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Corpos em ação : um estudo sobre imagens, o audiovisual e a percepção na floresta sala de aula

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação

ALEXSANDRO APARECIDO SGOBIN

CORPOS EM AÇÃO: UM ESTUDO SOBRE IMAGENS, O AUDIOVISUAL E A PERCEPÇÃO NA FLORESTA SALA DE AULA.

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ALEXSANDRO APARECIDO SGOBIN

CORPOS EM AÇÃO: UM ESTUDO SOBRE IMAGENS, O AUDIOVISUAL E A PERCEPÇÃO NA FLORESTA SALA DE AULA.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Educação, na área de concentração Educação.

Orientador: CARLOS EDUARDO DE ALBUQUERQUE MIRANDA.

Este trabalho corresponde à versão final da tese defendida pelo aluno Alexsandro Aparecido Sgobin, e orientada pelo Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda.

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Sgobin, Alexsandro Aparecido, 1975-

Sg51c SgoCorpos em ação : um estudo sobre imagens, o audiovisual e a

percepçãona floresta sala de aula / Alexsandro Aparecido Sgobin. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

SgoOrientador: Carlos Eduardo Albuquerque Miranda.

SgoTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de

Educação.

Sgo1. Pedagogia. 2. Anarquismo. 3. Imagens. 4. Diferença (Filosofia). I. Miranda, Carlos Eduardo Albuquerque, 1965-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Bodies in action : a study on images, the audiovisual and perception in the forest classroom

Palavras-chave em inglês: Pedagogy

Anarchism Images

Philosophy of Difference

Área de concentração: Educação Titulação: Doutor em Educação Banca examinadora:

Carlos Eduardo Albuquerque Miranda [Orientador] Wencesláo de Oliveira Machado

Silvio Donizetti de Oliveira Gallo Rodrigo Barchi

Eduardo de Oliveira Belleza Data de defesa: 11-09-2019

Programa de Pós-Graduação: Educação

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-4911-1882 Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/0170216135066684

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

CORPOS EM AÇÃO: UM ESTUDO SOBRE IMAGENS, O AUDIOVISUAL E A PERCEPÇÃO NA FLORESTA SALA DE AULA.

AUTOR : ALEXSANDRO APARECIDO SGOBIN

COMISSÃO JULGADORA:

Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda

Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Júnior

Prof. Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo Prof. Dr. Rodrigo Barchi

Prof. Dr. Eduardo de Oliveira Belleza

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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A meus pais, Neusa e Odair (esteja em paz), que me instruíram, salvaguardaram e nunca deixaram de acreditar.

Sabrina e Gabriel, que pacientemente estiveram comigo nesta nova viagem – meu amor. Aos professores Silvio Gallo, Wencesláo Oliveira, Alik Wunder, Eduardo Belezza, Rodrigo Barchi e Renata Lanza, que me honraram com o aceite na banca de defesa, e com quem aprendi tanto nestes anos!

À Direção do Colégio Recanto Azul, que gentilmente aceitou este estudo, apoiando e estando presentes no longo caminho!

Aos queridos alunos e alunas do Colégio Recanto Azul, que foram pesquisadores e pesquisadoras junto conosco, pelos anos de aprendizado, participação, desafios e alegrias. Esse trabalho é de todos nós!

Coordenadora Ieda Righi, que sempre esteve ao meu lado mesmo nas estradas mais acidentadas, e com quem aprendi muito: avancemos ainda!

Aline Roberta, que participou de maneira tão especial nesta caminhada, que esteja em paz. Aos colegas da pós-graduação, que enriqueceram de maneira ímpar esta pesquisa com suas ideias, críticas, sugestões e suas viagens pessoais.

Laurindo, onde quer que esteja, minha humilde homenagem nestas páginas.

E em especial ao querido professor Carlos Miranda, amigo e orientador nesta viagem, cujo conhecimento, crítica, carinho e paciência foram definitivos para as alegres estradas e florestas trilhadas; a inspiração do mestre e da pessoa atravessaram pesquisa e texto, e também vida, de maneira indelével. Foram dias inesquecíveis e profundamente felizes!

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Este trabalho descreve e discute experiências e práticas realizadas entre o ano de 2015 e 2019 em uma escola da cidade de Campinas, o Colégio Recanto Azul, envolvendo o uso de tecnologias, máquinas e as produções daí havidas: fotografias e filmes que chamamos “rasurados”, sendo a rasura algo que ultrapassa a mera noção de subversão do original, avançando como a construção de um conceito estético e político. Essas experiências e práticas sugeriram a pesquisa que vai nest´ora escrita, pesquisa realizada a partir do método da cartografia, e analisando/problematizando situações de aula no Ensino Fundamental II inspiradas na pedagogia anarquista, e trilhando estradas e atalhos sugeridos pela filosofia da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari, o pensamento de Simondon sobre a individuação e os processos e uma importantíssima, para nossa atuação e norte, consideração deixada pelo revolucionário Mikhail Alexsandrovítch Bakunin, no texto que segue repetida mais de uma vez, e condutora fluida de nossa viagem antes, durante e após esta pesquisa.

Ora, defendemos nesta texto a ideia de que as produções imagéticas “anarquizadas” construídas com as máquinas e ferramentas físicas e virtuais não podem ser entendidas, no limite, sem a interação com o ambiente na qual são atualizadas, e mesmo aí há recortes e certa abstração: as inumeráveis linhas de força, os vários processos e as contaminações físicas, sociais, políticas, religiosas e biológicas que atravessam uma situação de aula agem irmanando-se, com mais ou menos força, às imagens e aos corpos ali presentes, num agora que contém espaço tempo e energias, afetos e perceptos, conexões e desconexões cambiantes... movimento.

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This thesis describes and discusses experiences and practices carried out between 2015 and 2019, in a school in the city of Campinas (Colégio “Recanto Azul”), involving the use of technologies, machines and the resulting productions: photographs and films that we call “scratched”, being the erasure something that goes beyond the mere notion of subversion of the original, advancing as the construction of an aesthetic and political concept. These experiences and practices suggested the research that goes on in this writing, research based on the method of cartography, and analyzing / problematizing classroom situations in Elementary School II inspired by anarchist pedagogy, and following the roads and shortcuts suggested by the philosophy of difference of Gilles Deleuze and Félix Guattari, Simondon's thought on individuation and processes, and a very important one for our work and way of acting and research: a consideration left by the revolutionary Mikhail Alexsandrovítch Bakunin, in the text repeated more than once, and the “fluid” guide of our journey, before, during and after this survey.

In short, we defend in this text the idea that the “anarchized” imaginary productions built with the physical and virtual machines and tools cannot be understood, at the limit, without the

interaction with the environment in which they are updated, and even there are cutouts and certain abstraction: the innumerable lines of force, the various processes, and the physical, social, political, religious, and biological “contaminations” that go through a classroom situation act to more or less forcefully mesh with the images and bodies, in a “right now” containing space time and energies, affects and perceptions, changing connections and disconnects ... movement.

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Primeiras conversas. Sobre um texto que discute uma pesquisa, e ao mesmo tempo cria

outras coisas...11

PARTE 1: Caminhos e Anarquismos...29

1.1.Anarquismos, estratégias e táticas: a floresta e o imagético...35

1.2.Corpos e mentes...57

1.3.Bakunin desce às ravinas conosco, sem temer o cipoal espinhoso que lhes fere, e recolhemos flores e sangue. Fala-se sobre conexões cambiantes...92

1.4.A conexão de todas as coisas, com maiores detalhes sobre conexões cambiantes. Um filósofo francês. A imagem é sugerida como ponte entre...103

1.5.Do corpo e dos afetos. Considerações sobre o mundo físico...108

PARTE 2. Territórios de aprendizagem, corpos, relações: adensamentos...128

2.1. Territórios de aprendizagem, imagens e “imagens”...132

2.2. Entre corpos. Poética do movimento, o uso do território e um (mau) teatro. Uma prova é encontrada na mata...148

2.3. Imagens que são...165

2.4. Ainda sobre imagens: fotografias e rasuras...182

2.5.Uma estética do sensível...194

PARTE 3. Os filmes. Repetição, motor da diferença...203

3.1.Sobre filmes-híbrido e corpos...204

3.2. Relevos-filme na sala de aula...224

3.3. Universos sonoros...231

3.4. Sobre individuação e sobre energias: uma visita a Gilbert Simondon...240

3.5.A repetição e a diferença: o mergulho...264

3.6. A repetição da/na matéria: pulsões de existência...266

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ANEXO...304 Breves considerações sobre o armazenamento das lembranças...305

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Primeiras conversas.

