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Trauma e memória: considerações sobre os efeitos do esquecimento no social e na subjetividade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL - UNIJUÍ

CAROLINA BOEIRA STEFANELLO

TRAUMA E MEMÓRIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE OS EFEITOS DO

ESQUECIMENTO NO SOCIAL E NA SUBJETIVIDADE

Ijuí 2017

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CAROLINA BOEIRA STEFANELLO

TRAUMA E MEMÓRIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE OS EFEITOS DO

ESQUECIMENTO NO SOCIAL E NA SUBJETIVIDADE

Trabalho de conclusão de curso apresentado à graduação de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial para obtenção do título de Psicólogo.

Orientadora: Normandia Cristian Giles Castilho

Ijuí 2017

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Dedico este trabalho àqueles que encontram formas de resistir ao esquecimento.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe Luciane pela compreensão e apoio durante meus anos como estudante, em especial durante a construção deste trabalho, e à minha avó Josleine por compreender que a formação em Psicologia está além do ambiente acadêmico. Obrigada por acreditarem em mim e pelo exemplo de força. Agradeço ao meu pai Alberto pelo voto de confiança em meu futuro profissional, e à minha irmã Ana Clara por toda a doçura e afeto que me fazem desejar um mundo melhor.

Agradeço à minha orientadora Cristian Giles pela paciência durante este semestre e os importantes ensinamentos, e à minha banca Ana Dias por aceitar fazer parte de mais este momento de meu percurso acadêmico.

Agradeço à minha colega e amiga Ana Paula por estar sempre presente e compartilhar comigo esta jornada, e outras que ainda virão. Agradeço à Raphaela pela amizade em momentos difíceis, e ao meu amigo Lucas por encarar as situações sempre com divertimento.

Agradeço a todos os familiares, colegas e amigos que participaram de minha formação.

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Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.

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RESUMO

O presente trabalho aborda a temática da memória e do trauma em sua relação com os efeitos de transmissão. Busca compreender também os efeitos do esquecimento de períodos históricos tanto no social como na subjetividade, considerando que o esquecimento produz a repetição, como um retorno do recalcado, na tentativa de inscrever na memória os conteúdos não representados.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 8

1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE MEMÓRIA ... 10

1.1 INSCRIÇÃO E REGISTRO: A MEMÓRIA INCONSCIENTE ... 10

1.2 A REPETIÇÃO COMO MEMÓRIA ... 15

2. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE TRAUMA ... 20

2.1 TRAUMA: UMA FERIDA NA MEMÓRIA ... 20

2.2 TRAUMA E TRANSMISSÃO ... 24

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 31

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INTRODUÇÃO

A temática da memória ocupa lugar central na Psicanálise, pois é a partir de suas inscrições e registros que torna-se possível falar em um sujeito do inconsciente. Quando o sujeito enfrenta uma experiência traumática a sua memória é comprometida, assim como outras funções do aparelho psíquico, e, por isso, compreendemos o trauma como uma experiência de ruptura. É necessário um trabalho de elaboração do trauma que possibilite inscrever a experiência na memória, mas há sempre algo que resta não representado, o qual retorna por meio da repetição.

O presente trabalho busca investigar quais os efeitos do esquecimento de períodos históricos e traumas sociais em uma sociedade e na subjetividade daqueles que dela fazem parte. Esta temática é importante para fomentar reflexões e discussões acerca do papel da memória de eventos de ruptura na construção da história de uma sociedade, buscando demonstrar como a elaboração do passado auxilia a pensar o presente.

O interesse por esse tema surgiu a partir de uma disciplina optativa do curso de Psicologia da Unijuí denominada Psicologia das Emergências e dos Desastres, na qual foram abordados períodos históricos marcados pela violência, como a ditadura militar no Brasil, e a produção teórica que enfatiza a importância de um compromisso de memória na sociedade sobre esses eventos. Além disso, participei de uma fala de membros do projeto Clínicas do Testemunho, voltado para o atendimento de vítimas diretas ou indiretas da ditadura militar, e a apresentação do trabalho realizado voltou minha atenção para essa área. Por fim, acredito que trabalhar a importância da memória é uma forma de também resistir contra o esquecimento.

A discussão teórica concentra-se na obra de Freud e está dividida em dois capítulos, correspondentes aos conceitos que orientam esta pesquisa: memória e trauma. No primeiro capítulo realizaremos considerações acerca da memória, o funcionamento do aparelho psíquico e como ocorrem os registros e as inscrições das experiências em seu interior. Também será abordada a teoria dos sonhos, compreendendo a formação onírica como a expressão de uma cena infantil incapaz de ser recordada como lembrança. Quando o recordar pela via consciente é impossibilitado, a compulsão à repetição emerge como uma forma peculiar de memória. É a partir desta concepção que a repetição será abordada.

No segundo capítulo trabalharemos o conceito de trauma, pensando os efeitos que este produz no aparelho psíquico e na memória, assim como a sua relação com a repetição. Em seguida, realizaremos uma aproximação entre a psicologia do indivíduo e de grupo para

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continuar a reflexão sobre o conceito de trauma, buscando entender como uma experiência traumática que seria constitutiva da civilização é transmitida através das gerações e produz efeitos até hoje.

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1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE MEMÓRIA

O presente trabalho aborda os conceitos de memória e trauma buscando compreender os seus efeitos no social e na subjetividade. Como sujeitos inseridos em uma ordem simbólica, somos acometidos pelos fatos que constituem a história de nossa sociedade, sejam eles lembrados ou relegados ao esquecimento. No intuito de fundamentar teoricamente as noções a serem trabalhadas e na tentativa de responder à questão que orienta esta pesquisa: como o esquecimento de períodos históricos e traumas sociais afeta uma sociedade e a subjetividade, serão utilizados textos de Freud e outros autores.

Neste capítulo trabalharemos a noção de memória, que, em Psicanálise, está diretamente relacionada ao inconsciente, pois Freud não a concebe como uma função da consciência e sim como memória inconsciente. Será também desenvolvido o conceito de repetição, compreendido como uma forma de memória. Daremos início ao presente estudo partindo da seguinte questão: de que maneira ocorrem os registros e inscrições que constituem a memória inconsciente?

1.1 INSCRIÇÃO E REGISTRO: A MEMÓRIA INCONSCIENTE

Para avançar na questão da memória é necessário elucidar como se organiza o aparelho psíquico, sua dinâmica de funcionamento e como ocorrem os registros em seu interior, já que para existir memória é necessário um aparelho psíquico e o que se inscreve e se registra neste aparelho. Para isto, de início, nos apoiaremos particularmente no capítulo 7 de A Interpretação dos Sonhos, no qual Freud fala acerca dos três sistemas constituintes do aparelho psíquico - consciente, pré-consciente e inconsciente, e situa como se dá a inscrição e o registro dos traços mnêmicos.

Neste texto, Freud (1900-1901) destaca que não há necessidade de definir uma localização anatômica ou uma ordem espacial para os sistemas do aparelho psíquico, pois estes estariam organizados a partir do caminho que a excitação dos processos psíquicos percorre em uma sucessão temporal. Considerando esta organização, pressupõe-se que os processos psíquicos iniciam em um ponto do aparelho e terminam em outro, deste modo “toda atividade psíquica parte de estímulos (internos ou externos) e termina em inervações” (p. 492). Isto permite definir uma direção para o aparelho psíquico, e também situar uma extremidade sensorial, o sistema perceptivo-consciente, onde as percepções são recebidas, e

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uma extremidade motora, a qual controla os movimentos. Entre as duas extremidades ocorre a inscrição e o registro das percepções.

