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Cultura Rebelde - escritos sobre educação popular - BRANDAO 2009

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esCritos sobre a eduCação popular ontem e agora

Carlos rodrigues brandão

raiane assumpção

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esCritos sobre a eduCação popular ontem e agora

Carlos rodrigues brandão

raiane assumpção

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Brandão, Carlos Rodrigues

Cultura rebelde: escritos sobre a educação popular ontem e agora / Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção. – São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009. – (Educação popular)

Bibliografia

ISBN 978-85-61910-29-7

1. Educação popular 2. Educação popular – Filosofia I. Assumpção Raiane II. Título III. Série

09-03087 CD-370.115

Alexandre Munck Diretor

Administrativo-Financeiro Ângela Antunes Diretora Pedagógica Paulo Roberto Padilha Diretor de Desenvolvimento Institucional

Salete Valesan Camba Diretora de Relações Institucionais Raiane P. S. Assumpção Coordenadora de

Educação Popular Carlos Rodrigues Brandão e Autores

Raiane Assumpção

Janaina Abreu Coordenadora Editorial Sonia Couto S. Feitosa Secretária de Política Editorial

Lina Rosa Preparação de Originais Flávia Landgraf Pesquisa Bibliográfica

Maurício Ayer Revisor

Kollontai Diniz Capa e projeto gráfico Alex Nascimento Diagramação e Arte-final

Cromossete Impressão

Índices para catálogo sistemático: 1. Educação popular

370.115

Copyright 2009 © Editora e Livraria Instituto Paulo Freire

sumário

Apresentação – Algumas palavras sobre ontem e agora

1. – A educação como cultura popular:

princípios, procedimentos e

intencionalidades... 11 2. – Pressupostos históricos da

educação popular:

de ontem para agora... 39 3. – A radicalidade da Cultura Rebelde: parte da história da educação

popular no Brasil... 47 3.1. – A permanência da Cultura Rebelde: memórias, reflexões e contribuições da cultura popular dos anos 60 para hoje 3.2. – Uma proposta fundada em uma concepção contra-hegemônica: a cultura popular e o trabalho político por meio da educação e da arte

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apresentação

algumas palavras sobre ontem e agora

Ao escrevermos sobre um tema já bastante tra-balhado, desde pelo menos os anos de 1960, mas que nos parece sempre presente e atual – a educação e a cultura popular – tomamos como referência docu-mentos, escritos, vivências, memórias e práticas vivi-das, pensadas e dialogadas ao longo de vários anos.

Inspirados nos pensamentos da filósofa e pro-fessora Marilena Chauí (1993) que lembra as dife-renças presentes nas relações constituídas pelo saber e pelo sentido, e existentes entre quem fala e escre-ve a partir de um poder dominante estabelecido e quem faz a sua crítica e busca outras alternativas –, é que fizemos este livro. Chauí retoma uma passagem do pensador Karl Marx (1932), que lembra que as ideias dominantes de uma sociedade são as ideias da sua classe dominante, para recordar que a tarefa 5. – Considerações acerca da Cultura

Rebelde em tempos de fluidez... 83 Bibliografia... 101

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gens e valores pode ser bastante fácil se eles falam o que se imagina que se espera ouvir. É mais fácil ser persuadido por um belo e sonoro engodo do que escavar em busca de uma verdade nunca evidente, sobretudo em uma sociedade dominada por meios de comunicação sempre prontos a decorar o falsea-mento da realidade com as vestes de que se reveste a aparência de feliz ou inevitável normalidade da vida cotidiana e da história humana.

Em direção oposta, Chauí relembra as difíceis tarefas de quem se dispõe a trabalhar em nome de ou a partir da construção social de outras formas de sen-tir o que se vive, de perceber o que se sente, de com-preender o que se percebe e de, a partir do que passa a compreender, lançar-se a fazer algo para transformar a própria vida e o mundo de suas representações.

Em primeiro lugar, é necessário realizar a com-plexa desmontagem do senso comum quando se pen-sa a própria sociedade. Em segundo lugar, é preciso desvelar e denunciar uma ilusória – mas quase sempre bastante convincente – aparência de coerência entre a realidade da vida e a verdade dos fatos, que constitui, em todos os seus planos, a ideia de que “o que está aí” é normal, desejável, ainda que transitoriamente imperfeito, necessário e inevitável. Essa suposta co-erência oficial que torna aceitável a barbárie cotidia-na, fundamenta o discurso do poder da ordem, ou

desigualdade, restrição da liberdade, exclusão social, discriminação de pessoas e de grupos humanos e in-culcamento de saberes e valores entre culturas.

Estes saberes e valores estão presentes tanto no que o educador Paulo Freire (1921-1997) denuncia-va, há mais de quarenta anos, como a educação ban-cária quanto na programação diária da maior parte dos canais de televisão, que repete e finge inovar uma conhecida e repetida retórica carregada de argumen-tos que justificam ponto por ponto o “estado atual das coisas”. Ou que, mesmo quando reconhecem que não vivemos ainda no “melhor dos mundos”, nada ou muito pouco pode ser feito.

Nesta publicação, retomamos o papel e o senti-do histórico da educação popular: como resistência e oposição ao status quo. Apresentando os pressupostos históricos – por meio de pesquisas e publicações sobre o assunto – que nos deram suporte para definirmos, a partir do sentido e das práticas, a concepção de edu-cação popular como construtora de uma Cultura Re-belde, que transcende o tempo e o espaço, portanto o ontem e o agora. Os capítulos são constituídos por reflexões sobre os fundamentos teóricos e metodo-lógicos da concepção de educação popular aqui de-fendida, a partir das vivências históricas: os desafios, a intencionalidade e as formas atuação. O diálogo e a reflexão a respeito dessas questões permanecem

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relevantes também na atualidade, na medida em que compreendemos que a educação popular ainda não cumpriu a sua intenção: a de propiciar a humani-zação e a libertação dos sujeitos que sofrem com as opressões políticas, econômicas e culturais. É essa proposta que nos motivou, e continua nos motivan-do, a realizar e consolidar ações e procedimentos para fortalecer as iniciativas populares da sociedade civil, considerando a diversidade e a particularidade dos envolvidos, para enfrentar as opressões e as restrições impostas pelo Estado brasileiro e pela estrutura e di-nâmica da sociedade contemporânea.

Carlos Rodrigues Brandão

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a eduCação Como Cultura popular: prinCÍpios, proCedimentos e

intenCionalidades

Ao longo da existência da educação popular no Brasil, inúmeros sentidos lhe foram atribuídos como também foram diversas as compreensões a seu respei-to. Olhando para o percurso da sua história pudemos encontrar pelo menos quatro diferentes sentidos:

1) como a educação da comunidade primitiva, an-terior à divisão social do saber;

2) como a educação do ensino público; 3) como a educação das classes populares; 4) como a educação da sociedade igualitária.

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Aqui, consideramos dois sentidos usuais para a

educação popular. Primeiro, enquanto processo

ge-ral de reconstrução do saber social necessário, como

educação da comunidade e, segundo, como trabalho

político de luta pelas transformações sociais, como emancipação dos sujeitos, democratização e justiça social. Mas o que dizer de inúmeras expressões que se desdobram a partir de meados dos anos 1940: alfabe-tização de adultos, alfabealfabe-tização funcional, educação de adultos, educação fundamental, educação comu-nitária, educação permanente, educação não-formal, educação de base, educação popular?