Sobre um texto que discute uma pesquisa, e ao mesmo tempo cria outras coisas e faz uma advertência ao leitor.

Neste trabalho queremos conversar, em forma de escrita e imagens, sobre os caminhos de uma pesquisa de doutoramento que se desenvolveu em uma escola da rede particular na cidade de Campinas, interior de São Paulo; acerca deste texto que tem em mãos, leitor, diremos que foi um exercício de escrita que nos conduziu para sendas inesperadas, às quais não quisemos resistir, nos encantando correr certos riscos, provocar e cavar a terra, esburacar paredes - mergulhar em rios caudalosos.

Encantamentos tais significam que convém andar por esse texto com passos despreocupados, andar de flaneur, não procurar por demais os retos caminhos da escrita prescrita pela Academia, que os há, sem dúvida - mas estão cheios de tocas, cavernas, formigas e montanhas. Se houve um “método” a ser seguido foi o da cartografia, no qual se

produzem dados ao invés de apenas “coletá-los”, e o corpo e mente do pesquisador assumem o fato de estar imerso no universo onde se dá uma pesquisa.

Há risos e há ferimentos, literatura e histórias que atravessam o esperado rigor científico de uma tese. Parece-nos que um texto deve imitar a vida...ou sê-la. E já daqui parte uma advertência ao leitor: trata-se de um texto-rio. Flui sem grandes percalços em algumas de suas seções, mas também será preciso atravessar trechos difíceis, de águas turbilhonantes e pontiagudas rochas: houvemos por bem, e talvez sequer tenha sido uma escolha (o texto também tem suas próprias vontades!), construir seções do texto-rio que são da literatura, mais que da pesquisa acadêmica; trechos de ficções, que nos auxiliaram a pensar.

Atenção!, pedimos: haverá seções que poderão deixar o leitor a se perguntar: quê? Trata-se de atravessamentos nos quais conversamos com assuntos que parecem distantes das imagens e da Educação (e do Anarquismo...), como a noção de espaço tempo da qual Einstein faz uso, breves diálogos com a Matemática, teatro, música; haverá uma mais demorada conversa com as Neurociências, outro ramo dito “duro” dos estudos científicos.

Embora tal seleção pareça tão díspar e desperte indagações (muito justas, aliás), devemos esclarecer que fizeram parte importante de nosso esforço em compreender a própria cartografia do que acontecia em sala de aula, em situação de aula; muitas vezes as teorizações da própria Filosofia, e também da Educação, da Sociologia, das Ciências Humanas, enfim,

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não conseguiram nos auxiliar, por dificuldades nossas, no entendimento e mapeamento dos processos que nos rodeavam, de modo que buscamos na Física, por exemplo, caminhos.

Esses caminhos nos ajudaram no mapeamento e estudo desses processos, razão pela qual adentraram esse texto como absoluta necessidade de sermos honestos com o leitor e apormos na escrita as estradas que trilhamos, por mais atalhos e cantos estranhos que possam ter surgido.

Pois bem: há autores e personagens que nos auxiliaram no esforço de pesquisa, e atores que, sem esperarmos, adentraram estas páginas: porosas são elas! Forças físicas e sociais em contínuo movimento e relação em ambos em ambientes, folha e terra, concreto e ferro. E principalmente imagens pictóricas e audiovisuais atualizando-se em meio a esses universos dinâmicos, elegendo-se perguntas que nortearam esse esforço de pesquisa: o que poderão tais elementos visuais e sonoros provocar, relacionando-se com o ambiente, os corpos e os pensamentos de alunos e professor? Podem-se mapear, num exercício cartográfico, momentos que chamem a atenção por criarem movimentos no pensamento/nos corpos/no ambiente? Pode-se...pode-se...

Contaremos sobre uma orientação política – o anarquismo – que perpassa toda a nossa atuação enquanto docente e pesquisador, às vezes franco e alegremente, doutras feitas timidamente, ou mesmo sendo espojado ao chão (concreções autoritárias emergem e têm seu momento de triunfo, é preciso admitir). No entanto, esse texto não trata do Anarquismo em todo o seu corpo, merecendo esse rico cabedal de acontecimentos e ideias mais atenção apenas na PARTE 1. Deve-se compreender que a atuação nossa enquanto professor é profundamente política, e essa política tem forte inspiração no anarquismo, mormente o anarco comunismo (outra bandeira que já foi declarada extinta, como o próprio Anarquismo...porém, não!). ]

Essa política perpassa nossa maneira de atuação em muitos momentos em situação de aula, faz a crítica dos processos sociais, milita dentro da próprio Colégio Recanto Azul, mas não é a preocupação principal de nossos estudos, que se referem a imagens, processos e ambientes. A algo longa consideração sobre o Anarquismo na PARTE 1, assim, se destina mais a atender ao leitor pouco familiarizado com o Anarquismo e algumas de suas nuances que a preparar o que se vai discutir na tese.

É de dor, de riso e de aprendizado que esse perpassar (cujo domínio beira o impossível) está carreado, e de muitas outras coisas. Talvez nunca as elucidemos todas, e isso com grande proveito: muitas experiências não podem ser “explicadas”, e de explicações a escola e o mundo moderno parecem estar por demais reféns.

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Neste caminho tortuoso e longo há possibilidades de mergulho na diferença (como chamou Gilles Deleuze o pensamento sem representação), na duração (assim dizia Bergson do tempo, quando este se revela em sua pureza), em imagens e sons, filmes e fotografias rasurados, em práticas de aula asselvajadas, e no rigor de um estudo que se deseja sério e carrega um convite: esburacar tocas no tecido, já por si riquíssimo, de uma sala de aula, tocas que já existem por si mesmas, nada descobrimos, mas vez ou outra sopramos a poeira que talvez fechasse suas entradas, e por elas nos aventuramos, com riscos assumidos.

Pois bem.

Como já mencionado, na PARTE I, discutiremos algo do Anarquismo e suas potencialidades ao inspirar ações educativas nas ssituações de aula sob nossa responsabilidade no Colégio Recanto Azul, e o por quê de nossa recusa em definir o que é Anarquismo; a

PARTE II caminhará sobre as noções de ambiente e território, além de apresentar o conceito

de rioaula, traçando estradas fluidas que possam ajudar a compreender tal conceito; falaremos também mais aprofundadamente de imagens (fotografias) rasuradas/tornadas opacas, que foram convidadas a entrar nossas salas de aula, e sua atuação dentro de um dispositivo cujo desejo é convidar ao vislumbre da duração/diferença; finalmente, a PARTE

III tratará de filmes produzidos por professor e alunos, potências audiovisuais com

características específicas, chamadas a namorar sensações mais que a lógica, e caminhará junto de Gilbert Simondon e Gilles Deleuze, para examinar forças e fluxos, diferença e repetição.

Mas já de antemão mencionemos o que, em resumo, defenderemos: afirmamos que (i) não há, não é possível haver total “imersão” quando miro uma fotografia, uma imagem, quando assisto um filme, seja em qual suporte ou espaço for; (ii) o ambiente dentro do qual meu corpo se encontra tem potência de alterar minhas sensações em relação à uma imagem (sob uma ótica mais física, muito mais que psicológica, em nosso estudo) e altera

também a potência das imagens (sejam visuais sejam sonoras) em relação às sensibilidades que provocam; (iii) a imagem só pode ser isolada do ambiente em que se atualiza por

abstração.

Eis o resumo de nossa ambição de pesquisa, leitor. E, para que possa se situar mais confortavelmente nos processos que descreveremos/estudaremos, apresentemos agora alguns termos que surgirão ao longo da escrita e que porventura possam não ser de uso comum senão entre pares, algumas noções que utilizamos em nossa caminhada, e o esboço de conceitos quer utilizamos; também descreveremos o ambiente da escola na qual se dá a

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pesquisa, e os processos de confecção das fotografias e filmes utilizados em situação de aula, alguns deles apostos neste texto.

