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Nietzsche e a educação : “tornar-se o que se é” : uma leitura hermenêutica de “Schopenhauer como educador”

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EUGÊNIO PACELLE DA COSTA CAVALCANTE

NIETZSCHE E A EDUCAÇÃO. “TORNAR-SE O QUE SE É”: UMA LEITURA HERMENÊUTICA DE “SCHOPENHAUER COMO EDUCADOR”

RECIFE 2018

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EUGÊNIO PACELLE DA COSTA CAVALCANTE

NIETZSCHE E A EDUCAÇÃO. “TORNAR-SE O QUE SE É”: UMA LEITURA HERMENÊUTICA DE “SCHOPENHAUER COMO EDUCADOR”

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito à obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a orientação do Professor Dr. André Gustavo Ferreira da Silva.

RECIFE 2018

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EUGÊNIO PACELLE DA COSTA CAVALCANTE

NIETZSCHE E A EDUCAÇÃO

“TORNAR-SE O QUE SE É”: UMA LEITURA HERMENÊUTICA DE “SCHOPENHAUER COMO EDUCADOR”

Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco.

Orientador: Professor Doutor André Gustavo Ferreira da Silva

Aprovada em: 29/01/2018

COMISSÃO EXAMINADORA:

_____________________________________ Prof. Dr. André Gustavo Ferreira Da Silva (Orientador)

Universidade Federal De Pernambuco – UFPE

_____________________________________ Prof. Dr. Junot Cornélio Matos

Universidade Federal De Pernambuco – UFPE

_____________________________________ Prof. Dra. Maria Betânia Do Nascimento Santiago

Universidade Federal De Pernambuco – UFPE

RECIFE 2018

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À memória dos meus pais: Dona Biana, especialista na arte do sabor daquele feijão matuto; e Seu Adão, artista-marceneiro.

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AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos ao meu orientador Dr. André Gustavo Ferreira da Silva, por agir como um verdadeiro herói que na batalha e ao longo do caminho não abandona os caídos.

Agradeço a todos os profissionais do Centro de Educação da UFPE pelo espírito de solidariedade.

Agradeço à minha esposa Priscilla pelo muito de amor, paciência, apoio e dedicação.

Agradeço à minha filha Sofia pela sua existência e sapiência.

Agradeço ao meu filho Isaac que tem vivenciado os conceitos de vontade de potência e de além-do-homem, como exemplo de superação.

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“Afinal, vivencia-se apenas a si mesmo” (NIETZSCHE, 2014, p. 145)

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RESUMO

Desde sua juventude, o tema da educação é tratado com atenção especial e cuidadosa nos textos de Nietzsche. Sua experiência como professor de filologia se amplia para a reflexão filosófica sobre vários temas, incluindo, a nosso ver um espaço significativo sobre a questão da educação para a descoberta de si. Assim, a questão central desenvolvida nesta pesquisa consiste em refletir sobre o problema da subjetividade em Nietzsche para a compreensão do “tornar-se o que se é”, como afirmação de uma nova noção de sujeito e de uma nova educação que possibilite o nascimento do além-do-homem. Entendemos ser imprescindível situar a crítica nietzschiana sobre o conceito de sujeito que a tradição metafísica nos legou. O objetivo é compreender que para Nietzsche a metafísica desenvolve um conceito estático de sujeito que destrói a própria subjetividade pois apela para a dimensão supra terrena e nega a condição de imanência. A subjetividade em Nietzsche parte da destruição da metafísica tradicional para assumir no conceito de vontade de potência e a afirmação da vida enquanto luta permanente, vir-a-ser contínuo. Nossa análise avança em direção à compreensão da subjetividade em Nietzsche a partir da máxima “tornar-se o que se é” como expressão de uma subjetividade encarnada. Encontramos essa temática na relação entre as obras Schopenhauer como educador e Assim falou Zaratustra. A perspectiva da subjetividade afirmadora da vida atinge seu ápice no conceito de além-do-homem que alcança a afirmação de si na superação permanente de si.

Palavras-chave: Educação. Nietzsche. “Tornar-se o que se é”. Além-do-homem.

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ABSTRACT

From its youth, the subject of the education is treated with special attention and care in Nietzsche’s texts. His experience as a professor of philology expands to philosophical reflection on various topics, including, in our view, a significant space on the issue of education for self-discovery. Thus, the central question developed in this research is to reflect on the problem of subjectivity in Nietzsche for the understanding of "becoming what one is", as an affirmation of a new notion of subject and of a new education that allows the birth of the overman. We understand that it is essential to situate the Nietzschean critique on the concept of subject that the metaphysical tradition has bequeathed to us. The goal is to understand that for Nietzsche metaphysics develops a static concept of subject that destroys one's own subjectivity because it appeals to the supra earthly dimension and denies the condition of immanence. Nietzsche's subjectivity starts from the destruction of traditional metaphysics to put onto the concept of the will to power, life-affirming as a permanent struggle, a continuous becoming. Our analysis moves toward understanding Nietzsche's subjectivity from the maxim "becoming what one is" as an expression of incarnated subjectivity. We find this theme in the relation between the works Schopenhauer as Educator and Thus spoke Zarathustra. The perspective of the life-affirming subjectivity reaches its apex in the concept of the overman that reaches the affirmation of itself in the perpetual self-overcoming.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 NIETZSCHE E A FILOSOFIA A MARTELADAS ... 13

2.1 VIDA E PENSAMENTO COMO UNIDADE DA EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA .... 14

2.2 A CRÍTICA DE NIETZSCHE À METAFÍSICA DOGMÁTICA ... 16

2.2.1 O dualismo: corpo e alma ... 17

2.2.2 O dualismo psicofísico na idade moderna ... 21

2.3 NIETZSCHE: A NEGAÇÃO DO SUJEITO E A SUBJETIVIDADE ENCARNADA. ... 25

2.4 AFIRMAÇÃO DA VIDA ... 31

3 NIETZSCHE EDUCADOR ... 38

3.1 O FUTURO DOS NOSSOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO ... 39

3.2 SCHOPENHAUER COMO EDUCADOR OU NIETZSCHE EDUCADOR? ... 44

3.3 O ALÉM-DO-HOMEM: A CORDA SOBRE O ABISMO ... 50

3.4 A ARTE E A FORMAÇÃO DO ÜBERMENSCH: O CASO DA EXPERIÊNCIA POÉTICA PARA A PRÁTICA DA EDUCAÇÃO PARA O “TORNAR-SE O QUE SE É” ... 58

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 77

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1 INTRODUÇÃO

As críticas à educação empreendidas pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche continuam atuais e possibilitam uma análise temática fecunda para as discussões na área de Teoria e História da educação. Nesta dissertação refletiremos sobre a problemática da subjetividade em Nietzsche visando a compreensão dos conceitos de vontade de potência e além-do-homem, com o intuito de fazer os deslocamentos necessários dos mesmos para a reflexão sobre uma educação para o “tornar-se o que se é”. Subjetividade é aqui entendida como o que há de singular em cada indivíduo, suas idiossincrasias, fruto de suas vivências únicas e irrepetíveis, aquilo que caracteriza o ser como circunstancial e como processo permanente na busca do “Tornar-se o que se é”, máxima do poeta grego Píndaro, usada por Nietzsche em vários textos, especialmente na obra Assim falou Zaratustra.

A questão que descortina o nosso objeto problemático é: qual o sentido e o significado imanentes da expressão “tornar-se o que se é”? É possível chegar ao conceito de além do homem partindo da perspectivação do “tornar-se o que se é”? Segundo Dias:

Por entendermos que seu pensamento sobre a educação ainda se mantém vivo e por guardarmos com ele uma relação de afinidade, buscamos interpretá-lo, apropriarmo-nos dele e recortá-lo naquilo que ainda nos possa ajudar a compreender nossos problemas de ensino. (DIAS, 2003, p. 16.)

