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O direito à vida e a criminalização do aborto voluntário no Brasil: considerações sobre o tratamento punitivo à mulher na legislação brasileira

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KARLA ADRIANA KOCH LUFT

O DIREITO À VIDA E A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRATAMENTO PUNITIVO À MULHER

NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Três Passos (RS) 2016

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KARLA ADRIANA KOCH LUFT

O DIREITO À VIDA E A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRATAMENTO PUNITIVO À MULHER

NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Monografia.

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais

Orientadora: MSc. Ester Eliana Hauser

Três Passos (RS) 2016

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Dedico esse trabalho à minha família pelo apoio e a todas as pessoas que de alguma

incentivaram e colaboraram com a

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AGRADECIMENTOS

A Deus, acima de tudo, pela vida, força e coragem.

A minha família, pelo apoio e paciência. A minha orientadora Ester Hauser pela sua dedicação e disponibilidade.

A todos que colaboraram de uma maneira ou outra durante a trajetória de construção deste trabalho, minha muito obrigada!

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“A questão do aborto está mal posta. Não é verdade que alguns sejam a favor e outros contrários a ele. Todos são contra esse tipo de solução, principalmente os milhões de mulheres que se submetem a ela anualmente por não enxergarem alternativa. É lógico que

o ideal seria instruí-las para jamais

engravidarem sem desejá-lo, mas a natureza humana é mais complexa: até médicas

ginecologistas ficam grávidas sem querer.” Drauzio Varella

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RESUMO

O presente trabalho de pesquisa monográfica faz uma reflexão sobre a possibilidade de descriminalização do aborto voluntário, com base nos direitos fundamentais da mulher à dignidade, a igualdade e a liberdade. Discute também o direito à vida inerente ao feto em relação aos direitos da mulher. A classe feminina sempre teve uma posição inferior aos homens, sendo que o estado que é governado pela classe masculina toma decisões legislativas parciais e desiguais. Nessa perspectiva, tece algumas considerações sobre as discussões atuais sobre legalizar o aborto voluntário, tendo como referências as justificativas pró e contra a descriminalização do aborto voluntário no Brasil.

Palavras-Chave: Direito Penal. Descriminalização do aborto. Direitos fundamentais da mulher brasileira.

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ABSTRACT

This monographic research work is a reflection on the decriminalization of voluntary abortion, based on the fundamental rights of women to dignity, equality and freedom. It also discusses the right to life inherent to the fetus in relation to women's rights. The female class has always had an inferior position to men, and the state that is ruled by male class takes partial and unequal legislative decisions. In this perspective, it presents some considerations about the current discussions about legalizing abortion, having as reference the pro justifications and against the decriminalization of voluntary abortion in Brazil.

Keywords: Criminal Law. Decriminalization of abortion. Fundamental rights of Brazilian women.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...08 1. O DIREITO À VIDA, A LIBERDADE E A IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988...10 1.1 Estado democrático de direito, dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais: os fundamentos do Estado Brasileiro...10

1.2 A dignidade da pessoa humana e o direito à vida: aspectos conceituais e legais...12 1.3 O direito a liberdade e a igualdade: considerações a partir da perspectiva de

gênero...16 2 ABORTO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A (DES)

CRIMINALIZAÇÃO DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO BRASIL...20 2.1 A regulação jurídica do aborto no Brasil: aspectos históricos, conceituais e legais...20

2.2 O aborto no direito comparado...28 2.3 Os direitos fundamentais a vida, a igualdade e a liberdade e a criminalização do

aborto voluntário no Brasil: considerações críticas...31 2.4 A criminalização do aborto e o tratamento punitivo a mulher no Direito Penal Brasileiro a partir da perspectiva de gênero...40 2.5 A interrupção voluntária da gestação na proposta do novo Código Penal Brasileiro...42 CONCLUSÃO...48 REFERÊNCIAS...50

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INTRODUÇÃO

O presente estudo tem a finalidade de analisar a criminalização do aborto voluntário no Brasil, com relação ao tratamento punitivo atribuído a mulher, tendo como referência o fato de que o gênero feminino tem um histórico de submissão e subordinação às normas ditadas pelos homens. Será debatido o direito à vida do feto, sendo que o mesmo é usado em grande escala para justificar a criminalização do aborto, bem como em que momento se inicia a vida humana.

No Brasil, a criminalização do aborto voluntário representa, para muitos, uma afronta aos direitos fundamentais da igualdade, liberdade e dignidade da mulher, sendo que lhe é extraído a oportunidade de decidir sobre a maternidade.

Não obstante a criminalização desta prática sabe-se que as práticas abortivas no país são frequentes e que, segundo estimativas, realizam-se mais de 250.000 abortos clandestinos no país ao ano. Esta realidade faz com que se questione a efetividade da legislação penal que trata a questão do aborto, prioritariamente, como uma questão de natureza criminal e não como uma questão de saúde pública.

Milhares de mulheres morrem após se submeter a abortos clandestinos, sem segurança, higiene e ainda sendo taxadas como criminosas. Dessa forma, a legislação brasileira necessita descriminalizar o aborto voluntário, sendo que é possível sua legalização face ao direito à vida e a dignidade expostos na Constituição Federal, para que assim a mulher possa decidir sobre seu corpo e para que receba ajuda médica e psicológica.

Assim, busca-se, com o presente trabalho, discutir a possibilidade de descriminalização do aborto voluntário no Brasil, tendo como ponto inicial a igualdade entre

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gêneros e o princípio da dignidade da pessoa humana, avaliando se o tratamento punitivo atribuído à mulher representa ou não uma violação aos valores da igualdade e da liberdade, e em que medida a norma jurídico-penal mostra-se efetiva para a tutela da vida humana intrauterina.

Para isso, no primeiro capítulo são analisados os fundamentos do Estado brasileiro, como a dignidade da pessoa humana, o estado democrático de direito e os direitos fundamentais, bem como será realizada uma comparação da proteção do direito da dignidade da pessoa humana e do direito à vida. Por fim, ainda será feita uma discussão sobre a liberdade e a igualdade, considerações essas a partir da perspectiva de gênero.

Já no segundo capítulo, aprofunda-se o tema da descriminalização do aborto, estudando os aspectos históricos, conceituais e legais da regulação jurídica do aborto no Brasil, assim como no direito comparado. Além disso, será discutida a relação existente entre o tratamento punitivo a mulher no Direito penal brasileiro e a criminalização do aborto, por fim será analisada a legalização da interrupção voluntária da gravidez na proposta do novo Código Penal Brasileiro a luz dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Brasileira de 1988.

Quanto aos objetivos gerais, a pesquisa é do tipo exploratória. Utilizou-se no seu delineamento a coleta de dados em fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos e na rede de computadores. Na sua realização será utilizado o método de abordagem hipotético-dedutivo, observando a seleção de bibliografia e documentos afins à temática e em meios físicos e na Internet, interdisciplinares, capazes e suficientes para construir um referencial teórico coerente sobre o tema em estudo.

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1 O DIREITO À VIDA, A LIBERDADE E A IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

O Brasil caracteriza-se por ser um Estado Democrático de Direito, e para isso, consagra o valor da pessoa humana e um conjunto de direitos e garantias fundamentais expostos em sua lei maior. A Constituição de 1988 assegura o direito à vida, a liberdade, a igualdade e coloca o princípio da dignidade da pessoa humana como valor fundamental do estado brasileiro.