Sigamos.

A floresta.

Que é uma floresta tropical? Uma área carregada de forças e explosiva de multiplicidades; nela, a vida corre através de Dionísio cantando, freme e chilreia, ruge, espreita, dormita, salta; o que faz viver o olho lúcido do jaguar e a delirante febre do movimento numa floresta são linhas de força, movimentos, energias... calor e som, noites frias, luz, movimento, entropia, sexo e morte, aqui a árvore milenar, ali um pântano, mais adiante a clareira quente, um rio caudaloso, rocha, folha e cipó; a floresta tropical é terreno variado, pulsante, belo e terrível em seus segredos, dentro da qual nem sempre podemos saber quando se encontrará o silêncio delicado que convida a contemplar (e pode ser o prenúncio do perigo) ou o molto fortissimo da mata que nos assombra e encanta, ou ainda a furiosa tempestade desdenhando de nosso terror. Espreita a serpente, as nuvens de mosquito, a vespa; brotam rochas entre a mata, resultado da agonia de ancestrais e agora já mortos vulcões.

A floresta vive de energias e fluxos, transformações e recuperações, movimento incessante, mas vejam!, o movimento verdadeiro não está na altura de nossos olhos, antes, corre pela copa das árvores e pelo solo, sob a serapilheira, nos subterrâneos ocos da terra, nos túneis, palpitante, perceptível em sua vivacidade extraordinária apenas quando atentamos cuidadosamente para ela, pacientemente.

Na floresta tropical também correm rios...

E o que é um rio? Uma imensa complexidade físico-química: um canal fluvial não deixa apreender suas dinâmicas complexas ao olho nu, e a matemática que procura desentrelaçar seus movimentos e energias os movimentos deve ser robusta. Água e detritos das mais diferentes composições são carreados pelos rios até o deságue nos mares, nos subterrâneos da terra, nos lagos; suas águas correm sob a força da gravidade e da fricção causada pelas superfícies em contato com a água, fluindo em camadas paralelas num fluxo laminar, ou em movimentos caóticos e turbilhonantes, nos fluxos turbulentos.

Pode um rio meandrar, buscar caminhos quase retos a partir da conformação geológica do terreno, pode assumir formas serpenteantes que impressionam quem as vê nas grandes alturas.

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O rio sofre sua enchente, transborda, sofre e muitas vezes seca no estio, suas águas assumem outras cores nas chuvas fortes, seu leito se modifica e guarda segredos. Para

compreender um rio é preciso mergulhar nele, bracejar em suas águas, tocar suas margens, enfrentar seus perigos, chegar ao fundo se possível, experimentá-lo em sua ferocidade nas cheias e em sua paciência num dia claro de sol. Jamais poderemos apreender a totalidade de um rio, com todas as suas mudanças de movimento e fluxos intrincados, até porque ele passa, já ensinou Heráclito... o que podemos fazer é tomar uma seção do rio, e estudá-la – um recorte, um instante, não mais; teremos que nos contentar com isso.

A essa altura perguntará o leitor, não sem razão: por que florestas e rios entram em um texto sobre imagens e salas de aula?

Caro leitor, diremos que a floresta é a escola, qualquer escola, pois lá a vida viceja, pulsa e traça fluxos e energias entrecruzados (e a recíproca é verdadeira) que só podem ser apreendidos com atenção; os rios que cruzam a floresta são as salas de aula. E tudo isso é mais que uma metáfora, e menos que um método de análise: a ideia de floresta e rio habita um zona cinzenta entre esses dois extremos, mas nessa zona efetuam-se operações da inteligência em busca de compreender fenômenos que ocorrem especificamente nas salas de aula do Colégio Recanto Azul, onde se dão nossas experiências e nossa pesquisa.

Isto quer dizer que, em nossa atuação enquanto professor, conseguimos compreender melhor a escola apenas quando adentramos a floresta, sem medos, mesmo à custa de nos ferir ou soçobrar; e pudemos apreender mais claramente a sala de aula apenas quando nos decidimos mergulhar no rio, escavando seu leito e sua margem, e bebendo de sua água.

A escola.

Em um barracão de propriedade da Prefeitura Municipal da cidade de Campinas seria inaugurada em 1966 uma escola infantil destinada a atender a população de classe trabalhadora dos Jardins Paulicéia, bairro Castelo Branco e Jardim Londres; ali a alfabetizadora e dona da escola Verci Gandolfi Greco começou a atender, em chão de terra batida, crianças de dois a seis anos que utilizariam materiais fabricados pela própria alfabetizadora – que trabalhava sozinha -, até que o referido barracão fosse demolido por interesses da prefeitura.

É como conta a hoje Diretora Verci Greco sobre o fim das atividades da primeira Escola Infantil com a demolição e da retomada da obra quando do encontro de uma casa no

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Jardim Garcia, bairro operário inaugurado em 1970 (próximo aos bairros citados acima, e hoje contíguo), a qual foi alugada para receber os alunos e alunas da antiga “escolinha de terra batida”, já sob o nome Recanto Azul (pois a casa alugada era pintada nessa cor). Durante trinta e cinco anos a alfabetizadora atenderá um público que vai do Maternal até o Infantil (0 a 6 anos) é somente a partir de 2001 que se dá a expansão das atividades da escola, com a introdução de classes para primeiras séries do Ensino Fundamental I, e em 2010 iniciam-se as atividades do sexto ao nono ano do Ensino Fundamental II.

O hoje Colégio Recanto Azul, em relação às séries nas quais ocorrem nossas experiências (sexto ao nono ano) funciona em uma residência que sofreu adaptações para seu funcionamento como escola (construção de uma sala de aula, de secretarias, e de uma quadra de esportes em andar superior), o que faz com que certas peculiaridades possam ser notadas e vivenciadas no cotidiano do Colégio.

Dois exemplos: forte ênfase positiva é dada pela Diretora a um aspecto que poderia ser visto como negativo, a saber, o pequeno tamanho de algumas salas de aula, antes garagens e salas de estar – o lado positivo, conforme consta inclusive nas propagandas oficiais do Colégio, é o fato de fisicamente a sala não poder abrigar mais que vinte alunos, “número ideal de alunos para uma boa aprendizagem”; outro exemplo é a insistência no discurso do Colégio Recanto Azul como “escola de família”, com tradições conservadoras como a forte aposta na disciplina, da hierarquia, nos valores cívicos, morais e religiosos: uma “escola-casa”.

Sem julgar se tais discursos encontram consonância no cotidiano do Colégio, o fato é que algumas idiossincrasias da escola criam fortes componentes agindo no sentido de

sugerir uma “cultura do Recanto Azul”, baseada em um severo controle dos movimentos dos alunos pelo espaço da escola, em vigilância estrita, uso obrigatório de uniforme completo, disciplina rígida; se por um lado tudo isso é comum em a maioria dos colégios particulares e/ou conservadores, por outro há também um costume curioso das nominações no Colégio: a Diretora é (inclusive para alunos do Fundamental II e para professores e professoras) a “vó Verci”, as secretarias são “tias”, o mantenedor é “tio Dal”. Isso parece criar uma sugestão de cunho “familiar” (afeto), e, ao mesmo tempo, uma sugestão disciplinadora que vai além da disciplina própria da escola comum (“como a família, o corpo administrativo também corrige com severidade se preciso for, para o bem da criança”).

Isso poderia deixar aparecer ao leitor um espaço severamente castrador de liberdades, com currículos que se devam seguir sem desvios demasiados, um rígido controla dos “conteúdos”; ora, dá-se algo bastante diferente no referido Colégio, como o leitor poderá

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compreender da leitura desse texto em relação às nossas práticas de aula. Grande liberdade de ação é deferida pela Direção à maioria dos projetos e tentativas propostas pelas docentes, havendo razoável equilíbrio entre as propostas que são rejeitadas (por falta de espaço, por serem demasiado custosas, ou por envolverem possibilidade de risco, como aulas-de-campo) e as que são aceitas sem grandes entraves.