Partindo da acurada crítica que Nietzsche faz à noção de sujeito da tradição metafísica ocidental, analisaremos o conceito de vontade de potência como empresa fundamental para se afirmar a vida na sua imanência-potência em oposição à valorização exacerbada da vida como realidade suprassensível. Pretendemos com nossa pesquisa analisar as obras de Nietzsche Schopenhauer como educador e Assim falou Zaratustra para a compreensão de uma filosofia da educação que trate da vida entendida como processo de autoformação e de superação permanente que possibilita o surgimento do “além-do-homem”, corolário da educação para o “tornar-se quem “tornar-se é”. Na obra Schopenhauer como educador, Nietzsche questiona:

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Mas como encontrar a nós mesmos? Como o homem pode se conhecer? Trata-se de algo obscuro e velado; e se a lebre tem sete peles, o homem pode bem se despojar setenta vezes sete das peles, mas nem assim poderia dizer: “Ah! Por fim, eis o que tu és verdadeiramente, não há mais o invólucro”. (NIETZSCHE, 2007a, p. 141).

O conceito “além-do-homem” nos possibilita avançar na discussão do fundamento filosófico nietzschiano a respeito do processo de descoberta do sujeito enquanto corpo e alma/consciência. A asserção básica de que não se pode falar de sujeito sem compreendê-lo na sua corporeidade e sem situá-lo na imanência do contexto histórico, “o sentido da terra”, nos impele à reflexão que Nietzsche provoca em Assim falou Zaratustra a respeito da superação do dualismo de mundos fictícios criados pela metafísica e da separação entre corpo e alma endossada pelo cristianismo.

A reflexão sobre educação fundamentada nas obras de Nietzsche, deve se esforçar por produzir um estudo filosófico sobre o sentido da educação enquanto singularidade, pois suas críticas e questionamentos levam os indivíduos a pensar sobre si mesmos. Uma reflexão dessa natureza não pode ser construída de maneira puramente histórica, como o estudo de um texto preso a um determinado contexto, pois “o educador, em qualquer que seja a sua realidade de trabalho, transita entre elementos que, em algum lugar do passado, constituíram-se em inovações pedagógicas” (ALVES, 2012, p.212). E as inovações educacionais são lapidadas, por vezes, na solidão de um pensamento que se volta sobre si mesmo para repensar a realidade do próprio indivíduo e do mundo que o abarca. Como diz Larrosa (2002):

O que nos interessa, portanto, não é o que em Nietzsche pertence a essa disciplina chamada Filosofia, mas o que em Nietzsche, na leitura e na reescrita de Nietzsche, continua alimentando essa forma de indisciplina que continuamos chamando de pensamento. Ou, de outro modo, o que nos importa não é (só) o que Nietzsche pensou ou (apenas) o que nós podemos pensar sobre Nietzsche, mas o que com Nietzsche, contra Nietzsche ou a partir de Nietzsche possamos (ser capazes ainda de) pensar. (LARROSA, 2002, p.8.)

Dias (2011), desenvolve uma reflexão deveras rica sobre o pensamento de Nietzsche em suas expressões artísticas e educativas. Para ela “A educação ocupa, na filosofia de Nietzsche, um lugar central. A máxima de Píndaro ‘Como alguém se

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torna o que é’ dá a direção de seu projeto educacional” (DIAS, 2011, p. 12). Seguindo essa pista clara e direta, vamos trabalhar as obras de Nietzsche fazendo os deslocamentos necessários para a construção de um texto que contribua para o enriquecimento do debate sobre a filosofia da educação, na perspectiva da compreensão da subjetividade enquanto processo de autonomia e criação de cada indivíduo na sua singularidade mais íntima.

Que o pensador e provocador Nietzsche possibilite aos seus leitores um maior crescimento na arte de bem pensar.

Nosso objetivo geral é fazer uma leitura interpretativa da obra Schopenhauer como educador, em relação com a obra Assim falou Zaratustra, perpassando os conceitos de “tornar-se o que se é” e “vontade de potência” para uma compreensão do conceito de “além-do-homem”, ápice de uma educação que visa à subjetividade, no processo de auto formação.

Os objetivos específicos são:

Estudar o pensamento de Nietzsche em relação à história da filosofia no Ocidente, para a compreensão da sua crítica aos postulados básicos da tradição metafísica, passando pela análise da filosofia socrático-platônica, com o dualismo corpo-alma; pela tradição judaico-cristã, que prioriza o mundo espiritual em detrimento do corporal; e a desconstrução do paradigma de sujeito cartesiano.

Analisar o conceito de vontade potência, de Nietzsche, como fundamento de afirmação da vida natural e imanente, para entendê-lo como um jogo de forças plurais que necessitam do seu contrário para se afirmarem e se negarem continuamente, visto que vida é a dinâmica da superação constante.

Aprender com Nietzsche o que significa uma verdadeira educação para a singularidade, a partir das obras Schopenhauer como educador, de 1874, e Assim falou Zaratustra (1883-1885), para entendermos a dinâmica de uma subjetividade explicitada na frase “Como tornar-se o que se é” em relação ao conceito de Super-homem. O Super-homem não é, ou seja, não tem uma essência, mas torna-se, visto que educar e cultivar são verbos ligados à dinâmica da vida que floresce nos vários jardins em que nossas vidas estão interagindo, educando e sendo educadas, cada uma brotando e exalando perfumes próprios.

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2 NIETZSCHE E A FILOSOFIA A MARTELADAS

Tomamos o conceito de unidade de empréstimo a nosso conceito de “eu”, a nosso mais antigo artigo de fé. (...) Agora, um tanto tarde, estamos amplamente convencidos de que nossa concepção do conceito de eu em nada garante uma real unidade. (NIETZSCHE, 2012b, Fragmentos Póstumos, 14 (79), volume VII, p. 233)

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Neste capítulo, situaremos a filosofia de Nietzsche em relação à história da filosofia no ocidente. Explicitaremos sua crítica aos postulados básicos da tradição metafísica desde a antiguidade passando pela análise da filosofia socrático-platônica, pela tradição judaico-cristã, até chegar à modernidade com a desconstrução do paradigma de sujeito cartesiano.

2.1 VIDA E PENSAMENTO COMO UNIDADE DA EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA

Quem foi Friedrich Wilhelm Nietzsche? Filho e neto de pastores protestantes, Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, em Röcken, Alemanha. Foi professor de filologia clássica na Basileia, mas não conseguiu a cátedra de professor de filosofia. Produziu um número significativo de obras filosóficas durante os vinte anos de atividade intelectual. Após sofrer um colapso mental em 1889, ficou sob os cuidados da mãe e da irmã e veio a falecer a 25 de agosto de 1900, na cidade de Weimar, aos 56 anos de idade.

Em Ecce homo, livreto em que Nietzsche faz uma retrospectiva das suas obras, ele mesmo se apresenta do seguinte modo:

Conheço minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a Terra (...) Eu não sou homem, sou dinamite (...) Eu contradigo como nunca foi contradito, e sou, contudo, o oposto de um espírito negador. (NIETZSCHE, 2013a, p. 102)

Contradição é uma expressão significativa nas obras de Nietzsche. Sua filosofia se pretende agonística, isto é, em luta permanente contra as pretensas verdades dogmáticas, seja na filosofia, na religião ou na ciência. Mesmo se apresentando como “dinamite”, não se comporta como simples destruidor. “Sou, contudo, o oposto de um espírito negador” significa dizer que é um filósofo que luta pela afirmação da vida, dos instintos, do que é natural no ser humano. Um dos grandes biógrafos de Nietzsche, Richard Blunck, escreveu no prefácio à sua biografia, continuada por Curt Paul Janz, que “Toda a ambição dos grandes teóricos sistemáticos da filosofia ocidental recente se concentrava em desvincular totalmente o pensamento da pessoa, em livrar-se da subjetividade para alcançar o

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‘conhecimento puro’ por meio de métodos supostamente objetivos” (JANZ, 2016. Volume I, p. 23) No entanto, em se tratando do filósofo Nietzsche, “em nenhum momento seu pensamento procura se desprender da vida”. As obras de Nietzsche expressam a sua própria singularidade de filólogo, filósofo e artista-poeta.