Os princípios e Garantias Constitucionais, em especial os já citados anteriormente, são básicos para qualquer ser humano, além, de que não podem ser alterados e nem excluídos do sistema atual brasileiro.

1.1 Estado democrático de direito, dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais: os fundamentos do Estado Brasileiro

No preâmbulo da Constituição Federal Brasileira de 1988 estão expostos os fundamentos do estado brasileiro:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (BRASIL, 2015)

Assim, é indiscutível a importância dos valores, consagrados como fundamentos do Estado brasileiro, dentre eles, a democracia, a igualdade, a liberdade, o estado democrático e a dignidade da pessoa humana, sendo os mesmos pilares para as discussões normativas constitucionais e infraconstitucionais.

O Estado brasileiro caracteriza-se como Estado Democrático de Direito, pois nele o povo tem poder e de forma direta ou indireta corrobora com a autoridade dos governantes. Esse também é o pensamento de Marcelo Alkmim (2009, p. 154): “essa é a essência da

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democracia. O povo exercendo o poder dentro do Estado em sua plenitude seja diretamente ou por meio de seus representantes.”

Além disso, a democracia preserva e respeita os direitos e garantias constitucionais e sociais, sendo que o estado deve legislar e administrar sempre os observando. Segundo o doutrinador Alkmim (2009, p. 154) a democracia trata-se de um modelo de estado que “Caracteriza-se, ainda, pelo respeito às liberdades individuais e aos direitos e garantias individuais e sociais, garantidos constitucionalmente, ficando o Estado adstrito à observância desses preceitos constitucionais.”

Por outro lado, a democracia está necessariamente ligada ao valor da igualdade, a partir da qual não é aceitável somente a ideia de restrição e ascensão do poder do Estado, mas sim de efetiva transformação do estado atual, por meio da consolidação da dignidade humana e dos direitos fundamentais. (STRECK; MORAIS, 2010).

Ainda, segundo Lenio Streck e José Luis de Morais (2010, p. 100) no Estado democrático de direito “A lei aparece como instrumento de transformação da sociedade não estando mais atrelada inelutavelmente à sanção ou à promoção. O fim a que pretende é a constante reestruturação das próprias relações sociais.”

Dessa forma, para a democracia ser efetiva na vida do cidadão, não basta que a legislação tenha como único intuito punir ou propagandear seu conteúdo, mas sim, de proporcionar a população um meio de convívio justo, igualitário e saudável.

Segundo Dalmo de Abreu Dallari (2012, p. 150), existem alguns princípios que passaram a fazer parte do conceito de estado democrático de direito, “a supremacia da vontade popular”, “a preservação da liberdade”, “a igualdade de direitos”. O primeiro desses princípios trouxe para os cidadãos, o poder. Ou seja, a partir da instauração da democracia, a população pode participar efetivamente das decisões tomadas pelos governantes, além de ter direito ao voto, greve e outros meios que possibilitem a participação popular.

O princípio da preservação da liberdade engloba a possibilidade de o cidadão se expressar livremente, dispor de seus bens, entre outras, lembrando que tal princípio não tem

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caráter absoluto, e que a liberdade de um, não pode atingir o direito de outro. (DALLARI, 2012).

Por fim, como último princípio, tem-se a igualdade de direitos, que impede que o Estado faça distinções de gêneros, sexo ou cor. Tendo em vista que tal descrição também não é absoluta, pois, em algumas situações o Estado poderá tratar os cidadãos de forma desigual, justamente para garantir a igualdade.

Além disso, é perfeitamente compreensível que a Constituição Federal e o Estado Democrático de Direito devem estar consoantes entre si. Streck e Morais (2010, p. 108) ensinam que: “a teoria da Constituição deve conter um núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias próprias do Estado Democrático (e Social) de Direito, assentado no binômio democracia e direitos humanos-fundamentais-sociais.”

Dessa forma, o texto de uma Constituição, será diferente de um Estado para outro, porém todas devem abarcar os princípios e garantias contidos no conceito do Estado Democrático de Direito.

Assim, para que um estado realmente seja democrático de direito é necessário que todos os cidadãos tenham o conhecimento dos seus direitos e deveres, além de escolherem bons governantes, não deixando de lado, uma boa legislação. Para Dallari (2012, p. 302): “O Estado democrático é um ideal possível de ser atingido, desde que seus valores e sua organização sejam concebidos adequadamente.”

Também, como fundamento do estado brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana é imprescindível para aquele que quer resguardar os direitos fundamentais e humanos, pois é através deste princípio que será garantido a qualquer cidadão, independente de classe social ou cor, o respeito aos direitos e garantias individuais.

1.2 A dignidade da pessoa humana e o direito à vida: aspectos conceituais e legais

Como já mencionado, a Constituição Federal Brasileira de 1988, surgiu para garantir diversos direitos inerentes à pessoa humana, incluindo-se nisso a dignidade e o direito à vida.

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Tendo como ponto de partida, que a dignidade da pessoa, se dá por ter uma vida minimamente digna, sem violência, tortura, com acesso ao lazer à saúde e a educação, Ingo Sarlet (2011, p. 73) a conceitua como:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

Dessa forma, pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana, envolve a garantia de que, qualquer pessoa deve ter respeitado seus direitos individuais expostos na Constituição e, além disso, que lhe seja assegurado uma vida saudável, incluindo o acesso à saúde, ao lazer e à informação.

Para Alexandre Moraes (2002, p.50):

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

A dignidade da pessoa humana está expressa no texto constitucional como fundamento do Estado brasileiro no artigo 1º, inciso III. Art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana [...]”

Esse princípio tão importante para estado brasileiro, também foi expresso na carta constitucional em outros artigos. No artigo 170, caput, ficou declarado que, quanto à ordem econômica, é assegurado a todos os seres humanos uma existência digna. No artigo 227, também foi assegurado esse direito as crianças e adolescentes. Não diferente aos idosos

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também fora conferido essa garantia, no artigo 230, caput, da CF foi consolidado que: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua

participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”

A dignidade da pessoa humana é uma garantia que começou a ser respeitada recentemente, conforme Sarlet (2009, p.76):

Apenas ao longo do século XX e, ressalvada uma ou outra exceção, tão somente a partir da Segunda Guerra Mundial, a dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições, notadamente após ter sido consagrada pelo Declaração Universal da ONU de 1948.

Através dos conceitos até agora aferidos sobre a dignidade da pessoa humana, discute-se o fato de o aborto discute-ser ilegal e penalizado no sistema brasileiro, mesmo com o alto número de mulheres que perdem a vida, ficam com sequelas e se expõe a essa prática de forma desumana e desatenta as condições mínimas de saúde, sendo assim uma afronta ao principal fundamento do estado brasileiro, que é a dignidade.

Por outro lado, o direito à vida, que está previsto, no caput do artigo 5º da Constituição Federal, defende além do direito de não ser morto, o resguardo a ter uma vida digna. Além disso, pode-se dizer que o direito à vida é um dos principais, pois sem ele, não se pode exercer os demais direitos e garantias.