Tais liberdades permitem extravasamentos importantes de linhas de força, linhas de fuga, acontecimentos bastante ricos justamente devido à tensão que se instala entre o discurso conservador da escola e o dia-a-dia de alunos, funcionários e docentes; trata-se de um espaço que possui naturezas de tensão algo diversas das que o autor do texto encontrou em escolas públicas, certo, mas o potencial do espaço tenso é inegável, e julgamos ser essa uma das riquezas da sala de aula, como veremos nesse trabalho.

O ambiente.

As aulas no Recanto têm a duração e cinquenta minutos cada, sendo o horário da manhã das 7:10 até as 12:30, e no período da tarde das 13:00 até as 18:20, todas salas do Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano).

Podem-se ver abaixo algumas imagens desses lugares de aprendizagem:

Imagem 1.

Trata-se de quatro salas de aula de diferentes tamanhos: isso se dá pelo motivo, já colocado, de o Colégio ter sido alocado em uma antiga residência, nas quais foram feitas modificações, mas não no tamanho das salas, antigas garagens, quartos, cozinhas, etc. As salas são pintadas na cor branca (fosco), tendo televisores postos nas paredes, aparelhos

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notebook, lousas de vidro, e ar-condicionado em duas das salas, sendo as outras ventiladas com ventiladores de parede ou teto.

Há uma quadra de esportes localizada em andar superior, na qual também acontecem nossas aulas, e uma bancada em um cômodo que é utilizado como laboratório (imagem ao meio, faixa superior). Todas as salas de aula possuem câmeras de monitoramento (não gravam sons), e a área externa que dá acessos aos banheiros também possui a sua.

Nos intervalos, alunos e alunas se reúnem em grupos, alguns se sentam sozinhos, as salas são trancadas e o ambiente utilizado para recreação é o do “pátio”, que foi outrora a frente da residência que dá para a rua, com aproximadamente 30 m², o corredor interno de 16 m², a área próxima aos banheiros e as escadarias de acesso a quadra de esportes, que são “ocupadas” pelos alunos e alunas do 9º ano. Como se viu, os espaços da escola são modestos, e as brincadeiras nos intervalos se dão sob monitoramento da coordenadora do Fundamental II, de faxineiras que no horário de recreação exercem (também) a função de inspetoras, e da coordenadora de apoio.

O público do Colégio.

O público comum do Colégio Recanto Azul pertence, em sua maioria, a uma classe média e média-baixa na qual se encontram operários, micro empresários, vigilantes, revendedores, engenheiros, militares, professores; as mensalidades, que giram, para o Ensino Fundamental II, em torno de meio até um salário mínimo, ajudam a situar as condições econômicas desse público. Uma minoria se compõe de alunos “de fora”, uma vez que é a política do Colégio receber alunos no Maternal I, e fazer com que sigam no próprio Colégio todas as etapas formativas até o 9º ano.

Trata-se, embora não tenhamos realizado investigações aprofundadas nesse quesito1, de famílias oriundas de classes modestas que ascenderam. O viés político percebido nas reuniões de pais, e na influência que alunos e alunas recebem dos pais e muitas vezes reproduzem em sala de aula, é conservador: grande importância é dada à família, à disciplina, à meritocracia e à religião por parte dos pais.

1 Ainda que tenhamos efetuado questionários, entrevistas, conversas informais todos os anos com as classes,

no intuito de descobrir, caso o aluno permita, qual a ocupação dos pais, bairros em que moram, viagens que realizaram, para, havendo oportunidade, utilizar tais dados em assuntos de aula.

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Cabe ainda dizer que nos é muito nítido, para nós que lecionamos em escolas públicas da periferia de Campinas e Sumaré2, a diferença entre crianças e adolescentes dessas diferentes classes sociais: enquanto os jovens de bairros pobres têm, em geral, grande acesso às ruas, os alunos do Colégio Recanto Azul com muito poucas exceções relatam pesar pelo fato de “ficar preso em casa”, “só sair com os pais”, “não ter para onde ir”, “não poder sair de casa sozinho”, isso mesmo entre aqueles que atingiram idades entre 13 e 14 anos. De modo que o conhecimento da dinâmica de certos ambientes urbanos (favelas, periferias, locais públicos como terminais de ônibus) em não poucos alunos e alunas é significativamente pobre.

O número de alunos obedece ao seguinte: 6º Ano “A”: 20 alunos.

6º Ano “B”: 9 alunos. 7º Ano “A”: 21 alunos. 7º Ano “B”: 11 alunos. 8º Ano “A”: 13 alunos. 8 Ano “B”: 15 alunos. 9º Ano: 21 alunos.

As aulas.

Ministramos no Colégio aulas de Geografia, todas a nosso cargo; as experiências que aqui relataremos tiveram início em fevereiro de 2014, dez meses depois de nossa admissão, quando julgamos haver abertura o suficiente para algumas tentativas.

Quais tentativas?

Aquelas já realizadas em colégios públicos, sob inspiração dos anarquismos: aulas fora da sala de aula, avaliações em grupo e com negociação de notas, abandono de certas formalidades entre alunos e professor, construção constante de uma autoridade não-autoritária, uso de celulares, abandono das “tarefas de casa”. A relação professor-aluno tende a ser muito mais embasada na construção (diária!) de uma confiança baseada em negociações e entendimentos que em uma hierarquia rígida e em punições.

Quanto ao cotidiano de aulas, costumamos, em verdade, efetuar uma divisão bastante rígida: quando se trata de aulas duplas, a primeira aula sempre é dedicada a uma

2 E.E. Norberto de Souza, EMEF Elza Pellegrini, EMEF Raul Pila, EMEF Vicente Belocchio, EMEF Geny Rodrigues

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breve explanação por parte do professor, algumas questões ou pequenos textos que serão colocados em lousa e copiados, ou transmitidos para os celulares via redes sociais, ou se realizará a discussão de algum assunto ou questão que deverá ser resolvida na segunda aula, sempre fora da sala; nesta segunda aula os alunos se dividirão em grupos livremente, com cada grupo devendo responder às questões propostas, discutir, tecer estratégias, etc., que serão colocadas nos cadernos ou enviadas para o professor via redes sociais.

Tratando-se de uma aula apenas, costumamos reservar os vinte minutos finais para igualmente retirar os alunos da sala, e responder fora dela ao que foi pedido na explanação. Algumas vezes ocorre de realizarmos alguma explanação, mostrar um trecho de filme, fazendo discussões, e reservarmos dez minutos para a saída da sala de aula sem outro intuito que não um período de lazer por parte dos alunos e alunas (naturalmente, esse ato é fortemente “desaconselhado” pela Direção).

Trata-se, de certo modo, de uma divisão entre “aulas teóricas/aulas práticas”, ainda que o que estamos a chamar práticas se deem por escrito, seja nos cadernos, seja por envio pela Rede das respostas escritas/gravadas/filmadas com os celulares: não é comum de nossa parte atividades como maquetes, trabalhos com outros materiais, etc..

Importante salientar que o uso do livro didático foi abandonado em 2015, quando optamos por produzir nosso próprio material, e por discordarmos do uso das imagens em livros didáticos (a crítica se faz quanto ao uso “ilustrativo”, representativo, dessas imagens. O leitor poderá, mais a frente neste texto, encontrar trechos nos quais essa crítica é explicitada), de modo que, como base e com aprovação irrestrita da Coordenação Pedagógica, optamos por utilizar como currículo a Proposta Curricular do Estado de São Paulo3, naturalmente com o acréscimo de assuntos como urbanização da cidade de Campinas, ou supressão de conteúdos sugeridos na referida proposta que não nos parecem relevantes conforme o contexto nacional/internacional.

As imagens.

Cerne de nossas pesquisas, as imagens pictóricas e audiovisuais que utilizamos são de duas formas: fotografias rasuradas e curtas-metragens produzidos por nós, nunca ultrapassando cinco minutos. As fotografias são havidas com câmeras de celular, seja por nós seja pelos alunos que nas fornecem, tendo geralmente três naturezas: fotografias dos mais

3Disponível em :

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variados assuntos que possam ter relação com a Geografia (espaços urbanos, espaços “naturais”, coletividades, estruturas, relevo); colagens feitas em computador com fotografias, obras de arte, efeitos digitais, e, finalmente, fotos com ângulos inusitados, distorcidas digitalmente, trabalhadas de forma a assumirem um desejo de abstracionismo.

