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Experiência literária: uma abordagem a partir da hermenêutica gadameriana

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

LINHA DE PESQUISA: TEORIAS PEDAGÓGICAS E DIMENSÕES ÉTICAS E POLÍTICAS DA EDUCAÇÃO

EXPERIÊNCIA LITERÁRIA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA

HERMENÊUTICA GADAMERIANA

MARIA HELENA PAVELACKI OLIVEIRA

Ijuí – RS 2015

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MARIA HELENA PAVELACKI OLIVEIRA

EXPERIÊNCIA LITERÁRIA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA

HERMENÊUTICA GADAMERIANA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de Doutorado em Educação.

Orientador: Prof. Dr. José Pedro Boufleuer

Ijuí – RS 2015

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, em especial à Linha de Pesquisa Teorias pedagógicas e dimensões éticas e políticas da educação por acolherem o meu projeto, que ora se apresenta em forma de tese.

À solidária e responsável orientação do Professor Doutor José Pedro Boufleuer.

Ao Instituto Federal Farroupilha – Campus São Borja, pela dispensa das atividades docentes, que me proporcionou o tempo necessário para uma pesquisa fecunda e voltada para nosso maior interesse: a formação de nossos alunos.

À minha família: ao Valdir, pela compreensão e apoio ao meu trabalho; à Graciela, pelo incentivo; à Lia e à Isaura, por terem enriquecido a nossa vida com a vinda do Vítor Hugo e da Isabel.

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Esta é a verdade: a vida começa quando a gente compreende que ela não dura muito.

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RESUMO

A tese investiga os pressupostos necessários à compreensão de um texto, bem como as concepções de linguagem subjacentes às atividades de interpretação, vislumbrando a possibilidade de uma prática pedagógica balizada por um paradigma hermenêutico. Recorrendo à hermenêutica gadameriana, investiga a questão da compreensão a partir da reflexão sobre a linguagem enquanto médium constituinte do modo humano de ser no mundo. À luz desse pressuposto é feito um levantamento das categorias básicas da hermenêutica filosófica de Gadamer, as quais servem de embasamento para reflexões sobre a linguagem e, mais precisamente, sobre a linguagem literária. A abordagem teórica envolve, além da própria perspectiva filosófica central de Gadamer, a pesquisa de autores que dialogam com o referido autor. Busca responder como se dá a compreensão quando o compreender deixa de ser visto como procedimento para ser analisado como modo de ser. No desenvolvimento desta pesquisa a interpretação de textos é situada à luz do papel da linguagem na constituição da vida humana e no estabelecimento de uma tradição, destacando elementos constitutivos do cânone literário brasileiro, ao modo de uma crítica. Para demonstrar a fecundidade da hermenêutica gadameriana, esta é tomada como balizadora para a leitura de um texto literário, numa perspectiva concriativa que busca interagir com o mesmo, fazendo uma leitura, dentre as múltiplas possibilidades existentes que se manifestam no jogo da linguagem literária. Investiga como a compreensão hermenêutica pode operar como referencial crítico para a análise das práticas de leitura vigentes no âmbito das salas de aula, oferecendo, a partir da hermenêutica, indicativos de redimensionamento da forma pedagógica de trabalhar com textos literários. Questiona o que se espera que a leitura produza e o que produz a obra literária no sujeito leitor, esperando que a literatura seja vista e proposta como uma experiência, que possibilita a fruição e, com isso, o engrandecimento do leitor.

Palavras-chave: Hermenêutica Filosófica. Linguagem. Literatura. Compreensão.

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ABSTRACT

This work investigates the premises necessary to understand a text, as well as the conceptions about language which are underlying the activities of interpretation, seeking the possibility for a pedagogical practice guided by a hermeneutical paradigm. Using Gadamer‘s hermeneutics, it investigates the problem of the comprehension from a reflection about language as a means which constitutes the way humans act in the world. Based on this premise, it is carried out a study about the basic categories of Gadamer‘s philosophic hermeneutics, which will be the basis for the reflections about language and, more precisely, about the literary language. The theoretical approach involves, besides Gadamer‘s central philosophic perspective itself, an investigation in the work of other researchers who dialogue with that author. This work seeks to answer how comprehension happens when the act of understanding ceases to be a procedure to be analyzed as a way of being. In developing this research, under the form of a review, text interpretation is considered in the light of the language‘s role in the constitution of the human life and in the establishment of a tradition, highlighting the constitutive elements of Brazilian literary canon. In order to demonstrate the fecundity of Gadamer‘s hermeneutic, it is taken as the guide for reading a literary text, in a creative perspective that seeks to interact with this one, carrying out the reading, among the multiple existing possibilities in the game of the literary language. This work also investigates how the hermeneutic comprehension may operate as a critic referential for the analysis of the reading practices present in classroom contexts, offering, from the hermeneutics, indications to give new dimensions for the pedagogical ways of working with literary texts. It questions what is expected from literature to produce and what the literary work produces on the subject-reader, hopping that literature is seen and proposed as an experience which allows the fruition and, with that, the aggrandizement of the reader.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