Após as percepções serem recebidas pelo sistema perceptivo-consciente passam a “um segundo sistema que transforma as excitações momentâneas [...] em traços permanentes” (FREUD, 1900-1901, p. 493). Os traços são inscrições de percepções que, quando tomadas em conjunto, funcionam como signos, os quais são organizados em um primeiro registro mnêmico conforme a simultaneidade em que ocorreram. O mesmo material é disposto em outros sistemas de diferentes formas, conforme outros critérios.

Em nosso aparelho psíquico permanece um traço das percepções que incidem sobre ele. A este podemos descrever como “traços mnêmicos”, e à função que com ele se relaciona damos o nome de “memória”. Se levarmos a sério nosso projeto de ligar os processos psíquicos a sistemas, os traços mnêmicos só podem consistir em modificações permanentes dos elementos dos sistemas. (FREUD, 1900-1901, P. 493)

A noção de traço mnêmico como uma modificação permanente nos sistemas do aparelho psíquico introduz a concepção de que um sistema é incapaz de receber as percepções e também conservar seus traços. Afinal, caso o sistema perceptivo-consciente conservasse as inscrições dos estímulos perderia parte de sua capacidade de recepção, visto que as inscrições a modificariam e influenciariam as novas percepções, e, por essa razão, a preservação dos traços ocorre em outros sistemas.

Freud (1925) trabalha novamente esta ideia em Nota sobre o “Bloco Mágico”, ao dizer que o aparelho psíquico “tem ilimitada capacidade de receber novas percepções e cria duradouros – mas não imutáveis – traços mnemônicos delas” (p.269). Essas funções, no entanto, são excludentes, no sentido de que o sistema que recebe as percepções não é capaz de conservar seus traços, função esta que é designada aos sistemas adjacentes à consciência, os sistemas mnêmicos.

Dentre os sistemas nos quais ficam dispostos os registros das percepções estão pré-consciente e inpré-consciente, aos quais o “Cs opõe-se funcionalmente [...] na medida em que nele não há armazenamento de traços, enquanto que o Ics e o Pcs são sistemas mnêmicos” (GARCIA-ROZA, 2008, p. 212). Mas ainda que sejam ambos caracterizados pela sua capacidade de registro, inconsciente e pré-consciente apresentam diferenças em sua forma de funcionamento e inscrição, o que determinará maior ou menor facilidade de tornar seus processos conscientes.

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Descreveremos o último dos sistemas situados na extremidade motora como o “pré-consciente”, para indicar que os processos excitatórios nele ocorridos podem penetrar na consciência sem maiores empecilhos, desde que certas condições sejam satisfeitas: por exemplo, que eles atinjam certo grau de intensidade [...] Descreveremos o sistema que está por trás dele como “o inconsciente”, pois este não tem acesso à consciência senão através do pré-consciente, ao passar pelo qual seu processo excitatório é obrigado a submeter-se a modificações. (FREUD, 1900-1901, p. 495-496).

Quando nos referimos ao pré-consciente e ao inconsciente, considerando o texto A Interpretação dos Sonhos, estamos falando de uma forma de registro, da maneira como uma excitação se inscreve no aparelho anímico. Essa ideia é reformulada por Freud em 1915 no texto O Inconsciente, em que passa a ser considerada uma diferença nas representações de cada registro, ou seja, os sistemas passam a ser caracterizados pelas representações que contém. Mas o que é uma representação?

A representação sucede da percepção do objeto, “consiste no investimento, se não das imagens mnemônicas diretas das coisas, ao menos de traços mnemônicos mais distantes e delas derivados” (FREUD, 1915, p. 146). No entanto, as representações não são uma reprodução da realidade externa, elas buscam dar conta da realidade psíquica. A representação da coisa é uma associação de imagens mnêmicas das percepções e é na sua articulação com a imagem acústica, a representação da palavra, que o objeto adquire unidade e a palavra significado.

A representação da palavra não existe no inconsciente, sendo a articulação desta com a representação da coisa que possibilita a um conteúdo tornar-se consciente. Portanto, é esta ligação que possibilita a recordação de uma impressão. Lembrando que a impressão nunca é lembrada por si mesma, apenas na forma de traço ou representação. Quando uma representação é vista como desprazerosa pela censura pré-consciente, ela é recalcada, isto é, a sua tradução em palavra é impossibilitada e ela permanece inconsciente. É preciso assinalar que esta tradução em representação da palavra não tem como objeto apenas uma representação da coisa, mas sim uma associação de representações. Estas associações são as responsáveis pela não correspondência entre a realidade externa e a realidade psíquica, pois vão se reorganizando a cada nova fase do desenvolvimento psíquico e há sempre algo que se perde na tradução em representação da palavra.

A consciência recebe estímulos de origem exterior e interior. Os estímulos externos consistem nas percepções advindas do mundo, enquanto os internos são conteúdos psíquicos percebidos através da dualidade prazer-desprazer. O aparelho psíquico busca proteger-se da intensidade das percepções, mas se no caso das percepções externas basta empreender uma

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fuga daquilo que é visto como ameaçador, não é possível lidar da mesma forma com as percepções internas. A defesa contra os conteúdos psíquicos é realizada pelo mecanismo do recalque, que consiste em expulsar ou barrar a entrada ao pré-consciente de conteúdos possivelmente desprazerosos para o Eu.

O recalque atua sobre uma representação, mas não sobre o afeto ligado a ela, por isso

“na repressão1 o afeto se separa de sua ideia, e depois os dois prosseguem para os seus

diferentes destinos” (FREUD, 1915, p. 118). O afeto busca outra representação para se ligar, podendo produzir desprazer, ainda que não esteja vinculado a representação que o originou. Os conteúdos psíquicos (representações, ideias, pensamentos) recalcados permanecem atuando a nível inconsciente, produzindo derivados e aguardando uma forma de expressão.

Estes conteúdos manifestam-se através das formações do inconsciente, entre elas os sintomas, os atos falhos, os chistes e os sonhos, que consistem em um retorno do recalcado e a expressão de um desejo inconsciente. Os conteúdos recalcados não conseguem se manifestar por si só, pois são barrados pela censura pré-consciente, e, por isso, precisam estar ligados a materiais recentes que não representem ameaça ao Eu. As formações do inconsciente, por serem expressão de lembranças infantis, mantêm forte relação com a memória inconsciente. Estas lembranças são recalcadas por consistirem na recordação de impulsos sexuais ou agressivos da criança com relação aos pais que, ao longo da constituição do sujeito, tornam-se intoleráveis. Por isso, torna-se importante, para melhor compreendermos o funcionamento da memória, tomarmos como modelo o processo de construção do sonho.

A partir das ideias apresentadas acerca das formações do inconsciente é possível considerar o sonho “como substituto de uma cena infantil, modificada por transferir-se para uma experiência recente. A cena infantil é incapaz de promover sua própria revivescência e tem de se contentar em retornar como sonho”. (FREUD, 1900-1901, p. 500). Para isso, ela precisa encontrar suporte em experiências recentes, nos chamados restos diurnos. Acontece que o caminho normal percorrido pelos processos pré-conscientes em direção à consciência é barrado durante o estado de sono, restando como opção apenas o caminho regressivo percorrido pelas excitações inconscientes. Os restos diurnos desempenham duplo papel na formação onírica, pois de um lado tomam emprestado a força do desejo inconsciente e por outro “oferecem ao inconsciente algo indispensável – ou seja, o ponto de ligação necessário para uma transferência” (p. 514). Esta consiste em um entrelaçamento do conteúdo

1 Ainda que os termos repressão e recalque sejam equivalentes, darei preferência ao último por enfatizar a ideia

de um processo interno, visto que a palavra repressão é utilizada também em outros contextos. Nas citações este termo será mantido.