Tais fotografias rasuradas eram impressas e distribuídas a todos os alunos, em número de aproximadamente quarenta fotografias por pessoa. Muitas foram utilizadas em exercícios, provas, e muitas eram apresentadas como de “uso livre”: eis abaixo a transcrição de uma aula que teve o áudio gravado para fins de pesquisa, em que discutíamos tais “usos” com alunos de um sexto ano, para que o leitor possa apreciar melhor nossas intenções:

- Como usa? É do jeito que vocês quiserem, olhem pra imagem, se não quiser

ser agora olha outra hora, mas tem o seguinte: olha com cuidado, é só isso. Só isso que a gente pede, tira aí um minuto, dois, pra cada foto, hein? Só isso. Entra na foto, mergulha nela... você acha dela o que quiser, não interessa o que eu achei, entendeu? Pode gostar, pode até odiar, não achar nada... deixa a foto viajar na sua cabeça. Tem que andar na foto, entende? Calma. A gente tá muito rápido, tudo é correndo... olha com calma. Quando puder. Quanto antes, melhor, claro... só isso.

Como se verá, evidentemente há intenções políticas e artísticas nas fotografias e filmes entregues/exibidos aos alunos e alunas, mas é coerente com o ideário anarquista que haja a liberdade da escolha, nossa diretividade diz respeito à denúncia das desigualdades urbanas, não a uma doutrinação.

Contudo, o leitor talvez já se tenha perguntado: o que seriam rasuras?

Trata-se de intervenções, com o intuito de “desnaturalizar” uma imagem tida como “natural”, ou seja, uma fotografia ou filme ou som gravado pretensamente para mostrar a “realidade objetiva”, sem efeitos ou com o mínimo de efeitos artificialmente colocados antes, durante ou depois de haver-se a imagem.

(Ver-se-á neste texto a crítica acerca dessa objetividade da fotografia ou de um filme).

Rasurar é, portanto, introduzir propositalmente ruído nestas imagens e sons “naturais”, rasgos, distorção, contraste, colagens...“desnaturalizar”, em busca do espanto, da estranheza, criando outras realidades a partir da materialidade da rasura da imagem, uma vez que nenhuma imagem produzida/captada/criada por nós ou por uma máquina é a realidade em si, mas um recorte de uma realidade, que já passou; ora, a foto de um lago em uma foto

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pensamos, por força de convenções histórico-políticas um signo, cujo referente é o lago; mas, se o lago não está na foto, o que chamaremos de real será aquilo que a foto mostra em sua materialidade presente.

Criar realidades a partir da materialidade da imagem: claro está que esta é a direção teórica que assumimos em nossas pesquisas e práticas, pelo motivo de ser a que mais potência nos emprestou para a ação e para a reflexão; várias outras direções poderiam ter sido tomadas com resultados interessantes, inclusive utilizando fotografias e filmes sem rasura alguma.

De modo que na direção em que seguimos uma fotografia ou um filme deixam de ter a “transparência” que Barthes viu na fotografia, por exemplo, e assume toda sua materialidade – o fundo não existe mais, ele sobe à superfície e com ela se conjuga, desaparecendo, pois nos livramos dele na concepção da materialidade da imagem.

Assim, o que nos importa nessa pesquisa é o imediato da imagem e do som, aquilo que percebemos com nossos sentidos; um filme sobre o rio Amazonas nos chamará a atenção por sua materialidade, pelas cores, tons, imagens, sons, enquadramentos que mostra com mais ou menos beleza (ou tragédia), mas não percebemos o rio verdadeiro através do filme, mas sim o rio fílmico, o rio que a arte intencional do diretor e sua equipe, irmanada às características técnicas do maquinário de filmagem, captou e construiu. Podemos então dizer que rasurar uma obra pictórica, sonora ou fílmica já pronta é sobrepor realidades, ou ainda construir outros reais? Rasurar a materialidade de uma imagem, uma obra audiovisual, é uma criação junto com a criação primeira, uma violência, um ato político?

Cremos que sim.

E como são construídas tais imagens pictóricas e audiovisuais?

No caso das fotografias, todas sem exceção são tratadas em meio digital por nós, utilizando software livre (caso do Gimp, Photoscape), e enviadas à Direção do Colégio que se encarrega da impressão em gráfica. São acrescentadas colagens, distorções, contraste, efeitos, supressões, mudança de matiz e cores, sempre com a intenção de alterar a realidade da foto original e criar novas realidades.

(No decorrer deste texto, verá o leitor que a operação de rasurar as imagens assumiu grande importância em nossas investigações).

Vejamos um exemplo, sendo a foto à esquerda a original, e à direita a imagem rasurada:

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Imagem 2. Imagem 3.

Em relação aos filmes, estes são criados a partir do uso das câmeras de celular por nossa parte ou por parte dos alunos, que nos fornecem as filmagens obtidas, ou por recorte e montagem de trechos de filmes comerciais, imagens havidas na Internet, sons gravados e mixados por nós, então editados em programa comercial destinado a edição de filmes. Uma “regra” sempre seguida na produção desses filmes é sempre “rasurar” as imagens havidas durante a filmagem, com o uso de filtros, baixa resolução na captação da imagem, obstáculos postos em frente à objetiva da câmera (plástico, papel vegetal), em busca da imagem distorcida, borrada, “suja”; não se trata de buscar um contra em relação à alta definição do cinema comercial hodierno, mas de uma escolha estética exclusivamente nossa, com o fim de criar opacidades, fazer fugir a suposta transparências das imagens fotográficas e audiovisuais.

Quanto aos sons dos filmes, atenção especial é dedicada à sonorização, e ver-se-á neste texto que o som fílmico foi um elemento com grande importância em nossas pesquisas. Ora, os sons em nossos filmes podem ser captados no momento da filmagem, porém todos os filmes produzidos contam com adição de efeitos sonoros, música4 e ruídos na pós-produção. O desejo é criar camadas de sons que não sejam ilustração da imagem, e muitas vezes sequer coincidam com o que se vê na tela (um exemplo são alguns filmes do cineasta russo Andrey Tarkovsky, nos quais se ouve o gotejar ou o correr da água, mas na cena não há nada que remeta ao líquido).

A ideia é utilizar camadas sonoras para atingir sensibilidades, uma vez que, diferentemente da imagem visual, o som pode ter impacto imediato no ouvinte: como se verá

4 As trilhas sonoras podem ser produzidas por nós, com o uso de violões, charangos (instrumento típico

boliviano), guitarras, percussão, ou havidas de canções já registradas, das quais selecionamos pequenos trechos e geralmente invertemos a execução, em busca de uma outra ambiência sonora.

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neste texto, o som toca a emoção, e isso pode se dar de maneira muito intensa (basta nos lembrarmos de uma música que ouvimos e acaba nos emocionando).

Mas qual seria a função das imagens rasuradas em nossas aulas?

Em resumo, poderíamos citar três possibilidades: uma, a procura de criar olhares diferenciados para o assunto que se está tratando, como por exemplo, utilizando-se de uma imagem/filme no qual algo conhecido aparecerá com cores inusitadas, chamando a atenção e fazendo uma provocação em relação a “realidade” (ver figura 5); duas, fazer a crítica acerca de um assunto com imagens de certa forma agressivas em sua esteticidade (ver figura 6); três, utilizar imagens/filmes cuja função é provocar os sentidos, carreando mensagens que o olho e o cérebro não poderiam decodificar à primeira visada (ver figura 8).

O currículo.

A Direção do Colégio Recanto Azul deixa à escolha do professor o currículo a ser seguido; como já apontamos, guiamo-nos pela Proposta Curricular do Estado de São Paulo, emitida pela Secretaria de Educação. Contudo, essa direção é frequentemente modificada conforme acontecimentos de interesse na esfera micro, meso ou macroescala (cidade de Campinas, outras cidades, Brasil e mundo) se mostrem interessantes e nos pareça necessário seu estudo. Como exemplo, reproduziremos os assuntos tratados com o sexto ano da escola, no primeiro bimestre contemplando os meses de fevereiro a maio:

1. Estrutura da Terra. Formação do planeta. Rochas. Magmatismo. Vulcanismo. Placas Tectônicas. Intemperismo. Noções de Geologia. Período Quinário (31/01 a 27/02).