Importante ressaltar, que o direito à vida, além de proteger a integridade das pessoas, limita o poder do Estado, pois impede que o mesmo realize qualquer ato que atente contra esse bem jurídico. Gilmar Mendes (2012, p. 379) relata a importância de assegurar tal direito:

Proclamar o direito à vida responde a uma exigência que é prévia ao ordenamento jurídico, inspirando-o e justificando-o. Trata-se de um valor supremo na ordem constitucional, que orienta, informa e dá sentido último a todos os demais direitos fundamentais

Assim, conforme o artigo 84, XIX, da Constituição brasileira, ao Estado é proibido aplicar a pena de morte, salvo, em casos de guerra declarada. Esse também é o entendimento de Gilmar Mendes (2009. p.282):

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O direito à vida apresenta evidente cunho de direito de defesa, a impedir que os poderes públicos pratiquem atos que atentem contra a existência de qualquer ser humano. Impõe-se também a outros indivíduos, que se submetem ao dever de não agredir esse bem elementar.

Nessa perspectiva, há uma discussão muito acalorada, quanto às contradições sobre o aborto, o direito à vida e a dignidade da pessoa humana atribuída à mulher nesta situação. Para Guilherme de Souza Nucci (2011.p.658): “Nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida. Por isso, é perfeitamente admissíve1 o aborto em circunstâncias excepcionais, para preservar a vida digna da mãe.”

Porém o direito à vida está sendo utilizado em grande escala, para justificar a sua criminalização. Gilmar Mendes defende (2012, p. 381)

O elemento decisivo para se reconhecer e se proteger o direito à vida é a verificação de que existe vida humana desde a concepção, quer ela ocorra naturalmente, quer in vitro. O nascituro é um ser humano. Trata-se, indisputavelmente, de um ser vivo, distinto da mãe que o gerou, pertencente à espécie biológica do homo sapiens11. Isso é bastante para que seja titular do direito à vida — apanágio de todo ser que surge do fenômeno da fecundação humana.

Em controvérsia, ao atribuir o direito à vida para um feto, Peter Singer diz (2012, p. 164):

Penso, portanto, que não se deve atribuir à vida de um feto um valor maior que à vida de um animal não humano com um nível comparável de racionalidade, autoconsciência, consciência, capacidade de sentir, etc. Como nenhum feto é uma pessoa, nenhum feto tem o mesmo direito à vida que uma pessoa.

Assim, pela mesma perspectiva do autor, é inviável fazer a proteção à vida do feto, ser maior do que à vida da mulher. Não se pode equiparar à vida de alguém que já nasceu com aquela que ainda está dentro do útero.

É importante esclarecer neste momento, qual é a fase de início da vida humana, e as acaloradas discussões que envolvem tal tema. Face ao desenvolvimento da tecnologia e dos conhecimentos na área médica e da saúde pode-se dizer que já é possível, por exames, saber a evolução do feto em cada fase. Nas palavras de Tessaro (2008, p. 37):

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No que concerne ao diagnóstico pré-natal, atualmente é possível conhecer detalhadamente as etapas do desenvolvimento embrionário e fetal, inclusive com a detecção de anomalias que comprometam sua viabilidade extra-uterina.

Embora, exista toda essa tecnologia, não há um consenso entre doutrinadores sobre quando a vida humana se inicia. Há estudiosos que acreditam que a vida humana se inicia no momento da concepção, ou seja, desde logo, quando o espermatozoide fecunda o óvulo esse ser já deve ser protegido. Para Tessaro (2008, p. 38) “esta perspectiva possui como principal argumento a potencialidade, ou seja, o fato do zigoto (ovo) trazer consigo a capacidade de realizar seu destino humano, que se desenvolverá em fases sucessivas.”

De outro modo, existe a teoria de que a vida começa quando já ocorre uma evolução biológica, ou seja, quando houver a nidação. Lembrando que esse fenômeno ocorre como regra no “décimo quarto dia após a fecundação”. Desse modo, a partir desse momento o embrião se individualiza e assim terá o direito à vida tutelado. (Tessaro 2008).

Por último, mas não menos importante, existe a interpretação que a vida humana só começa e assim deve ser protegida, a partir do momento que existir uma conexão entre mãe e filho, ou seja, não há nenhum liame biológico, e sim relacional. No entendimento de Tessaro:

Se a diferença entre o homem e as demais espécies reside na sua consciência de si próprio, racionalidade, liberdade, responsabilidade, capacidade de expressar sentimentos e palavras, representa um contra-senso considerar o processo reprodutivo como um ato puramente biológico.

Dessa forma, para que haja vida humana, é preciso um vínculo efetivo entre mãe e filho. Além da consciência de sentimento e racionalidade.

1.3 O direito a liberdade e a igualdade: considerações a partir da perspectiva de gênero

Além de consagrar a dignidade da pessoa humana como valor fundamental do estado brasileiro, a Constituição Federal de 1988 se preocupou em proclamar o princípio da igualdade de direitos no caput do artigo 5º. Conforme as palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003 p. 278) este princípio está intimamente ligado a democracia, pois “Não se pode modernamente caracterizar a democracia sem que se abra lugar para a igualdade , embora esse lugar não seja sempre o mesmo”.

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Dessa forma, o Brasil é dotado de democracia, sendo essencial, além da prescrição normativa do princípio da igualdade, sua efetiva consolidação prática, ou seja, além de estar inerte à legislação, deve estar também na vida prática do ser humano, tendo o Estado dever de garantir a efetividade do respeito a esse princípio básico para a qualidade de vida do ser humano, e porque não dizer, de sua vida digna.

Além disso, a garantia da liberdade é uma limitação ao poder de legislar e também uma regra de interpretação, pois, ao legislador fica proibido criar normas que estabeleçam qualquer tipo de privilégio, especialmente em razão de sexo e classe social. E, ao juiz, ao julgar, deve sempre tomar o cuidado para não criar entendimentos privilegiados para certos grupos de pessoas. (FERREIRA FILHO, 2003).

Por outro lado, é preciso lembrar que o princípio da igualdade não é absoluto, conforme o entendimento de Alexandre Moraes (2004, p. 66):

O que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito [...].

Após esses conceitos e adequações legais, cabe aprofundar o assunto quanto à igualdade de gêneros. A mulher passou muitos anos sendo humilhada, discriminada e inferiorizada pela sociedade. Aos poucos foi conquistando direitos, passou a cumprir com papeis sociais públicos relevantes, também adentrando ao mercado de trabalho.

O artigo 5º da Constituição federal, afirma que mulheres e homens são iguais em direitos e obrigações. Nas palavras Moraes (2004, p. 68):

A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis.

Um grande marco na história do judiciário para a quebra da desigualdade foi em 2000, quando Ellen Gracie Northfleet fez parte do STF. Essa passagem teve um grande significado,

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pois a partir desse momento, se asseverou o direito a igualdade entre homens e mulheres e a rejeição a qualquer prática adversa a essa. (LENZA, 2011).

Outra grande conquista na esfera feminista foi a eleição nacional de 2010, na qual, os cidadãos brasileiros, elegeram Dilma Roussef, como a primeira mulher a ocupar o cargo máximo do poder executivo no país, a qual assumiu sua legislatura em primeiro de janeiro de 2011. Esse fato caracteriza um avanço real e significativo no que tange a participação feminina na política brasileira.

A Constituição Federal Brasileira também assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência e crença no artigo 5º, VI a VIII. O Estado Democrático de direito é inerte a qualquer religião, ou seja, é um estado laico, para Silva (apud LENZA, 2011, p. 883).

Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir à qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir à religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo

Assim, o estado brasileiro, não pode tomar e fundamentar uma decisão, ou legislar com raízes religiosas. Esse direito é uma evolução grandiosa, levando em conta, que cada ser humano pode ter sua opção religiosa e acreditar no que lhe for mais consciente.