1 A LITERATURA NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÂNONE ... 15

2 LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM GADAMER ... 27

2.1 LINGUAGEM E HORIZONTE EXISTENCIAL, SEGUNDO GADAMER ... 27

2.2 OS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DA EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM GADAMER ... 36 2.2.1 Autoridade e tradição ... 38 2.2.2 Fusão de Horizontes ... 41 2.2.3 Círculo Hermenêutico ... 42 2.2.4 História Efeitual ... 45 2.2.5 Sentido de Pertença ... 47 2.2.6 Aplicação ... 49

2.2.7 A Primazia Hermenêutica da Pergunta ... 50

2.2.8 A Abertura ao Diálogo ... 51

2.3 A EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA E A OBRA LITERÁRIA ... 55

2.3.1 Linguagem e Sentido ... 57

2.3.2 Arte e Jogo ... 62

3 A LEITURA LITERÁRIA E A CONCRIATIVIDADE DE SENTIDOS ... 72

3.1 O NECESSÁRIO DIÁLOGO ENTRE O LEITOR E A OBRA ... 72

3.2 INTERMEZZO: UMA LEITURA CONCRIATIVA DE A FACE DO ABISMO ... 77

4 FORMAÇÃO E EXPERIÊNCIA COM O TEXTO LITERÁRIO ... 93

4.1 ABERTURA À EXPERIÊNCIA ... 95

4.2 A EXPERIÊNCIA DA LEITURA ... 97

4.3 A LEITURA E A PRODUÇÃO DE SENTIDO DE MUNDO ... 100

4.4 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E FORMAÇÃO ... 102

4.5 FORMAÇÃO COMO TRADUÇÃO DO CONHECIMENTO ... 110

4.6 O CARÁTER FORMATIVO SUBJACENTE À AÇÃO EDUCATIVA ... 113

CONCLUSÃO ... 120

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INTRODUÇÃO

Motivado pela pergunta de como são conduzidas as atividades de compreensão de textos literários nas aulas de Português e de Literatura Brasileira, o presente trabalho, recorrendo à hermenêutica gadameriana, investiga a questão da compreensão à luz da reflexão sobre a linguagem enquanto medium constituinte do modo humano de ser no mundo.

Esta pesquisa é pautada na investigação de quais os pressupostos necessários para a compreensão do texto, bem como as concepções de linguagem subjacentes às atividades de interpretação, principalmente as veiculadas pelos professores de Português e Literatura do Ensino Básico, vislumbrando a possibilidade de uma prática pedagógica balizada por um paradigma hermenêutico.

Justifica-se a relevância desta pesquisa pelo fato de que existe, por um lado, uma cobrança generalizada da sociedade e, principalmente das universidades, em relação aos alunos que ingressam nos cursos superiores, quanto à constatação de que esses apresentam sérias dificuldades em interpretar e produzir textos. Por outro, espera-se da escola de educação básica que a mesma dê condições para que o aluno, ao concluir e ensino médio, seja capaz, conforme garantia legal expressa nos Parâmetros Curriculares Nacionais, no que se refere a Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, de:

• compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação;

• confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas manifestações específicas;

• analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização e estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção;

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• compreender e usar a Língua Portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade (PCNs, p. 95).