No início do século 20, não apenas no Brasil, mas também em outros países do continente em que os processos iniciais de industrialização-urbanização alteraram aspectos relevantes do quadro de relações de classes, houve uma série de iniciativas e aconte-cimentos que devem ser tomados como o ponto de partida para as respostas à pergunta acima. Quere-mos iniciar nossa discussão de antes desse momento histórico, não tanto para apresentar um fio lógico, mas para discutir uma ideia que nos parece muito útil para explicar como relações entre teorias, propostas e práticas de educação que, aparentemente, se sucedem umas às outras, efetivamente se transformam, confli-tam e entre si concorrem de acordo com interesses, premissas e projetos, não raro extraeducacionais, que os geram e sustentam.

um olhar sobre a história da educação popular no brasil

Ao descrever o trabalho pedagógico dos pri-meiros missionários no Brasil, o sociólogo e edu-cador Fernando de Azevedo (1894-1974) associa o ensino escolar que os jesuítas deram a crianças in-dígenas, mestiças e brancas com o embrião de uma educação popular no país.

Atraindo os meninos índios às suas casas ou indo-lhes ao encontro nas aldeias; associando, numa mesma comunidade escolar, filhos de nativos e de reinóis – brancos, índios e mes-tiços – e procurando na educação dos filhos conquistar e re-educar os pais, os jesuítas não estavam servindo apenas à obra da catequese, mas lançavam as bases da educação popular (...) (Azevedo, 1963, p. 15).

Com exceções, o trabalho pedagógico escolar dirigido a índios, negros e brancos pobres foi res-trito e provisório durante todo o período colonial. Com o tempo, um primeiro “sistema escolar” to-mou no Brasil a forma usual da educação na socie-dade colonizada: algumas missões com escolas para alguns grupos indígenas; algumas raras escolas de ordens religiosas dirigidas predominantemente a fi-lhos e filhas de senhores da Coroa e homens ricos da cidade ou do campo; uma rede espontânea de pequenas escolas de primeiras letras, exercidas por

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professores leigos, muitos deles pouco mais do que “alfabetizados”, como costuma acontecer até hoje no interior do país. Mais tarde, raros centros “reais” de ensino profissionalizante, ao lado de conventos, mosteiros e seminários, foram durante muito tem-po os únicos lugares de uma educação escolarizada acima da “elementar”.

Fora do domínio da educação escolar, havia a trama das muitas situações e práticas corpora-tivas ou comunitárias, em que outros saberes se difundiam. Pequenas oficinas de trabalho urbano formavam, durante a prática do trabalho-ensino, futuros artesãos e oficiais, futuros mestres que ensi-nariam outros aprendizes a serem ourives, seleiros, ferreiros, marceneiros, serralheiros, pedreiros, pin-tores ou músicos.

A aprendizagem dos ofícios manufatureiros era realizada, na colônia, segundo padrões dominantemente assistemáticos, consistin-do no desempenho, por ajudantes/aprendi-zes, das tarefas integrantes do processo téc-nico de trabalho. Os ajudantes não eram necessariamente aprendizes, mesmo quan-do menores de idade. O fato de um outro aprender o ofício não era intencional nem necessário. As corporações de ofício, ao contrário, programavam a aprendizagem sistemática de todos os ofícios embandei-rados, estipulando que todos os menores ajudantes devessem ser, necessariamente,

aprendizes, a menos que fossem escra-vos. Determinavam o número máximo de aprendizes por mestre, a duração da apren-dizagem, os mecanismos de avaliação, os registros dos contratos de aprendizagem, a remuneração dos aprendizes e outras ques-tões (Cunha, 1978, p. 33).

É uma longa luta de educadores, políticos, in-telectuais e grupos organizados de nosso primeiro operariado, que vai forçar o Estado a tomar a seu cargo uma educação laica, pública e, pelo menos em tese, “universal”, estendida a todos. É preci-so lembrar que não foi apenas o trabalho políti-co pela espolíti-cola pública, nem uma súbita tomada de consciência do poder de Estado, o que, nas pri-meiras décadas do século 20, provocou o adven-to do ensino escolar oficial. Interesses e pressões de setores urbanizados da população brasileira, ao lado das vantagens que o empresariado via em uma melhoria do nível escolar e da capacitação da força de trabalho de migrantes rurais ou estran-geiros reunidos em suas indústrias foram também fatores muito importantes.

Foi somente na medida em que a retórica liberal passou a corresponder ao interesse das novas camadas sociais que emergiram com o início da industrialização, a maciça imigração européia e o surgimento de novas oportunidades de trabalho na cidade que

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começou a processar-se, em algumas regi-ões do país, uma real expansão do ensino (Campos, 1982, p. 10).

É associada aos movimentos civis e lutas pela democratização do ensino brasileiro que a expres-são educação popular aparece com aspas em Celso de Rui Beisiegel (1974, p. 34-58) e, sem elas, em Vanilda Pereira Paiva (1987, p. 53-87), quando ambos discutem as relações entre o Estado, a so-ciedade civil e a educação das classes populares no país. A escola pública, estendida por governos de Estados e municípios a populações rurais e urbanas do país, durante muitos anos afastadas do ensino escolar, é um dos resultados dessa primeira mobili-zação nacional pela educação universal. Iniciativas muito isoladas de criação de escolas gratuitas, desde o Império, foram sendo timidamente ampliadas nos primeiros anos da República. Entretanto, a ausência de uma política educacional definida e o abandono da responsabilidade de promover a educação esco-lar básica somaram-se a fatores sociais externos ao âmbito da educação, mas com influência sobre ele, para resultarem em progressos lentos, cujos efeitos foram muito pequenos, seja sobre a melhoria dos índices de benefícios escolares às populações pobres, seja sobre uma modificação na qualidade da partici-pação delas na vida nacional.

Ao iniciar-se o período republicano, a si-tuação da instrução popular não era das mais alentadoras. Com uma população de 14 milhões de habitantes no último ano do Império, contávamos com uma frequência de apenas 250 mil alunos em nossas esco-las primárias e o crescimento das escoesco-las e matrículas se fazia muito lentamente. O progresso do ensino elementar na primei-ra metade da República Velha pode mesmo ser considerado insignificante; o Boletim Comemorativo da Exposição Nacional de 1908 anunciava um total de um pouco mais de 11 mil escolas elementares com matrícula de quase 600 mil alunos e fre-quência inferior a 400 mil em todo o país (Paiva, 1987, p. 84).

Uma “luta pela educação” é então dirigida ao “combate ao analfabetismo” e à expansão imediata da rede escolar – centralizada agora pelo governo republi-cano federal – a todas as pessoas, em todos os lugares.

É comum educadores e estudiosos do assunto hoje em dia chamarem o que aconteceu entre os anos de 1920 e 40 de “entusiasmos pela educação”. Por uma crença que mesclava, entre nós, ideias liberais francesas com realizações sociais norte-americanas, e tinham as suas bases em dois princípios que se com-pletavam. O primeiro: a educação escolar era não só um direito de todos os cidadãos, mas o meio mais imediato, justo e realizável de construção das bases

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de uma sociedade democrática. O segundo: modifi-cações fundamentais nas formas e na qualidade da participação de inúmeros brasileiros, tanto na cultu-ra quanto na vida econômica e política do país, ecultu-ram uma condição fundamental para a melhoria dos indicadores de nossa situação de atraso e pobreza. A educação estendida a todos através de uma mesma escola – pública, laica e gratuita – é um instrumento indispensável em tudo isto.

A partir da “luta pela escola pública” e das pri-meiras iniciativas de “combate ao analfabetismo”, muitas conquistas foram obtidas. Mas o ideal de uma educação popular liberal foi um projeto nunca plenamente realizado no Brasil. Mesmo em graus elementares, a escola pública é deficiente e deixa ainda à margem de uma educação escolar ade-quada um número muito grande e persistente de crianças, adolescentes e jovens pobres. Finalmen-te, todo o processo de modernização do sistema escolar não resultou, até agora, em uma oferta de educação compatível com as necessidades de ins-trução, formação, instrumentalização e capacita-ção das pessoas do povo. Mas a crítica das relações entre a educação formal e a sociedade não vale ape-nas para o Brasil. Sequer para a América Latina.

