outra louvação repetida pelos capoeiristas da roda com o acréscimo da palavra “camará” no final do coro.

9 São canções com estrofes curtas e, como o nome sugere, geralmente de quatro versos simples. Os assuntos que uma quadra trata podem ser os mais variados, dependo do gosto e preferência do autor; bem como a depender da criatividade, elas podem fazer brincadeiras com situações ou comportamentos de jogo, podendo fazer advertências, falar de lendas, fatos da capoeira ou pessoas importantes para a história da capoeira.

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Na música Saga de um cantador podemos notar claramente referências ao peso dado pelos próprios capoeiristas para a figura do cantador. Nessa canção fica marcada a responsabilidade daquele que canta. Para essa pessoa não basta saber cantar, são necessárias características, como o mestre Boa Voz indica:

Menino fique sabendo, ô iaiá O peso de um cantador É responsabilidade De verdade sim senhor Não é só gritar iê E abrir a boca pra cantar É coisa que vem de dentro Dada por meu Deus, meu Pai Tem que passar energia, ô iaiá E saber contagiar

Falar de coisa bonita E também fazer chorar [...]

(VOZ, Mestre Boa. MESTRE BOA VOZ VOL. I. Abadá Capoeira.)

Boa Voz deixa patente nesse trecho que o cantador precisa ser capaz de passar a emoção, mas não apenas emoção; é preciso conseguir transmitir energia. Podemos até conjeturar que o cantador deve ser capaz de despertar essa energia nos demais capoeiristas. A energia que o mestre fala é chamada pelos capoeiristas de axé. No contexto das religiões de matrizes africanas no Brasil, o axé representa a força espiritual necessária para a realização dos ritos e cerimônias religiosas. Para a capoeira, o axé representa a força que gera animação para a roda; um bom cantador é aquele que consegue encher a roda de axé. Portanto, para um capoeirista é mais importante que o cantador consiga ‘tocar’ os presentes na roda do que possuir uma voz prodigiosa. Aliás, muitas vezes, cantadores admirados pelos capoeiristas não possuíam uma voz dentro dos padrões tidos como belos para o canto orfeônico; mas dentro do universo da capoeira, esses mestres compõem uma interessante combinação entre suas vozes e o ritmo da bateria de instrumentos. Mas essa música nos oferece ainda outros elementos que nos ajudam a entender como o espaço da roda cumpre um papel pedagógico na formação dos capoeiristas, ao definir, a partir de músicas, atitudes que são consideras corretas:

[...]

Estrela brilha no céu, ô iaiá Mas não brilha como o sol Nosso sol é nosso mestre Que devemos respeitar [...]

Aqui podemos constar que o respeito à figura do mestre é de fundamental importância para o capoeirista, uma vez que seu mestre ocupa o papel do sol. Assim como o sol, o mestre exerce então a função de orientação e guia para seus alunos. Com essa estrutura de transmissão de conselhos, podemos encontrar centenas de outras músicas com os mais variados aconselhamentos. Defendemos aqui que esses conselhos são parte fundamental para a construção

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da consciência histórica pelos capoeiristas. Entretanto, outras questões se colocam, antes que possamos investigar como essas narrativas operam no universo mental dos capoeiristas.

A cultura capoeirista

Precisamos discutir sobre a constituição cultural da capoeira e como ela se dá. A capoeira é uma manifestação cultural em que luta, dança e música se unem de tal forma que é impossível separar uma da outra. A capoeira tem como fundamento de sua organização e prática, inicialmente, elementos da cultura africana em que categorias bem definidas e separadas do pensamento e da vida não fazem sentido. É que tudo está interligado; o mundo não está plenamente dividido entre cotidiano, Trabalho, lazer, as ciências e o sobrenatural. Um está imbricado no outro. A capoeira está fortemente marcada por tais traços culturais e dentro dessa lógica não deve haver espaço para uma dicotomia entre seus elementos constituintes. No entanto, devemos fazer uma ressalva: a cultura negra e escrava são, com toda certeza, um dos principais elementos constituintes da capoeira, como atesta Carlos Eugenio Libanio Soares. Mas ela não é o único elemento de sua formação, como o mesmo autor nos indica em sua obra A Negrada Instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro 1850-1890. Existem outros elementos culturais que compõem esse intrincado universo de práticas e representações, principalmente a partir das décadas de 1930 em diante, quando começou a ocorrer de forma mais intensa a difusão e desenvolvimento da cultura regional baiana10 e, por assim dizer, sua contrapartida, a capoeira angola11. Partimos da ideia de que não existem culturas puras e que as hibridações são inevitáveis devido ao contato com outras culturas. A hibridação, como nos alerta Nestor Canclini, não significa uma assimilação pacífica e inócua, mas nela há espaço para as disputas e