Qual é, de fato, a importância da sua reflexão para a Teoria e História da educação? Nosso interesse pela obra de Nietzsche consiste sobremaneira na sua contribuição para a educação com textos que tratam diretamente da problemática educacional como o conjunto de palestras intitulado “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino” e a Terceira Consideração Extemporânea “Schopenhauer como educador”. Esta obra atraiu o nosso interesse porque nos possibilita fazer uma reflexão atual sobre o sentido da educação na filosofia de Nietzsche em sua relação com outras obras, especialmente Assim falou Zaratustra, onde conceitos como “além-do-homem”1 e “eterno retorno” apontam para o subtítulo do Ecce homo, “Como tornar-se o que se é”, indicando que a subjetividade em Nietzsche consiste numa luta constante no processo de superação e de auto formação. O filósofo nos ensina que “Eu sou um mensageiro alegre como nunca houve, eu conheço tarefas de uma altura tal que até então inexistiu noção para elas, somente a partir de mim há novamente esperanças”. (NIETZSCHE, 2013a, p. 102) Visto que não é nosso intento fazer uma análise do conjunto da obra de Nietzsche, apresentamos, sem grandes pretenções, a seguinte periodização das suas obras: 1. 1869- 1876 – fase do pessimismo romântico, influenciado pela filosofia de Schopenhauer e a música de Wagner; 2. 1876-1881 – fase do positivismo cético, influenciado pelas ideias de Augusto Comte; 3. 1882-1888 – fase da reconstrução da obra, quando Nietzsche se empenha em elaborar a própria filosofia, com a doutrina do eterno retorno e a teoria da vontade de potência.2

1

Übermensch é traduzido para o português comumente por “além-do-homem” e “super-homem” A

explicação de Nietzsche para essa expressão está no Ecce Homo, “A palavra ‘super-homem’, para designação de um tipo que vingou superiormente, em oposição a homens ‘modernos’, a homens ‘bons’, a cristãos e outros niilistas – palavra que na boca de um Zaratustra, o aniquilador da moral, dá o que pensar --, foi entendida em quase por toda parte, com total inocência, no sentido daqueles valores cuja antítese foi manifesta da figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo ‘idealista’ de uma alta espécie de homem, meio ‘santo’, meio ‘gênio’...” (NIETZSCHE, 2013a, p. 51s)

2 ANDLER, C. Nietzsche: vida e pensamento. Volume II, 1. Ed. – Rio de Janeiro: Contraponto: Editora

PUC-Rio, 2016, p. 19s; Scarlett Marton segue a proposta de Andler: “Na carta a Overbeck de II de fevereiro de 1883, Nietzsche escreve: ‘toda a minha vida decompôs-se diante dos meus olhos: esta vida inteira de inquietação e recolhimento, que a cada seis anos dá um passo e nada quer além

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Machado (2011), ao justificar, acertadamente, a ponte que faz entre O nascimento da tragédia e Assim falou Zaratustra, na construção do seu livro Zaratustra, tragédia nietzschiana, aproveita a sugestão de Andler (2016) que identifica nas obras de Nietzsche duas “inspirações criativas”: a primeira que foi a descoberta de Schopenhauer e Wagner, e a segunda a criação do Zaratustra. Andler conclui que “todos os escritos seguintes, inclusive Além do bem e do mal, foram puros comentários, apêndices críticos do Zaratustra” (ANDLER, 2016, p. 21s). Alguns conceitos nietzschianos como apolíneo, dionisíaco e vontade de potência, citados ou analisados neste capítulo nos darão o norte da compreensão da obra de Nietzsche, pois estão presentes, explicita ou implicitamente, em vários textos publicados por ele, enquanto outros estão nos Fragmentos Póstumos, que, em praticamente todas as obras, serão utilizados e retomados pelo filósofo ao longo da sua produção intelectual.

2.2 A CRÍTICA DE NIETZSCHE À METAFÍSICA DOGMÁTICA

No prólogo da obra Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo, temos a explicitação de uma luta ferrenha da “filosofia a marteladas” contra o peso de uma tradição dogmática que sempre buscou uma verdade cristalizada nas teorias metafísicas. Segundo o próprio Nietzsche,

Este pequeno livro é uma grande declaração de guerra; e, quanto ao escrutínio de ídolos, desta vez eles não são ídolos da época, mas ídolos eternos, aqui tocados com o martelo como se este fosse um diapasão – não há, absolutamente, ídolos mais velhos, mais convencidos, mais empolados... E tampouco mais ocos... Isso não impede que sejam os mais acreditados; e, principalmente no caso mais nobre, tampouco são chamados de ídolos... (NIETZSCHE, 2014b, p. 08)

disso’. Seguindo esta pista, distinguimos no conjunto de seus escritos os redigidos entre 1864 e 1870, 1870 e 1876, 1876 e 1882, 1882 e 1888”. (Apud. MARTON, S. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. P. 25)

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A simbologia do martelo não é usada apenas como um instrumento de destruição, transformação, mas como um instrumento do médico da cultura que pretende “auscultar ídolos”.

2.2.1 O dualismo: corpo e alma

No prólogo da obra Além do bem e do mal, Nietzsche compara a verdade a uma mulher para os filósofos dogmáticos que nada entendem de mulher, ou seja, nada entendem da tão almejada verdade que não se deixou conquistar por eles. Quanto às pretensões “supraterrenas” dos dogmáticos, alfineta:

Parece que todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da humanidade com suas eternas exigências, tiveram primeiro que vagar pela Terra como figuras monstruosas e apavorantes: uma tal caricatura foi a filosofia dogmática, a doutrina vedanta na Ásia e o platonismo na Europa, por exemplo. Não sejamos ingratos para com eles, embora se deva admitir que o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si. (NIETZSCHE, 2011a, p 07s)

Por que Nietzsche identifica o “mais perigoso dos erros” na filosofia de Platão? Em que consiste as expressões “puro espírito” e “bem em si”? Qual a relação dessas expressões com a busca filosófica de uma verdade que pode ser conhecida e transmitida? Quais as condições de possibilidade de uma epistemologia que fundamente o conhecimento humano? Encontramos nos diálogos de Platão a grande síntese de várias teorias que pretendem explicar a origem dos princípios racionais. Uma delas é a teoria conhecida por inatismo, segundo a qual, ao nascer, o indivíduo já traz em sua inteligência tanto os princípios racionais quanto algumas ideias inatas verdadeiras. O filósofo Platão, aproveitando a contribuição de Parmênides que, ao contrário de Heráclito, afirmara a imutabilidade do ser, nos apresenta uma reflexão dualista sobre o hiperurânio, ou mundo suprassensível que é apresentado em oposição ao mundo sensível. Na Alegoria da caverna (A República. Livro VII), temos a separação platônica do mundo das sombras ou mundo dos fenômenos (fenômeno não como algo excepcional ou extraordinário, mas como aquilo que se apresenta ao sujeito através dos sentidos) e o mundo das ideias ou

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das essências imutáveis. O mundo das ideias é o mundo real, enquanto que o mundo sensível é pura sombra ou cópia do mundo dos conceitos eternos.