Se um grande número dos concluintes da educação básica não têm desenvolvido as habilidades destacadas, podemos inferir que a escola não está cumprindo sua função social, de garantia dos direitos mínimos do aluno, expressos na legislação, considerando que fazemos parte de uma sociedade democrática, em que a ―política da igualdade se traduz pela compreensão e respeito ao Estado de Direito e a seus princípios constitutivos abrigados na Constituição: o sistema federativo e o regime republicano e democrático‖ (PCNs, p. 64). A atribuição dessa dívida da escola, ou da sociedade, em relação à formação dos alunos pode ser confirmada pelo estudo feito por Claudio Boeira Garcia (2009), que diz: ―A educação e a instrução pública têm a ver com a política republicana no sentido preciso de que cabe aos governos, aos membros de uma comunidade política, aos pais, aos educadores e às instituições escolares a responsabilidade de acolher e de preparar suas novas gerações‖ (p. 199). Esta escola que ao mesmo tempo oferece as alternativas de inserção e, sorrateiramente, sonega ou restringe as possibilidades de formação, não formando plenamente seu aluno, tem muito a ser criticada.

É justamente o porquê desse despreparo das novas gerações, em relação ao tema referido que queremos investigar. Com isso, nossa investigação se dá por motivos oriundos da nossa atividade docente e é pela motivação das perguntas que nos surgem que estabelecemos o tema e o objeto da mesma.

Daí surge a hipótese de que a experiência do diálogo provocado pelo texto literário pode ser tomada como base para uma relação dialogal em sala de aula, problematizando a concepção de linguagem veiculada pelos documentos oficiais, programas de ensino e, principalmente, pelos professores. Podemos questionar a concepção, vigente na maioria das vezes, com o primeiro tópico das habilidades que destacamos anteriormente: ―compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação‖. Ao sugerir que a linguagem é somente um ―meio de organização‖, a própria legislação está restringindo as possibilidades de compreensão da mesma. Partindo dessa concepção, o professor, ao trabalhar o texto em sala de aula, vai pressupor que o mesmo traduz o pensamento do autor, pois a ideia deriva de um conceito de texto, e

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de linguagem, visto como produto, ou como uma unidade de sentido linguístico, em que o emissor transmite ao receptor um conteúdo, cujo sentido o leitor deve apreender. A partir da análise dos processos básicos da experiência estética, considerada no contexto da comunicação literária, é possível produzir uma proposta de mediação pedagógica que corresponde à complexidade do fenômeno literário que contribua para a experiência estético-literária do estudante.

Baseados em nossa experiência, podemos dizer que a linguagem vista como instrumento tem sido, na maioria das vezes, o objetivo das aulas de leitura, e o aluno, confrontando-se com o texto, comporta-se como se tal fosse uma fonte, com um sentido único, derivado do conteúdo apresentado pelo professor, que de alguma forma sabe o verdadeiro sentido de cada texto. Isso está relacionado com a concepção de linguagem que se tem quando se ensina Literatura ou Língua Portuguesa, pois como bem salientou João Wanderley Geraldi (2008, p. 40):

Antes de qualquer consideração específica sobre a atividade de sala de aula, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados em sala de aula.

Para esclarecer, esse autor aponta, alertando para os riscos de generalização, três concepções de linguagem: a linguagem é a expressão do pensamento; a linguagem é instrumento de comunicação e a linguagem é uma forma de interação. Entendemos que o problema advém de que, na prática, opta-se, geralmente pelas duas primeiras concepções apontadas pelo autor. A terceira concepção, que simplificadamente está subentendida no tópico dos PCNs que propõe ―analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos...‖ quando é trabalhada, ainda o é de uma forma muito superficial. Entendemos que essa última concepção deveria ser a base para os estudos de linguagem, uma vez que aqui é vista como um lugar de interação humana. A essa concepção de linguagem corresponde uma concepção de saber, descrita por Gauthier como aquela que considera a argumentação como lugar do saber que ―pode ser definido como uma atividade discursiva, por meio da qual o sujeito tenta validar uma proposição ou uma ação‖ (2006, p. 334).

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Considerando que existe uma orientação para a prática pedagógica de valorização dos sujeitos envolvidos no processo educativo, a distância existente entre o discurso pedagógico oficial para a formação de leitores e as formas de operacionalização do ensino da leitura é um fato que não pode ser negligenciado. Sendo a ação educativa escolar ―um fazer intencional‖ (BOUFLEUER, 1997, p. 10), a exigência de um compromisso do educador na mediação que estabelece com seus alunos deve ser assumida como competência primeira desse educador. A partir da última concepção descrita é que queremos refletir e, de alguma forma, ampliar a noção de linguagem aí expressa, tendo por base, principalmente, o pensamento de Gadamer, que tem a percepção de linguagem como fundante de ser humano, conforme explicitaremos no referencial teórico.