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inconsciente com a impressão recente, de forma a disfarçar o recalcado em meio aos restos diurnos.

Apresentaremos brevemente os dois tipos de pensamentos pré-conscientes capazes de participar da formação onírica. Há os pensamentos que se desenvolvem sem a participação da consciência e sem nunca receberem o investimento necessário para tornarem-se conscientes, e há aqueles que chegam ao estado consciente, mas por serem considerados inadequados ou desnecessários o investimento lhes é retirado. Ambos são deixados por sua própria conta e, por vezes, representações derivadas do inconsciente assumem o controle, ligando os pensamentos pré-conscientes a desejos inconscientes e lhes transferindo a força dos últimos. (FREUD, 1900-1901). Esses pensamentos sofrem, portanto, pressão de duas fontes: a resistência por parte do pré-consciente e uma atração, para a regressão, do inconsciente.

Na vida de vigília, os processos psíquicos percorrem no aparelho anímico o trajeto da extremidade perceptiva a extremidade motora, mantendo um fluxo constante de energia em direção progressiva. Porém, como já dito anteriormente, durante o sono esse fluxo é interrompido, juntamente com a atividade motora, possibilitando o surgimento de um movimento regressivo, isto é, que a excitação se movimente em direção a extremidade sensorial, chegando ao sistema perceptivo. (FREUD, 1900-1901).

A regressão não ocorre apenas nos sonhos alucinatórios, tendo um importante papel na formação dos sintomas neuróticos e acontecendo também na recordação.

A rememoração deliberada e outros processos constitutivos de nosso pensamento normal envolvem um movimento retrocedente do aparelho psíquico, retornando de um ato complexo de representação para a matéria-prima dos traços subjacentes. No estado de vigília, contudo, esse movimento retrocedente nunca se estende além das imagens mnêmicas; não consegue produzir uma revivescência alucinatória das imagens perceptivas. (FREUD, 1900-1901, p. 497).

A diferença fundamental entre os sonhos e a rememoração é que quando há regressão nos pensamentos de vigília, esse processo nunca ultrapassa as imagens mnêmicas, enquanto no sonho é produzida uma atividade alucinatória, na qual a representação é transformada na imagem sensorial que lhe deu origem. Portanto, na rememoração é evocada a imagem sem as suas qualidades sensoriais e na alucinação há uma reprodução da percepção. Freud (1900-1901) atribui essa diferença à falta de relações lógicas entre os pensamentos oníricos ao atingirem os primeiros sistemas mnêmicos, uma vez que essas relações só estão presentes em sistemas posteriores do aparelho psíquico. Por isso, ele diz que os “pensamentos oníricos decompõe-se em sua matéria-prima” (p. 498), ou seja, em imagens perceptivas.

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Um dos pontos mais importantes da teoria freudiana sobre os sonhos consiste na ideia de que todo sonho é a realização de um desejo e, indo mais além, de que esse é necessariamente de origem infantil. É também possível a realização de um desejo atual, porém, somente a medida em que consiga despertar um desejo infantil, tomando de empréstimo a sua força.

É perfeitamente verídico que os desejos inconscientes permanecem sempre ativos. Representam caminhos que sempre podem ser percorridos, toda vez que uma quantidade de excitação se serve deles. Na verdade, um aspecto destacado dos processos inconscientes é o fato de eles serem indestrutíveis. No inconsciente nada pode ser encerrado, nada é passado ou está esquecido. (FREUD, 1900-1901, p. 525-526).

A única possibilidade de os conteúdos inconscientes perderem a sua carga afetiva e seu caráter de atualidade é os colocando sob o domínio do pré-consciente, isto é, através da elaboração pela palavra. No entanto, há conteúdos inconscientes, aqueles referentes a mais tenra infância, que não são passíveis de rememoração e permanecem produzindo efeitos. Os sonhos e as neuroses consistem em expressões destes conteúdos, e para além de conservarem traços da vida infantil do sujeito, conservam algo primitivo da vida anímica, uma parte obscura da história da humanidade que na impossibilidade de ser lembrada, aparece na forma onírica ou sintomática. (FREUD, 1900-1901). É possível pensar, a partir disso, que os sonhos e os sintomas consistem em uma espécie de memória, eles trazem uma verdade sobre o sujeito ao mesmo tempo em que implicam um esquecimento. Assim, falar de memória é falar também de esquecimento, pois há sempre algo que resta fora da simbolização e retorna como compulsão à repetição.

As ideias expostas até aqui consistem em parte importante do presente trabalho, pois ao explicarem a forma como se dá a inscrição e o registro das percepções no aparelho psíquico, e também como estas retornam através dos sonhos e outras formações do inconsciente, auxiliam a pensar a temática da memória. Para prosseguir neste estudo, explicaremos os efeitos desses registros e também como na impossibilidade de recordá-los ocorre a repetição dos mesmos.

1.2 A REPETIÇÃO COMO MEMÓRIA

A técnica psicanalítica passou por modificações ao longo de sua construção, mas sempre buscou o “preenchimento das lacunas da recordação” e a “superação das resistências

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da repressão2” (FREUD, 1914, p. 195). Esses dois objetivos mantêm relação na medida em

que a resistência impossibilita o recordar. Deste modo, quando em um processo de análise o paciente aproxima-se de conteúdos recalcados há, como efeito da resistência do Eu, um aparente esquecimento da lembrança.

Em 1914, Freud fez importantes considerações acerca do esquecimento, postulando que por vezes o que ocorre é apenas um bloqueio ou isolamento da recordação, como um efeito do recalque. Este processo ocorre quando uma lembrança desprazerosa para o Eu é retirada da cadeia de representações, sendo isolada e, portanto, impossibilitada de associar-se com outras lembranças que lhe dariam um sentido. Esse isolamento é evidenciado nas lembranças encobridoras, em que a memória de uma vivência, em princípio considerada sem importância, representa o esquecido da infância, aquilo que foi objeto da amnésia infantil. Ou seja, um evento qualquer é recordado, algo que não deixaria por si só uma forte impressão no aparelho psíquico, mas ao criar associações acerca da lembrança revelam-se eventos que causaram grande impacto no sujeito, frequentemente por seu caráter traumático.

A amnésia infantil consiste em um fenômeno caracterizado pelo esquecimento dos anos iniciais da infância, entendido como um efeito do recalque sobre as representações da sexualidade infantil. Quando consideramos este momento da constituição do sujeito falamos em recalque originário, o qual consiste no processo que funda a divisão do aparelho psíquico em sistemas, diferenciando consciente e inconsciente. Aquilo que é objeto do recalque originário constitui-se como um polo de atração para os conteúdos posteriormente recalcados, tornando esse processo condição para a ocorrência do recalque propriamente dito.

Esses conteúdos jamais são recordados, uma vez que não é possível torná-los conscientes. No entanto, isto não significa que não fazem parte da memória ou que não produzem efeitos, pois o recordar é substituído pelo repetir, de forma que os conteúdos inconscientes são atuados na relação transferencial, constituindo uma forma peculiar de recordar. Em um processo de análise busca-se atravessar a força da repetição para chegar em um terceiro momento, de elaboração, onde os conteúdos repetidos são simbolizados através da expressão consciente do analisando sobre a sua atuação. Instituindo, portanto, os momentos de recordar, repetir e elaborar.