Pesquisas realizadas, sobretudo em São Pau-lo, redescobriram a presença de grupos, classes e comunidades populares nas lutas e conquistas da

educação. Eles corrigem uma visão costumeira, segundo a qual os pobres do campo e da cidade, produtores anônimos de culturas, sem possuírem a

cultura, nunca estiveram interessados pela

educa-ção dos seus filhos. Ao contrário, tanto a consulta atenta a documentos do passado quanto à obser-vação do que acontece hoje em dia entre pais de crianças em idade escolar apontam o mesmo in-teresse pela escola e, não raro, o mesmo empenho em cobrar do governo o ensino necessário.

Velhas histórias de interesses familiares e co-munitários pela educação, desde pelo menos o século passado. Episódios da face oculta da par-ticipação de camponeses e assalariados do campo e da periferia das cidades pela educação de seus filhos. O que se poderia chamar aqui de momentos de mobilização popular em favor da escola pública é alguma coisa que, silenciosa, mas presente, no passado, retorna por toda parte, entre movimentos populares e associações de bairros, de moradores, de mulheres. Isso porque a oferta de bens de edu-cação às populações marginalizadas é regida por uma lógica – e uma ética – igualmente marginal.

Examinando com mais detalhe como se pro-cessou a expansão do ensino primário na cidade de São Paulo, a partir de 30, é pos-sível, se não reconstituir, pelo menos per-ceber, nessa história, os sinais da presença

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e das reivindicações das camadas populares por acesso à escola. Esses sinais, que podem ser identificados, de forma indireta, através da análise da atuação do Estado, só ganham sentido se é adotado, desde o início, o pres-suposto de que a pressão da demanda é um aspecto fundamental na explicação dessa atuação (Campos, 1982, p. 6).

Mas o que a memória erudita que escreve as histórias da educação no Brasil, via de regra, oculta com cuidado é que esses próprios “setores” viveram momentos importantes de história de sua própria educação, como a criação de escolas para filhos de operários, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, fundadas e mantidas por associações dos próprios operários. As escolas partidárias e as experiências de educação escolar entre militantes anarquistas e comunistas, operários de uma indús-tria emergente, muitos deles imigrantes europeus, são frações de um trabalho político de classe atra-vés da educação; atraatra-vés da escola, pensada como o local de formação de uma nova geração de prole-tários educados segundo os princípios ideológicos de seus grupos partidários de militância. Pequenas escolas mantidas por sindicatos e partidos busca-ram realizar, durante o tempo em que isso foi pos-sível, uma articulação entre a formação de adultos militantes (educação sindical, partidária etc.) e a

socialização de crianças e adolescentes no interior de uma nova escola, diferente da “escola nova” e de outros espaços de ensinar-e-aprender patrocinados pelo poder de um Estado capitalista, a serviço da reprodução da ordem hegemônica do capital.

Ao contrário da lentidão rotineira e da arma-dura sistêmica e burocratizante em que se move o comboio pesado e confuso da educação escolar seriada, cuja principal característica é existir como uma complexa instituição hierárquica e, portanto, centralizada, os três exemplos de trabalho pedagó-gico para/com/das classes populares que vimos até aqui, pelo menos em seus momentos pioneiros de existência, tomaram a forma e a dinâmica de

mo-vimentos. A luta pela escola pública, as sucessivas

campanhas pela erradicação do analfabetismo e as experiências de educação de classe entre operários são repertórios de ideias, de propostas e de prá-ticas originadas e conduzidas por movimentos de

educação, ou então por setores de movimentos so-ciais e/ou políticos dedicados à educação, durante

as três ou quatro primeiras décadas do século 20. Na realidade, com mais ênfase em um período que se inicia em meados dos anos de 1950, diferentes tipos de “trabalhos com comunidades subdesenvol-vidas” são postos em marcha. Para efeito de difusão de ideias e incentivo de iniciativas, a Organização das Nações Unidas (ONU) encarregou-se do

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desenvolvi-mento de comunidades (às vezes estendido a

dimen-sões mais amplas, como o desenvolvimento regional, ou mais atuais, como o desenvolvimento rural

integra-do). Coube à Organização das Nações Unidas para

a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) efetu-ar as sucessivas propostas de educação pefetu-ara sujeitos, comunidades e nações, junto a quem programas de educação seriam parte de estratégias de desenvolvi-mento “a partir da base”.

Do ponto de vista individual, as formas suces-sivas de uma educação de adultos tinham por ob-jetivo a participação de sujeitos marginalizados em um processo de “desmarginalização”. As teorias da marginalidade social estavam então em plena voga. Sujeitos pedagogicamente defasados (sem escola, ou com insuficiência de ensino escolar) e social-mente marginalizados (pobres, subempregados, desnutridos e, consequentemente, postos “à mar-gem” dos processos sociais de “desenvolvimento” e “modernização”) seriam reintegrados a uma vida social ao mesmo tempo digna e produtiva. Se, de um lado, a educação de adultos e o desenvolvi-mento de comunidades marginalizadas eram um direito e um benefício social, de outro lado, eram também um investimento, porquanto pretendiam ser processos sistemáticos e meios participativos de integração de contingentes de pessoas e gru-pos gru-postos “à margem”, no interior do mercado

de trabalho, no pleno exercício da cidadania e no desenvolvimento da sociedade.

Durante um período entre 1960 e 70, do mes-mo mes-modo comes-mo aconteceu em outros domínios de trabalhos sociais com os setores populares, a educa-ção de adultos passou de uma ênfase na integraeduca-ção de indivíduos na sociedade para outra, cujo objetivo era atuar sobre grupos e comunidades que, educados, organizados e motivados, assumissem, em seu nível, “o seu papel no processo de desenvolvimento”.

Mais tarde, a partir nos anos 1980 e 90, uma proposta de “desenvolvimento local”, através de um somatório de melhorias nos locais de indi-cadores de qualidade de vida (educação, saúde, alimentação, trabalho, habitação e lazer), tendeu a incorporar a proposta de formas moderadas de participação popular em processos de transforma-ção social para o desenvolvimento. De modo mui-to simplificado, seria possível dizer que a ênfase passou do indivíduo educado “para a vida social” à educação do sujeito para o desenvolvimento da comunidade e, daí, à educação da comunidade através dos seus indivíduos.

Subordinar a realização das transformações ao desenvolvimento socioeconômico como formas operativas de poder, de controle e organização em si mesmos é o pretendiam os programas de “desen-volvimento e educação”. Em muitos casos,

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trata-va-se de intervir sobre a totalidade da ordem e da vida do que chamam “comunidades populares” e ocupar ali todos os espaços tradicionais e variantes de articulação de pessoas, grupos e equipes locais. “Organizar” é a palavra-chave de programas cuja meta aparente é “desenvolver”, “integrar” e “mo-dernizar”. São palavras a que, como nos ritos de feiticeiros, em alguns momentos se atribui um po-der quase mágico. Pronunciá-las, escrevê-las orde-nadamente em planos de ação, já quase realiza “no campo” o que se imaginou “no projeto”.

E o que significa exatamente “organizar” no contexto desses programas? Significa sobrepor, através do poder institucional de uma agência de mediação, a domínios tradicionais da vida social popular (a família, a parentela, a vizinhança, as equipes de trabalho produtivo ou ritual), formas externas, “modernizadoras” das articulações que regem, justamente, a teia das incontáveis formas de relações entre pessoas, grupos e símbolos da vida social. O programa de desenvolvimento in-troduz extensões de si mesmo, de sua própria ra-cionalidade, e cria: a “comissão de moradores”, o “clube de jovens”, o “grupo de mães”. Quando realizado em ampla escala, um programa de edu-cação e desenvolvimento não esconde a ambição de reordenar todos os domínios da “comunidade”. Fazê-lo de tal sorte que coisa alguma escape ao seu

controle e se constitua fora do alcance de sua lógi-ca. Duas modalidades de expressão da vida popu-lar são sutilmente marginalizadas:

1) a dos incontáveis atores e produtores de ser-viços tradicionais de religião, cura ou arte que, jus-tamente por sua resistência à inovação, são substi-tuídos por equivalentes, mais jovens, “dinâmicos” e, portanto, modernizáveis: o auxiliar de saúde, o líder de comunidade e tantos outros;

2) a dos espaços emergentes de trabalho social e político da comunidade e da classe na comunidade, como as organizações populares de moradores, as comissões autônomas de representação de setores da comunidade, os movimentos populares.