Porém, esta também não é uma garantia absoluta, visto que, o art. 15, IV, da Constituição Federal, adverte sob duas formas que pode haver privação de direitos quanto a liberdade, a primeira é o não cumprimento de uma obrigação que foi imposta a todos e a segunda, é o não cumprimento de prestação que está fixada em lei.

Importa dizer também que a garantia da liberdade de crença e consciência veio junto com o conceito de democracia. Nas palavras de Silva (2002, p. 203) é na democracia que a liberdade encontra campo de expansão:

É nela que o homem dispõe de mais ampla possibilidade de coordenar os meios necessários à realização de sua felicidade pessoa. Quanto mais o processo de democratização avança, mais o homem se vai libertando dos obstáculos que o constrangem, mais liberdade conquista.

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Dessa forma, a democracia sendo plena, deve permitir que cada cidadão tenha a possibilidade de aderir, ou não, a um pensamento filosófico, religioso ou moral. E que, além disso, o estado não atue, com raízes nessas teorias.

Além disso, na interpretação de Silva (2002, p. 240), a liberdade de pensamento: “se caracteriza como exteriorização do pensamento no seu sentido mais abrangente.”

Dessa forma, foram apresentados nesse primeiro capítulo os fundamentos do Estado Democrático de direito, a desigualdade que ainda persiste entre homens e mulheres e como essa situação pode ser revertida. Ficou evidenciado também a discussão de quando se inicia a vida humana, para que a partir de agora, seja realizado um estudo específico sobre a questão da criminalização do aborto voluntário no Brasil.

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2 O DIREITO À VIDA E A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRATAMENTO PUNITIVO À MULHER NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No Brasil o aborto voluntário é criminalizado com base no Código Penal vigente, sendo que serão discutidos neste capítulo, os aspectos históricos do aborto assim como o poder punitivo do Estado face à mulher que opta por interromper a gestação, além de analisar o aborto no direito comparado, frisando os países que decidiram por descriminalizá-lo.

Também será debatida a proposta presente no Anteprojeto do Novo Código Penal brasileiro que propõe a descriminalização do aborto voluntário, sendo por fim, apresentado a efetiva possibilidade de o aborto ser legalizado no Brasil.

2.1 A regulação jurídica do aborto no Brasil: aspectos históricos, conceituais e legais

Do ponto de vista conceitual o aborto é considerado a interrupção da gravidez com a destruição do produto da gestação, sendo que o mesmo pode ocorrer de forma espontânea, acidental ou provocada, sendo este último considerado crime pela legislação penal brasileira.

Atualmente no Brasil o aborto é amplamente criminalizado e penalizado, inclusive aquele realizado por vontade da gestante. Importante ressaltar, que em outros momentos da história era possível que a mulher fizesse a escolha entre seguir com a gravidez ou interrompê-la. Nas palavras de Luiz Regis Prado (2004, p. 100):

A prática do aborto, durante longo lapso temporal, não era prevista como delito. Predominava, inicialmente, a total indiferença do Direito em face do aborto, considerando o feto como parte integrante do organismo materno e, de conseguinte, deixando a critério da mulher a decisão acerca da conveniência ou não de dar prosseguimento à gravidez.

Com relação, especificamente à legislação brasileira ao longo dos tempos, o Código Criminal do Império de 1830 permitia o aborto realizado pela própria gestante e penalizava somente aquele realizado por terceiros, independente do consentimento da mulher. Com o Código Penal de 1890, o aborto praticado pela própria gestante passou a ser criminalizado, regra esta que se sustentou com a vigência do Código Penal de 1940.

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Atualmente, o Código Penal Brasileiro, nos artigos 124 a 128, tipifica o aborto como crime contra a vida, e também descreve as hipóteses de aborto lícito. Com a criminalização pretende-se proteger a vida humana intrauterina. Segundo o doutrinador Luiz Régis Prado:

O direito à vida é inviolável, e todos, sem distinção, são seus titulares. Logo, é evidente que o conceito de vida para que possa ser compreendido em sua plenitude, compreende não somente a vida humana independente, mas também a vida humana dependente.

O artigo 124 do Código Penal traz duas situações, a primeira é o chamado autoaborto, ou seja, é um delito cometido exclusivamente pela própria gestante. Trata-se de delito de mão própria, uma vez que é a própria gestante que pratica a conduta necessária a interrupção da gestação. A segunda situação é aquela em que um terceiro comete o crime, mas com o consentimento da grávida, ressaltando que esse agente está sujeito a pena mais severa do artigo 126 da mesma lei.

No artigo 125 o legislador descreve a forma mais grave do crime do aborto prevista na legislação brasileira, com uma pena mais severa que é de três a dez anos de reclusão, sendo que o mesmo ocorre quando um terceiro provoca o aborto sem o consentimento da gestante. Utiliza-se ainda ao caso descrito o artigo 126 parágrafo único do mesmo código: “aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência”.

A pena do aborto praticado por terceiro é aumentada em um terço, se como resultado do ato, a gestante sofrer lesão corporal de natureza grave. E se por qualquer motivo, ocorrer à morte da gravida, a pena será duplicada, segundo o artigo 27 do Código Penal.

O crime de aborto pode ser analisado ainda como consumado ou tentado. Nas palavras de Bitencourt (2011, p. 165): “consuma-se o crime do aborto, em qualquer de suas formas com a morte do feto ou embrião. Pouco importa que a morte ocorra no ventre materno ou fora dele.”

Dessa forma, para que se penalize a prática abortiva, é necessária a comprovação de que o meio utilizado está intimamente ligado com a morte do feto, e ainda que o mesmo estivesse vivo a este tempo.

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Segundo Bitencourt (2011, p. 166) é possível o crime de tentativa do aborto:

O crime de aborto, como crime material, admite a figura da tentativa, desde que, a despeito da utilização, com eficácia e idoneidade de meios e manobras abortivas, não ocorra a interrupção da gravidez com a morte do feto, por causas alheias à vontade do agente.

De outro modo, há especificado na legislação penal, alguns casos em que o aborto é permitido. No art. 128, inciso primeiro, é mencionado o aborto necessário, que é aquele em que o médico pode o executar caso não haja outro método de salvar a vida da mulher grávida. Já o inciso segundo do mesmo artigo trás a possibilidade da gestante decidir pela prática do aborto, caso tenha sido vítima do crime de estupro, muitos doutrinadores nomeiam tal ato como aborto sentimental. Segundo Bitencourt (2011, p. 169, grifo do autor):

Para se autorizar o aborto humanitário são necessários os seguintes requisitos: a) gravidez resultante de estupro; b) prévio consentimento da gestante ou, sendo incapaz, de seu representante legal. A prova tanto da ocorrência do estupro quanto do consentimento da gestante deve ser cabal.

O estupro pode ser cometido pelo meio da grave ameaça ou violência, segundo Capez (2007, p. 2): “a violência, no caso, é a material, ou seja, com o emprego de força física capaz de tolher a capacidade de agir da vítima, que a impede, em suma de desvencilhar-se do estuprador.”

O estupro do vulnerável é aquele praticado contra pessoas sem discernimento para se defender e contra menores de quatorze anos, que a princípio são pessoas com uma vulnerabilidade maior.