2. Introdução ao uso de imagens (05/03 a 12/03).

3. Primeiras noções de Geografia Crítica: favelização. Leitura de mapas de Campinas. Noção de periferia. O que é pobreza? Desigualdade sócio espacial. A Administração de Campinas. Uso de imagens de satélite (12/03 a 03/04).

4. Breves noções de Direito Constitucional. O Regimento da Escola. ECA. Direitos dos alunos (09/04 a 16/04. Assunto tratado em relação a questionamentos dos alunos e alunas sobre o que consideravam injustiças cometidas pela Direção).

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5. Hidrografia. Uso da água. Questão da água no mundo. Fórmula da água. Distribuição da água no mundo. Propriedades físico-químicas da água (noções básicas). A “guerra pela água”. Uso da água na agricultura e indústria. Água no Nordeste: um crime dos “coronéis” (17/04 a 02/05).

Também foram tratados, em vários momentos, assuntos que pareceram de interesse no momento: eleições no Brasil de 2018, violência contra a mulher, tráfico de drogas e drogas presentes no Brasil, sexualidade, PCC e crime organizado em São Paulo, DST´s, cinema, noções básicas de atomística, delinquência juvenil, a história da escola em geral, Internet, ciberespaço, situação das mulheres no Brasil e videogames. Como se vê, há “saltos” de um assunto para outro, e nenhum esforço é realizado de nossa parte em manter o “foco” no assunto em questão: qualquer pergunta pode ser feita, desde que digna de atenção, tenha ou não relação com a aula do dia.

[Naturalmente há nisso um autoritarismo, que é o de o professor escolher por si o que seria “digno” de atenção; sempre haverá terrenos estriados].

O conceito de agenciadores.

Um dos conceitos-chave que tentamos desenvolver como ferramenta de análise em nossos estudos e práticas é o de agenciador; mas, antes de delinear tal conceito convém saber de onde vêm suas linhas mestras, sua história, como diz Deleuze (“todo conceito tem uma história”). E é da matemática que surge a ideia de criarmos um instrumento que nos auxiliasse na compreensão de aconteceres de diferentes naturezas (física, comportamental, imagética) numa situação de aula, mais especificamente o Teorema Shimura-Taniyama-Weil.

Este teorema nasce como conjectura em 1950, quando Yutaka Taniyama e Goro Shimura, dois jovens matemáticos japoneses, constroem juntos a ideia inédita de que era possível haver uma ponte entre dois ramos muito distintos da matemática: as formas modulares e as equações elípticas. A distinção se fazia porque enquanto as formas modulares se situam no campo da teoria dos números, as equações elípticas fazem parte da geometria algébrica – como conectar dois campos que foram considerados tão distantes? Em resumo,

Taniyama e Shimura propuseram que toda curva elíptica semi-estável é modular, sugerindo

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A conjectura finalmente foi provada5 e tornada teorema, e é justamente aquilo que ele permite que desperta nossa atenção como uma inspiração: um problema particularmente difícil na teoria dos números (que envolvesse formas modulares) poderia ser resolvido mais facilmente com equações elípticas, e vice-versa, abrindo extraordinárias possibilidades na matemática.

Pois bem: o conceito de agenciador se constrói a partir de alguns elementos, a saber:

- a utilização da noção de pontes, como no Teorema Shimura-Taniyama-Weil, sugerindo que pode haver conexões entre assuntos que normalmente são considerados muito distintos, e com essas conexões se podem construir ferramentas para resolver um problema específico;

- é preciso haver rigor na construção das pontes: se uma ponte conecta um assunto a outro, mas se apresentam falhas importantes que podem prejudicar a análise, não se tem um agenciador (daí nossa crítica ao conceito deleuziano de imagem-cristal, como o leitor verá); é preciso respeitar as propriedades intrínsecas do elemento que permite o agenciador. Por exemplo, seja ao agenciador rio-aula, utilizado neste estudo: é necessário respeitar a dinâmica própria do elemento rio, portanto, se em uma sala de aula não existissem velocidades diferentes (alunos com velocidades diferentes de aprendizado, trabalho), “enchentes” (sala transbordante de movimento, ideias, discussões em uma dala aula ou momento), “secas” (sala cansada, indiferente, um mau dia, mau momento), meandros (contorna-se um problema para voltar ao rio principal, assunto principal, ou para criar uma tática), abandono de meandros (a tática falhou ou realizou seu intento), ou seja, toda uma dinâmica complexa e fluida, não faria sentido em utilizarmo-nos do rio - seria um desrespeito ao elemento;

- um agenciador é mais que uma metáfora, e menos que um empréstimo; quando

criamos o agenciador relevos-filme, por exemplo, não criamos uma mera metáfora – para que seria preciso uma metáfora? – nem, naturalmente, usaremos conceitos da geomorfologia para falar de um filme; o que ocorre é que temos um problema muito específico, a saber, exibição de filmes curtas-metragem em salas de aula do Colégio Recanto Azul, e nos faltavam ferramentas para compreender e analisar esse problema específico em seus fenômenos. Grande auxílio nos prestaram os autores e teorias que disseram sobre filmes e cinema, mas o

5

Um dos que fizeram a prova da conjectura Taniyama-Shimura foi Andrew Wiles, que a partir dessa demonstração acabou extraindo ferramentas que lhe permitiram demonstrar o famoso Último Teorema de Fermat.

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problema específico que tínhamos em mãos pediu algo a mais, daí a criação do agenciador relevos-filme, que nos auxiliou substancialmente na tarefa de resolver algumas questões e propor outras.

Trata-se ainda da inspiração que vem do Teorema Shimura-Taniyama-Weil, nada menos que se utilizar de ferramentas de outros campos da matemática para resolver problemas de um determinado campo. No nosso caso extrapola-se essa noção com a utilização de conceitos da Física ou da Hidrografia Fluvial, por exemplo, para estudar um problema bastante específico que conceitos da, digamos, Pedagogia ou Sociologia não puderam indicar caminhos de solução;

- um agenciador deve ser verificável: é preciso, para avaliar se é suficientemente

verdadeiro, sua existência no cotidiano de nossas salas de aula, ou de alhures, caso um agenciador se revele potente para outras situações além da nossa. Isso quer dizer: devemos verificar se realmente existem platôs de atenção ou discussão durante quando de uma aula com filmes (a maioria dos alunos e alunas discute um assunto específico, ou concorda com uma ideia...), se há picos de atenção durante a exibição, planícies de calmaria;

- um agenciador deve revelar sua validade, nos ajudando a pensar um problema específico. Se há dificuldades substanciais em conectar um agenciador a uma situação, então o agenciador deve ser abandonado.

Rioaula.

Eis um conceito importante para este trabalho, sendo, mais uma vez, mais que uma metáfora e menos que uma coisa, parafraseando Bergson. Julgamos pertinente apresenta-lo apresenta-logo de início, para que o leitor já apreenda a noção que temos de uma aula que ocorre, de uma situação de aula e suas potências.

Um rio é um corpo d´água extremamente complexo em sua dinâmica: turbilhonamento, densidade da água, assoreamento, composição química do líquido, quantidade de material orgânico, volume, temperatura, profundidade, formato do leito, largura das margens, tudo isso pode afetar o comportamento mecânico de um rio que corre. Suas velocidades variam, não apenas conforme o volume d´água mas também conforme as diferentes “camadas” da água (superfície, meio do corpo, fundo) e os diferentes pontos que se puderem mensurar; sofre enchentes, baixa durante as secas, realiza trocas de calor com a atmosfera sobre si, abriga a vida, revoluteia – mais se aproxima do caos que da ordem, ainda que subjacente ao caos também existam padrões...

(28)

O rio é, assim, mais do universo das probabilidades que das certezas. E, talvez mais importante, o rio passa, e jamais veremos as mesmas águas, ainda que corramos ao longo de seu corpo...