Essas ideias de Platão estão explícitas, sobretudo nos diálogos intitulados Mênon e A República. O diálogo Mênon inicia com a seguinte pergunta: “a virtude é coisa que se ensina?”, porém Sócrates muda a pergunta para a conceituação: “o que é a virtude?”. Após várias respostas inadequadas à questão, o que a torna uma aporia, ou seja, um problema sem solução imediata, as personagens continuam buscando respostas sobre a possibilidade do conhecimento. Ao longo do diálogo vai ficando claro que Platão se afasta da plausibilidade racional para expressar através da personagem Sócrates a influência da doutrina de Pitágoras sobre a crença na imortalidade da alma que irá fundamentar a teoria da reminiscência, explicitada ao final da obra A República. Ao dizer a Mênon que há homens e mulheres “sábios em coisas divinas”, Sócrates afirma: “dizem eles pois que a alma do homem é imortal, e que ora chega ao fim e eis aí o que se chama morrer, e ora nasce de novo, mas que ela não é jamais aniquilada”. (PLATÃO, 2001, p. 51). A respeito da virtude socrática como busca racional da felicidade, Nietzsche desfere a seguinte “martelada”:

Tento compreender de que idiossincrasia provém a equação socrática de razão = virtude = felicidade: a mais bizarra equação que existe, e que, em especial, tem contra si, os instintos dos helenos mais antigos. (NIETZSCHE, 2014b, p.19)

Sócrates pede que Mênon escolha um dos seus escravos para fazer-lhe perguntas adequadas e assim consegue fazer com que o escravo demonstre sozinho um teorema de geometria. (PLATÃO, 2001, p. 53s). Essa proeza é o que leva Platão a argumentar em favor das ideias inatas e reduzindo o papel da filosofia e da educação a simples reminiscências. Para Platão, o corpo é a prisão da alma. Quando a pessoa morre, a alma se liberta e conhece, na dimensão supra terrena, a ideia do Bem ou a Suprema Beleza. Em A República, na alegoria conhecida como Mito de Er, Platão explicita com detalhes a teoria da reminiscência sobre o eterno retorno das almas. Ao retornar do reino dos mortos, o pastor Er faz um relato minucioso de tudo o que havia contemplado na outra dimensão: as almas, ao morrerem, contemplam a verdade e passam a ter o conhecimento verdadeiro. As que são escolhidas para voltar à terra e se purificarem dos erros passados bebem das águas do rio Lethé, que significa esquecimento. As que bebem muita água

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acabam esquecendo toda a verdade contemplada, as que bebem pouca água, vão lembrar com mais facilidade por isso alcançarão a sabedoria usando a razão. (PLATÃO, 1997. p.345-352). Na última parte do diálogo Fédon, antes de ingerir a cicuta, Sócrates também discorre sobre a imortalidade da alma para os amigos. O dualismo corpo-alma consiste nessa separação fantasiosa, segundo Nietzsche, que privilegia a alma ou o mundo suprassensível, e acaba por usá-lo como argumento e justificativa racionais para menosprezar aquilo que os gregos antigos valorizavam: o corpo, os instintos. Enquanto a criança diz “corpo e alma sou”, em Assim falou Zaratustra, Nietzsche afirma: “Mas o desperto, o sabedor, diz: corpo sou inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo” (NIETZSCHE, 2014a, p. 34s). Fica totalmente destituído de sentido o dualismo corpo-alma, pois Nietzsche entende o ser humano como unidade, ou seja, corpo. A alma faz parte do corpo, é uma expressão do corpo e nada mais.

No Crepúsculo dos Ídolos Nietzsche tem a intenção de atingir dois coelhos com uma única cajadada: o racionalismo socrático-platônico-cartesiano e o cristianismo, essa religião que para ele seria um “platonismo para o povo”, ou seja, a vulgarização da filosofia como discurso do fenômeno religioso.

Minha desconfiança de Platão vai ao fundo, afinal: acho-o tão desviado dos instintos fundamentais dos helenos, tão impregnado de moral, tão cristão anteriormente ao cristianismo – ele já adota o conceito “bom” como conceito supremo – que eu utilizaria, para o fenômeno Platão, a dura expressão “embuste superior” ou, se se soar melhor, idealismo, antes que qualquer outra palavra. Pagou-se caro pelo fato de esse ateniense haver frequentado a escola dos egípcios (– ou dos judeus no Egito?...). (NIETZSCHE, 2014b, p. 102)

Segundo Nietzsche, Platão é o primeiro cristão que precede ao próprio cristianismo. A fuga para o mundo ideal e a consequente negação deste mundo leva Nietzsche a menosprezar a contribuição de Platão e elogiar o historiador grego Tucídides pela “incondicional vontade de não se iludir e enxergar a razão na realidade”, assim como nele se encontra a consumação da “cultura dos realistas”, que eram os sofistas.

Na grande fatalidade que foi o Cristianismo, Platão é aquela ambiguidade e fascinação chamada de “ideal”, que possibilitou às

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naturezas mais nobres da Antiguidade entenderem mal a si próprias e tomarem a ponte que levou à “cruz”... E quanto Platão ainda se acha no conceito “Igreja”, na construção, no sistema, na prática da Igreja! – Meu descanso, minha predileção, minha cura de todo platonismo sempre foi Tucídides”. (NIETZSCHE, 2014b, p. 102)

O mundo real é o grande enfoque de Nietzsche. E a realidade é constituída imediatamente pelos sentidos. Dois conceitos-chave para entender a polêmica de Nietzsche com o pensamento socrático-platônico são Apolíneo e Dionisíaco. Sobre o apolíneo, simbolizando a razão, e o dionisíaco, simbolizando os instintos, temos em Nietzsche duas visões: no “Nascimento da tragédia” os conceitos são apresentados como contraditórios ao extremo, enquanto no “Crepúsculo dos ídolos” os termos são complementares. Por isso precisamos atentar para essa dinâmica da linguagem nietzschiana. Na crítica ao racionalismo ele considera que o elemento dionisíaco foi abafado, negado, sobrepujado pelo apolíneo, por isso ele enfatiza a retomada e revalorização dos instintos que foram reprimidos, ou seja, da vida que foi negada. Nas suas últimas obras, Nietzsche propõe uma síntese entre o apolíneo e o dionisíaco, pois esse devir agonístico de afirmação e negação é uma luta permanente. “O dizer Sim à vida mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos – a isso chamei dionisíaco”; Nietzsche encarna o poeta trágico que quer “ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser – esse prazer que traz em si também o prazer no destruir (...)”. Voltando ao ponto de partida, Nietzsche conclui o Crepúsculo dos ídolos, afirmando: “O nascimento da tragédia foi a minha primeira tresvaloração de todos os valores: com isso, estou de volta ao terreno em que medra meu querer, meu saber – eu, o último discípulo do filósofo Dionísio, – eu, o mestre do eterno retorno...” (NIETZSCHE, 2014b, p. 107)

O que é metafísica? Remonta ao filósofo Aristóteles a reflexão sobre a filosofia primeira que estuda “o ser enquanto ser”, e procura explicar a essência do ser na relação entre substância e acidente, ato e potência, matéria e forma. Enquanto a physis estuda a natureza, a meta-physis estuda os atributos essenciais do ser, ou seja, faz uma elucubração profunda sobre os aspectos mais distantes da experiência sensível. Além do mais, temos em Aristóteles a suposição da existência de uma causa primeira de tudo o que existe e a qual ele denomina Primeiro Motor Imóvel, ato puro, ser necessário e incausado. Na lógica aristotélica há um princípio

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parmenídeo (“o ser é; o não-ser não é”), que é o princípio de não-contradição: A=A, ou seja, há uma identificação do ser consigo mesmo. Comentando o princípio de não-contradição do filósofo Aristóteles, afirma Nietzsche: “A ‘coisa’ — esse é o substrato propriamente dito de ‘A’: nossa crença na coisa é o pressuposto para a crença na lógica. O ‘A’ da lógica é, tal como o átomo, uma reconstrução da ‘coisa’...”. (NIETZSCHE, 2013b, p. 322). Deriva dessa construção da lógica como ser verdadeiro a tradicional crença num mundo metafísico que seria o mundo verdadeiro, segundo Nietzsche.