O analisando atua na relação transferencial o material esquecido e recalcado de seu passado, ao qual não têm acesso pela via da rememoração, assim, “ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber que o faz” (FREUD, 1914, p.

2 Esta concepção é posteriormente reformulada, descobrindo-se que as resistências não partem de conteúdos

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199-200). O conteúdo repetido consiste em inibições, sintomas, traços, anteriormente já manifestados e que são novamente vivenciados através da repetição. Da mesma forma que a resistência mantém relação com o recordar, relaciona-se diretamente ao repetir, pois “quanto maior a resistência, tanto mais o recordar será substituído pelo atuar (repetir) ” (p. 201). Assim, a resistência influencia na repetição a medida em que impossibilita a recordação, determinando também o que é atuado.

A compulsão à repetição é caracterizada não só por transferir ao analista conteúdos esquecidos do passado do analisando, mas a todos os âmbitos da vida deste. Nas ideias trabalhadas acima o enfoque é dado para a repetição durante o tratamento psicanalítico, em sua relação com a transferência e a resistência, mas, como já foi colocado, a repetição ocorre em todos os espaços da vida do sujeito. É preciso assinalar que a repetição não depende da transferência para acontecer, ainda que esta coloque o sujeito em uma condição especial, isto é, a repetição é um fenômeno da vida psíquica em geral e não de quem está em tratamento. Nas pessoas ditas normais, a compulsão à repetição é vista como um destino e as causas das experiências repetidas são atribuídas a uma força ou vontade exterior.

Em vista dessas observações, extraídas da conduta na transferência e do destino das pessoas, sentimo-nos encorajados a supor que na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição, que sobrepuja o princípio do prazer. [...] esta quer nos parecer mais primordial, mais elementar, mais instintual do que o princípio do prazer, por ela posto de lado. (FREUD, 1920, p. 183-184).

O princípio do prazer é uma tendência que regula os processos no aparelho psíquico, buscando a satisfação dos estímulos pelo trajeto mais imediato possível, de forma a gerar

prazer. Prazer e desprazer possuem diferenças quantitativas, correspondendo,

respectivamente, à diminuição ou aumento da excitação no aparelho psíquico. A excitação consiste em energia móvel, não ligada a uma representação. Dessa forma, a satisfação ao cessar ou amenizar a pressão de um estímulo proporciona prazer por diminuir a excitação, ligando-a a uma representação. O princípio do prazer é o que permite pensar o aparelho psíquico como uma organização, fazendo oposição ao que aparece como mais primordial e elementar que essa tendência: a pulsão de morte.

O que o conceito de pulsão de morte introduz na teoria psicanalítica é a possibilidade de se pensar uma região do campo psicanalítico, concebido como o caos pulsional, oposto à ordem do aparato psíquico. Isto tem como consequência imediata a queda da hegemonia do princípio do prazer. (GARCIA-ROZA, 2008, p. 162).

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A pulsão de morte está além do princípio do prazer e, por isso, além da preocupação em proporcionar prazer e evitar desprazer. Freud (1920) infere a sua existência a partir da compulsão à repetição, ao propor que é nesta que a pulsão de morte encontra expressão. A partir disso, cria-se um novo dualismo pulsional, dividindo o conceito de pulsão em pulsões de vida (incluindo pulsões sexuais e de auto conservação) e pulsão de morte. É importante assinalar que a diferença entre as pulsões reside apenas na forma como estas se fazem presentes no aparelho psíquico, não estando relacionada com a origem ou as características das pulsões.

As pulsões são provenientes do corpo e agem como estímulos para o aparelho psíquico ao exigir deste um trabalho de representação, por isso, a pulsão consiste em um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático. A meta da pulsão é a satisfação, mas esta “não pode ser senão parcial, o que faz com que ela persista em uma procura indefinida, daí sua indestrutibilidade” (GARCIA-ROZA, 2008, p. 31). Isto significa que as pulsões exercem uma pressão constante no aparelho psíquico, pois se a satisfação é sempre parcial não é possível cessar o estímulo originado na fonte da pulsão.

Há uma força pulsional que impele o sujeito a repetir, sem conseguir evitar o retorno a determinadas situações e a determinados modos de sofrimento. Dessa forma, podemos pensar que a repetição e a pulsão estão relacionadas, na medida em que uma põe a outra em movimento. A pulsão é aquilo que instiga a compulsão à repetição ao mesmo tempo em que a compulsão à repetição está no cerne da pulsão, visto que “o caráter impulsivo é uma

característica geral dos instintos3, é mesmo a essência deles” (FREUD, 1915, p. 57). A pulsão

de morte busca o retorno a um estado de inércia no qual não haveria nenhum estímulo ao aparelho psíquico, ou seja, um retorno ao inanimado. Porém, na mesma medida em que pulsão de morte e princípio do prazer não se confundem, também não devem se confundir pulsão de morte e a morte do indivíduo, visto que o conceito se refere àquilo que no vivido remete os sujeitos para fora dos limites da vida. (GARCIA-ROZA, 1986).

O princípio do prazer mantém sua hegemonia no que diz respeito ao aparelho psíquico enquanto uma organização, naquilo que está fora desta organização o princípio é sobrepujado por outras formas de funcionamento. A pulsão de morte, como uma força disjuntiva, seria uma das formas pelas quais o além do princípio do prazer se manifesta. O essencial de compreender é que o princípio do prazer só atua como uma tendência no aparelho psíquico depois que as pulsões são representadas, ou seja, que a excitação livre é ligada a uma

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representação, tornando-se apreensível ao aparelho psíquico. No entanto, há algo que sempre fica fora da representação, impossível de ser apreendido, e isto relança o sujeito na compulsão à repetição, em uma tentativa de registrar e inscrever no aparelho psíquico o irrepresentável.

A temática da repetição aparece também no texto O Inquietante (1919) relacionada àquilo que provoca estranhamento ao sujeito. Freud investiga o significado das palavras unheimlich (estranho) e heimlich (familiar), propondo que o unheimlich é também heimlich só que modificado pelo recalque, sendo a marca deste o sufixo un. Ou seja, o estranho é o familiar modificado, o qual deveria permanecer oculto, mas revela-se e provoca o efeito inquietante. Isto seria produzido no retorno do recalcado, em que o familiar aparece modificado, como duplo, e é percebido como assustador. É preciso assinalar que aquilo que retorna por meio da repetição, seja em sua face de “mesmo” ou de “duplo”, retorna sempre diferente.

Tem-se em princípio, então, a dupla face da repetição: o “mesmo” e o “duplo”. No primeiro caso, a diferença apaga-se pela ilusão da mesmice (de familiaridade); no segundo caso, o familiar (o “mesmo”) aparece como estranho, como estrangeiro. O sinistro se dá nessa brusca passagem do mesmo ao duplo. (COSTA, 1998, p. 38).

As considerações realizadas sobre a compulsão a repetição situam-na como uma forma de memória ao mesmo tempo que, relacionada à pulsão de morte, lança o sujeito para além do domínio do princípio do prazer. É a partir da ideia de caos pulsional proposta pela pulsão de morte, um além da organização psíquica, que podemos também pensar a dimensão do trauma. Este consiste em uma experiência de ruptura na organização psíquica do sujeito, que produz efeitos na memória e provoca um retorno do conteúdo traumático através da compulsão à repetição.

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2. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE TRAUMA

Neste capítulo desenvolveremos o conceito de trauma a partir de duas perspectivas: o traumático como um efeito a posteriori e como um efeito imediato de ruptura no psiquismo. Em um segundo momento, trabalharemos o trauma em sua relação com a temática da transmissão, para pensarmos o que é produzido como efeito do esquecimento de experiências traumáticas de uma sociedade.