Que outras razões levam sucessivos governos a incen-tivar a “promoção social”, através de programas de educa-ção e desenvolvimento, em “áreas de ‘tensão social'”?

A origem deste amplo movimento tem o seu lu-gar no processo experimentado por grupos com-prometidos com a transformação das estruturas sociais que mantêm as maiorias oprimidas. A crescente consciência da vida real das massas e a compreensão de sua possibilidade de superar o vi-cioso círculo da miséria e da opressão (oposto ao virtuoso círculo da riqueza) através de ações iso-ladas e fragmentadas no sistema social forçaram a

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busca de um novo acercamento dos adultos. Este ponto de vista é substancialmente di-ferente dos anteriores. Desde uma mesma conceptualização, esta já não provém da Unesco, mas surge de experiências das ba-ses, e na América Latina. Porém, mais im-portante do que a origem é a interpretação teórico-social em que ela se fundamenta. As maiorias sociais não se encontram “margi-nalizadas”, mas exploradas e oprimidas. As nações do Terceiro Mundo não são atrasadas e primitivas, senão que dependentes e radi-calmente distintas. As soluções não podem ser transportadas e adaptadas dos países in-dustrializados e “desenvolvidos”. Pelo con-trário, esta posição (a da educação popular) aponta para uma profunda fé nas potencia-lidades e na riqueza das pessoas exploradas, sistematicamente depreciadas. A construção de uma sociedade em que os oprimidos se-jam os sujeitos de seu próprio processo libe-rador é o objetivo global desta busca utópica (Castilho; Latapi, 1983, p. 13-14).

Assim, ao contrário do que tipologias costu-mam apontar aqui e ali, a concepção de educação popular, no sentido que adotamos para o desen-volvimento deste trabalho (e no qual acredita-mos), não é uma variante ou um desdobramento da educação de adultos, da educação informal e nem simplesmente uma forma de educação per-manente. Frente a modelos oficiais e hegemônicos

– internacionalizados como paradigmas legítimos de trabalho com as classes populares por meio da educação e, finalmente, rotinizados como institui-ções de trabalho pedagógico consagrado –, a

edu-cação popular emerge como um movimento de

tra-balho político com as classes populares por meio da educação. Ela pretende ser uma retotalização de todo o projeto educativo, desde um ponto de vista popular. A diferença entre a educação popular e outras concepções está, em primeiro lugar, na ori-gem de poder e no projeto político que submete o agenciamento, o programa e a prática de um tipo específico de educação dirigida às classes popula-res. Está, em segundo lugar, no modo como o edu-cador pensa a si mesmo e o projeto de educação, no sentido mais pleno que estas palavras podem ter.

Uma primeira experiência de educação com as classes populares (com essa concepção), a que se deu sucessivamente o nome de educação de base,

educação libertadora e, mais tarde, educação popular,

surgiu no Brasil no começo da década de 1960, no interior de grupos e movimentos da sociedade civil, alguns deles associados a setores de governos muni-cipais, estaduais ou da federação. Surgiu como um

movimento de educadores, que trouxeram, para o seu

âmbito de atuação profissional e militante, teorias e práticas do que então se chamou cultura popular e se considerou como uma base simbólico-ideológica de

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processos políticos de organização e mobilização de setores das classes populares para uma luta de classes dirigida à transformação da ordem social, política, econômica e cultural vigente.

O lugar estratégico que funda a educação pular é o dos movimentos e Centros de cultura po-pular: movimentos de cultura popular, Centros

Po-pulares de Cultura, movimentos de educação de base, ação popular. Mesmo quando realizado em serviços

de extensão de universidades federais (como a de Pernambuco, onde Paulo Freire começou a desco-brir-se em seu método de alfabetização), em setores do Ministério da Educação (desde onde seria de-sencadeada a Campanha Nacional de Alfabetização) ou em agências criadas por convênios entre a Igreja Católica e o governo federal (como o movimento de educação de base), o que tornou historicamente possível a emergência da educação popular foi a conjunção entre períodos de governos populistas, a produção acelerada de uma intelectualidade es-tudantil, universitária, religiosa e partidariamente militante e a conquista de espaços de novas formas de organização das classes populares.

A partir de uma crítica feita ao sistema vigente de educação1 e, especialmente, das formas

tradicio-1. Ver mais em Educação como prática da liberdade, de Paulo Freire (1967).

nais de educação de adultos e de trabalhos agenciados de desenvolvimento de comunidades e suas variantes, a educação popular:

1) constitui passo a passo (“aos tropeços”, dirão os seus críticos) uma nova teoria, não apenas de educação, mas das relações que, considerando-a a partir da cultura, estabe-lecem novas articulações entre a sua práti-ca e um trabalho político progressivamente popular das trocas entre o ser humano e a sociedade, e de condições de transformação das estruturas opressoras desta pelo trabalho libertador daquele;

2) fundou não apenas um novo método de trabalho “com o povo” por meio da educa-ção, mas toda uma nova educação libertado-ra, por meio do trabalho do/com o povo so-bre ela – este é o sentido em que a educação popular projeta transformar todo o sistema de educação, em todos os seus níveis, como uma educação popular;

3) definiu a educação como instrumento po-lítico de conscientização e politização, por meio da construção de um novo saber, ao invés de ser apenas um meio de transferên-cia seletiva, a sujeitos e grupos populares – este é o sentido em que ela se propõe como uma ampla ação cultural para a liberdade a partir da prática pedagógica no momento de encontro entre educadores-educandos e educandos-educadores;

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4) afasta-se de ser tão somente uma atividade “de sala de aula”, de “escolarização popular”, e busca alternativas de realizar-se em todas as situações de práticas críticas e criativas entre agentes educadores “comprometidos” e sujei-tos populares “organizados”, ou em processo de organização de classe;

5) procura perder, aos poucos (o que nem sem-pre consegue), uma característica original de ser um movimento de educadores e militantes eru-ditos destinado a “trabalhar com o povo”, para ser um trabalho político sem projeto próprio e diretor de ações pedagógicas sobre o povo, mas a serviço dos seus projetos de classe.

É neste sentido que há, hoje em dia, um consen-so de que a intenção do educador popular deve ser a de participar do trabalho de produção e reprodução de um saber popular, aportando a ele, ao longo do trabalho social e/ou político de classe, a sua contri-buição específica de educador: o seu saber erudito (o da ciência em que se profissionalizou, por exemplo) em função das necessidades e em adequação com as possibilidades de incorporação dele às práticas e à construção de um saber popular.

O que justifica a educação popular é o fato de que o povo, no processo de luta pela trans-formação popular, social, precisa elaborar o seu próprio saber... Estamos em presença de atividades de educação popular quando,

independentemente do nome que levem, se está vinculando a aquisição de um saber (que pode ser muito particular ou específico) com um projeto social transformador.

A educação é popular quando, enfrentando a distribuição desigual de saberes, incorpora um saber como ferramenta de libertação nas mãos do povo. Pelo que foi exposto antes, o fato é que se a educação popular pode ser entendi-da como uma ativientendi-dade específica (não é toentendi-da ação assistencial, de trabalho social ou de polí-tica educativa) ela, por outro lado, não requer ser realizada no interior do sistema educativo formal, separada do conjunto de práticas so-ciais dos indivíduos. Muito ao contrário, a educação popular vem sendo desenvolvida no interior de práticas sociais e políticas e é aí pre-cisamente onde podem residir a sua força e a sua incidência. (La Educación Popular Hoy en Chile: Elementos para Definirla, ECO, Edu-cación y ComuniEdu-cación, Santiago de Chile, 1988 – sem indicação de autor, p. 9).