Durante toda a antiguidade e Idade Média, temos a continuação das ideias metafísicas retomadas pelo cristianismo num primeiro momento com a Patrística (séc. II ao séc. VII d.C.) e que tem como marca a apologética e se esforça em converter os pagãos, combater as heresias e justificar a fé. Na relação entre fé e razão, a teologia é a ciência por excelência, enquanto a filosofia é apenas ancila, serva da teologia. A verdade provém da revelação, mas a filosofia auxilia na compreensão das verdades reveladas. Num segundo momento temos o movimento denominado de Escolástica, na baixa Idade Média, fundamentando a concepção cristã de Deus, na Bíblia, e retomando a teoria aristotélica do primeiro motor imóvel, com Tomás de Aquino. Ao criticar a moral cristã, “a mais maligna forma da vontade de mentira”, a antinatureza, Nietzsche adverte no Ecce homo: “Equivocar-se em tal medida, não como indivíduo, não como povo, mas como humanidade!... Que se tenha ensinado o desprezo pelos primeiríssimos instintos da vida; que se tenha inventado uma ‘alma’, um ‘espírito’, para arruinar o corpo”. (NIETZSCHE, 2013a, p. 107).

2.2.2 O dualismo psicofísico na idade moderna

Historicamente, o período chamado de modernidade está situado no movimento da Renascença (séc. XV) e desemboca na Ilustração (séc. XVIII) e tem como paradigma não mais a razão filosófica como pura elucubração do pensamento, mas uma razão que vai se configurando como técnico-científica e assim vai se distanciar cada vez mais do obscurantismo religioso com suas crenças e superstições. A racionalidade moderna é fundamentada na própria subjetividade e não mais na autoridade religiosa ou no poder político absoluto. Vários fatores

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contribuem para essa nova configuração de sujeito: a retomada da cultura greco-latina, as grandes navegações, a Reforma protestante, o capitalismo comercial, a formação do Estado-nação, os novos experimentos da física e da astronomia, a laicização do pensamento. A modernidade possibilita a autonomia da razão, e a revolução científica enfatiza a preocupação com um novo método de apreensão da realidade.

Na Idade Moderna, a retomada metafísica está presente sobretudo na filosofia de René Descartes, considerado o “pai da filosofia moderna”, preocupado com um método seguro que o levasse a uma verdade indubitável. Para encontrar uma verdade primeira inquestionável, parte do ceticismo para, duvidando de tudo, superar a dúvida e encontrar a certeza. Essa dúvida metódica é o que vai possibilitar a Descartes encontrar uma verdade segura. Por isso ele é um filósofo dogmático e não cético.

Após duvidar das informações dos sentidos, do senso comum, do próprio corpo, Descartes se depara com algo do qual não pode duvidar: o cogito, o pensamento, porque é o pensamento que lhe possibilita duvidar de tudo.

[...] enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade eu penso, logo existo era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava. (DESCARTES, 1996. p. 91s)

Esse “eu” é puro pensamento, ou uma res cogitans (coisa pensante). O cogito é uma ideia inata, pois já se encontra no nosso espírito. À ideia de res cogitans ele acrescenta a de res extensa para se referir às coisas que se encontram ao alcance dos sentidos. A res cogitans de Renè Descartes, fruto de um processo de problematizações céticas, deságua num dogmatismo expresso no “cogito ergo sum” (“penso logo existo”), ou seja, a consciência de si é reconhecida como verdade indubitável pelo sujeito pensante que se pensa a si mesmo.

Na sexta meditação, no § 22, Descartes examina a ideia de Deus e conclui: “Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas”.

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(DESCARTES, 1996, p. 288.) No Anticristo Nietzsche elogia Descartes por compreender o animal em primeira mão como máquina. O problema é que Descartes situa o homem à parte. “O tornar-se consciente, o ‘espírito’, é para nós o sintoma de uma relativa imperfeição do organismo” (NIETZSCHE, 2016, p.19) O grande erro consiste em subtrair o sistema nervoso e os sentidos do “puro espírito”. “O ‘puro espírito’ é pura tolice: se subtrairmos o sistema nervoso e os sentidos, o ‘invólucro mortal’, erramos em nosso cálculo – apenas isso!...”(NIETZSCHE, 2016, p. 20).

Segundo Scarlett Marton, Nietzsche retoma o projeto kantiano da crítica à metafísica dogmática, porém com a radicalidade que Kant não ousou fazer. “Ao impor limites ao conhecimento humano, o ‘chinês de Koenigsberg’ tornou a moralidade indiscutível, restaurou o mundo supra-sensível e reintroduziu sub-repticiamente os objetos da metafísica dogmática, pretendendo conferir-lhes lugar irrecusável”. (MARTON, 1990. p. 161). Para fazer uma crítica bem fundamentada do processo de aquisição do conhecimento, é preciso ultrapassar as especulações filosóficas, pois as ciências nos oferecem novos recursos de análise e compreensão. Evitando ficar preso às teias da metafísica, ao fazer a crítica, é preciso extrapolar o plano dos conceitos metafísicos. “Do mesmo modo, quando se trata de imprimir radicalidade à crítica à metafísica dogmática, não se deve furtar-se a examinar os objetos que ela se coloca a partir de diferentes perspectivas”, diz Marton (Ibdem, p. 161).

Um dos aspectos da crítica à metafísica inclui a crítica ao conceito de Deus, visto que ao longo da história ocidental foram elaborados muitos argumentos metafísicos ou provas ontológicas da existência de Deus. Descartes também procede assim ao procurar no conceito de causalidade a hipótese da existência de Deus. Ele afirma:

Pois, em primeiro lugar, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, a saber, que as coisas que concebemos mui clara e distintamente são todas verdadeiras, não é certo senão porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós nos vem dele. Donde se segue que as nossas ideias ou noções, sendo coisas reais, e provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas, só podem por isso ser verdadeiras. (DESCARTES, 1996. p. 96.)

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Como os seres humanos são finitos e imperfeitos, Descartes supõe que Deus só pode ter posto em nossa mente a ideia de infinitude e perfeição. Deus existe porque se um ser é perfeito deve ter a perfeição da existência. Essa é a ideia inata de Deus como ser perfeito.

A filosofia de Friedrich Nietzsche, enquanto contribuição para a construção de um outro pensar sobre a subjetividade humana, se afirma no confronto e na desconstrução da metafísica, eliminando a crença cristalizada na tradição filosófica ocidental sobre o conceito de sujeito, um dos dogmas fundamentais desta tradição, como ele mesmo coloca em sua obra Além do Bem e do Mal:

Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam existir “certezas imediatas”; por exemplo, “eu penso”, ou, como era superstição de Schopenhauer, “eu quero”: como se aqui o conhecimento apreendesse seu objeto puro e nu, como “coisa em si”, e nem de parte do sujeito nem de parte do objeto ocorresse uma falsificação. Repetirei mil vezes, porém, que “certeza imediata”, assim como “conhecimento absoluto” e “coisa em si”, envolve uma contradictio in adjecto (contradição no adjetivo): deveríamos nos livrar, de uma vez por todas, da sedução das palavras! Que o povo acredite que conhecer é conhecer até o fim; o filósofo tem que dizer a si mesmo: se decomponho o processo que está expresso na proposição “eu penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível – por exemplo, que sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um “Eu”, e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar – que eu sei o que é pensar. Pois se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito, por qual medida julgaria que o que está acontecendo não é talvez “sentir”, ou “querer”? Em resumo, aquele “eu penso” pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um “saber” de outra parte, ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma “certeza” imediata”. (NIETZSCHE, 2011a, p. 20s)

Falamos em “certeza imediata” baseados de fato em que, exatamente, além de uma suposição? Como podemos nos livrar da “sedução das palavras”? Nietzsche parte para uma crítica da linguagem, pois nos expressamos reproduzindo os discursos da tradição que mantém um conteúdo claro de relação de causa e efeito para todo e qualquer evento ou acontecimento. Qual a garantia da existência de um Eu pensante? Por que em vez de usar o verbo “pensar” não usamos o verbo “sentir”

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ou “querer”? A tradição ocidental racionalista sempre colocou a razão como superior aos instintos, devendo estes serem controlados por aquela. A noção de “eu”, ou de “sujeito” é superficial porque presa aos hábitos gramaticais, enquanto para Nietzsche a consciência é apenas uma parte da psique.

Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento só vem quando “ele quer” e não quando “eu quero”; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: mas que este “isso” seja precisamente o velho e decantado eu, é dito de maneira suave, apenas, uma suposição, uma afirmação não uma “certeza imediata”. E mesmo com isso “pensa” já foi longe demais. (...). (NIETZSCHE, 2011a, p. 21s)

Combater a metafísica implica combater o dualismo de mundos e tudo que esteja relacionado ao plano transcendente. É preciso elaborar um outro discurso para desmascarar as mentiras do discurso metafísico e religioso que inventa mundos imaginários e os apresenta como verdadeiros. Diz ele: “Degradação de um Deus, Deus se tornou ‘coisa em si’...” (NIETZSCHE, 2016, p. 22) E ainda a esse respeito, num Fragmento Póstumo, diz: “vós retendes o vosso Deus e inventais para ele um mundo que não nos é conhecido”. (NIETZSCHE, 2013b, p. 117). Claro está que o mundo que nos é conhecido, se nos apresenta através dos sentidos e não da imaginação, fantasia ou crença.

2.3 NIETZSCHE: A NEGAÇÃO DO SUJEITO E A SUBJETIVIDADE ENCARNADA.

Nietzsche atribui a origem da metafísica aos primórdios da humanidade quando a imaginação cria um mundo a partir do esforço de interpretar e explicar os sonhos. “Nas épocas de cultura tosca e primordial, o homem acreditava conhecer no sonho um segundo mundo real; eis aí a origem de toda metafísica”. (NIETZSCHE, 2011b, p. 18). Em seguida a esta passagem de Humano, demasiado humano, ele afirma que assim como a Igreja fazia uma explicação pneumática da Bíblia, assim também a metafísica explica o livro da natureza. Pneuma, em grego significa “sopro”, “espírito”. A exegese bíblica e a teologia cristã se baseavam na inspiração

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divina para uma correta compreensão da palavra de Deus e a ironia de Nietzsche faz referência ao método dos metafísicos.

Para além das questões metafísico-teológicas, encontramos em Nietzsche um outro pensar sobre o conceito de sujeito enquanto “Ideia”, “Eu”, “noumênon”, para a afirmação da singularidade humana, que é corpórea, sensível, encarnada, buscada, desejada, processualmente construída. O sentido do homem é o sentido da terra. No Anticristo ele diz que “o problema que aqui coloco não é o que sucederá à humanidade na sequência dos seres (-- o homem é um final --); mas sim que tipo de homem deve-se cultivar, deve-se querer, como de mais alto valor, mais digno de vida, mais certo de futuro”. (NIETZSCHE, 2016, p 11)

A subjetividade que encontramos nos textos de Nietzsche aponta para aquilo que é encarnado. E o filólogo Nietzsche usou essa expressão no seu sentido exato. O essencial do ser humano é constituído por sua carne, corporeidade, forças vitais, instintivas. E isto não é promessa futura. É acontecimento presente nas atitudes dos homens e mulheres que nasceram póstumos, isto é, que antecipam uma vivência daquilo que será melhor compreendido no futuro. “Não subestimemos isto: nós mesmos, nós, espíritos livres, já somos uma ‘tresvaloração de todos os valores’, uma encarnada declaração de guerra e de vitória em relação a todos os velhos conceitos de ‘verdadeiro’ e ‘não verdadeiro’”. (NIETZSCHE, 2016, p 18). Os “espíritos livres” já encarnam e vivenciam antecipadamente os novos valores.

Vimos que em Descartes apenas as ideias claras e distintas são condição sine qua non da substância pensante e por isso merecem credibilidade pois são elas que dão sustentação epistemológica à compreensão do conceito de sujeito. Ao contestar a concepção cartesiana de sujeito, esse “Eu” desencarnado, Nietzsche propõe uma nova interpretação de homem, mas na sua condição animal, de ser encarnado, visto que não dá para pensar a subjetividade de maneira puramente abstrata. Nietzsche denomina os metafísicos de “idólatras do conceito” porque estes criam expressões abstratas à moda dos criadores de religiões. “Tudo o que os filósofos manejaram por milênios, foram conceitos-múmias; nada realmente vivo saiu de suas mãos”. (NIETZSCHE, 2014b, p. 25)

Em Além do bem e do mal, encontramos o contra-argumento à evidência do eu pensante que no entender de Nietzsche está posto mais como crença do que como inferência: a falseabilidade da realidade consiste em afirmar isto: “o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado ‘penso’. Isso pensa: mas que ‘isso’ seja precisamente o

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velho e decantado ‘eu’, é, dito de maneira suave, apenas uma suposição...” (NIETZSCHE, 2011a, p. 22)

No capítulo VI de Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche passa a analisar “Os quatro grandes erros” em que incorrem os metafísicos: 1. Erro da confusão de causa e consequência; 2. Erro de uma falsa causalidade; 3. Erro das causas imaginárias; 4. Erro do livre-arbítrio.

Nietzsche faz aqui uma crítica consistente a essa maneira habitual de pensar a realidade como causalidade, que imagina que toda ação tem um Eu como causa prima. Como é fundamentada sua crítica e por que considera que o pensamento baseado na causalidade é falso? Nietzsche esclarece que essa hipótese da noção de causalidade tem sua origem em três conceitos que a tradição filosófica nos legou, que são os conceitos de vontade, de consciência (espírito) e de Eu (sujeito). Sobre a falsa crença em tais conceitos, Nietzsche afirma:

Acreditávamos ser nós mesmos causais no ato da vontade; pensávamos, ao menos, flagrar no ato a causalidade. Tampouco se duvidava que todos os antecedentia de uma ação, suas causas, deviam ser buscados na consciência e nela se achariam novamente, ao serem buscados – como “motivos”: de outro modo não se teria sido livre para fazê-la, responsável por ela. Afinal, quem discutiria que um pensamento é causado? Que o Eu causa o pensamento?... Desses três fatos interiores com que parecia estar garantida a causalidade. (NIETZSCHE, 2014b, p. 41)

O que restou dessa miragem foi uma relação clara de intimidade entre consciência e linguagem para expressarmos aquilo que nós mesmos criamos e projetamos como algo fora da realidade e acima de nós. “E quanto ao Eu! Tornou uma fábula, uma ficção, um jogo de palavras: cessou inteiramente de pensar, de sentir e de querer!...” (NIETZSCHE, 2014b, p. 41). Após transformar em fumaça essa herança metafísica de causalidade, livre-arbítrio, culpa, castigo, Nietzsche responde à pergunta “Qual pode ser a nossa doutrina? ”: a existência humana é situada como pura fatalidade, pois “ninguém é responsável pelo fato de existir... Cada um é necessário, é um pedaço de destino, pertence ao todo, está no todo” (NIETZSCHE, 2014b, p. 46). E esse todo é pluralidade e não unidade. Assim se restabelece a inocência do vir-a-ser. “O conceito ‘Deus’“ foi, até agora, a máxima objeção à existência... Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade em Deus: apenas assim redimimos o mundo” (NIETZSCHE, 2014b, p. 47).