Conduzido por essa linha de reflexão que compreende a linguagem como acontecimento humano primeiro, fundante de tudo o que possa ser considerado humano, Boufleuer (2013, p. 80-81) afirma:

É certo que a linguagem sempre teve lugar destacado no âmbito da filosofia. Mas nem por isso a ela se atribuía a centralidade que atualmente assume nesse campo de reflexão. Ao longo da tradição do pensamento incumbiam à linguagem funções num plano derivado, geralmente de caráter instrumental, como para designar isso ou para simbolizar aquilo, sendo vista, assim, capaz de transmitir ou de expressar algo do mundo humano que se acreditava existir antes dela. Esse papel secundário da linguagem é agora repensado para que ela possa aparecer em todo o seu potencial constituinte do modo humano de ser.

O fato de embasarmos nossa reflexão no pensamento de Gadamer não se deu por acaso, pois como diz Ernildo Stein (2004, p. 123):

Na filosofia não se escolhe um autor sem, de algum modo, já estar iniciado nele. Em outras palavras, é preciso buscar no autor, o que, de algum modo, já se encontrou. Isso quer dizer que, no fundo, para filosofar de verdade, é preciso já estar filosofando.

Esse ―já estar iniciado nele‖ vem dos nossos estudos realizados na área da Antropologia, principalmente de autores como Clifford Gertz, James Clifford (2002) e Roberto Cardoso de Oliveira (1988), de onde, agora, retomamos a base teórica da Antropologia Interpretativa. Base esta que se inspira na tradição filosófica denominada hermenêutica, tendo em Geertz seu principal representante. É assim que pretendemos que o paradigma hermenêutico seja também a base da nossa

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investigação, uma vez que estabelece um diálogo com a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, autor que constituirá o suporte teórico de nossa pesquisa.

Segundo Grondin (2012), no sentido mais restrito e mais usual do termo, a hermenêutica serve atualmente para caracterizar o pensamento de autores como Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur, que desenvolveram uma ―filosofia universal da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e linguística de nossa experiência de mundo‖ (p. 11).

Para Regina Zilberman, Gadamer:

[…] ofereceu ao pensamento alemão a possibilidade de uma reflexão filosófica que, prosseguindo as investigações de Schleiermacher e Dilthey no século XIX, Heidegger, no século XX, renova o estatuto da hermenêutica e possibilita a (re)visão da história sem ter de percorrer a trilha, talvez já demais batida, do marxismo (ZILBERMAN, 1989, p. 11-12).

Considerando também que:

Gadamer nos deu, com sua hermenêutica filosófica, uma lição nova e definitiva: uma coisa é estabelecer uma práxis de interpretação opaca como princípio, e outra coisa bem diferente é inserir a interpretação num contexto - ou de caráter existencial, ou com as características do acontecer da tradição na história do ser - em que interpretar permite ser compreendido progressivamente como uma autocompreensão de quem interpreta (STEIN, 2013, p. 01).

Estar situado no paradigma hermenêutico filosófico para, dessa forma, tentar compreendê-lo apresenta-se como desafio ao investigador, que ao investigar também questiona sua existência. Esta hermenêutica aponta para a limitação existencial e mostra que todo conhecimento é uma reinterpretação da tradição.

Apresentamos esse referencial como possibilidade de uma revisão das práticas pedagógicas em vista de uma educação que cumpra o seu papel social a que está submetida. Nessa perspectiva pedagógica, o compromisso com as novas gerações se coloca em termos de responsabilidade. Como já escreveu Mario Osorio Marques: ―[...] necessita fundar-se a educação no mundo dos homens que ouvem uns aos outros, postos à escuta das vozes que o interpelam‖ (MARQUES, 1990, p. 163). Esta pedagogia reconhece a interpelação como ato de fala por excelência. Com base nesse referencial pensamos a educação como experiência discursiva.

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Gadamer afirma que todo enunciado é, de alguma forma, a resposta para uma pergunta e toda pergunta tem uma motivação. Neste sentido é que se reveste de importância o investigador, que vai romper com os preconceitos herdados presentes no pensamento e conhecimento. O que caracteriza o investigador é a capacidade de ruptura, o fazer sempre novas perguntas, gerando novos enunciados.