2.1 TRAUMA: UMA FERIDA NA MEMÓRIA

A experiência traumática é caracterizada pelo excesso de estímulos no aparelho psíquicos, os quais produzem energia móvel em quantidades que o aparelho é incapaz de representar e, por isso, provocam ruptura em seu funcionamento. Em decorrência desse excesso a capacidade de percepção e registro do aparelho psíquico é prejudicada, dando um aspecto singular à cena do trauma. A singularidade da experiência provém do rompimento com o simbólico, efeito de um encontro com o real que lança o sujeito no desamparo, profundamente desorganizador.

Parte da experiência traumática sempre estará situada no âmbito do irrepresentável e do indizível, devido às impossibilidades de falar sobre o real, dessa forma, “o trauma é justamente uma ferida na memória” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 84) ao mesmo tempo em que é a “memória de um passado que não passa” (2008, p. 69). A cena do trauma não é registrada na memória como representação e retorna através da compulsão à repetição, especialmente nos sonhos, onde busca-se realizar uma proteção do aparelho psíquico, por meio da angústia, que não ocorreu no momento da experiência mesma.

Abordaremos o conceito de trauma a partir de duas diferentes perspectivas presentes na obra de Freud. O trauma como um efeito a posteriori, no qual situam-se as experiências da sexualidade infantil, e como um efeito imediato, conforme na neurose traumática e na neurose de guerra.

A noção de a posteriori ou “só depois” consiste no período de latência existente entre uma experiência e o caráter traumático que esta posteriormente adquire. Isto implica considerar que os traços mnêmicos e as representações não estão organizados de forma permanente, mas que sofrem rearranjos, mudando o significado de um evento para o sujeito. No caso das experiências sexuais infantis, o maior entendimento acerca da sexualidade provoca uma ressignificação do ocorrido e, em decorrência da compreensão da experiência,

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um aumento da excitação, dando caráter de atualidade para a recordação. (FREUD, 1896). Por mais que o termo ressignificação seja frequentemente utilizado, seria mais adequado falar na “emergência de uma significação antes ausente” (COSTA, 1998, p. 39), proporcionada pela passagem da passividade à atividade, a qual permite “falar [...] numa significação, na medida em que ali o sujeito encontra seu lugar”. Com isso, é possível dizer que há um hiato de tempo entre a experiência e a sua representação, momento em que pode ser tomada como traumática pelo sujeito.

Essa temporalidade do trauma aparece no caso clínico de Emma, trabalhado por Freud no Projeto de 1895. A paciente sofria de uma compulsão fóbica que a impossibilitava de entrar em lojas sozinha e remetia este temor atual a um evento ocorrido quando tinha 12 anos. Nesta época, dois homens riram de suas roupas após ela entrar desacompanhada em uma loja e, devido ao susto causado pelo riso, ela saiu correndo. Posteriormente, revela-se outra lembrança, de quando a paciente tinha 8 anos, em que o dono de uma confeitaria a toca de forma inapropriada enquanto sorri e ela ainda retorna mais uma vez ao local, sendo tomada pela culpa por pensar que poderia estar provocando uma nova investida do homem. O evento sexual da infância só adquiriu significação após o advir da puberdade e o encontro com os homens rindo, no qual é o riso que desperta a lembrança da cena anterior. É o maior entendimento sobre a sexualidade que possibilita a compreensão da cena infantil e a significação traumática, ambos responsáveis pelo desencadeamento do sintoma fóbico, de forma a evitar a situação de perigo que ir a uma loja sozinha passa a representar.

É importante assinalar que as experiências sexuais infantis não são necessariamente acontecimentos reais, mas podem ser fantasias da criança direcionadas aos pais. Estas são percebidas de forma tão realista quanto uma experiência real porque no inconsciente não há indicadores da realidade que possam fazer a distinção entre verdade e ficção. (FREUD, 1897). Por isso, podemos pensar a ficção como a verdade do sujeito, constituindo a realidade psíquica de cada um.

O trauma como um efeito imediato é desenvolvido por Freud através dos casos de neurose traumática e neurose de guerra, as quais são resultado de graves acidentes ou o estado excepcional de estar em guerra. Nesses casos a etiologia da doença não teria relação com as experiências sexuais infantis, diferentemente da histeria e da neurose obsessiva. O ponto de semelhança é a existência de uma situação de perigo, a qual ameaça a partir de dentro ou fora do psiquismo, através de uma exigência pulsional ou uma situação exterior, mas de qualquer forma remete o sujeito a um estado de desamparo. Na situação traumática a origem do perigo

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não produz diferença, visto que em relação a esta os perigos internos e externos convergem, encontrando expressão uns nos outros. (FREUD, 1926).

Nas neuroses traumáticas e de guerra, o Eu do indivíduo se defende de um perigo que o ameaça desde fora, ou que é corporificado numa postura do próprio Eu; nas neuroses de transferência, o Eu toma sua própria libido como um inimigo, cujas reivindicações lhe parecem ameaçadoras. Em ambos os casos o Eu teme ser ferido: neste último, pela libido; naquele, pelos poderes externos. (FREUD, 1919, p. 387-388).

No texto Além do Princípio do Prazer, ao abordar as neuroses de guerra, Freud (1920) assinala que estas “pareciam causadas principalmente pelo fator da surpresa, do terror” (p. 168). O terror é um estado em que o sujeito é confrontado subitamente com uma situação de perigo sem que haja tempo de preparar o aparelho psíquico para receber a grande quantidade de estímulos. Uma preparação é possível através do desenvolvimento de angústia, um estado afetivo que atua como um sinal para o Eu frente a iminência de uma situação de perigo, modificando o resultado desta.

Em toda uma série de traumas, a diferença entre os sistemas não preparados e aqueles preparados pelo sobreinvestimento pode ser o fator decisivo para o resultado final; ela provavelmente não terá peso a partir de uma certa intensidade do trauma. (FREUD, 1920, p. 195).

A importância da angústia está no fato de realizar um “sobreinvestimento dos sistemas que primeiro recebem o estímulo” (FREUD, 1920, p. 195), aumentando sua força ligadora de forma que a excitação não invada os demais sistemas do aparelho psíquico. Pois um sistema altamente investido consegue transformar a energia móvel dos estímulos em investimento parado, ligando-a a uma representação. Essa capacidade está relacionada com a quantidade de investimento parado contida em um sistema, possibilitando o controle da energia móvel ou, no caso de pouco investimento parado, provocando uma ruptura violenta no aparelho psíquico. No entanto, mesmo quando há preparação para o perigo não é impossível que a experiência, devido a sua intensidade, ultrapasse essa barreira, visto que cada aparelho psíquico possui um limite de estímulos com o qual consegue lidar em determinado período de tempo.

O núcleo da situação de perigo é o desamparo do sujeito frente a ela, seja este material ou psíquico. Há um desamparo fundamental característico da experiência humana, experimentado no trauma do nascimento, que é atenuado pelos cuidados de um semelhante, sempre mediados pela linguagem, mas jamais superado. Por isso, frente a um evento

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traumático ocorre a “reatualização do desamparo que sinaliza a desarticulação do engate entre pulsão e linguagem, condição intrínseca da própria subjetivação” (DASSOLER, 2013, p. 74). O trauma é uma experiência que projeta o sujeito no caos pulsional, para além de sua organização psíquica e, portanto, para além dos princípios que regem o aparelho psíquico.