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Na Gaia Ciência, Nietzsche cria e conta a história intitulada de O homem louco. Trata-se de uma metáfora para bem apresentar de maneira didática o tema da morte de Deus. Assim como Dionísio, o filosofo cínico grego, o louco de Nietzsche chega de manhã num mercado com uma lanterna acesa procurando Deus. Dionísio procurava pelo homem. O louco procura por Deus num ambiente em que muitos não acreditavam na sua existência. Após as gargalhadas e as perguntas debochadas dos ouvintes (“Então ele está perdido?”. “Ele se perdeu como uma criança?”. “Está se escondendo?”. “Ele tem medo de nós?”. “Embarcou num navio?”.), vem a resposta: “Nós o matamos –vocês e eu”. Nietzsche não é o assassino de Deus, apenas o anunciador dessa morte. Após responder à questão de quem matara Deus, o louco pergunta como isso foi feito, porém não apresenta exatamente uma resposta. “Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? ”; “Não vagamos como que através de um nada infinito?”. Com a morte de Deus, Nietzsche anuncia, na verdade, a morte da tradição metafísica, que se apoia no conceito religioso e filosófico de Deus. Sobretudo em Sócrates e Platão temos uma explicação racional da imortalidade da alma e da existência de um plano espiritual. Nos monoteísmos temos a crença num Deus único e verdadeiro que dá sentido e segurança à fugaz existência humana. Para Nietzsche, a tradição judaico-cristã, que é o principal alvo religioso de suas críticas, havia aniquilado a alegria dionisíaca e tudo o que de nobre restava aos seres humanos. A hipótese da vida futura e eterna, o “além”, criado pelas religiões, é “nadificado”, esvaziado de sentido, com o anúncio da morte de Deus. Como os temas da metafísica são explicados pela pura elucubração do pensamento, num esforço intelectual de se afastar do senso comum que conhece a realidade através dos sentidos e das superstições, os pais da metafísica criaram um terreno fértil para as crenças religiosas afirmarem categoricamente a existência de deuses. Com a morte de Deus, surge a possibilidade de liberdade verdadeira e de uma nova aurora para o surgimento do tipo superior de homem. Como preencher esse vazio profundo que a morte de Deus deixou para a humanidade? Ao matar Deus e “apagar o horizonte”, ficamos vagando no caos, que é a total falta de sentido de uma existência que se baseava na crença de uma vida após a morte, e por isso não assumíamos as rédeas do nosso próprio destino. A partir desse “nada infinito”, o que dará sustentação à existência humana? A própria existência humana. Os homens, diante do vácuo em que se encontram, terão que encontrar em si mesmos

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o sentido da própria vida em vez de buscá-lo fora de si, ou precisarão aprender a tornar-se deuses.

Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”. (NIETZSCHE, 2012a, p. 137s).

Estupefatos, os homens silenciam diante dessa notícia. E antecipando o discurso de Zaratustra, o louco afirma: “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda o meu tempo”. O profeta, que nasceu póstumo, sabe que a humanidade precisará de tempo para compreender esse acontecimento histórico da morte de Deus para então criar uma nova história, com novos valores que substituam os valores decadentes da moral racionalista socrático-platônica e da moral de rebanho da tradição judaico-cristã. Com a morte de Deus, só resta um caminho a cada indivíduo: libertar-se do invólucro religioso que o aprisionara e perseguir na busca do sentido do “tornar-se quem se é”.

O anunciador da morte de Deus e do nascimento do além-do-homem enfrenta uma incompreensão que atravessa séculos, porque

Somente depois de inventado o conceito de “natureza”, em oposição a “Deus”, “natural” teve de ser igual a “reprovável” – todo esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (-- a realidade! --) (...). Quem tem motivos para furtar-se mendazmente à realidade? Quem com ela sofre. (NIETZSCHE, 2016 p 20).

Qual a origem deste sofrimento? O sentimento de decadência, de medo e de insegurança em relação ao que é instintivamente natural como os prazeres que somente o corpo nos possibilita. Nietzsche continua: “Mas sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada... A preponderância dos sentimentos de desprazer sobre os sentimentos de prazer é a causa dessa moral e dessa religião

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fictícias: uma tal preponderância transmite a fórmula da decádence...” (NIETZSCHE, 2016, p. 20). Eis por que a única realidade para Nietzsche é a realidade que se expressa na nossa natureza. Por isso, à moral decadente, também chamada moral de escravos, Nietzsche propõe uma moral aristocrática, moral de senhores, uma moral que valoriza e afirma esta vida. A moral dos senhores é considerada moral ativa, pois cria um jeito próprio de interpretar o mundo; cria a partir da sua força e dos seus instintos um modo de valoração próprio. Sobre essa reviravolta da moral escrava, Nietzsche afirma:

Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo uma reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão [...]. (NIETZSCHE, 2007b, p. 29)

A crença num sujeito abstrato, apartado da sua corporeidade, não passa para o nosso filósofo de uma negaça, um engodo, pura fábula da tradição teológica e metafísica. Por isso afirma: “... penetramos no âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica da linguagem, isto é, da razão. É isso que em toda parte vê agentes e atos: acredita na vontade como causa; acredita no ‘Eu’, no Eu como ser, no Eu como substância, e projeta a crença no Eu-substância em todas as coisas – apenas então cria o conceito de ‘coisa’...”3 (NIETZSCHE, 2014b, p.28).

Enquanto a metafísica elege como verdade a interpretação de mundo inquestionável que encontra na razão as essências imutáveis e indivisíveis na sua unicidade, Nietzsche propõe uma análise perspectivista, ou seja, vários pontos de vistas são analisados para a compreensão de qualquer problemática. E a perspectiva da compreensão da espiritualidade do ser humano é também invertida

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NIETZSCHE. Crepúsculo dos ídolos, p. 28. Reproduzimos aqui a nota que Paulo César de Souza aponta para a expressão “Eu”: “Transcrevemos/traduzimos a nota de Duncan Large: ‘Deve ser notado, nesse contexto, que Sigmund Freud (1856-1939) também usa o termo das Ich (the I [o Eu]) para o que geralmente é traduzido em inglês como ‘o ego’. Tanto a crítica do ‘Eu’ como construto, que aqui faz Nietzsche, como a noção de ‘projeção’, mais adiante (VI, 3; IX, 15) seriam desenvolvidas posteriormente por Freud” (Nota 34, p. 116)

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em pura imanência: “Já não fazemos o homem derivar do ‘espírito’, da ‘divindade’, nós o recolocamos entre os animais. Nós o consideramos o animal mais forte porque é o mais astucioso: sua espiritualidade é uma consequência disso”. (NIETZSCHE, 2016, p. 18).

2.4 AFIRMAÇÃO DA VIDA

Trataremos aqui do conceito de vontade de potência como vontade de vida, mas de vida como imanência e não como transcendência. A crítica de Nietzsche à tradição metafísica visa não somente ao desmonte dos argumentos aceitos como verdades, mas também a uma proposta consistente de compreensão da vida como um sistema orgânico e inorgânico, de luta permanente das forças vitais que necessitam de forças contrárias para se afirmarem e se negarem e assim permanecerem na dinâmica da vontade de potência.

A concepção de mundo, com a qual as pessoas deparam no pano de fundo deste livro, é estranhamente sombria e desagradável: dentre os tipos de pessimismo que se tornaram conhecidos até aqui, nenhum deles parece ter atingido tal grau de crueldade. Falta aqui a oposição entre um mundo verdadeiro e um mundo aparente: só há um mundo, e esse mundo é falso, cruel, contraditório, sedutor, sem sentido.... Um mundo assim constituído é o mundo verdadeiro... Nós precisamos da mentira para alcançarmos uma vitória sobre essa realidade, essa ‘verdade’, ou seja, para vivermos... O fato de a mentira ser necessária para vivermos é constituído desse caráter terrível da existência... (...)