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Nome utilizado por Mestre Bimba, Emanuel dos Reis machado, para conseguir legalizar sua academia de capoeira. Uma vez que a capoeira nesse período ainda estava na ilegalidade, inserida no código penal de 1890 do Brasil, no Capítulo XIII, que dizia respeito aos vadios e à capoeira. Foi apenas a partir de 1937, em pleno Estado Novo, que a capoeira saiu do código penal. Por causa dessa denominação, de cultura física regional baiana, a capoeira, praticada por Bimba e seus alunos, passou a ser conhecida como capoeira regional. Podemos considerar essa atitude de mestre Bimba como aquilo que Michel De Certeau qualificou como trampolinagem (Certeau 2008). Pois mestre Bimba e seus discípulos, aproveitando de uma brecha na grande estratégia repressiva à capoeira do Estado brasileiro e gozando da simpatia de certos membros da elite, conseguiu a legalização de sua academia.

11 Entre a capoeira regional e a angola existe uma disputa pela hegemonia do direito de se dizer qual é a verdadeira capoeira. Sem o devido cuidado, fica a impressão de dois grandes blocos homogêneos. Para os angoleiros, a regional é tida como uma capoeira embranquecida e que perdeu suas raízes, tornou-se bruta e sem a manha. Para os alunos de Bimba e os que se identificam com o estilo regional, a capoeira angola se transformou em algo folclorizado, sem a eficiência da luta escrava criada para lutar contra os capitães do mato e demais agentes do sistema escravista. Em ambos os discursos, podemos notar a intenção de negar o outro para se legitimar, afirmando uma pureza e tradição que o outro perverteu. Mas um olhar mais atento demonstra disputas internas em cada grupo, mesmo com um suposto discurso de unidade que os principais mestres, em sua maioria discípulos dos grandes mestres, proferem sobre o seu estilo de capoeira.

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conflitos num ambiente profícuo para inovação cultural. As culturas híbridas não podem então ser entendidas como mero somatório das partes; elas as extrapolam e podem criar o novo.

Grupos sociais buscam criar narrativas que permitem a identificação daqueles que partilham do sentimento de pertencimento ao grupo. Tal identificação é um esforço de coesão para unir elementos díspares de origens diferentes, muitas vezes conflitantes. Tal coesão pode ser feita a partir de apelos a uma história comum, a uma cultura partilhada e a um horizonte de expectativas compartilhado. Na capoeira não é diferente, ao observá-la com atenção, podemos notar uma série de elementos que tem as mais diversas origens culturais, como, por exemplo, o uso da navalha em lutas, uma clara penetração de um elemento português na capoeira. Outro ponto para pensar as dinâmicas culturais de hibridação é que a capoeira só pode se desenvolver como tal a partir das pressões do sistema escravista no espaço urbano. Não queremos dizer que existiu com essas pressões um determinismo, ou seja, que o resultado de todo esse processo histórico já possuía um vetor, um resultado já esperado e imutável. Pelo contrário, acreditamos que os processos que gestaram a capoeira são frutos das pressões sofridas pelos escravos na relação com seus senhores e poderes da sociedade escravista, em conjunto com as decisões e posicionamentos dos envolvidos. Há uma dimensão conflituosa no interior da própria capoeira; muitas vezes o que essas narrativas não contam são os diversos conflitos entre grupos de capoeiristas que existiam no decorrer do século XIX, conhecidos como maltas. Trabalhos de historiadores, como Carlos Eugenio Libano Soares, tratam do envolvimento de capoeiristas na constituição das maltas no Rio de Janeiro dos tempos imperiais, analisando como esses capoeiristas agiam nesses grupos. Buscando reconstruir as dinâmicas e rivalidades que permeiam o universo simbólico e prático dos capoeiras das maltas cariocas.

A maioria das músicas que falam do período colonial e imperial tende a se focar na ideia de união e luta contra o cativeiro. Poderíamos pensar em uma série de motivos para essa postura: o desconhecimento dessas rixas; a necessidade de construir um passado de união entre os capoeiristas para garantir a união no presente; a visão de que essas disputas eram um fator menor realizado por uma pequena parcela iludida de capoeiras que não enxergavam o real inimigo; entre outros motivos. Todas essas alternativas são plausíveis e não excludentes entre si, podendo se combinar das mais variadas formas. Na tentativa de uma melhor compreensão dessas dinâmicas de hibridação, que produzem identidades, usamos o auxilio dos estudos de Canclini:

Os estudos sobre narrativas identitárias com enfoque em teóricos que levem em conta os processos de hibridação (Hanners; Hall) mostram que não é possível falar de identidades como traços fixos, nem afirmá-las como essência de uma etnia ou nação. A história dos movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos em um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloqüência. (CLANCLINI, 2001, pág. XXIII)