É também no momento traumático do nascimento que a angústia adquire os traços característicos de sua expressão, de forma que quando uma situação análoga ocorre a angústia é despertada e reproduz uma versão mais branda do desamparo, para que a vivência da situação de perigo em si não cause ruptura. (FREUD, 1926). Portanto, a relação existente entre perigo, desamparo e angústia remete a um trauma estruturante da condição humana.

Nas neuroses traumática e de guerra são frequentes os sonhos traumáticos. Estes marcam uma exceção na teoria dos sonhos como realização de um desejo inconsciente, propondo uma nova função ao processo onírico: elaborar o trauma. Como já dito anteriormente, o trauma não é inscrito na memória e, por isso, retorna como compulsão à repetição, buscando a elaboração da experiência de forma a representá-la. Ao mesmo tempo em que a repetição indica a ausência de recordação também diz de uma espécie de memória acerca da experiência, um meio de não deixar esquecer.

Se os sonhos dos neuróticos que sofreram acidentes fazem os doentes voltarem regularmente à situação do acidente, então eles não se acham a serviço da realização de desejos, cuja satisfação alucinatória tornou-se, sob o domínio do princípio do prazer, função dos sonhos. Mas podemos supor que desse modo eles contribuem para outra tarefa, que deve ser resolvida antes que o princípio do prazer possa começar seu domínio. Tais sonhos buscam lidar retrospectivamente com o estímulo, mediante o desenvolvimento da angústia, cuja omissão tornara-se a causa da neurose traumática. (FREUD, 1920, p. 195).

O sonho traumático retoma a questão da compulsão à repetição como um processo anterior ao princípio do prazer, visto que a experiência lança o sujeito no caos pulsional situado para além da organização psíquica, onde pulsão e linguagem estão entrelaçadas. O retorno do trauma nos sonhos busca, por meio do desenvolvimento da angústia, produzir uma diferença entre a experiência mesma e a sua “lembrança”, através de uma elaboração que possibilite contornar o real que emergiu na experiência traumática e enlaçar novamente pulsão e linguagem. É a isto que nos referíamos ao dizer que o princípio do prazer só pode atuar como uma tendência no aparelho psíquico depois que as pulsões foram representadas, enquanto isso não ocorre há a compulsão à repetição.

Há, no entanto, algo da experiência traumática que permanece não representado, devido a impossibilidade de sua apreensão através da linguagem. Isto retoma a proposição do

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trauma como “um passado que não passa”, no sentido de que os acontecimentos passados são vivenciados como atuais, de forma análoga ao que ocorre na repetição dentro da relação transferencial. É o caso dos sobreviventes, seja de tragédias ou da violência cotidiana, nos quais

Por mais exitosa que seja sua trajetória terapêutica e por mais que tenha reconstruído uma vida para si, haverá momentos de encontro com o real que o arrastarão aos antigos sintomas e a uma nova luta pela sobrevivência psíquica. Há também os que desistem de viver quando estão no cativeiro ou no front, e há os que sobrevivem e também desistem de viver. (FOGUEL, 2015, p. 35).

O ser humano é marcado pelo traumático. Como já trabalhado anteriormente, a vivência humana inicia-se pelo trauma do nascimento, no qual é confrontado com um desamparo fundamental que marcará as situações de perigo e angústia posteriores. Por isso, quando o sujeito é confrontado com a tragédia ou a violência cotidiana remete-se a vivência inicial de desamparo, em que o corpo e psiquismo são percebidos como insuficientes para dar conta do real que se apresenta.

O adentrar na sexualidade é também traumático, como já trabalhado na concepção do trauma como um efeito a posteriori, podendo produzir tanto uma significação sexuada para o sujeito como a neurose. (COSTA, 1998). É a partir do trauma na etiologia das neuroses que buscaremos refletir sobre a memória e o esquecimento dos eventos traumáticos que constituem a história de uma sociedade. A partir dos textos abordados busca-se pensar em um trauma na origem da civilização e, portanto, constitutivo da humanidade, o qual, transmitido através das gerações, permanece produzindo efeitos.

2.2 TRAUMA E TRANSMISSÃO

A temática do trauma aparece novamente na obra de Freud com os textos Totem e Tabu (1913) e Moisés e o Monoteísmo (1939), nas quais encontramos uma articulação entre a psicologia do indivíduo e a psicologia do grupo. A partir das suposições e ideias abordadas nestes textos daremos continuidade à discussão sobre o trauma e a memória, agora demarcando os efeitos do esquecimento.

O trauma, na etiologia das neuroses, consiste em um evento primitivo do qual não há lembrança, devido à amnésia infantil, mas que produz efeitos após um período de tempo. O evento primitivo está sempre relacionado a fortes impressões de natureza sexual ou agressiva, e esta característica é a causa do esquecimento. Essas impressões decorrem dos afetos que a

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criança direciona aos pais no decorrer de sua constituição psíquica, além dos que imagina que os pais direcionem a ela como efeito de seus pensamentos com conteúdo sexual ou agressivo. (FREUD, 1939).

Os efeitos do trauma podem ser positivos ou negativos. Entre os primeiros estão as tentativas de recordar a experiência, reviver o trauma, incluindo a rememoração e a compulsão à repetição. Isto assinala novamente como a repetição é também uma espécie de memória. Por outro lado, os efeitos negativos buscam o esquecimento do trauma ao evitar sua recordação ou repetição. (FREUD, 1939).

O fenômeno da latência, ou o que anteriormente chamamos de trauma como um efeito a posteriori, é um ponto de articulação possível entre a psicologia do indivíduo e a psicologia de grupo, pois está presente tanto na experiência individual do sujeito como na experiência de uma sociedade ou grupo. Indo mais além, podemos pensar que as experiências precoces de natureza sexual e agressiva ocorrem em ambos os campos considerados, tanto na constituição do sujeito como na história da humanidade.

O leitor é agora convidado a dar o passo de supor que ocorreu na vida da espécie humana algo semelhante ao que ocorre na vida dos indivíduos, de supor, isto é, que também aqui ocorreram eventos de natureza sexualmente agressiva, que deixaram atrás de si consequências permanentes, mas que foram, em sua maioria, desviados e esquecidos, e que após uma longa latência entraram em vigor e criaram fenômenos semelhantes a sintomas, em sua estrutura e propósito. (FREUD, 1939, p. 95).

A hipótese sugerida por Freud (1913) é de que a sociedade humana, em sua origem, estaria organizada em uma horda primeva, chefiada por um pai violento que tomava todas as mulheres para si e expulsava os filhos da horda quando atingiam determinada idade. Os filhos expulsos, em um momento de revolta, unem-se para matar e devorar o pai. Este ato canibal consistia em uma forma de identificação com o pai, uma vez que ao mesmo tempo que o odiavam também o amavam e, portanto, queriam ser como ele. Após a satisfação do ódio contra o pai, os sentimentos afetuosos dos filhos despertam na forma de culpa pelo ato parricida. Assim, o pai morto torna-se mais forte do que era quando vivo.

O totemismo surge a partir da culpa pelo parricídio e do receio de uma disputa entre irmãos pelo lugar o pai. As principais leis totêmicas consistem na proibição de matar o totem, substituto do pai, e a exogamia, por meio da qual interdita-se o incesto ao proibir o casamento entre pessoas do mesmo totem. Era prática comum, apesar das inúmeras restrições em relação ao animal totêmico, que o clã matasse e o ingerisse em celebrações. Dessa forma, há uma repetição do parricídio através do sacrifício do totem e do banquete compartilhado entre os

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irmãos, como forma de lembrar a vitória sobre o pai, apesar da culpa, e identificar-se novamente com ele.