Partimos do que o próprio Gadamer chama de ―virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem‖, porque para esse autor a linguagem é encarada como mediação da experiência hermenêutica. A linguagem destaca-se como primordial, porque ela é o meio em que se realizam o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa em questão. Para Gadamer, ―compreender o que alguém diz é pôr-se em acordo na linguagem‖ (2008, p. 497), visto que quando se compreende não se reproduz as vivências do outro.

Assumimos desde já a necessidade de pensar a educação ancorada no paradigma da linguagem e reconhecemos que a formação baseada nesse tipo de racionalidade vai além da informação, considerando que para potencializar uma prática humanizadora deve-se levar em conta o funcionamento do círculo hermenêutico, que apresenta a possibilidade de um conhecimento mais originário. A questão é estar dentro do círculo de um modo adequado, adquirindo consciência de nossos preconceitos desconhecidos, na tentativa de responder às indagações que foram surgindo no decorrer das nossas atividades no ensino da literatura.

Estruturamos nossa pesquisa partindo do entendimento de que a linguagem é fator constitutivo da condição humana. À luz desse pressuposto faremos um levantamento das categorias básicas da hermenêutica filosófica de Gadamer, as quais servirão de embasamento para nossas reflexões sobre a linguagem e, mais precisamente, sobre a linguagem literária.

Para desenvolver esta tese procuramos, no primeiro capítulo, situar a interpretação de textos à luz do papel da linguagem na constituição da vida humana e no estabelecimento de uma tradição, destacando alguns elementos constitutivos do cânone literário brasileiro, ao modo de uma crítica. Tal procedimento se faz necessário para demonstrar que uma prática pedagógica limitada pelas propostas correntes nos currículos da Educação Básica, que, na maioria das vezes, ressaltam a periodização das escolas literárias, autores e obras, corre o risco de produzir uma distorção de valores e, em vez de aproximar o leitor do texto literário pode afastá-lo definitivamente, pois impede o livre fluir da linguagem que se tornou clássica.

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Recorrendo à hermenêutica gadameriana, e valendo-nos da própria experiência como professora de Literatura, destacamos a necessidade de superação da ideia de linguagem como simples instrumento de comunicação, averiguando e ressaltando qual a essência da linguagem e, assim, a essência da linguagem literária. Uma concepção de ―linguagem como forma de interação‖ permitirá estabelecer novas práticas de abordagem teórica na leitura e interpretação de textos literários. É a partir dessa concepção que será construída a reflexão e, de alguma forma, ampliada a noção de linguagem que se expressa nos textos literários.

A fim de circunscrever esta investigação sobre a linguagem literária no campo da reflexão filosófica, faz-se necessário admitir que a compreensão é uma faculdade imanente à constituição humana e que ela se dá na linguagem. Por isso, no segundo capítulo, faremos uma abordagem teórica destacando o papel da linguagem na constituição do ser humano, entendendo a linguagem como tradição. Centramos esforços no sentido de aprofundar a investigação de como se deu a virada linguística e de como a linguagem passa a ser entendida como meio da experiência hermenêutica. Aqui ressaltamos as categorias da hermenêutica gadameriana que contribuem para esse entendimento, tais como a verdade manifestada na obra de arte, destacando como Gadamer descreve a ontologia da obra de arte e seu significado hermenêutico e, nesse contexto, a posição limite da literatura. Buscamos responder nesse capítulo como se dá a compreensão; quando o compreender deixa de ser visto como procedimento para ser analisado como modo de ser; por que compreendemos; qual o papel da história, da tradição e dos preconceitos no momento da compreensão.

No terceiro capítulo atentamos para a fecundidade da hermenêutica gadameriana, tomando-a como balizadora para a leitura de um texto literário. Trata-se do romance A face do abismo, de Charles Kiefer, cuja história aborda o tema da fundação da cidade ficcional de San Martin, surgida sobre uma exterminada aldeia guarani. Nesse texto, a vinda dos imigrantes alemães é descrita em toda sua dramaticidade. Ainda se somam questões como o processo de destruição física e cultural do indígena e a descaracterização dos costumes do meio rural. O enredo do texto, num jogo de metáforas permanentes e cenas narradas a partir de seus personagens, também apontam para um dizer que se apresenta para ser decifrável enquanto apreensão da verdade da obra. Na perspectiva concriativa do texto buscamos interagir com o mesmo, fazendo uma leitura, dentre as múltiplas

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possibilidades existentes, manifesta no jogo da linguagem literária. Numa leitura hermenêutica procuramos também desocultar o aparente para entender as significações ditas pelo não-dito do texto.