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Dentro dessa visão, parece que a capoeira, assim como todos os grupos e movimentos sociais, passa por um processo dinâmico, não sendo uma figura estática. Sem esta compreensão é impossível entender que a capoeira só sobreviveu e sobreviverá enquanto seus praticantes forem capazes de dar ressignificados a velhas práticas. Portanto, não vemos a capoeira dotada de uma essência imutável, mas sim dotada de processos que operam uma seleção, que está indubitavelmente ancorada nas narrativas que buscam afirmar a capoeira de hoje com as tradições dos velhos mestres. Sabendo que cada grupo que participou e atuou e atua na capoeira assimila o que para si possui significado, de forma que as experiências de cada grupo com a capoeira são únicas. As narrativas produzidas pelas canções são um espaço para a reelaboração de tradições; em outras palavras, as músicas têm como função ser um elemento de ligação com o passado; mas essa ligação com o passado não se faz de forma direta e sim a partir de mediações que a experiência pode proporcionar. Sendo assim, as reelaborações são frutos do momento histórico e das necessidades de orientação no tempo. Então, a partir desse imaginário criado em volta das figuras desses mestres baianos do início do século XX, podemos tentar perceber as permanências e as rupturas nas formas de se compreender as visões da liberdade e do universo quase mítico da capoeira.

As tradições e mesmo as figuras dos velhos mestres foram retrabalhadas e reapropriadas pelos mestres de agora. E esse é um processo que demonstra a dinâmica dos movimentos históricos que perpassam a capoeira. Os Mestres de hoje vivem um contexto social diferente no qual a capoeira não apenas deixou de ser perseguida, como passou a ser vista com bons olhos pelo governo e por grande parte da população. Não é apenas uma mudança na relação com a sociedade, é também uma mudança no perfil dos praticantes, pois muitos dos novos capoeiristas passaram a possuir nível superior e a capoeira foi incorporada em algumas escolas e projetos governamentais como prática pedagógica. Tais mudanças repercutiram nas formas pelas quais a capoeira é experimentada pelos seus praticantes. O que sem dúvida reflete na maneira como a capoeira é vivenciada por essas novas gerações e nas temáticas escolhidas para as músicas. Portanto, temas que eram usuais pelos mestres do início do século passam a ser cada vez menos visitados pelos novos cantadores. Temas com palavras como ‘prisão’ e ‘cadeias’ vão dando lugar a reivindicações pela liberdade. Se antes o que víamos era um medo pela perda da liberdade, agora vemos que quando o tema do cativeiro aparece, ele está sempre ligado à luta pela liberdade. Como pode se notar, essa relação de medo da perda da liberdade aparece em letras antigas cujos autores se perderam no tempo. Um exemplo dessa forma de relação com a liberdade pode ser visto na letra de Peleja de Riachão com Diabo, música de domínio público, cantada por inúmeros mestres, entre eles Waldemar da Paixão, no trecho em que fala sobre a

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recusa de Riachão em jogar o martelo (sic) com um negro desconhecido: “Porque pode ser escravo, E anda por aqui fugido”, a recusa pode ser pensada como forma de se prevenir em ser confundido como um escravo. O que poderia acarretar na perca da tão frágil liberdade, uma possibilidade não muito difícil de ocorrer com negros livres durante o longo período em que a escravidão durou no Brasil, como podemos ver em obras de historiadores como Sidney Chalhoub.

Outro ponto sobre o medo de se perder a liberdade pode ser visto na canção torpedeiro encouraçado, cantada por vários mestres e também de domínio popular. Uma das versões mais modernas para essa canção está na voz do mestre Suassuna no álbum Cordão d’Ouro, volume IV do ano 2000. Mestre Suassuna é um mestre de capoeira que tem o habito de regravar antigas canções de capoeira. Mas um dos mais antigos registros em áudio dessa canção está na voz de um dos mais respeitáveis mestres baianos do começo do século XX, famoso tanto com sua habilidade de artesão de berimbaus quanto de cantador nato, Mestre Waldemar da Paixão. No ano de 1955 é realizada a gravação de um documentário francês sobre etnomusicologia de Simone Dreyfus. A canção trata basicamente da história de uma intimação, na qual o delegado chama, na versão mais antiga, Pedro Mineiro12. Cantada por mestre Waldemar, na mesma gravação essa canção aparece duas vezes com ligeiras alterações. Na versão de Mestre Suassuna, quem é intimado é o próprio mestre. Nas duas existe em comum o fato dos personagens serem chamados para esclarecer um crime não explicitado em que são chamados para explicar o que não sabiam. Continuando as acusações, o delegado afirma para a mulher do personagem que ele era um grande vadio e que há semanas não trabalhava.