Inicia-se, a partir do totemismo, um lento e gradual retorno do recalcado, através do desenvolvimento cultural da humanidade e das consequentes modificações na religião, o qual consiste no retorno do pai da horda primeva, assassinado e esquecido. É com o monoteísmo que “a supremacia do pai da horda primeva foi restabelecida e as emoções referentes a ele puderam ser repetidas” (1939, p. 147).

A religião totêmica surgiu do sentimento filial de culpa, num esforço de mitigar esse sentimento e apaziguar o pai por uma obediência a ele que fora adiada. Todas as religiões posteriores são vistas como tentativas de solucionar o mesmo problema. Variam de acordo com o estágio de civilização em que surgiram e com os métodos que adotam; mas todas têm o mesmo fim em vista e constituem reações ao mesmo grande acontecimento com que a civilização começou e que, desde que ocorreu, não mais concedeu à humanidade um momento de descanso. (FREUD, 1913, p. 173).

A partir destas considerações iniciais, mostra-se importante desenvolver os principais pontos da concepção freudiana da história de Moisés e do judaísmo, como forma de melhor situar as ideias acima apresentadas. É a partir das lacunas encontradas na história escrita do judaísmo que Freud produz a suposição de que Moisés era egípcio e, por consequência, que a origem do judaísmo estaria também situada no Egito.

A principal suposição exposta no texto por Freud é que Moisés seria de origem egípcia, fazendo um forte contraponto com a versão bíblica, na qual ele é identificado como judeu. Um dos possíveis argumentos a favor desta suposição é a diferença existente entre a estrutura do mito bíblico de Moisés e a dos outros mitos heroicos, os quais constituem-se na criança partindo de uma família aristocrática e sendo acolhida por uma família humilde, ao passo que no mito de Moisés esta organização está invertida. A inversão aconteceria com o propósito de situá-lo como de origem judia, tendo em vista a dificuldade dos judeus em aceitar um estrangeiro como líder religioso. Situar a origem de Moisés no Egito tem consequências profundas na história do judaísmo, pois se a religião por ele imposta aos estrangeiros que viriam a constituir o povo judeu era a sua própria, implica supor que era uma religião egípcia. (FREUD, 1939).

Qual seria a religião imposta por Moisés aos estrangeiros? Visto que era característica geral das religiões egípcias o politeísmo, culto a vários deuses, enquanto o judaísmo possui um único e todo poderoso deus.

Freud (1939) recorre à história escrita para situar no Egito também a origem do monoteísmo, na violenta tentativa do faraó Amenófis IV em impor aos seus súditos a

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adoração a um único deus. O faraó muda seu nome para Akhenaten, em homenagem ao novo deus, Aten, ao mesmo tempo em que apaga a menção a Amun, fortemente adorado no Egito, ao qual seu nome fazia referência. Portanto, é a religião de Aten que Moisés comunica aos judeus. Para explicar esta tese, é preciso situar Moisés próximo ao faraó, como fortemente convicto da religião monoteísta proposta. Assim, quando o faraó morre e a população reage contra o monoteísmo instaurado, apagando qualquer vestígio do culto a Aten, Moisés vê suas crenças destruídas e surge a ideia de fundar um novo reino, com outro povo, o qual adoraria a sua religião, desdenhada pelos egípcios.

Na história bíblica do judaísmo há dois grandes momentos, ambos realizados com a participação de Moisés: o Êxodo do Egito e o recebimento das leis no Monte Sinai. Freud (1939) assinala que não é possível que Moisés tenha participado dos dois eventos, pelo período de tempo que os separa, e, a partir disso, surge a suposição de que o Moisés da história escrita seria, na verdade, a união de dois homens diferentes. O Moisés egípcio teria sido assassinado pelo povo judeu, em um ato de repúdio à religião por ele instituída, e uma nova religião foi posteriormente fundada, resultado de um acordo entre os fiéis à Moisés, conhecidos como levitas, e os demais judeus. O segundo Moisés surge como uma compensação ao primeiro, uma forma de manter viva a sua memória, sem que fosse exposto o assassinato do líder e a existência de uma nova crença. Ou seja, a religião de Aten é novamente desdenhada e substituída pela crença no deus Javé.

Ao longo do tempo, tanto a nova religião como o novo deus foram adquirindo características do monoteísmo egípcio, inclusive atribuindo ao deus Javé feitos do líder assassinado, como o Êxodo do Egito. As duas partes do povo judeu tinham interesses diferentes em relação a nova religião, enquanto os levitas buscavam incluir Moisés nas narrativas, os outros buscavam a crença em um novo deus. Mas, apesar dos diferentes interesses, havia um ponto de concordância: esconder o destino do antigo líder. Por isso, buscou-se apagar da história escrita qualquer fragmento da história do judaísmo que pudesse remeter ao Egito e indicar que o culto a Javé era, na verdade, uma nova religião. Na época, a história escrita era deformada conforme os interesses do momento, sem preocupação com a sua veracidade, e, por isso, o registro passava por diferentes tratamentos.

Assim, em quase toda parte ocorreram lacunas observáveis, repetições perturbadoras e contradições óbvias, indicações que nos revelam coisas que não se destinavam a serem comunicadas. Em suas implicações, a deformação de um texto assemelha-se a um assassinato: a dificuldade não está em perpetrar o ato, mas em livrar-se de seus traços. (FREUD, 1939, p. 55).

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Freud diz que como efeito das mudanças realizadas no texto ao longo do tempo “pôde desenvolver-se uma discrepância entre o registro escrito e a transmissão oral do mesmo material – a tradição” (1939, p. 83). A tradição oral faz oposição ao registro escrito, justamente por não ser editada conforme convém o momento ou de acordo com os interesses de determinada parcela de um grupo e, além disso, os fatos que o registro escrito busca esconder sobrevivem na tradição, por vezes tornando-se mais fortes e retornando, como um retorno do recalcado. Este é o caso, já citado anteriormente, da religião de Aten.

Aqui é necessário esclarecer que a tradição oral é compartilhada através das gerações pela narrativa das experiências e consiste em um processo consciente, enquanto o retorno do recalcado ocorre a nível inconsciente e notamos apenas a expressão de seus efeitos. Por isso, há um outro modo de tradição, a qual é transmitida de uma geração a outra de forma inconsciente.

Isto é explicado através da hipótese de que o passado de um grupo seria armazenado em traços mnêmicos inconscientes nos indivíduos pertencentes a ele, de forma análoga aos traços mnêmicos das experiências individuais de cada sujeito. Podemos supor, então, que os conteúdos inconscientes que operam na vida do indivíduo não se limitam às suas próprias experiências, mas também consistem em conteúdos transmitidos a ele, de origem filogenética, que constituem uma herança arcaica. (FREUD, 1939).

Desse modo, podemos concluir que existem duas tradições diferentes, uma comunicada e outra herdada. A tradição comunicada é disseminada de uma geração a outra através das histórias narradas, enquanto a tradição herdada consiste em algo transmitido, sendo de origem filogenética e inata ao ser humano, a partir do momento em que este se insere em uma ordem social. Essa herança arcaica é incompreensível pelo consciente por não estar organizada da mesma forma lógica que a tradição comunicada, por isso, ela opera de forma inconsciente através dos traços mnêmicos ou emerge à consciência de forma alterada, deformada, como o retorno do recalcado na psicologia do indivíduo. O transmitido é um evento esquecido e recalcado da história de um povo, ligado aos pontos de trauma e ruptura. Mas como esse evento ingressa na herança arcaica? Em quais condições a sua recordação torna-se ativa e retorna à consciência, ainda que deformada?