A arte e nada além da arte. Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande sedutora, o grande estimulante para a vida... (NIETZSCHE, 2012b, p. 177s)

No Fragmento Póstumo acima, temos uma visão pessimista ou realista, como se queira, do projeto de uma obra que ficou no sonho e na promessa não cumprida por Nietzsche de uma “transvaloração de todos os valores”. Apesar do tom seco, rude e sarcástico do texto, o que nos interessa é o fechamento otimista sobre a arte: “Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande sedutora, o grande estimulante para a vida”. Temos aqui um dos importantes traços da educação para o “tornar-se o que se é”, pois a vontade de potência segue a dinamicidade da expressão artística que se faz e se refaz, contraditoriamente, a cada instante. Nietzsche segue a passos largos no distanciamento da concepção moderna de sujeito, visto que o seu conceito de vida não é estático, mas é entendido como estímulo e vivência em todas as dimensões da experiência de um sujeito que se sabe em constante mutação. A

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educação para o “tornar-se o que se é”, tem um papel fundamental nesse processo de descoberta do Si-mesmo. Um sujeito que se sabe “metamorfose ambulante”, que antes de criar uma obra de arte, se cria a si mesmo como arte para poder criar obras de arte que brotam do seu corpo tornado arte e artesão, como veremos no capítulo seguinte.

“Tornar-se o que se é” foi um lema levado a cabo por Nietzsche assumindo as consequências das suas vivências e dos seus escritos. Na Gaia Ciência, o texto que precede a história do homem louco é intitulado No horizonte do infinito. Nietzsche afirma:

– Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte – mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro e devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes desta gaiola! Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade – e já não existe mais “terra”! (NIETZSCHE, 2012a, p. 147)

Um novo paradigma é a obra de Nietzsche na história do pensamento ocidental. Seu esforço de desconstrução da concepção de sujeito da metafísica atacando a raiz da nossa tradição racionalista-judaico-cristã, baseada na crença em um mundo supra sensível, abalou como nunca dantes as certezas da teologia, da filosofia e das ciências. “Um dia se falou ‘Deus’, afirma Zaratustra, ao olhar para os mares distantes; mas agora vos ensinei a falar: ‘super-homem’ (NIETZSCHE 2014a, p. 81)

Veremos mais adiante em Assim falou Zaratustra que o sentido do Super-homem é a terra, o agora, o instante. Nietzsche abomina o dualismo psicofísico e a consequente valorização da alma em detrimento do corpo porque para ele o que existe é o corpo. Aqui temos mais uma vez a explicitação da crítica ao modelo cartesiano de sujeito atemporal, metafísico, que afirmava a dimensão espiritual em detrimento da dimensão corpórea, terrena. Nietzsche, então, inverte e subverte a ordem das coisas: a alma é derivada porque não existe “em si”, separada do corpo. A subjetividade encarnada reivindica à condição humana uma provisoriedade, porque é eterno vir-a-ser numa dinâmica de afetos, sensação, razão, pois a

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consciência ou a “pequena razão” faz parte das expressões do corpo. Não apenas afirmar, mas vivenciar ou fazer o “Eu” é o desafio da provocação nietzschiana:

Instrumento do teu corpo é, também tua pequena razão que chamas de “espírito”, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão. “Eu”, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer – é o teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu. (NIETZSCHE, 2014a, p. 35).

A filósofa Scarlett Marton aborda no artigo “Do dilaceramento do sujeito à plenitude dionisíaca”, a concepção de sujeito enquanto corpo-consciência a partir da análise fisiológica levada a cabo por Nietzsche. Para ele, a unidade humana foi, ao longo da história, sofrendo cisões e ficando cada vez mais fragmentada. “Com a modernidade procedeu-se à implosão do ser humano - e foi ele dividido em razão e paixões, intelecto e sentidos, consciência e instintos” (MARTON, 2009). Zaratustra usa a expressão Si-mesmo (Selbst) como sinônimo de corpo exatamente para fugir à lógica dicotômica entre corpo e alma. Diz ele: “Instrumentos e brinquedos são sentidos e espírito: por trás deles está o Si-mesmo. O Si-mesmo também procura com os olhos do sentido, também escuta com os ouvidos do espírito” (NIETZSCHE, 2014a, p.35). A existência humana seria polifônica. Fruto de um processo de interiorização, a tradição nos legou a ideia de alma. Na análise fisiológica, esse processo de vontade de potência permanente, prioriza o corpo, nos diz Nietzsche (2007b): “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro é isto que eu denomino a interiorização do homem: é somente com isso que cresce no homem aquilo que mais tarde se denomina ‘alma’. (NIETZSCHE, 2007b, p. 16). A alma então, é intrínseca ao corpo, não pode ser separada dele, nem deve ser considerada superior ao corpo.

A explicação a respeito da utilidade do mundo verdadeiro se encontra no final do capítulo IV do Crepúsculo dos Ídolos, intitulado “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula – História de um erro, é anunciado que:

O “mundo verdadeiro” – uma ideia que para nada mais serve, não mais obriga a nada – ideia tornada inútil, logo refutada: vamos eliminá-la! (Dia claro; café da manhã; retorno do bon sens [bom senso] e da jovialidade; rubor de Platão; algazarra infernal de todos os espíritos livres.). Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? O aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente! (Meio dia; momento da sombra

(35)

mais breve; fim do longo erro, apogeu da humanidade, INCIPIT ZARATHUSTRA [começa Zaratustra]) (NIETZSCHE, 2014b, p. 36

Na superação dessa dicotomia entre corpo-alma, entra a explicação nietzschiana do conceito de vontade de potência. Nietzsche concebe a realidade como uma pluralidade de forças em constante tensão, por isso renega com veemência as afirmações metafísicas que falam do ser como identidade e unidade. Para Nietzsche, o que existe é o devir e o idêntico é sempre derivação. A vontade de potência é originalmente plural: "Querer me parece, antes de tudo, algo complicado, algo que somente como palavra constitui uma unidade -- e precisamente nesta palavra se esconde o preconceito popular que subjugou a cautela sempre inadequada dos filósofos ( ... )" (Nietzsche, 2000, § 19 BM, p. 22).

Segundo Marton (2009), o conceito de vontade de potência aparece primeiramente na obra Assim falou Zaratustra. Na parte I, Dos mil e um alvos, está dito: “Uma tábua de valores se acha suspensa sobre cada povo. Olha, é a tábua de suas superações; olha, é a voz de sua vontade de poder” (NIETZSCHE, 2014a, p. 57). Partindo da generalização de que todo povo cria valores, afirma a possibilidade de superação com essa voz da vontade de poder. Mas a empresa de Nietzsche na busca da construção de uma nova visão de mundo, usa o conceito de vontade potência no intuito de unir as ciências naturais (biologia) e as ciências do espírito (questões psicológicas e sociais). “Apenas onde há vida há também vontade: mas não vontade de vida, e sim – vontade de poder! ” (NIETZSCHE, 2014a, p.110). Zaratustra já havia afirmado que a própria vida lhe segredara: “eu sou aquilo que tem de superar a si mesmo”. A vontade de potência é presença constitutiva em todo ser vivo, por isso é vista em todos os aspectos da vida fisiológica, psicológica e social. De maneira inseparável.

Quanto à questão do conceito de vida em Nietzsche, Marton (2009) nos adverte: “Antes mesmo de surgir em Assim falou Zaratustra o conceito de vontade de potência, a ideia de vida já aparece nos escritos do filósofo” (MARTON, 2009, p.46 ) O que é vida em Nietzsche? Marton responde que “ela será encarada, ao longo da obra, a partir de várias perspectivas e o termo empregado em sentidos diversos”. (MARTON, 2009, p.46) Vida é tudo o que é orgânico. Na tentativa de explicar/responder ao questionamento da passagem do inorgânico ao orgânico, Nietzsche cria a teoria das forças. Como o organismo está sempre em expansão,

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