A acusação de vadio era grave, pois indicava um sujeito perigoso que podia ameaçar as pessoas de bem, ordeiras, e que por isso mesmo deviam ser caçados e presos. Como lidar com tal acusação? A palavra de um vadio parecia não ter valor. Era preciso então se mostrar como trabalhador. Afirmar sustentar mulher e filhos parecia ser uma saída, afinal, como sustentar uma família sem ser um trabalhador? O medo da prisão fazia parte do cotidiano dos capoeiristas. Até 1937, o Código Penal da República previa a capoeira e, mesmo depois de ter sido retirada do código penal, os capoeiristas carregavam o estigma de desordeiros, mesmo que muitos capoeiristas fossem pessoas trabalhadoras que viviam suas vidas sem se preocupar com as intricadas redes de capangas e coronéis (o que não significa que não existissem aqueles capoeiristas envolvidos com o submundo do crime).

12 Pedro Mineiro, segundo Waldeloir Rego, é um personagem folclórico, famoso por sua riqueza e avareza. Negava-se a ajudar quem quer que Negava-seja e jamais dava esmolas. Por um revés do destino acaba perdendo tudo e passa a ter que mendigar. O mesmo Pedro Mineiro aparece em outras canções, como em esmola a Pedro cem. Para mais

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Tais marcas e outras mais estão na base da formação da consciência histórica dos capoeiristas, sendo transmitidas através das gerações aos novos capoeiristas que rearticulam esse conteúdo de acordo com a realidade que os cercam. Quando comparados os álbuns fonográficos de capoeiristas mais novos com os mais antigos, por vezes, vemos regravações e novos arranjos para velhos corridos. Nesse sentido, os mestres mais novos tendem a ser bem mais ousados ao falar sobre a liberdade. Um bom exemplo disso é o álbum liberdade do mestre Toni Vargas lançado no ano 2005; mas mesmo com sua ousadia nesses CDs podem ser observadas referências à traição e aos velhos mestres. Assim, os novos mestres se dizem herdeiros dos velhos mestres. Eles rearticulam o universo imaginário da capoeira para ajustá-lo às novas necessidades, sempre buscando a ancestralidade dos antigos mestres como justificativa para as práticas atuais da capoeira. A experiência dos grandes mestres conta muito para o discurso legitimador. Ser discípulo ou estar ligado de alguma forma a um grande mestre dá maior legitimidade àquele mestre ou professor. Dando a ele um respaldo maior do que outros para falar sobre a história da capoeira e suas tradições. Isso nos leva ao nosso próximo ponto a ser discutido.

A ligação ancestral e as narrativas sobre a história da capoeira

Os mestres de capoeira, bem como a figura relativamente nova do professor de capoeira13, têm o papel de mantenedores de uma tradição que é anterior a eles, na qual se enxergam como apenas o elo mais recente, algo muito similar ao que Hampaté Ba relata sobre os mestres Doma14 do povo bambara. Como esses povos, para muitos capoeiristas ligados às tradições de seus mestres, a legitimidade do que falam é de fundamental importância. Hampaté nos dá pistas de como funcionam tais princípios.

O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra. (HAMPATÉ BA, 1980, pág. 168)

Não defendemos aqui a existência de uma narrativa pura, sem alterações ou seleções, mas sim que há um princípio mental que liga as narrativas das canções de capoeira a essa lógica

13 O professor de capoeira, bem como os monitores e instrutores são capoeiristas que ainda não atingiram o título de mestre de capoeira, mas mesmo assim gozam de prestigio e/ou legitimidade para ensinar a capoeira. Geralmente estão ligados a um mestre, como alunos dele, e/ou a um grupo de capoeira. Tais novos sujeitos estão inseridos na lógica que fez emergir as academias de capoeira e os grupos modernos.

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Em A Tradição Viva A. Hampaté Ba realiza uma séria discussão sobre as cadeias de transmissão da tradição de povos da Savana África, analisando seus usos na escrita da história africana. Hampaté evidencia que tais mecanismos se baseiam na legitimidade do narrador; a mentira dentro dessas tradições é a corrupção não apenas da história e do

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exposta por Hampaté. Os mestres se vêem ligados, ou pelo menos se dizem, a uma longa cadeia de transmissão que remonta a capoeiristas de tempos imemoriais, passando pelos capoeiras lendários, como Besouro Mangangá, Manduca da Praia, Nascimento Grande, entre outros, desembocando nos velhos mestre baianos do início do século XX, até chegar na geração atual. Portanto, esses mestres e professores trazem para si a missão de manter vivas as tradições. Podemos até visualizar uma obrigação do lembrar, pois é como se o esquecer das tradições e dos velhos mestres fosse um pecado imperdoável; o que não significa a imutabilidade das percepções sobre essas figuras e seus ensinamentos. Essas tradições estão em constante reelaboração devido às pressões sociais e culturais que os capoeiristas sofrem. Afinal, a memória atua através de um jogo de lembrar e esquecer, mas o que lembrar e o que esquecer? Isso cabe à seleção ativa dos trabalhos da memória que busca no passado da capoeira os elementos que garantam a legitimidade dos que falam em seu nome. Ao mesmo tempo em que esquece ou não dá maior destaque aos pontos da história da capoeira que possam gerar embaraço ou vir a servir de instrumento contrário à prática da capoeira.