Uma situação de aula, para nós, é como um grande rio: seja com margens estreitas (as quatro paredes de uma sala), seja com margens imensas (uma aula na rua), é, também, uma dinâmica mais próxima do caos e das probabilidades que lhe anima: pode-se procurar represar as águas numa aula, mas quer queiramos, quer não, ocorrerão vazamentos aqui e ali, quando simplesmente (quê?) não se rompe a represa, vejam!

Uma aula pode correr lenta, pode secar, pode haver uma enchente de ideias e alegrias, um fluxo rápido que corta o rio lento, uma bolha estoura, as pedras do leito retardam o movimento, sedimentos se depositam e depois serão dispersos violentamente, ou delicadamente; podemos nadar tranquilamente em suas águas ou sermos arrastados por elas, lutar contra elas (quase sempre perdendo), sair de suas águas, mergulhar até o fundo e revirar seu leito misterioso...e tudo passará: jamais entraremos na mesma sala de aula, nem haveremos o mesmo ambiente de um minuto atrás; jamais serão as mesmas imagens que serão mergulhadas nas águas do rioaula.

Interessante!

Assim, cabe dizer que fazemos uma espécie de abstração quando procuramos, nesta pesquisa, sugerir uma “seção” nestes rioaula e observar os fenômenos que ali se dão em relação a imagens e “imagens”: não podemos apreender toda a dinâmica que se dá aí, mas parte dela, e então construir um certo conhecimento; pouco além disso.

Esse rioaula corre dentro da floresta que é a escola Recanto Azul...e a floresta aguarda: entremos!

(29)

PARTEPARTEPARTEPARTE I.I.I. I.

CAMINHOS e ANARQUISMOSCAMINHOS e ANARQUISMOSCAMINHOS e ANARQUISMOSCAMINHOS e ANARQUISMOS

Quatro e meia da manhã: um vento frio vem do oeste, e nos encolhemos

enquanto esperamos por mais quatro companheiros. Somos quatro: eu, um francês, um

boiadeiro conhecedor da região e um morador das florestas. À nossa frente uma estrada de

terra batida é como uma fita que se estende ao longe, sob o clarão da Lua.

- Não tardam, diz o francês ao meu lado, olhando para o oeste, os cabelos ralos

esvoaçando. Admiro, discretamente, suas unhas desmesuradamente grandes, que de

crescidas, volteiam sobre si mesmas; ele agora cisma, a testa larga e sem nuvens, os olhos

calmos pensando em algo indefinível. Torna a pôr o chapéu, acende um cigarro, e

conversamos futilidades.

Extraordinário é o silêncio que antecede a aurora! Calamos, prestando atenção

na paz que, inda agora pouco, era quebrada pelo sonido de mil insetos e criaturas noturnas.

Esperamos por companheiros de viagem, nossas mochilas estão preparadas para

muitas e muitas milhas; por que estamos partindo novamente, para caminhos ainda mais

longos? Apenas por querer partir, por querer sacudir nossos corpos do cansaço e do

incômodo, algo nos chama à estrada mais uma vez, e não sabemos o que seja; vagaremos

sem buscar algo, sem desenhar algum destino. Por algum motivo, começo a cantar em voz

baixa um verso, não sei de onde possa ter vindo:

Por todo o dia, até o anoitecer,

Por pedra, montanha ou mar,

Amigos: caminhemos, caminhemos!

Se for preciso o Cerro galgar, ou à ravina descer,

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Amigos: viajemos, viajemos!

Sorrio encabulado: de onde teria recolhido isso? Meu companheiro sorri

também, bate palmas:

- Assim está bem! É preciso ir alegre na viagem!

E eis que ouvimos vozes ao longe, que, num crescendo, anunciam a chegada de

nossos amigos e nossa amiga. Nos levantamos, e não tarda para que sejam chegados, entre

saudações e risos:

- Eh! Meu amigo, estamos de volta à estrada! Saudações!

- O que vamos procurar?

- Não sei.

- Isso é bom!

- Temos bastante fumo?

- O suficiente para uma semana de caminhadas.

- Eh! E você, meu santo padre... cá estamos, hein? Há de beber ao menos um gole,

em celebração dessa viagem?

- Bem! Estamos todos prontos? Tudo organizado? Partimos?

- Vejam... sai o Sol!

- Vamos! O lume alegra os corações e torna o caminho menos perigoso. Vamos!

-

Doroga!

E partimos, rindo e imaginando o que se poderá encontrar, caso realmente se

encontre algo; a estrada é margeada por rochas e arbustos acanhados, um lagarto nos

acompanha durante um longo trecho, talvez curioso pela algazarra que fazemos; incontáveis

pássaros palreiam, um caminhão carregando trabalhadoras do campo pede passagem, elas

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nos saúdam, e mandam gracejos ao nosso enorme companheiro russo. Nosso companheiro

jesuíta vez em quando olha para trás em busca de algo na estrada; logo percebemos o

porquê, e pergunto timidamente:

- Será que

ele

virá?...

Paramos no estradão, os rostos cheios de dúvidas e expectativa.

- Talvez!... quem poderia afirmar que não?

Voltamos a caminhar lentamente, trocando impressões. O filósofo de Poitiers

começa a narrar suas vindas ao Brasil, e rimos a bom rir com as aventuras “sórdidas” que

traçou no país.

Andamos e charlamos, rindo, protestando, brigando uns com os outros, voltando

a rir, e a manhã avança, o sol já alto anuncia que convém procurar abrigo sob algum dossel e

fazer uma refeição. A certa altura, um menino, não deve ter mais de doze anos, vestido como

um escolar, aparece no estradão e caminha vigorosamente até nós:

- Saúde! Como vão os senhores? Olá, olá! E o que fazem aqui? Posso comer

também?

Ele se senta, ri conosco, come com vontade, observa-nos atentamente; às vezes

levanta e faz cabriolagens, conta piadas e malfeitos, elogia nossa coragem.

- Que coisa boa! Mas para onde estão indo?

- Não sabemos.

- Oh! E por

que saíram viajando?

- Para nos livrar de um incômodo, o incômodo de estar-se no mesmo lugar por

tempo demais. Nada mais, além disso. Não há nenhuma busca, nenhum motivo em especial,

meu jovem amigo.

- Notável é isso! Partir sem destino... não seria quase imoral?

- Quê? pergunta o russo.

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- Ora, esse sair sem onde nem por quê... trabalho, minha senhora e meus

senhores, isso vos seria mais digno! Flanar como sátiros por caminhos que... homessa!

Aquietai-vos, cumpri vossas ordens, edificai algo de Belo e Bom! Passar por cima das sólidas

moles que vossos avós e pais edificaram, para então construir tetos de palha e paredes de

barro, eis aí algo que deveria vos causar espécie! Oh! que perigoso... a Tradição é que vos

deveria deixar replenos, e não a baderna e a estultice, as ideias melindrosas, os atalhos tortos

e enviesados!

O jesuíta, atento desde a chegada do moço singular, diz com voz forte:

- Já vos descobri, ó impostor! Por sob a pele do jovem vos escondeis, mas não só

sua linguagem lhe trai, como também seus olhos e seu nariz... Velho! Sei quem sois! Velho,

não tens doze ou treze anos, tem centenas sobre centenas... mofo cobre seu pensamento,

aranhas tecem teias perfeitamente geométricas sob seu teto caindo em pedaços; ó Velho, vós,

que usais a velha gramática para cimentar discursos cansados, eis que faço uso da mesma

vetustez, mas para vos denunciar! Sois o pensamento cansado, aprovais a cópia e demonizais

a Diferença! Olha, Velho! Tuas pernas tremem!

E eis que o menino, cuja pele brilhava inda a pouco, agora está encarquilhado, os

olhos baços, a cara torcida numa feia careta enrugada: é um ancião que se vai embora,

resmungando.

- Aí está, diz o francês de Poitiers, aí está aquele que, creio, é objeto de

preocupação de todos aqui! O Velho...

- Aquela cansada aranha, a Representação! Ora, sigamos, e fiquemos atentos,

pois o Velho tem infinitas caras, é doce, seguro e pode mesmo parecer alegre...