Uma questão muito importante desde os mo-mentos de origem daquilo que viria a ser a educação popular é que não existe uma solução explícita logo de saída. Primeiro, um novo paradigma de educa-ção se volta contra a educaeduca-ção tradicional. Depois, ele se volta contra as condições sociais da sociedade desigual. Mais adiante, ele se afirma como a possibi-lidade de a educação ser um instrumento que opera no domínio do conhecimento a serviço do processo de passagem do povo de sujeito econômico a

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sujei-to político, capaz de transformar relações sociais de que as da educação são apenas um símbolo, uma artimanha e uma dimensão.

Não é apenas em uma sociedade transformada que se cria uma nova cultura e um novo homem. É ao longo do processo coletivo de transformá-la, por meio do qual as classes populares se educam com a sua própria prática e consolidam o seu saber com o aporte da educação popular. Pela primeira vez surge a proposta de uma educação que é popular não por-que o seu trabalho se dirige a operários e campone-ses prematuramente excluídos da escola seriada, mas porque o que ela “ensina” vincula-se organicamente à possibilidade de criação de um saber popular, por meio da conquista de uma educação de classe, ins-trumento de uma nova hegemonia.

Ora, a possibilidade concreta de produção de uma nova hegemonia popular no interior da socie-dade classista é o horizonte da educação popular. A possibilidade (a utopia? o projeto histórico rea-lizável?) de que, por efeito também da acumulação de um poder de classe, por meio da organicidade progressiva das práticas dos movimentos popula-res e do fortalecimento consequente do seu saber

popular, venha a realizar-se uma transformação da

ordem social, em um mundo solidário de igualda-de e justiça, é o horizonte que se avista do horizon-te da educação popular.

Em suas formas mais consequentes, que hoje se recobrem de inúmeras iniciativas em todo o continente latino-americano, a educação popular apenas gera um primeiro momento de passagem de uma educação para o povo a uma educação que o

povo cria. Que ele produz ao transitar – não

por-que se educa entre educadores, mas porpor-que inclui a educação popular no trabalho político que educa a ambos – de sujeito econômico a sujeito político, e ao se reapropriar – tanto tempo depois, tantas histórias depois – de uma educação para fazê-la ser, pouco a pouco, a sua educação: a educação através da qual ele não se veja apenas como um anônimo sujeito da cultura brasileira, mas como um sujeito coletivo da transformação da história e da cultura do país.

Os pontos atuais de partida da educação popular: 1) a criação de uma nova hegemonia, o que significa um saber popular, no sentido de saber das classes populares, que se constitua como base de um trabalho de acumulação de poder popular;

2) a cultura popular como ponto de partida, com um trabalho de revisão de seus componentes tradi-cionalmente “dominados” e em direção à produção de uma cultura orgânica de classe;

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3) a progressiva participação do trabalho do edu-cador no trânsito dos sujeitos populares de agentes econômicos a agentes políticos;

4) a descoberta e o aprimoramento de tipos de relações de prática pedagógica entre educadores e educandos, entre profissionais comprometidos com a “causa popular” e agentes educandos individuais (sujeitos populares) ou coletivos (movimentos popu-lares) (Huidobro; Martinic, 1983, p. 24).

Depois de alguns anos de tropeços, recuos e atrope-los, alguns princípios ficaram claros. A educação popular é a negação da negação. Não é um “método conscientiza-dor”, mas é um trabalho sobre a cultura que faz da cons-ciência de classe um indicador de direções. É a negação de uma educação dirigida “aos setores menos favorecidos da sociedade” ser uma forma compensatória de tornar legíti-ma e reciclada a necessidade política de preservar pessoas, famílias, grupos, comunidades e movimentos populares fora do alcance de uma verdadeira educação. Ela procura ser, portanto, não a afirmação da possibilidade de emer-gência de uma nova educação “para o povo” – o que importaria a reprodução legitimada de “duas educações” paralelas, condição da desigualdade consagrada –, mas a afirmação da necessidade da utopia de transformação de todo o projeto educativo a partir do ponto de vista e do trabalho de classe das classes populares.

Negando realizar-se apenas como trabalho es-colar (aquilo que começa na alfabetização e ter-mina em um supletivo, ou em um curso eficaz de “qualificação” de mão-de-obra), a educação popular é mais um modo de presença assessora e participante do educador comprometido do que um projeto próprio de educadores a ser realiza-do sobre pessoas e comunidades populares. Ela se realiza em todas as situações em que, a partir da reflexão sobre a prática de movimentos sociais e movimentos populares (as “escolas” em que tem sentido uma educação popular), as pessoas trocam experiências, recebem informações, criticam ações e situações, aprendem e se instrumentalizam. A educação popular não é uma atividade pedagógica

para, mas um trabalho coletivo em si mesmo, ou

seja, é o momento em que a vivência do saber

com-partido cria a experiência do poder compartilhado.

Em outras palavras, as práticas da educação popular representam desde já a vontade de criar espaços autônomos, espaços nos quais o manejo do poder se realize de forma compartilhada, dentro de uma crescente relação entre iguais. Nesta perspectiva as opções metodológicas adquirem relevância especial... A busca de formas educativas de caráter participativo, de reflexão coletiva da prática dos próprios atores, do desen-volvimento de relações de solidariedade

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opções-chave neste sentido.

(La Educación Popular Hoy en Chile: Elementos para Definirla, ECO, Educación y Comunicaci-ón - sem indicação de autor, p. 13).

Ao existir dentro e além de situações formais de ensinar-e-aprender, a educação popular é uma en-tre outras práticas sociais cuja especificidade é lidar com o saber, com o conhecimento. Com relações de intercâmbio de saberes entre educadores eruditos e sujeitos populares, que se dão não por meio do “saber em si”, mas da prática de classe que o torna, finalmente, mais do que um saber necessário, aquilo a que pode ser dado o nome de um saber orgânico. Este trabalho existe no interior de uma associação de moradores de um bairro de periferia, em um movimento de trabalhadores rurais do interior de diversos estados do Brasil, em uma comunidade eclesial de base, em um grupo de mulheres em luta pela conquista de escola para o seu bairro. Por isso mesmo, é uma prática de pensar a prática e é uma das situações variadamente estruturadas de produ-ção de um conhecimento coletivo popular.

Esta é a razão pela qual se pode pensar a edu-cação popular como um trabalho coletivo e orga-nizado do próprio povo, a que o educador é cha-mado a participar para contribuir, com o aporte

político que atua especificamente no domínio do conhecimento popular.

A educação popular é, hoje, a possibilidade da prática regida pela diferença, desde que a sua razão tenha uma mesma direção: o fortalecimento do poder popular, através da construção de um saber de classe. Portanto, mais importante do que pre-tender defini-la, fixar a verdade de seu ser, é des-cobrir onde ele se realiza e apontar as tendências por meio das quais ela transforma a educação na vivência da educação popular.

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2

pressupostos HistÓriCos da eduCação popular:

de ontem para agora

A história da educação dirigida às classes popu-lares na América Latina não é linear. Em um primei-ro momento, a educação “com o povo” pode ser um movimento emergente e contestador. Em outro, pode substituir, como uma forma de poder no interior de um campo político de trabalho pedagógico, formas e instituições anteriores, tornando-se uma nova forma hegemônica e consagrada. Novas formas surgiram no bojo de novos movimentos e a instituição que um dia foi movimento usou de seu poder de “modelo legíti-mo” para ilegitimar quem a contestasse.