Esse vínculo com os mestres do passado garante a legitimidade necessária para que os capoeiristas de agora possam falar sobre a história da capoeira. De certa forma, essa é uma situação análoga ao que Michel De Certeau chamou de lugar de fala do historiador. Segundo Certeau, os historiadores possuem, devido à sua posição, uma legitimidade para falar sobre o passado. Amparados pelas instituições acadêmicas que lhes garantem a autenticidade de um conhecimento cientifico, os historiadores tomam para si o direito de dizer o que é história e o que não é. Da mesma forma, os mestres de capoeira, tendo como base as narrativas e canções dos antigos capoeiristas, se vêem como portadores vivos da história da capoeira e, portanto, autorizados a contá-la. Gozando das prerrogativas de serem mestres e de seu prestígio, contam as histórias da capoeira com maior credibilidade entre si do que as narrativas construídas pelos historiadores.

Mas se pensarmos por um instante no trabalho que o historiador tem para ocultar as marcas da instituição e de sua pessoalidade no texto, torná-lo puro, para que assim seu discurso tenha crédito, como reflete Michel de Certeau, o mesmo não vale para a forma como os capoeiristas tratam suas narrativas sobre sua história. Para eles é preciso que se torne explicito todo o caminho que foi percorrido para atingirem o saber sobre o passado da capoeira. A ligação com os antigos mestres, com suas tradições, é fundamental e não apenas isso, ela deve ser demonstrada. Em uma de suas ladainhas, mestre Jogo de Dentro faz uma espécie de genealogia

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de sua linhagem dizendo o seguinte: “Eu aprendi com mestre João que aprendeu com pastinha”; em outra diz “agradeço ao mestre João que me ensinou essa arte”. Tal diferença não invalida de maneira nenhuma as reflexões que Michel de Certeau realiza sobre os mecanismos da produção do saber pela instituição História. É que aqui está retratada uma relação com a história que difere do métier acadêmico; é uma relação com o tempo e com o saber, regulada pelo saber do mestre de forma similar aos antigos artesãos mestres de oficio.

Outro ponto que deve ser observado sobre essa relação com o saber do passado, que difere da lógica do historiador, está ligado à exposição do conhecimento, sua total publicização. Para o historiador quanto mais claro e inteligível é o seu texto, que demonstre de forma esmiuçada, mostrando cada ponto da forma mais integral possível, melhor a todo aquele que consultar sua pesquisa. Sua credibilidade vem de sua clareza e do trato correto que tem com suas fontes. Mas se para o mestre de capoeira comprovar sua credibilidade é preciso demonstrar sua ligação com a tradição a ele, não é necessário que ele torne tudo o que sabe público. Seu saber é fruto de uma longa trajetória na qual veio a descobrir os mistérios e segredos. Seu aprender é feito, assim, dentro da imersão no universo da capoeira e, portanto, foi produto de um árduo trabalho. Aprender a se movimentar leva tempo e dedicação, mas aprender o porquê das coisas é mais demorado, pois é preciso estar preparado para o peso do saber. É algo ligado à matriz africana da capoeira, segundo dizem os alunos de mestre Bimba. Bimba era o senhor dos mistérios ligados à tradição e não ensinava tudo a todos; era preciso estar pronto e, mais importante, ter a confiança do mestre, como relata mestre Itapoan em conjunto com outros mestres em uma das conversas produzidas para o documentário A Capoeira Iluminada.

Tendo em vista que no meio da capoeira as versões mais aceitas sobre as origens dessa luta/dança são aquelas que a ligam aos quilombos, os discursos dos mestres sobre a origem da capoeira a situam como uma prática de resistência ao regime escravista que nasceu nos quilombos. Mesmo com uma produção historiográfica que ligue a gênese da capoeira ao espaço urbano e às ações de escravos de ganho, a versão mais creditada pelos capoeiristas e uma parcela da sociedade é aquela defendida pelos mestres. Dentro dessas narrativas, a capoeira tem seu local de nascimento nos quilombos e senzalas e não nas cidades, o que difere dos estudos de historiadores como Carlos Eugenio Libano Soares.