Assim a legislação permite que o aborto seja praticado em caso de estupro, mas apenas com o consentimento da gestante, pois seria desumano obrigar uma mulher a seguir com uma gravidez resultado de uma violência sexual. Dessa forma a legislação penal, autoriza o aborto, quando a risco de vida para a gestante, ou quando a mesma for vítima de estupro.

Por muitos anos, foi discutida a questão do aborto do feto com anencefalia. Muitas mulheres já haviam conseguido autorização judicial para a prática do aborto nesse caso, mas a jurisprudência não era pacífica, sendo que em 2004, o Conselho Nacional dos trabalhadores em saúde, apresentou ao STF uma ADPF, com o objetivo de que o aborto de anencefálico

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fosse incluído entre as hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, sendo, portanto, autorizado, independentemente de manifestação jurisdicional caso a caso.

A anencefalia ocorre quando o feto não desenvolve o cérebro. Na maioria dos casos, ele morre ainda dentro do ventre, e se nascer sobrevive por poucas horas. Nas palavras de Danielle Bohrer (n.d, p. 3):

A anencefalia, deste modo, ocorre durante a gestação, passível de ser identificada ainda nas primeiras semanas, ocorrendo um defeito no fechamento do tubo neural do feto. Assim sendo, o nascituro acaba por não apresentar os hemisférios cerebrais, existindo apenas, em raros casos, o córtex e mais corriqueiro resíduo do tronco encefálico.

Criminalizar o aborto de anencefálico por tantos anos foi uma a afronta aos direitos fundamentais da mulher, pois não há justificativa, para gerar um feto por nove meses sem vida, sem cérebro, sem sentimentos. Não há que se falar em proteção da vida do feto, que foi, por muitos anos a justificativa da não autorização do aborto, pois não há expectativa da mesma, sendo que o sofrimento da mãe de perder um filho natimorto é inevitável, e não há explicação para que as mulheres precisem passar por esse constrangimento.

Segundo Bitencourt (2011, p. 171):

Apenas, se preferir, a gestante poderá aguardar o curso natural do ciclo biológico, mas, em contrapartida, não será “condenada” a abrigar dentro de si, um tormento que a aniquila, brutaliza, desumaniza e destrói emocional e psicologicamente, visto que, ao contrário de outras gestantes que se preparam para dar à luz da vida, rigozijando-se com a beleza da repetição milenar da natureza, afoga-se na tristeza, no desgosto e na desilusão de ser condenada a- além da perda irreparável- continuar abrigando em seu ventre um ser inanimado, disforme e sem vida, aguardando o dia para, ao invés de brindar o nascimento do filho como todas as mães sonham, convidar os vizinhos para ajudá-la a enterrar um natimorto, que nunca teve chance alguma de nascer com vida.

As palavras do doutrinador são fortes, mas é exatamente isso que ocorre quando uma mulher está gerando um ser que não terá vida. Ela passa todo o tempo da gestação se preparando para o dia que feto irá morrer.

Como já dito acima, em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, representados pelo advogado Luiz Roberto Barroso, levou ao STF uma Arguição de

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Descumprimento de Preceito Fundamental, com a finalidade de pacificar a jurisprudência no sentido da autorização do aborto de feto com anencefalia.

A ADPF trouxe como fundamento do pedido, entre outras coisas, a violação de preceitos fundamentais relativos à gestante, como a dignidade da pessoa humana, a autonomia de vontade e a liberdade da mulher grávida e o direito à saúde da mesma. Na peça inicial, os postulantes argumentaram que (ADPF 054, 2004, p. 3):

A violação dos preceitos fundamentais invocados decorre de uma específica aplicação que tem sido dada aos dispositivos do Código Penal referidos, por diversos juízes e tribunais: a que deles extrai a proibição de efetuar-se a antecipação terapêutica do parto m as hipóteses de fetos anencefálicos, patologia que torna absolutamente inviável a vida extra-uterina. O pedido, que ao final será especificado de maneira analítica, é para que este Tribunal proceda a interpretação conforme a Constituição de tais normas, pronunciando a inconstitucionalidade da incidência das disposições do Código Penal na hipótese aqui descrita, reconhecendo-se à gestante portadora de feto anencefálico o direito subjetivo de submeter-se ao procedimento médico adequado.

Após a análise dessa citação, fica claro que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, teve como objetivo defender a saúde física e psicológica da mulher, não querendo, de forma alguma, obrigá-la a tal prática, mas sim, dar-lhe o direito de optar pelo melhor, respeitando sua consciência.

Neste mesmo ano, após receber a ADPF, o Ministro Marco Aurélio de Mello, autorizou, através de uma liminar, as gestantes a praticarem o aborto caso fosse comprovada a anencefalia do feto. Após essa decisão, muitas mulheres anteciparam o parto, pelo Sistema Único de Saúde, sem necessidade de ingressar com uma ação judicial, o que causou discussões acirradas quanto ao assunto. Mas essa liminar durou pouco tempo, pois em outubro de 2004 a mesma foi cassada pelo Tribunal de Justiça. (BOHRER, s. d.)

A partir dessa decisão, as mulheres tiveram que novamente recorrer à justiça para que pudessem interromper a gravidez do feto com anencefalia, sendo que muitas delas, já estavam com a certeza, frustrada, da autonomia da decisão sobre continuar ou cessar a gestação. (BOHRER, s. d.).

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Em 2008, com a nova exposição do posicionamento do Ministro Marco Aurélio de Mello a favor da antecipação do parto dos fetos com anencefalia, foi reaberta a discussão sobre o assunto. A partir desse momento, começaram as audiências públicas no STF, a fim de decidir tal impasse. Neste processo, destaca-se a manifestação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que, segundo Ana Righi Cenci (2011, p. 31), afirmou:

O feto anencefálico é um ser humano e possui, consequentemente, o direito de viver no útero materno, até que cesse, naturalmente, sua viabilidade. Tais alegações encontram respaldo religioso, já que, para a Igreja Católica, a sacralidade da vida tem início quando da concepção. A mesma entidade afirma, tendo sido seguida por alguns ministros do STF, que a autorização para a antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia equivaleria à coisificação do feto, ao lhe retirar a condição humana.

Neste caso ficou visível a tentativa da igreja em influenciar as decisões do estado brasileiro, inclusive no que se trata da antecipação do parto do feto anencefálico. Ora, como já frisado anteriormente, o estado, ao deliberar sobre qualquer questão, deve estar livre e puro de qualquer imposição moral religiosa, pois se trata de um estado laico, ou seja, suas decisões devem ser desvinculadas de qualquer ideal religioso.

Em abril de 2012, foi concluída a votação a ADPF 054, sendo que, por maioria dos votos, ficou permitida a antecipação do parto do feto com anencefalia comprovada. Apenas dois ministros, votaram contra tal decisão, com argumentos frágeis e machistas. O ministro Cezar Peluso, foi um que votou pela improcedência da ADPF 054. Segundo o site do STF, um dos argumentos do voto foi:

Os apelos para a liberdade e autonomia pessoais são “de todo inócuos” e “atentam contra a própria ideia de um mundo diverso e plural”. A discriminação que reduz o feto “à condição de lixo”, a seu ver, “em nada difere do racismo, do sexismo e do especismo”. Todos esses casos retratam, de acordo com o voto, “a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros”. (STF, 2012)

É visível que o ministro pouco se solidariza com o sofrimento e o ataque a dignidade da gestante, ao ser obrigada a gestar feto anencefálico. Além disso, ainda reduz a autonomia, a igualdade e a dignidade da mulher brasileira, à vida de um feto com anencefalia, o qual não irá sobreviver mais que alguns minutos.