E andamos: já se aproxima o meio-dia, o sol nos queima e os passos ficam lentos.

Silêncio, quebrado somente pelo lamento de algum pássaro; árvores maiores começam a

(33)

aparecer, cada vez menos espaçadas, o ar está mais úmido, e nos sentamos mais uma vez

para descansar sob a copa de uma paineira.

No horizonte enxergamos uma massa negra que se estende, estamos em dúvida

se se trata de uma serra ou uma floresta; de qualquer forma levaremos horas para chegar até

aquele ponto, assim, pedimos ao anarquista russo que conte sua história, sem esconder

venturas ou desventuras, enquanto avançamos. Bebemos da extraordinária vida do nobre

revolucionário, homem das barricadas e do fogo dos combates, e a tal ponto estamos presos

na narrativa que apenas quando ele silencia, tendo cantado uma bonita canção russa de sua

época, é que nos damos conta de alguém sentado a uma pedra, a uma distância de trezentos

passos.

Avançamos, curiosos: é um homem, veste-se com uma camiseta branca simples,

calças compridas claras, sapatos leves, e tem uma bengala junto a si. Nos espera

pacientemente, e nossa companheira é a primeira a se espantar:

- Ah!

Ele

!...

O caminho até o homem nos parece interminável; a cinco passos, paramos, e só

então ele se levanta, faz uma reverência, e fala, com voz melodiosa e baixa:

- Enfim, eis que me decido a acompanhá-los, ainda que por caminhos escolhidos,

e não por toda a viagem. De fato, devo confessar que é mais meu o ar frio da montanha que a

escuridão da floresta...

- Então é uma floresta que está a nossa frente...

- Deveras.

- Oh!

Meus colegas de viagem, europeus e um russo, jamais adentraram um

a

floresta

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escura que ao longe assoma... estendo-lhe finalmente a mão, que ele aperta vigorosamente, e

seu sorriso me anima a apresentar meus companheiros de viagem:

- Senhor, eis aqui os franceses Michel Foucault, Gilles Deleuze e Henri Bergson,

filósofos, e o historiador Michel de Certeau; a geógrafa britânica Doreen Massey, e aqueles

que estão vindo lá atrás e logo nos alcançam, vê? são dois brasileiros conhecedores dos

sertões, Mestre Miguel e Mestre Cícero; e este é o revolucionário russo Mikhail

Alexsandrovitch Bakunin. Há muito que nos espera?

- De modo algum. Partimos?

- Em frente!

Alegre e atento, perquirindo sobre os feitos de cada um de nós, fazendo inúmeras

perguntas a mestres Miguel e Cícero, Friedrich Wilhelm Nietzsche viaja conosco, enquanto

assoma o vulto da imensa floresta sob nossas vistas...

(35)

1.1.Anarquismos, estratégias e táticas: a floresta e o imagético.

O que é o Anarquismo? Será possível falar-se de Anarquismo e/ou, o que nos interessa mais neste texto, de pedagogias anarquistas nos dias que correm, quando (ainda) se ouve falar do Anarquismo como se falaria de um interessante cadáver, cujo renascimento seria anacrônico ao ponto do impossível?

Já de início cremos haver deixado clara nossa posição quanto ao suposto ocaso do Anarquismo ao perguntar o que é, e não o que foi esse instigante conjuntode movimentos, ideias, ações e atores variadíssimos, subterrâneo em boa parte da sua história, e, em geral, pouco compreendido pelos seus críticos. Eis algo do Anarquismo, ideário complexo e rol de práticas, as mais variadas, de essência libertária, socialista e revolucionária que não poucos creem apenas um curioso acontecimento histórico, cujo alvorecer se dá na segunda metade do século XIX, alcançando o apogeu na Espanha do século XX, quando enfrenta a pesada bota dos fascismos e tem seu (dizem), fim.

As críticas feitas a esse conjunto de ideias e práticas que muitos reúnem sob o nome Anarquismo vão desde a sua suposta incoerência (o anarquismo seria um conjunto desconexo de ideias e ações, que inclusive por sua falta de unidade não teria logrado sobreviver), até acusações de não passar de uma ideologia pequeno-burguesa (assim pensavam, aliás, os bolcheviques na Rússia); dos anarquistas dizem que são violentos, incapazes de organização, ingênuos, sonhadores; os anarquistas e as anarquistas seriam, assim, meros românticos e meras românticas, sem possibilidade de fazer concretas as suas aspirações, em suma – curiosos e exóticos, mas terrivelmente equivocados.

Ocorre que os anarquistas aqui continuam a estar, resistindo6, e existem com a mesma natureza asselvajada que há mais de século lhe tornam atraentes para uns e absurdos ou assustadores para outros, sempre avessos à doxa, encarnando-se em movimentos sociais, utilizando-se das redes sociais, das ruas, das okupas, dos espaços urbanos, aqui e ali fomentando ações diretas, despertando a imediata reação do Estado e seu braço armado. Há quem veja tintas anarquistas nos black blocs, nos zapatistas chiapanecos, nas jornadas de 2013 no Brasil: difícil delimitar um corpo para chamarmos de anarquista! Contudo, não será preciso compreender algo dessa natureza pouco afeita a classificações, para que se apreenda o

6 Cumpre dizer que o termo “resistência” não é usado neste texto com a noção que lhe dá o senso comum, de

um “ir contra”, mas antes, trata-se de movimentos junto dos poderes hegemônicos, um correr abaixo, dentro, saltando, acima, adiantando-se ou atrasando-se em relação às estratégias desses poderes, nunca um “contra”, mas uma esperteza visível.

(36)

fenômeno em seus liames políticos, sociais, culturais e históricos? Haveria uma forma de se dizer o que é o Anarquismo, e o que ele não é?

George Woodcock nos dá valiosa senda quando diz:

[...] as próprias características da atitude libertária – a rejeição ao dogma, a deliberada fuga a sistemas teóricos rígidos e, acima de tudo, a ênfase que dá à total liberdade de escolha, à primazia do julgamento individual – criam imediatamente a possibilidade de uma imensa variedade de pontos de vista, inconcebíveis num sistema rigorosamente dogmático. Na verdade, o anarquismo é a um só tempo diversificado e inconstante [...] um fio de água filtrando-se através do solo poroso – formando aqui uma corrente subterrânea, ali um poço turbulento, escorrendo pelas fendas, desaparecendo de vista para surgir onde as rachaduras da estrutura social possam lhe oferecer uma oportunidade de fluir (WOODCOCK, 2002:16-17).

Ora, essa concepção deixa clara a impossibilidade de se erigir o Anarquismo enquanto sistema dogmático, e, a nosso ver, também aponta para a riqueza justamente dessa fluidez [asselvajada] das ideias e práticas anarquistas, o que lhe permitiu sobreviver, desde seu alvorecer em meados do século XIX até os dias de hoje, enquanto outros movimentos, “bem mais poderosos, mas com menor capacidade de adaptação, desapareceram totalmente” (WOODCOCK, idem, idem). Por sua vez, Edson Passetti afirma que:

É impossível definir o que é anarquismo. Ele é um fluxo de singularidades que coexistem. Por vezes, pretende-se afirmar que ele se ordena com base em relações de afinidades [...] Se as singularidades são redesenhadas por meio das semelhanças fazendo aparecer o perigo iminente da força hegemônica, diante de tal situação justificada pelas contingências da história [...] o próprio movimento se pulveriza, negando a pretensa unificação por meio das afinidades. (PASSETTI, 2000)

Cremos que o autor acima citado foi feliz ao negar ao Anarquismo uma definição e falar da reação do anarquismo diante de qualquer forma de hegemonização, reação que é pulverizar-se; e acrescentaríamos a essa concepção de fluxo de singularidades a noção de feixes de forças, que se conectam a esses fluxos de singularidades [coexistentes e coetâneos], podendo emergir por meio das frestas que se hão abertas no tecido sócio-político (e cultural, sexual, artístico... da sociedade), conexões cambiantes e intermitentes entre fluxos [de singularidades] e linhas [de forças] cujo objetivo, no caso, seria a busca do socialismo

Referências

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