A partir dos fatos históricos, coloquemos uma por uma estas ideias em evidência:

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1ª – A história da educação dirigida às classes populares na América Latina foi constituída por formas, modelos e agências de produção e execução de ideias, propostas metodológicas e práticas que não se sucedem ordenada e sistematicamente (uma delas para depois de cada “Conferência Internacio-nal”). Ao contrário, a possibilidade de variações em um campo político de relações educativas está sem-pre aberta, mesmo sob regimes autoritários. A um mesmo momento, em uma mesma formação social, modelos supostamente ultrapassados de educação coexistem com os hegemônicos e com os emergen-tes. Antigas “campanhas de alfabetização do começo do século” podem a todo o momento reaparecer sob novos nomes e com a racionalidade da moda. Po-dem coexistir com formas mais lentas e complexas de educação de adultos e com várias pequenas “ex-periências de educação popular”.

2ª – Assim, ao contrário do que parece aconte-cer, a dinâmica das relações entre diferentes modelos não se dá pela superação pura e simples de alguns em favor de outros, ou em função da produção de uma nova hegemonia educativa. A regra é a coe-xistência de modelos tradicionais, hegemônicos e emergentes. Esta coexistência e as regras de seus re-lacionamentos sociais e simbólicos são o que produz a dinâmica do campo de ação do educador popular,

além daquilo que acontece de politicamente rele-vante, fora de seu domínio específico de trabalho, mas com repercussões diretas sobre ele.

3ª – Portanto, o trabalho pedagógico agenciado junto às camadas populares existe em um campo de relações que não o diferencia de outras práticas equi-valentes (saúde, religião, bem-estar social etc.). Deter-minado por fatores políticos, econômicos, sociais e culturais, este campo de trabalho de diferentes tipos de agências e educadores diferencia formas e princípios sociais de articulação dos seus elementos. Diferentes agências concorrentes ou aliadas trazem para a

edu-cação do povo diferenças de intenções, ideias e

proje-tos, que implicam formas de controle, promoção ou mobilização de grupos populares para fins diferentes, não raro, visivelmente, antagônicos. Ao mesmo tem-po, em uma mesma periferia operária, agências do governo federal, da Secretaria Estadual de Educação, do município, de um setor da Igreja Católica, de um núcleo local do partido, de uma fração de estudantes universitários, de uma associação de moradores ou de um grupo de oposição sindical podem estar realizando trabalhos que têm a ver com relações de saber, ou com relações de poder por intermédio do saber. Ocupando espaços sociais, estas agências: estabelecem articulações com outras de práticas equivalentes, em outros domí-nios; aliam-se entre si e contra outras; concorrem pela

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hegemonia local da sua prática ou, pelo menos, pela reserva de um espaço legítimo junto ao de outras.

4ª – Neste sentido, uma evidente carência de resultados efetivos nas atividades como as de exten-são agrícola, de desenvolvimento rural integrado e de educação de adultos permite supor que, pelo menos em alguns casos, elas apenas cumprem uma função de ocupar espaços junto a setores das classes populares em que, mesmo que não produzam resultados educa-tivos relevantes, concorrem com experiências alterna-tivas de educação popular. Não é difícil verificar isto em áreas de “tensão social”, onde agências patronais ou oficiais multiplicam esforços para “organizar a co-munidade” contra iniciativas de mobilização política de setores das classes populares na comunidade. O poder de cooptar pessoas e grupos e reorganizá-los segundo os padrões da agência de educação é um dos principais indicadores da diferença entre uma ação pedagógica hegemônica e um trabalho de educação popular. Enquanto a intenção de uma é criar as suas próprias unidades locais de “organização”, segundo os moldes do seu “programa de educação”, o que serve basicamente a assegurar a sua legitimidade “nas bases populares”, o objetivo da educação popular deve ser o de fortalecer as próprias organizações locais e popu-lares de poder de classe na comunidade.

Ora, uma das tendências mais acentuadas dos

programas sociais à classe popular é a participação

co-munitária. Esta participação – palavra-chave – quase

sempre implica a aparência de um poder decisório de representantes populares em momentos secundários de um trabalho de mediação, cujas pautas e metas são antecedentemente traçadas e, não raro, estão fora do controle até mesmo dos técnicos intermediários do programa. Em contrapartida, ainda que isso nem sempre se realize plenamente, a principal tendência da prática da educação popular, hoje, está na pas-sagem de um modelo emergente de educação com ponto de referência em si mesmo, para uma prática cujo ponto de referência são os grupos populares, os movimentos sociais da comunidade, os movimentos populares de classe na comunidade.

Usando com frequência as mesmas palavras e sugerindo em aparências as mesmas metas, os pro-gramas sociais populares têm o seu princípio opera-cional na pessoa do sujeito subalterno e têm o seu fim operacional nos grupos e organizações que ela gera na comunidade. De outra parte, programas de educação popular possuem o seu princípio opera-cional nas unidades populares de representação da vida comunitária e do trabalho político de classe na comunidade e têm o seu fim operacional na amplia-ção do poder de tais unidades de trabalho popular. Este é um dos pontos fundamentais da disjunção entre um modelo e o outro. Enquanto para as

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va-riantes do programa social o sentido do trabalho pedagógico é reverter o trabalho político do movi-mento popular em trabalho social de unidade local, para as variantes da educação popular o sentido do trabalho pedagógico é converter o trabalho social da comunidade em movimento orgânico de dimensão política. O movimento popular tende a ser a razão e a dinâmica da educação popular, enquanto tende a ser a tensão e o dilema da educação de adultos.

5ª – No limite, o que dá sentido humano à educação popular é a possibilidade de ela não só ser um meio real de compromisso de educadores (quase sempre “de classe média”, é bom não esquecer) com um projeto histórico de humanização libertadora por meio do trabalho político do povo, mas também de reproduzir-se, por isso mesmo, como um movimento

pedagógico. Como um modo de a educação realizar-se

sem se estabelecer como instituição dominante, no domínio em que a educação é, em si mesma, uma forma de poder. Por isso mesmo, mais do que um

programa com metas prefixadas, métodos de

com-provada eficiência, sistemas importados de avaliação e relatórios notáveis de fim-de-período, a educação popular aspira a ser, da parte dos educadores com-prometidos, uma presença militante, em que não raro a forma mais consequente de trabalhar é não ter um programa de trabalho, mas servir aos dos

movimen-tos populares a que se destina. Da parte dos agentes populares, ela aspira a ser uma antecipação de sua possibilidade de criar, agora, uma forma orgânica de educação do povo.

6ª – Modelos institucionais e hegemônicos de educação para o povo são sempre e irrevogavelmente uma pedagogia do outro. Esta alteridade consagra a dimensão dominante de um trabalho mediador, cujo fraseado disfarça a dominância, e também cria aí o seu próprio sentido. Instrumento sutil de reprodução compensatória da desigualdade, ela funda o seu ser na distância da diferença entre o lado do educador e o lado do educando; entre a fonte de poder a que ser-ve e o sujeito popular que controla, parecendo servir. Ela é o lugar do técnico, não o do militante (palavra que a burocracia teme e, por isso, procura tornar va-zia), e sonha fazer do sujeito popular um outro edu-cado, produto da imagem antecipada que dele fazem a retórica e o interesse da agência: um sujeito instruí-do e participante, desde que ordeiro e subalterno.

O projeto limite da educação popular preten-de reduzir a alteridapreten-de constitutiva da classe po-pular. Com frequência, esta tarefa difícil tem sido o lugar onde práticas se perdem. Uma alteridade que se dissolve, não porque o educador venha a ser “como o povo”, mas porque o seu trabalho tende a se tornar das classes populares e, portanto, não

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se esgota em uma permanente transferência de co-nhecimentos, que reproduz a dependência de um lado para com o outro, mas na possibilidade de que o próprio instrumento chamado “educação popular” venha a ser, na passagem de um polo ao outro, uma conquista do povo. Uma reapropria-ção não apenas de um modo de saber, mas do meio e do movimento que, entre outros, tornam possível a produção autônoma desse saber.

a radiCalidade da Cultura rebelde: parte da HistÓria da eduCação popular no brasil

Diferentes histórias da educação popular no Brasil e na América latina já foram pesquisadas e escritas. Neste capítulo, retomamos esta história com o objetivo de provocar um diálogo a respeito da radicalidade dessa concepção de educação: como expressão de uma Cultura Rebelde.