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Já o ministro Ricardo Lewandowski, o primeiro a votar contra a ADPF 054, diz, segundo Bohrer (n.d, p. 22):

Os valores em conflito que devem ser preservados no caso de aborto, é a vida do nascituro em contrapartida com a vida e a incolumidade psíquica da gestante, demonstrando evidente convicção de que o anencéfalo é um ser humano detentor de vida, devendo com isso, ser protegido pelo ordenamento jurídico. Com este argumento ele procura afirmar que o simples fato de não existir o cérebro no indivíduo não que faz com que o feto não seja considerado um ser vivo, pelo contrário, entende que o anencéfalo possui vida intrauterina, devendo ser protegido contra qualquer agressão do mundo exterior, em especial, a tutela sobre a vida.

Após esse pequeno trecho do voto, volta-se a questionar o que é e quando começa a vida humana. Pois se o feto não tem cérebro, é incapaz de pensar ou sentir e dessa forma, não há que se falar em proteger a vida humana. É inaceitável que proteger a vida do feto anencefálico, seja sobreposto ao direito da autonomia, da liberdade da dignidade da pessoa humana atribuídos a mulher.

Após ter analisado os votos contrários, é bom ressaltar que a ADPF 054 foi aprovada. E que, mesmo o Brasil estando muito atrasado nessa discussão, teve uma grande evolução permitindo o parto antecipado do feto anencefálico, preservando os direitos, garantias e a dignidade das mulheres.

De todo o exposto até aqui, visualiza-se que, no Brasil, as hipóteses legais de interrupção da gestação são bastante limitadas. Deste modo, o aborto voluntário, entendido como aquele que resulta da manifestação livre e consciente da gestante, segue criminalizado na legislação brasileira, o que há muitos anos gera discussões sobre a possibilidade de autorização dessa prática. Para muitos tal discussão não deve ser vista somente como uma questão de legislação e direitos da mulher, mas, sobretudo como uma questão de saúde pública.

Segundo Tessaro (2008, p. 36) o aborto, apesar de ser considerado crime no Brasil:

Não impede que, segundo estimativas da Rede Feminista da Saúde, tenham sido realizados entre 238.000 e 1.008.000 de abortos ilegais e de risco no período de 1999 à 2002. Objetivamente, as complicações decorrentes de um procedimento de aborto representam a terceira maior causa de mortalidade

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materna no Brasil e o segundo procedimento obstétrico mais realizados em hospitais, somente cedendo lugar aos partos.

Estes dados indicam que o aborto se coloca como um sério problema de saúde pública no Brasil, uma vez que os hospitais brasileiros já realizam diversos procedimentos que envolvem tal prática, principalmente ajudam mulheres que vão para os hospitais com complicações que ocorrem após o procedimento de aborto clandestino.

Outro fato que deve ser destacado, é que os números citados acima são fornecidos pelo próprio Sistema Único de Saúde, sendo que esse não abarca todos os abortos clandestinos praticados. Tessaro (2008, p. 36) diz: “Estimativas sugerem a realização de 700 mil a 1 milhão de abortos clandestinos por ano no país”.

Ora, é um número muito alto para um estado que criminaliza o aborto. Isso se dá pelo fato de que o Sistema Único de Saúde faz o registro apenas de mulheres que vão à procura de ajuda por alguma grave complicação provocada pela prática do aborto, mas não faz nem uma menção de todas aquelas mulheres que praticam o aborto de forma bem sucedida.

Um estudo sobre a prática do aborto foi realizado pelo Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero no ano de 2010, evidenciou, segundo Debora Diniz Marcelo Medeiros (2010, p. 962) que “em 2010, no Brasil urbano, 15% das mulheres entrevistadas relataram ter realizado aborto alguma vez na vida.”

Esse percentual apresentado não se trata de quantos abortos foram praticados, mas sim de quantas mulheres o fizeram, pois a mesma mulher pode ter abortado mais de uma vez. Além do mais a pesquisa é complicada de ser realizada, pois é preciso manter em sigilo a identidade de mulher, por ser uma prática delituosa e também porque muitas delas se sentem constrangidas em expor esses dados (DINIZ; MEDEIROS, 2010).

Ainda segundo a pesquisa, quanto à faixa etária em que as mulheres praticam o aborto Diniz e Medeiros afirmam (2010, p. 962):

Assim como outros fatos cumulativos relacionados à vida reprodutiva, a proporção de mulheres que fizeram aborto cresce com a idade. Essa proporção varia de 6% para mulheres com idades entre 18 e 19 anos a 22% entre mulheres de 35 a 39 anos. Isso mostra o quanto o aborto é um

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fenômeno comum na vida reprodutiva das mulheres. Em termos simples, isso significa que, ao final de sua vida reprodutiva, mais de um quinto das mulheres no Brasil urbano fez aborto.

Esse número demostra que o aborto não é praticado somente por mulheres jovens que não tem consciência e maturidade, mas também por aquelas que já têm amadurecimento suficiente para saber o que é melhor para sua vida, para o feto e para a sociedade.

2.2 O aborto no direito comparado

Como visto até aqui, o Brasil criminaliza o aborto voluntário há muito anos, sendo que apenas em 2012, permitiu a antecipação do parto no caso de anencefalia do feto. Em geral, toda a América Latina é bastante conservadora quanto a essa discussão, pois a maioria dos países proíbe essa prática, sendo que alguns não permitem o aborto nem em caso de risco de vida da gestante.

No Uruguai, houve uma ampla discussão sobre o aborto voluntário, em 2008, sendo que somente deixou de ser legalizado pelo veto do presidente do país, segundo José Torres (2011, p. 10):

A legalização do aborto foi aprovada pelos senadores e deputados, fortalecidos pela opinião de pelo menos 63% dos uruguaios, que se manifestaram em pesquisas pela legalização, pelo programa Iniciativas Sanitárias, que implantou no país um programa público de assistência médica para o aborto, e pelo apoio das centrais sindicais, um espaço tradicionalmente masculino. Mas esse projeto de lei foi vetado pelo presidente Tabaré Vazquez.

Mas em 2012, com uma nova discussão e com o apoio do Presidente Mujica, o projeto que legalizava o aborto voluntário foi aprovado pelo Senado Uruguaio. É possível perceber a evolução sobre a discussão do aborto no Uruguai, pois a maioria da população se manifestou a favor da legalização, inclusive associações compostos por maioria masculina, mostrando de como não houve preconceitos de gênero. Além disso, foi implantado um programa para a assistência medica para mulheres que pretendiam abortar, o que mostra a maturidade de argumentos e métodos para tal prática.

Além disso, em março de 2015, o site Terra, publicou a notícia de que o número de

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“O número de mulheres que decidiram levar adiante a gravidez após solicitar um aborto legal no Uruguai cresceu 30% em 2014 se comparado ao ano anterior, conforme o segundo relatório anual do Ministério da Saúde (MSP).” (TERRA, 2015)

Com essas estatísticas, é possível perceber que a lei de descriminalização do aborto voluntário cumpre seu papel, pois muitas mulheres que buscam ajuda para abortar não têm convicção do que querem, a após ter um auxilio médico, assistencial e psicológico, optam por seguir com a gravidez.