Mas não devemos pensar que todas as narrativas dos capoeiristas são harmônicas. O que na verdade existe é uma disputa pela hegemonia sobre as formas de contar o passado. Disputas que evidenciam as diversidades de pensamentos e grupos envolvidos com a capoeira. Os mais visíveis pólos dessa disputa são as duas macro-correntes da capoeira: a Capoeira de Angola e a Capoeira Regional. Esses grupos identitários possuem uma rivalidade que, por muitas vezes,

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extrapolou os limites de uma convivência respeitosa. Ambas se intitulam como sendo as verdadeiras guardiãs das tradições da capoeira, disputando entre si o posto de herdeiras da verdadeira capoeira. Mas o que seria essa verdadeira capoeira? No entanto, o objetivo desse texto não é a de dar a resposta sobre com quem está a verdadeira capoeira. Essa busca, além de infrutífera, seria uma perda do foco, uma vez que a resposta que obteríamos seria muda e inócua, porque ficaríamos a dar voltas entorno do que é verdade ou mentira, incapaz de ajudar a dar passos à frente. Parece mais vantajoso para esse texto, ao invés disso, buscar a maneira como os capoeiristas trabalham com a sua tradição e história na busca de legitimidade.

A resposta para muitos capoeiristas parece estar ligada a uma busca pela “raiz”, como podemos pensar a partir da já citada fita cassete Os fundamentos da malícia. O passado e suas ligações passam a ser o elemento que garante o lugar de fala do mestre. Por conhecer os segredos dos antigos e saber suas histórias, há em torno do mestre de capoeira uma áurea. E isso parece valer também para a capoeira regional, mesmo que essa seja uma forma de capoeira datada da primeira metade do século XX. A figura de mestre Bimba foi entendida como portadora de um carisma que é capaz de agregar em torno de si vários seguidores. A partir da liderança do mestre que institui o novo e ao mesmo que se liga a herança ancestral. Como Luiz Renato Vieira, em O Jogo da Capoeira: cultura popular no Brasil, demonstra a formação de uma nova ética no estilo regional durante o Estado Novo e sua ânsia pela disciplinarização da sociedade. Mas essa questão de uma busca pelo passado é mais um fator nessa disputa pelo título de verdadeira capoeira.

Em entrevista concedida ao documentário O Fio da Navalha, mestre João Pequeno15 expressa sua opinião sobre as duas formas de se jogar capoeira. Para ele a capoeira angola, sua modalidade, “estava melhor do que nunca, enquanto a capoeira regional estava estragada”. A partir desse e outros depoimentos de angoleiros, poderíamos afirmar a existência de uma rivalidade entre esses dois grupos. Mas se tentarmos perceber outros possíveis significados, verificamos que o “está estragada” pode querer dizer que a capoeira regional perdeu a essência, desviou-se. Aliás, essa é uma acusação feita por diversas vezes à capoeira regional, não só por angoleiros, mas também por intelectuais que enxergam na capoeira regional um híbrido embranquecido. Essa postura por parte de alguns intelectuais, como Jorge Amado, parece esquecer a dinâmica cultural que produziu a capoeira. Dito de outra maneira, a capoeira já nasce como híbrida, fruto das tensões da sociedade brasileira do inicio do século XIX.

Por sua vez, os alunos de mestre Bimba acusam os angoleiros de descaracterizar a luta ao folclorizá-la, fazendo com que ela perca o seu lado marcial que foi, em suas concepções,

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usado na luta contra a escravidão. Então, para os alunos de Bimba, quem corrompeu a capoeira foram os angoleiros que fizeram a capoeira perder sua verdadeira essência. Como se a capoeira fosse um ente ontológico, marcada por uma essência transcendental, que não admite a historicidade da capoeira, ou melhor, admitem-na apenas na medida em que essa demonstre sua descaracterização por parte dos angoleiros, e o resgate da verdadeira natureza da capoeira por Mestre Bimba. Nas entrevistas de alguns alunos de Mestre Bimba, hoje respeitados mestres de capoeira, em que prestam para o documentário A Capoeira Iluminada, um documentário sobre a história de mestre Bimba e sua importância para a capoeira, tal postura se faz dentro de uma visão mais dividida do mundo, marcada por uma racionalidade ocidental, perdendo assim parte dos elementos culturais de matriz africana. Essa postura frente à capoeira angola pode ser notada em canções como Brincadeira tem hora de Mestre Acordeon, discípulo de Bimba, que defende a eficiência e tradição que a capoeira regional tem. Nessa música, mestre Acordeon expõe seu ponto de vista sobre a capoeira como uma luta de resistência:

Brincadeira tem hora Joga com garra e mandinga Esse jogotinhoso não é angola É capoeira de Bimba

Hoje em dia me espanto Com tanto papo furado Se dizer que capoeira É somente brincadeira Esquecendo a sua historia O seu passado de gloria Como luta verdadeira

(Mestre Acordeon. Letras Cantigas de Capoeira - Mestre Acordeon, Mestre Ra e Alunos)

Existe um esforço em buscar no passado uma legitimidade para a capoeira regional, no qual se demonstra que antigamente a natureza da capoeira era belicosa. Usada contra feitores e capitães do mato, ou seja, era uma luta eficiente, em contra partida com a capoeira angola que havia perdido sua força e eficiência. Não sendo mais aquela capoeira ancestral. Como resposta a essa brincadeira que a capoeira tinha se tornado, Bimba criou a capoeira Regional. Dentro de tal visão, o sucesso e continuidade da capoeira se devem ao resgate das tradições por Mestre Bimba. O que esse discurso não alcança ou queira negar é o fato de que sendo a Capoeira Regional criação de Mestre Bimba, a tradição que tanto se referem é também fruto desse momento.