Uma radicalidade compreendida no sentido eti-mológico da palavra: referente à raiz, à origem; no caso da educação popular, referentes à resistência e à construção contra-hegemônica na perspectiva da au-tonomia dos sujeitos no processo histórico.

Reconstruir parte da trajetória de uma Cul-tura Rebelde permite-nos compreender o papel e

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o significado da educação popular no ontem, no agora e no anúncio do amanhã.

3.1. a permanência da Cultura rebelde: memórias, reflexões e contribuições da cultura popular dos anos de 1960 para hoje

Nos primeiros anos da década de 1960, em Angicos (Rio Grande do Norte), Paulo Freire e uma equipe de educadores de Pernambuco iniciaram uma experiência de alfabetização inovadora, que traria fun-damentos de teoria e prática ao que, anos mais tarde, veio a se chamar educação popular.

Essa experiência, que surgiu no Brasil e se difundiu por toda a América Latina, apresentou uma nova proposta para as ações sociais e político-pedagógicas, através da cultura e, de maneira especial,

da cultura popular. Nos primeiros documentos

que foram elaborados, a proposta era apresentada como uma alternativa político-pedagógica que parte da cultura e se realiza por meio da cultura. Assim, a criação cultural dos sujeitos, das classes ou das comunidades, antes somente objeto de estudo dos folcloristas e cientistas sociais, se transforma, também, em um alicerce de ação política e pedagógica. Foi quando criaram os primeiros

movimentos de cultura popular.

Usando a mesma expressão corrente na Europa desde o século 19, a proposta dos movimentos de cultura popular (MCPs) do Brasil dos primeiros anos da década de 1960 inovou, de uma maneira ativa e politicamente motivada, o sentido original da própria ideia de cultura. Ideias de pensadores como Antônio Gramsci estavam ali presentes. A Cultura Popular deixa de ser somente um conceito de valor científico para tornar-se a palavra-chave de um projeto político de transformação social a partir das próprias culturas

dos trabalhadores e outros sujeitos sociais.

O “trabalho de cultura popular” dos MCPs foi além dos programas especiais de educação ou de “cultu-ra pa“cultu-ra o povo” – representou uma das expressões mais radicais de interação entre intelectuais e profissionais das universidades e de outros centros de “cultura erudi-ta” e pessoas das classes trabalhadoras e seus “mundos” de vida, de trabalho e de criação cultural.

Que tipos de práticas, consequentes com uma nova visão de trabalho junto às pessoas, grupos e co-munidades populares, pretendiam colocar em prática os movimentos de cultura popular?

Da mesma forma, tal como Paulo Freire reafir-mou tantas vezes, a diferença não estava no tipo de

prá-tica (alfabetização, teatro com e teatro para os grupos

populares, cinema e música popular, artes plásticas, radio e televisão, projetos editoriais, praças e parques

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de cultura popular1). Estava na intencionalidade e na qualidade de um modo de prática pedagógica. De ma-neira diferente daquelas que se apropriavam apenas do que lhes interessava utilitária e politicamente nas

culturas do povo, esta concepção pressupunha:

a) uma concepção libertadoramente classista do trabalho sobre e através da cultura: realizar o trabalho

junto ao povo como uma experiência popular;

b) uma forte crença no poder libertador das ações promovidas através da Cultura Popular.

A qualidade das atividades dos movimentos pre-cursores poderia ser diferenciada, se dividirmos as ex-periências de cultura popular em duas direções princi-pais: primeiro, a daquelas cujo trabalho era predomi-nantemente curricular, e que de modo geral moviam-se entre a alfabetização e a educação de bamoviam-se, e desta à ação direta junto a comunidades rurais ou urbanas; segundo, aquelas cuja prática era predominantemente

artística e para as quais o trabalho de cultura popular

representava um permanente desafio de descobrimen-to de meios criativos de uma arte popular.

1. Informativo final do 1º Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, realizado em Recife, Pernambuco, em setembro de 1963 (Favero, 1983, p. 211-44).

Arte popular... Educação popular... Cultura popular... Conceitos que se apresentavam como contrários a uma “arte para trabalhadores”. Ideias que se propunham em uma direção diferente do simples aproveitamento do “folclore”, seja para “elevar o nível cultural do povo”, seja para “valo-rizar a cultura”, negando a possibilidade que dela emergissem valores críticos e ativos de um trabalho de classe. Assim, enquanto em alguns programas tradicionais de “informação cultural” ou de educa-ção de adultos, o teatro, a música e o cinema eram meios para transferir aos setores populares conhe-cimentos eruditos da lógica dominante, nos movi-mentos de educação popular, emergentes nos anos de 1970, a arte popular era concebida como recurso pedagógico para efetuar uma comunicação biuní-voca de efeito conscientizador.

Esta comunicação buscava partir dos valores das artes e culturas de grupos e comunidades populares e utilizá-los como elementos próprios de reflexão co-letiva sobre as condições de vida e o significado dos símbolos do povo. Buscava também levar aos seto-res populaseto-res uma arte erudita que geralmente lhes era negada, acompanhada de situações de reflexão coletiva que devolviam ao pensamento do povo um sentido humano e crítico, que os movimentos de cultura popular reconheciam terem sido perdidos ao traduzir-se em “cultura de massas”. Buscava, enfim,

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criar junto com os participantes dos projetos, uma arte que refletisse, a partir da associação dos valores do povo com o aporte do trabalho dos educadores, um modo novo de compreender o mundo e de saber vivê-lo2 (Brito, 1983, p. 150).

Talvez, na alfabetização de adultos, os MCPs ten-taram realizar a prática das suas ideias de uma maneira mais contínua e duradoura, durante a efêmera exis-tência da maior parte delas, a partir das conhecidas experiências de Paulo Freire e sua equipe no Nordeste, em que todo um trabalho de alfabetização começava por uma pesquisa conjunta do universo cultural po-pular. E que, depois, as próprias aulas eram realizadas através de círculos de cultura, em que o trabalho de ensinar-e-aprender pretendia ganhar uma inesperada e inovadora dimensão dialógica. Experiências de diá-logo entre pessoas e entre culturas, em que o próprio ensino da leitura de palavras da língua portuguesa começava e continuava por meio de uma reflexão co-letiva a partir da questão teórica da cultura e dos ele-mentos da cultura local de cada grupo de educandos. Pois, não se tratava de aprender apenas a ler e escrever em uma língua, como nos programas tradicionais de alfabetização de adultos. Tratava-se, antes de aprender

2. BRITO, Jomard Muñiz de. “Educação de adultos e unifi-cação da cultura”. In: FAVERO, 1983, p. 150. O autor não menciona a fonte de citação do documento da Unesco.

a “ler o seu próprio mundo através de sua própria cul-tura”. E, assim, a comunicar-se com o outro como um sujeito consciente. Uma pessoa participante das deci-sões de seu destino, e comprometida com o processo histórico de construção de uma sociedade igualitária.

Neste sentido, o próprio princípio de uma

edu-cação dialógica, cuja pedagogia pretende dissolver

“a estrutura vertical do ensino” e devolver aos edu-candos “o poder da palavra” durante a sua própria aprendizagem, tem um valor que desloca o educa-cional para o cultural e realiza ambos como um

que-fazer francamente político e revolucionário.