O estudo comprova também, que a descriminalização do aborto voluntário, nada tem haver com incentivar a prática, pelo contrário, tem o objetivo de prestar ajuda as mulheres, lhes permitindo a liberdade e autonomia para tomar sua decisão, até mesmo, por ser uma questão de saúde pública.

Também seguindo as estatísticas do Uruguai, Cuba legalizou o aborto e diminuiu o número de tal prática, conforme Torres (2011, p. 10): “desde 1965, legalizou o aborto até 12 semanas de gestação e mantém uma taxa de abortos inferior a 21 para cada mil mulheres em idade reprodutiva, dez pontos abaixo da média regional.”

Ainda retratando a situação da América Latina, Chile, El Salvador, Nicarágua e República Dominicana, proíbem qualquer forma de aborto. Em Honduras, Argentina, Venezuela, Costa Rica, Peru e Paraguai só é permitido o aborto para salvar a vida da gestante. No Uruguai, Colômbia, Equador, Bolívia, México, Panamá e Guatemala permitem o aborto no caso de estupro ou incesto (TORRES, 2011).

Nos Estados Unidos o aborto foi autorizado no ano de 1973 com um caso que ficou famoso chamado “Roe versus Wade”. Jane Roe era uma mulher pobre, solteira que foi vítima de um estupro, ela ingressou na justiça pedindo uma autorização para abortar, porém o processo demorou três anos para terminar, ou seja, ela não conseguiu a autorização para a prática. (CAMPOS, 2014).

Assim, após o início da discussão com o caso descrito, a Suprema Corte dos Estados Unidos, admitiu o aborto voluntário com uma condição, conforme explica Daniel Rodrigues Chaves:

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A notável Corte colocou um requisito para que esta prática pudesse ser considerada legal. Este foi que o aborto poderia ser feito a qualquer momento antes do período de viabilidade, momento esse em que o bebê já possui um desenvolvimento biológico suficiente para sobreviver fora do útero materno. (JUS, 2013)

É possível perceber que os Estados Unidos preocupou-se com a autonomia e a liberdade da mulher para decidir entre ter ou não um filho, porém, também tomou um certo cuidado quanto a vida do feto, pois a partir de alguns meses de gestação o feto já poderia sobreviver fora do ventre materno. Dessa forma, o aborto só poderia ser praticado antes dessa fase.

A Alemanha passou por fases difíceis, envolvida com guerras e conflitos, sendo que a legislação teve muitas alterações nas ultimas décadas, porém, tal legislação também aderiu à legalização do aborto com alguns requisitos. O primeiro deles é que o ato deveria ser praticado antes do final do primeiro trimestre da gravidez. Já no ano de 2010, foi incluído ainda o requisito de que a gestante que planejasse abortar deveria, obrigatoriamente, passar por um conselho, o qual a encorajaria de ter o filho. (CHAVES, 2013).

Por outro lado, no Reino Unido, o aborto somente é autorizado e pode ser praticado se houver risco de vida à mulher ou ao feto. Conforme Lorena Ribeiro de Morais (2008, p. 50): “A mulher que reivindica autorização para o aborto precisa ser avaliada por dois médicos que devem chegar a um consenso e ratificar que há risco de vida para a mulher ou risco para a vida ou má formação do feto.”

A Áustria se mostra mais evoluída nessa discussão, pois, segundo Morais (2008, p. 51):

Na Áustria, os abortos são permitidos após exame pré-natal que certifique anomalia congênita. O aborto é legal em todos os casos comprovados de dificuldades sócio-econômicas, podendo ser realizado com até 12 semanas de gestação. Depois deste limite, apenas se forem esperados sérios problemas físicos ou psicológicos para a mãe ou para o feto. Se não for diagnosticada anomalia congênita letal, a maioria dos obstetras da Áustria segue o instinto maternal para permitir o aborto com mais de 24 semanas. Formas inviáveis de anomalias congênitas permitem a interrupção em qualquer estágio da gestação.

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Esse método de autorização do aborto utilizado pela Áustria, se mostra maduro, pois além de ter uma preocupação voltada a gestante em si, traz em seu texto legal um cuidado especial com as mulheres de classe econômica baixa, sendo que nesse caso, a prática do aborto é permitida. É possível dizer, que esse é um dos únicos países que desenvolveu uma regra especial sobre o aborto para mulheres pobres, pois em outros lugares, inclusive no Brasil, essa classe é a mais prejudicada, pois precisa da saúde pública, enquanto gestantes de classe alta procuram clínicas particulares para abortar.

2.3 Os direitos fundamentais a vida, a igualdade e a liberdade e a criminalização do aborto voluntário no Brasil.

O direito fundamental à vida, protegido expressamente pela Constituição Federal brasileira, estende-se também à vida intrauterina. Como ser vivo em formação o embrião/feto recebe proteção constitucional, o que não implica que não devam ser levados em conta os direitos da mulher, relativos a autonomia de vontade e liberdade, nas questões referentes a interrupção voluntária da gestação. Isso porque não se pode equiparar os direitos do feto, que está em formação e totalmente dependente de outrem, com os direitos de um ser humano já formado. Neste aspecto parece contraditório afirmar, de modo absoluto, a vida do embrião, quando o mesmo se choca com os direitos fundamentais da mulher.

Os grupos que se opõem radicalmente a descriminalização do aborto utilizam-se, em regra, do argumento de que o feto é um ser vivo e lhe deve ser dada a proteção integral à vida, independentemente de qualquer outro fator. Segundo Ronaldo Dworkin (2003, p. 15):

A exaltada retórica do movimento “pró-vida” parece pressupor a afirmação derivativa de que um feto já é, desde o momento de sua concepção, uma pessoa em sua plenitude moral, com direitos e interesses de importância igual aos de qualquer outro membro da comunidade moral. Muitas poucas pessoas, porém-mesmo aquelas que pertencem aos grupos mais radicalmente antiaborto-, realmente acreditam nisso.

Tais grupos são, em geral, influenciados por questões de natureza religiosa que, embasados em preceitos bíblicos, condenam essa prática, concebendo-a como um pecado intolerável. Dworkin (2003, p. 15), traz de forma bem clara esse entendimento, ao afirmar que:

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A divergência que realmente divide as pessoas é um divergência bem menos polarizada sobre o melhor modo de respeitar uma ideia fundamental que quase todos compartilhamos de alguma forma: que a vida humana individual é sagrada [...] acreditam que o feto é uma criatura humana viva em desenvolvimento, e que algo intrinsecamente mau ocorre , umas espécie de vergonha cósmica, sempre que a vida humana em qualquer estágio é deliberadamente eliminada.

No âmbito do senso comum esse tipo de argumento pode ser aceitável. O que não pode ser cabível, é que em um diálogo jurídico, para decisões relativas à criminalização do aborto, sejam utilizadas justificativas morais, baseadas numa suposta sacralidade da vida humana, ou ainda estar ligada a um cunho de moral religiosa. Para decisões de natureza jurídica, deve ser pensado com a lógica do direito, e livre de qualquer sentimento religioso.

Deste modo a questão referente a criminalização do aborto deve ser tratada, como propõe Tessaro (2008), tendo por base os direitos fundamentais consagrados na constituição, e não deve ser embasada exclusivamente em concepções morais. Para ela a reflexão deve estar baseada nos direitos fundamentais, em especial o direito a vida, a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade e a saúde.