Tal visão do passado de Bimba, como gênio capoeirístico, foi difundida por seus alunos que conseguiram enraizá-la no imaginário da capoeira, haja vista a inúmera quantidade de

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João Pequeno de Pastinha foi um dos discípulos mais respeitados de Mestre Pastinha. Sendo um angoleiro de grande perícia e habilidade. Na juventude participou das filmagens do filme Dança da Guerra em 1969. Morreu no ano de 2011 na Bahia.

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canções dedicada à vida e obra desse mestre. Sendo elas cantadas por capoeiristas ligados ou não diretamente à escola da capoeira regional. Existem álbuns inteiros dedicados à memória do mestre. O grupo ABADÁ capoeira é um entre tantos grupos de capoeira que vêm prestando homenagens ao mestre Bimba. Entre as produções desse grupo, de maior destaque nesse assunto, estão os álbuns Bimba-Mestre dos Mestres, que contém uma série de canções que narra a vida e os feitos desse mestre; e o Centenário de Mestre Bimba, que se inicia com trechos de falas de mestre Bimba, que contém músicas que rememoram e lamentam a morte de Mestre Bimba. Além do mais, há outro álbum intitulado Camisa ABADÁ Capoeira, Homenagem a Mestre Bimba e a Mestre Pastinha, que faz uma homenagem mútua ao Mestre Bimba e ao Mestre Pastinha, mostrando que essa dicotomia, por mais que aparente ser, não é de fato intransponível como muitos alegam. Ao observarmos a forma pela qual as canções tentam produzir narrativas e sentido sobre a importância de Emanuel dos Reis Machado para a capoeira e a cultura brasileira, não podemos deixar de notar a idealização sobre a figura do mestre.

Tal idealização também pode ser notada com relação ao mestre Pastinha. Pelos alunos de Pastinha ou por parte daqueles que aprenderam com ele, os quais encontram na figura desse mestre o exemplo de um capoeirista ligado à tradição e de valor para a história da capoeira. Nessa visão, mestre Pastinha é o guardião das velhas tradições, por ser angoleiro respeitado sucessor de uma longa linhagem16 de mestres que viria desde os tempos coloniais até a época dos capoeiristas de rua. Dentro dessa lógica, a capoeira angola é vista como a fonte pura e imutável, sendo ela, portanto, a verdadeira capoeira. O que tal visão também não vê é o fato de que a capoeira está ligada à realidade social em que se manifesta. Nesse sentido, parece trair as palavras do próprio mestre Pastinha, quando diz que “... seu começo é um mistério e seu final é inconcebível ao maior dos sábios...”, ou seja, traindo essa perspectiva de uma capoeira maleável e sempre em transformação, com astúcia e engenhosidade, que uma luta de escravos deveria ter para que o escravo que a praticasse pudesse passar despercebido.

Algumas disputas em torno da capoeira regional

Essas disputas vão constituir o maior pólo de atrito entre os capoeiristas que, ao se identificar com um grupo ou outro, tomam partido em uma disputa que é anterior a eles e que muito provavelmente vai continuar após eles. Dentro dessas disputas vão surgindo narrativas que se transformam em músicas que, por sua vez, continuam a alimentar essas disputas. Existem

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outras disputas no interior da capoeira. Essa é apenas uma delas, mas há um grande número de embates no interior desses dois grandes grupos. Disputas pela legitimidade de suas narrativas.

Um exemplo é a questão de mestre Sisnando com respeito à sua participação ou não no desenvolvimento da capoeira regional. Segundo os vários depoimentos de mestre Itapoan, a criação do estilo regional foi de autoria apenas da genialidade de mestre Bimba. No documentário A Capoeira Iluminada, de 2007, quando fizeram perguntas sobre a participação de alunos no desenvolvimento da capoeira regional, Itapoan foi incisivo: “Um aluno pode me mostrar um movimento, uma saída diferente para um golpe, nem por isso você pode dizer que ele alterou a minha capoeira.” O mestre continua com sua defesa da pureza dos ensinamentos de Bimba: “Andam dizendo por aí que o Mestre embranqueceu a capoeira, embranqueceu nada, ele africanizou seu alunos”. Essa é uma declaração feita não apenas uma vez, mas várias vezes. Quando em seus depoimentos e entrevistas surgia o tema da participação de Sisnando ou do branqueamento da capoeira por Bimba, Itapoan parte para um ataque contra essas afirmações. De fato, no documentário A Capoeira Iluminada não foi a primeira vez que o hoje velho discípulo de Bimba toma tal posição em relação à memória de seu mestre. Foi assim em O Fio da Navalha, documentário de 1995 da rede ESPN Brasil; como em tantos outros depoimentos do mestre, vemos que Bimba é a capoeira regional e que a capoeira regional é só Bimba.