A resposta à primeira pergunta é fácil de formular: a recordação ingressa na herança arcaica se o acontecimento foi suficientemente importante, repetido com bastante freqüência, ou ambas as coisas. No caso do parricídio, ambas as condições são atendidas. Da segunda questão, há que dizer o seguinte. Um grande número de influências pode estar relacionado, mas nem todas são necessariamente conhecidas. [...] o que, certamente, é de importância decisiva é o despertar do traço da memória

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esquecido por uma repetição real e recente do acontecimento. O assassinato de Moisés constituiu uma repetição desse tipo e, posteriormente, o suposto assassinato judicial de Cristo, de maneira que esses acontecimentos vêm para o primeiro plano como causas. (FREUD, 1939, p. 115).

O parricídio no mito da horda primeva foi um ato cometido inúmeras vezes, talvez vivenciado por todos os homens primitivos, mas que é condensado no mito. De forma análoga ao indivíduo, também no grupo a impossibilidade de recordar parece substituí-lo pelo repetir. Dessa forma, o assassinato de Moisés consistiria na repetição do parricídio, talvez por, ao impor a religião ao povo “escolhido”, despertar no grupo um sentimento de ódio análogo ao que os homens primitivos direcionavam ao pai, o qual estaria armazenado na forma de traço mnêmico insciente. Após a morte do líder, provavelmente pelo sentimento de culpa busca-se honrar sua memória na história escrita da nova religião. A própria organização da horda primeva retorna através do monoteísmo, na semelhante dinâmica de relação, a submissão dos filhos a um pai poderoso, que nesse caso aparece como a figura de deus.

No momento em que Freud escreve os ensaios que constituem Moisés e o Monoteísmo está em andamento a Segunda Guerra Mundial, marcada pela perseguição e o genocídio em massa de judeus, o Holocausto. O século XX, de forma geral, é marcado por tragédias históricas e é a partir deste contexto que a filósofa Jeanne Marie Gagnebin aborda a temática do esquecimento de períodos históricos. Na visão dela, o Holocausto ainda é “o emblema daquilo que não pode, não deve ser esquecido: daquilo que nos impõe um “dever de memória” (2009, p. 98), o qual não consiste em lembrar sempre, mas impedir que eventos semelhantes aconteçam, resistir a um esquecimento que muito rapidamente se torna justificação do esquecido.

Há uma singularidade em cada tragédia, impossibilitando que uma seja igual a outra, mesmo que ocorram muitos eventos “semelhantes no horror e na crueldade” (GAGNEBIN, 2009, p. 100). Dessa forma, pensamos que a humanidade falha em seu compromisso com a memória, tornando a luta contra o esquecimento ainda mais necessária. Existe um esquecimento necessário à vida e implica uma elaboração do passado que permite melhor viver no presente, e outro imposto aos sobreviventes das tragédias, no qual busca-se negar e recalcar o acontecimento. Este não só trava a simbolização do trauma das vítimas, visto que “a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela sociedade” (SELIGMANN, 2008, p. 67), assim como produz a repetição da tragédia, ao buscar sua inscrição na memória do grupo.

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Ora, a imposição do esquecimento como gesto forçado de apagar e de ignorar, de fazer como se não houvesse havido tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida do passado, esse gesto vai justamente na direção oposta dessas funções positivas do esquecer para a vida. (GAGNEBIN, 2010, p. 179).

O esclarecimento da tragédia seria uma alternativa que possibilita uma melhor compreensão do passado e de seus impactos no presente, uma vez que consiste em uma lembrar ativo, visando uma elaboração do acontecimento traumático. (GAGNEBIN, 2009). É importante assinalar como o esclarecimento não está relacionado à acusação, pois a culpabilidade mantém o sujeito no registro da queixa, impossibilitando o recordar e gerando uma repetição discursiva que impossibilita a elaboração do passado. Dessa maneira, as pessoas permanecem capturadas em antigos eventos e adoecem no presente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho abordou os conceitos de memória e trauma na produção teórica de Freud, relacionando-os à repetição e a transmissão, na tentativa de compreender os efeitos do esquecimento de períodos históricos e traumas sociais. Dessa forma, buscou-se investigar os pontos de possíveis analogias entre a dimensão psíquica do sujeito e o social, ou seja, como os conceitos da Psicanálise poderiam ser aplicados a esse contexto.

A pesquisa teórica orientou-se especialmente pela temática da memória, concebida como memória inconsciente, de forma que permitisse uma articulação com os demais conceitos investigados. A memória é constituída pelo registro e inscrição dos traços mnêmicos das percepções, os quais são caracterizados pela sua atemporalidade e por seu retorno através das formações do inconsciente. Por isso, trabalhou-se também a construção dos sonhos e sua importância como manifestação de lembranças inconscientes, que não são capazes de se manifestar por si mesmas.

O conceito de repetição foi abordado como uma espécie de memória, uma peculiar forma de recordar. A compulsão à repetição é um fenômeno da vida psíquica do sujeito, não particular de quem está em processo de tratamento, e demonstra profunda relação com a pulsão de morte. Esta impulsiona a compulsão à repetição ao mesmo tempo em que é por ela movida, visto que a compulsão está em seu cerne. A pulsão de morte está situada além do princípio do prazer e, portanto, além da organização do aparelho psíquico, lançando o sujeito em um caos pulsional onde as pulsões não estão vinculadas a representações. A partir desta ideia, pensamos o conceito de trauma.

O trauma consiste em uma experiência de ruptura que afeta o funcionamento do aparelho psíquico, desorganizando as funções de percepção e inscrição do vivido e o tornando estranho ao sujeito, irrepresentável. Por isso, concebemos o trauma como uma ferida na memória. A experiência traumática retorna incessantemente através da compulsão à repetição, na busca por ser representada, porém, mesmo quando ocorre uma elaboração do trauma, há algo que permanece fora da linguagem e retorna, atribuindo-lhe a característica de um tempo que não passa.

A memória de um grupo é transmitida através de traços mnêmicos inconscientes para os indivíduos pertencentes a ele. Esses traços constituem a herança arcaica do grupo e da própria humanidade, como demonstrado através da história de Moisés e do mito da horda primeva, e comportam-se de forma análoga aos traços da memória individual de cada sujeito.

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Ou seja, quando o recordar não é possível as lembranças das experiências do grupo retornam através da repetição.

As lembranças recalcadas de um grupo em geral referem-se a experiências de violência e horror. O esquecimento imposto de tragédias históricas impossibilita um trabalho de memória que precisa ser realizado em compromisso entre o sobrevivente e a sociedade, não permitindo a elaboração do trauma, tanto a nível individual como a nível social. Dessa forma, acreditamos que o esquecimento de períodos históricos e traumas sociais produz efeitos profundos na subjetividade e no social. Ao impedir o esclarecimento da experiência, o esquecimento não permite ao sobrevivente voltar o seu olhar para o presente e a memória do trauma permanece como um passado que não passa, ao mesmo tempo que, no social, produz a repetição, ainda que diferente, da tragédia.

Esta pesquisa buscou esclarecer a temática da memória e do trauma na obra de Freud. No entanto, a investigação de forma alguma conclui-se neste trabalho, dada a extensão da produção freudiana e a impossibilidade de neste momento abordar profundamente os textos que envolvem o tema proposto. Perduram as questões acerca do tema que surgiram ao longo desta produção teórica e a possibilidade de posteriormente investigar esses conceitos também na obra de Lacan.

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Referências

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