O avanço da tecnologia dentro da área da medicina colabora bastante para novos argumentos nas discussões de quando se inicia a vida humana, porém ainda não se chegou a um consenso sobre o assunto.

Uma das teorias sobre o inicio da vida humana é a da perspectiva concepcional, em que a vida começaria com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, que é o zigoto. Segundo essa teoria, o zigoto leva consigo uma capacidade de se formar uma criatura humana, ou seja, existe uma constatação da capacidade de produzir-se a si mesmo. (TESSARO, 2008).

Essa não é uma teoria convincente, pois existe apenas uma probabilidade de no futuro esse embrião ser uma pessoa. Ainda, segundo Tessaro (2008, p. 39):

Estudos sobre o desenvolvimento embrionário revelam que 50% dos óvulos fecundados são abortados espontaneamente, antes da sua implantação na parede uterina, o que demonstra a instabilidade do embrião e o caráter seletivo destes abortos, uma vez que comprovado que grande parte desses

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embriões eram portadores de graves patologias cromossômicas ou congênitas.

Dessa forma, não é possível dizer que a vida humana começa com a concepção, pois não há nem indícios de vida humana nessa fase, dessa forma não deve haver uma proteção extensiva sobre uma perspectiva de pessoa humana.

Outra teoria sobre o assunto é a da perspectiva biológico-evolutiva, segundo Tessaro (2008, p. 40) essa teoria diz que a vida humana se inicia com a nidação:

Defende que esta se inicia com o aparecimento de sinais morfológicos do embrião ou a partir de um momento determinado do processo de gestação. Desse modo foram propostos os seguintes critérios para o início da vida humana: nidação/individualização, surgimento da crista neural, mobilidade fetal, viabilidade extra-uterina, nascimento e, por fim a aquisição de capacidade racional na infância.

Essa também é uma teoria muito frágil, pois, apesar de que após a nidação ocorra uma individualização, não se pode afirmar que existe vida humana, pois a maioria dos animais passam por esse ciclo biológico, assim não se pode dizer que cada processo biológico é uma vida humana.

Dentro dessa teoria, ainda tem aqueles que acreditam que o ser humano começa a partir do terceiro mês de gestação, quando ocorrem as primeiras atividades cerebrais, dessa forma já se poderia distinguir uma vida humana dos demais animais. (TESSARO, 2008).

Por fim, existe a teoria da perspectiva relacional, que defende que o critério para o início da vida humana deve estar desvinculado a qualquer evolução biológica do embrião. Para Tessaro (2008, p. 43):

Desvincular o desenvolvimento biológico do embrião, seja a partir da sua concepção como por meio da eleição de determinada etapa no processo evolutivo é a premissa básica para estabelecer um conceito de começo da vida humana, tendo em vista que os achados científicos demonstram ser a mesma um processo biológico no sentido de vir a ser, agregando-se ao embrião/feto saltos qualitativos a cada etapa biológica desenvolvida.

Essa a teoria procura esclarecer que a discussão de quando se inicia a vida humana deve ser pautada em argumentos racionais, e não estar ligada somente a critérios puramente

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biológicos, morais e religiosos. Ainda com relação ao que difere os homens dos animais, Tessaro (2008, p.45) diz:

Se a diferença entre o homem e as demais espécies reside na sua consciência de si próprio, racionalidade, liberdade, responsabilidade, capacidade de expressar sentimentos e palavras , representa um contra-senso considerar o processo reprodutivo como um ato puramente biológico.

Assim, para existir de fato uma vida humana, é preciso que a gestação seja aceita e desejada, deve existir um vínculo relacional entre o feto e a mãe. Quando é retirado o direito de escolha da mulher entre ter ou não um filho, a gestação deixa de ser um comportamento humano e passa a ser apenas um acontecimento biológico.

Compreendendo que a vida humana inicia com a concepção o anteprojeto de Lei que tramitou no Senado, no qual o aborto voluntário era descriminalizado, foi vetado, com a justificativa, mais uma vez, da proteção da vida do feto. Segundo PLS 236 (2012, p. 159):

Na realidade, a expressão “vida desde a concepção” (por vezes, constantes de documentos jurídicos garantidores de direitos) não passa de redundância já que após a concepção, já vislumbra a energia vital, característica da anima apta a caracterizar um novo ser humano. Não se trata, como muitos querem fazer parecer, de um longo debate científico, ético, político ou religioso. Nenhum cientista jamais poderá afirmar que um nascituro, por mais jovem que seja, não está vivo.

Com base nessa citação é possível refletir que a Constituição, em nenhum momento coloca o direito à vida em um nível hierarquicamente superior aos outros direitos fundamentais, e nenhum desses tem caráter absoluto. Nesse sentido Tessaro (2008, p. 53) afirma que: “nenhum direito fundamental possui caráter absoluto, nem mesmo o direito à vida, que, em determinadas situações, tem sua proteção afastada face aos homicídios justificados, ou seja, nas situações de legítima defesa e guerra.”

Sendo assim, a criminalização do aborto voluntário no Brasil, apesar de tentar defender a vida do feto, ataca diversos direitos fundamentais da mulher, principalmente o direito a liberdade. Nesse caso, a mulher lhe tem arrancado tal o direito de decidir sobre a sua vida e o seu corpo.

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Somente a mulher tem a capacidade de gestar, mas a ela não deve ser conferido essa obrigação. Pois, além de decidir se irá manter relações sexuais ou não, e com quem, a ela deve ser conferido o direito de decidir se irá manter uma gestação, isso é o direito de liberdade sexual que a mulher deve ter.

Nas palavras de Tessaro (2008, p. 56):

A decisão de ter ou não um filho corresponde a uma das escolhas mais importantes na vida de uma mulher, sendo desnecessário destacar o impacto que a gestação e a maternidade acarretam na vida de cada mulher. A gravidez e a maternidade modificam radicalmente o rumo das suas existências. Se por um lado, conferem um novo significado à vida, por outro, implicam em muitas renúncias, podendo “sepultar projetos e inviabilizar certas escolhas fundamentais”.

É importante ressaltar, que ter um filho, muda radicalmente a vida de uma mulher. Planos fundamentais, pensados durantes anos, podem ser destruídos, com uma gestação. E a mulher não deve ser castigada, por ter engravidado. Uma gravidez sem planejamento familiar pode ser um desastre em determinadas situações. E a mulher não deve ser obrigada a seguir com uma gravidez, se assim não for seu desejo. Já lhe foi unicamente concebido a capacidade de gestar é absolutamente injusto que lhe seja imposto à obrigação de ter filhos.

Ainda nesse tema, John Stuart Mill (Apud SINGER, 2002. p. 155), traz uma reflexão muito interessante:

O único objectivo pelo qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada contra sua vontade é o de evitar prejuízos a outros membros [...] Ninguém pode ser legitimamente forçado a agir ou a abster-se de agir porque será melhor para ele, porque o fará mais feliz, porque, na opinião dos outros membros, agir desse modo seria sensato ou mesmo justo.

Com base na ideia do autor, é possível perceber que a liberdade feminina é deixada de lado com justificativas fracas e sem base legal. A mulher não pode ser obrigada a gerar um filho porque pela moral dos outros, é melhor para ela seguir com a gestação, ou ainda, porque ela estará fazendo o certo, pois se abortar ficará com a consciência pesada.

Tessaro (2008) salienta que a criminalização do aborto voluntário também afeta o direito fundamental à igualdade, pois além da desigualdade entre homens e mulheres, há ainda

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