Em projetos concretos, que enfrentavam uma enorme dificuldade em passar de suas teorias e pala-vras de ação cultural para uma experiência duradoura e consistente, os objetivos gerais eram a crítica “com o povo” dos seus valores culturais, ao lado da experiência de recriação de culturas que pouco a pouco passassem de uma espécie de tradição residual para uma tradição inovadora. Tradições que, sem perderem até mesmo as suas características “folclóricas”, servissem a traduzir para pessoas, grupos, comunidades e movimentos po-pulares a sua própria tomada de consciência como su-jeitos da história em luta pelos seus direitos humanos. Alguns trechos de documentos da época são trazidos para este texto para que a própria lingua-gem revele – a cultura popular como expressão de uma arte-educação com intencionalidade

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político-pedagógica, cujas teorias e práticas merecem ser lembradas e reconhecidas3.

Os movimentos de cultura popular pensaram seu papel e sua atuação tendo como base uma Filosofia da História. Outras organizações voltadas à educa-ção e à mudança social pensaram a partir de uma Sociologia do Desenvolvimento. Talvez esta seja uma diferença importante.

A Filosofia da História compreende o ser humano a partir da produção da cultura: ao transformar mate-rialmente o mundo em que vive, o recria e se reproduz como ser humano. É o mesmo que dizer que, crian-do cultura, nós, os humanos, passamos de indivíduos biológicos (como os animais) para sujeitos culturais. A cultura abarca tudo o que o ser humano e o seu traba-lho realizam no mundo, ao transformarem a natureza e atribuírem significados ao que fazem e ao próprio ato criador de fazer, de criar, de transformar. O processo social de criação de cultura é o que atribui ao ser hu-mano a possibilidade de afirmar-se como um ser com consciência a respeito do seu saber. Enfim, como um sujeito que habita de modo singular a sociedade e cons-trói uma história.

3. Recomendamos ao leitor a leitura de: “La negociación: una relación pedagogica posible”, de Aida Bezerra e Rute Rios, publicada em Anke Van Dam, Sergio Martime e Gerhard Peter (eds.), Cultura y política en educación popular, La Haia, Ceso Paperbach n. 22, 1995, p. 21-68.

O homem estando no mundo estabelece relação com a natureza, a compreende e de-senvolve um trabalho de transformação desse mundo. Nesse sentido é que ele cria outro mundo, o mundo da cultura, do qual por sua posição de criador ele é sujeito e é como sujeito que ele deve participar do mundo da cultura da natureza. (CPC-BH, s.d., p. 83) Cultura é tudo o que o homem agrega à na-tureza; tudo o que não está inscrito no deter-minismo da natureza e que nela é incluído pela ação humana. Distinguem-se na cultura seus produtos: instrumentos, linguagem, ci-ência, a vida em sociedade e os modos de agir e pensar comuns a uma determinada socie-dade, que tornam possível a essa sociedade a criação da cultura. (MEB, 1983, p. 78) A distinção entre dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua sociedade e com sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para com as relações e comunicações dos homens. A cultura como agregação que o homem faz a um mundo que não foi construído por ele. A cultura como resultado de seu esforço criador e recriador. (Freire, 1983, p. 116)

O trabalho que transforma e atribui significado ao mundo é o mesmo que transforma e significa o ser humano, portanto é parte da cultura. A própria consciência humana, é um pensar social na e sobre a história: percurso e produto do trabalho e da cultura.

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Criando e recriando, integrando-se às condições do seu contexto, respondendo a seus desafios, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo, o da História e o da Cultura. (Ibid., p. 116)

Reconhecer o ser humano como sujeito da

história e criador de cultura significa reconhecer o seu

próprio processo dialético de humanização. No espaço de tensão entre a necessidade (as suas limitações como ser da natureza) e a liberdade (o seu poder de transcender ao mundo por atos conscientes de reflexão) o ser humano realiza um trabalho único: ao criar o mundo de cultura faz a história humana. Cria a própria trajetória de humanização.

Este trabalho coletivo existe no tempo. Existe ao longo de sucessões de tempos concretos. Assim, a cultura que existe, em princípio, como o anúncio da liberdade do homem sobre o mundo, na prática histórica de sua produção, pode gerar, contingencial-mente, a perda da liberdade de alguns seres humanos, no interior de mundos sociais determinados, sob o domínio de outros seres humanos.

A cultura é histórica. A iniciativa humana que cria a história é precisamente a cultura. A história não é mais que o desenvolvimento do processo pelo qual se opera a mudança dialética da Natureza em Cultura, vale dizer, de mundo natural a mundo humano. Logo, uma cultura a-histórica é um contrassenso.

Em verdade, sendo o sujeito da história por ser o criador da cultura, as formas históricas das criações culturais devem situar-se na linha das exigências de realização do homem. Existem valores essenciais que a cultura deve encarnar em situações históricas infinitamente variáveis, justamente por serem valores constitutivos do ser-homem (sem estes a cultura é desumanizante e alienante). Uma determinada cultura histórica é autêntica quando permite que tais valores se tornem carne e, por eles, a construção de-um-mundo-para-o-homem. Nesse caso, a cultura se torna expressão autêntica da real consciência histórica do homem (do grupo, da nação, da época)4.

Entre os seres conscientes, a relação fundamen-tal da cultura é estabelecida na e pela comunicação. Sendo produto do trabalho humano, a cultura é o campo das mediações entre os seres humanos e destes com a natureza. A comunicação das consciências é condição de existência da cultura como dado objeti-vo – algo que existe mais além da pura subjetividade individual, no interior da vida coletiva – por ser o que permite a existência de símbolos, valores e bens

4. AP. “Cultura Popular”. In: Op. Cit., p. 17, grifos dos au-tores. Ação Popular (AP). Grupo de esquerda que surgiu da Juventude Universitária Católica. Trata-de de um texto mimeografado da época, sem indicação de data e de autor. Eram tempos da ditadura.

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culturais, transmitidos e coparticipados. Esta relação de comunicação entre consciências na história é sub-jacente a todas as outras relações e fundamenta a pos-sibilidade de reprodução e recriação social do saber, logo, da própria educação.

As relações fundamentais de cultura e através da cultura são de reconhecimento de sujeitos livres e igualmente produtores e beneficiários da totalidade da cultura, que emerge na construção da história. No pro-cesso real da história humana, o reconhecimento entre as consciências é sistematicamente negado e a dialética das relações entre o ser humano e a natureza, através da cultura, estabelece a dominação de categorias de al-guns sujeitos e grupos sociais sobre outros. A cultura que deriva da desigualdade de condições humanas de produção de bens, poderes e símbolos de compreensão da vida social é socialmente dividida e reflete relações antagônicas entre grupos no interior da sociedade. A oposição de culturas não é resultante de processos de-rivados da própria natureza do ser humano, tampouco é uma condição do modo como se relaciona com seu mundo. É um fato histórico que nega a possibilidade de que a História se realize como afirmação da igualda-de e liberdaigualda-de entre todos os seres humanos5.

5 . Ibidem, p.17-9.

Assim como a cultura nos modelou como uma espécie única – e sem dúvida ainda nos está modelando – assim também ela nos mo-dela como indivíduos separados. É isso o que temos realmente em comum – nem um ser subcultural imutável, nem um consenso de cruzamento cultural estabelecido. (Geertz, 1989, p. 37-8)

Ideologia: um mascaramento da realidade social que permite a legitimação da explo-ração e da dominação. Por intermédio dela, tomamos o falso por verdadeiro, o injusto por justo. Como ocorre essa ilusão, essa fa-bricação de uma história imaginária? Qual sua origem? Quais seus mecanismos, seus fins e efeitos sociais, econômicos e políticos? (Chauí, 1993, p. 125)

A oposição estrutural entre modos sociais de construção da cultura é o que explica a cultura popular. A dimensão da cultura expressa a forma como os sujeitos, classes e grupos étnicos e sociais participam da vida coletiva em todas as suas dimensões. No contexto das sociedades, existem valores e símbolos que são dominantes e outros que são negados.

Assim, em uma sociedade desigual, regida pela desigualdade em todos os setores da vida social, das relações de produção de bens materiais às re-lações simbólicas de criação e comunicação de sig-nificados e valores, as culturas das pessoas, grupos

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