Mas se por um lado Itapoan só reconhece Bimba como sendo o único e verdadeiro criador da capoeira regional, o finado mestre Decânio contava outra história. Esse outro renomado discípulo de mestre Bimba defende a participação ativa de Sisnando no processo da criação da regional. Segundo ele, Sisnando, um cearense vindo para a Bahia para cursar medicina, foi ao encontro de Bimba em uma carvoaria. [...] “Chegando lá encontrou aquele negro imenso coberto de carvão”, ele pediu para ser treinado pelo mestre, mas Bimba se recusou. Segundo mestre Decânio, mestre Bimba disse assim: - “não vou treinar você, sua pele é muito fina”; então Sisnando faz uma aposta com Bimba: se ele aguentasse quinze minutos no colar de força, Bimba o treinaria. Nesse momento, Decânio ri, porque Sisnando agüentou “e ai não teve jeito” para recusar Sisnando. Decânio sempre deixa claro que ele ajudou Bimba por conhecer outras lutas como Justisho-doe, por isso abriu para Bimba uma série de possibilidades com seus conhecimentos sobre as organizações de academias e suas disciplinas; o já velho mestre falava com um saudosismo desses tempos idos. Uma das mais contundentes defesas de mestre Decânio sobre essa participação está no documentário O Fio da Navalha, no qual ele diz o seguinte; “... a capoeira nasceu do contato com o negro e o branco, o negro que buscava resistir e o branco com

16 O termo linhagem aqui se refere ao laço de uma ancestralidade criado a partir de uma vivência e afetuosidade entre aluno e mestre ou, quando não existe ligação direta, a mesma se faz através do estilo e de um sentimento de

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a repressão...”; na mesma fala, mais à frente, diz “... o mesmo se deu com a regional, foi a junção de um negro com um branco que fez ela nascer, Bimba e Sisnando...”.

De fato, essa disputa sobre a essência da regional pode vir a demonstrar muito sobre as concepções de mundo desses mestres. Para Decânio, o fato de Sisnando ter participado do desenvolvimento da capoeira regional em nada desmerece seu mestre; ao contrário, demonstra ainda mais sua genialidade, por ser ele capaz de aprender com pessoas diferentes e tirar o melhor para sua capoeira. Já para mestre Itapoan, isso é uma ofensa que busca deslegitimar a imagem de seu mestre, sendo inadmissível tal afirmação. Até onde vai o conhecimento dessa pesquisa, os dois mestres possuíam uma relação de amizade, mesmo possuindo pontos de vista diferentes. A questão se Sisnando participou ou não ativamente da criação da capoeira regional não é o objetivo desse artigo, mas sim como tais disputas repercutem na criação das narrativas em canções de capoeira.

Até o momento, a versão de Itapoan, da genialidade magistral de mestre Bimba como criador individual da capoeira regional, é vencedora. Uma vez que, como dito anteriormente, existem várias canções sobre mestre Bimba, de como ele foi e é importante para capoeira. Uma dessas músicas, que ressaltam esse gênio que foi mestre Bimba, é a canção É Bimba no Berimbau, do grupo Abadá Capoeira, na qual é narrada não a trajetória do mestre, mas sim seu talento e capacidade criativa, como esse pequeno trecho mostra “... Do batuque e da angola/ Ele criou a regional...”, ficando claro aqui sua ligação com o passado, ao mesmo tempo em que se demonstra seu mérito ao recriar a capoeira. Em outros trechos dessa canção, podemos notar que a figura do mestre Bimba é colocada acima de todo e qualquer mestre. Afinal, como ela diz “... Me desculpem os outros mestres/ mas seu Bimba é sem igual..” e além disso “... Sua fama corre o mundo...”

Existem vários sites de capoeira que trazem uma versão da biografia de Bimba, mas o mesmo não se pode dizer sobre Sisnando. Parece que a ausência de evidências é sinal da vitória dessa forma de se narrar a história da capoeira. O que não significa que no futuro tal quadro não se reverta. Mas acreditamos que isso será muito difícil, uma vez que a figura de Bimba como único a desenvolver a regional já é muito consolidada na capoeira e que o único defensor de peso da versão com Sisnando, mestre Decânio, morreu. Vale ressaltar que a afirmação de mestre Itapoan, de que Bimba não embranqueceu a capoeira e sim africanizou seus alunos, é parcialmente verdadeira. Bimba africanizou seus alunos, isso é inegável, mas que também a capoeira, através dele, recebeu elementos brancos é plenamente verdadeiro, uma vez que a capoeira regional se faz dentro de um jogo de tensões culturais e que a idéia de uma pureza

Referências

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