Já no quarto capítulo procuramos ver como a compreensão hermenêutica pode operar como referencial crítico para a análise das práticas de leitura vigentes no âmbito das salas de aula, oferecendo, a partir da hermenêutica, indicativos de redimensionamento da forma pedagógica de trabalhar com textos literários. Questionamos o que se espera que a leitura produza e o que produz a obra literária no sujeito leitor. Retomamos a ideia, já sugerida por Gadamer, de que a literatura seja vista e proposta como uma experiência, que possibilita a fruição e, com isso, o engrandecimento do leitor que, entregue à obra, vai ampliar seus horizontes, chegando à fusão de horizontes. Proposto como elemento estruturador da aprendizagem, o texto literário convida à reflexão e ao diálogo, este agora entendido como condição para a existência da educação e não simples meio para sua realização.

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1 A LITERATURA NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÂNONE

“[...] a capacidade de ler, de compreender os escritos, é como uma arte secreta, como um feitiço que nos liberta e nos prende” (Gadamer).

Sendo um de nossos objetivos situar a interpretação de textos à luz do papel da linguagem na constituição da vida humana e no estabelecimento de uma tradição, faremos uma reflexão de como a linguagem literária se manifesta, se conserva e se renova através do cânone literário; e uma abordagem da forma como a literatura brasileira está inserida no contexto da tradição ocidental e de como foi, paulatinamente, constituindo-se com características próprias, tentando demonstrar como a compreensão hermenêutica pode operar como referencial crítico para a análise das práticas de leitura vigentes no âmbito das salas de aula.

Para isso, nesta tese, centraremos esforços no sentido de ressaltar a importância do sentido de pertencimento do intérprete e do texto a uma tradição, enfatizando que não podemos, na hora de compreender, colocarmo-nos diante da realidade como se esta não nos afetasse.

Neste capítulo queremos tratar da literatura enquanto disciplina escolar, quando passa a exercer uma função didática, utilizada no ambiente pedagógico. Aí vemos transformada em objeto pedagógico o que não foi criado para esse fim. Mas não vamos dizer, por isso, que não há lugar para a literatura na escola. Vamos, antes, tecer considerações sobre a metodologia de seu uso, no intuito de apontar a positividade desse espaço como forma de valorizá-lo.

Uma vez que está instituída a necessidade do ensino da literatura como forma de despertar o interesse pela leitura de obras literárias, levantemos a pergunta de que perspectiva teórica se faz esse ensino e busquemos uma metodologia que faça com que as obras sejam bem aceitas e apreciadas. Para Gadamer, o ideal de compreensão seria não interrogar o texto, apontando-lhe questões que possam ser respondidas por seu conteúdo, mas interrogar o próprio leitor, levando a compreendê-lo e a compreender o que lê, em um processo interdependente. Quer dizer, o próprio autor já aponta para uma metodologia para que o texto em si seja valorizado.

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Neste tópico trazemos uma reflexão sobre o potencial expressivo dos textos literários, no sentido de que esses estão situados na história, de forma que a literatura pode ser vista como um fenômeno artístico constitutivo da história do pensamento humano, pois entendemos o literário como parte da tradição. Ao mesmo tempo, com base no nosso referencial teórico, vemos a tradição como o que fica, como discurso aberto a ser reconstruído.

Podemos dizer, com base em nossa experiência docente, que os programas de literatura do Ensino Médio estão baseados, em grande parte, nos textos considerados clássicos, até porque escola e cânone estão estreitamente vinculados entre si. Dada a relevância e a atualidade dos clássicos no contexto escolar, vejamos, a partir da hermenêutica, como os mesmos são tratados. Compreender um clássico é introduzir-se no acontecer da tradição e da verdade que se apresenta. ―A arte dos tempos mais antigos só alcança-nos pela passagem do filtro do tempo e da tradição conservada viva, transformando-se de modo vivo‖ (GADAMER, 1985, p. 79). Dar continuidade à tradição é revitalizá-la com novos sentidos, não meramente conservá-la como um legado entendido ao modo de dogmas recebidos. Não se trata, portanto, de produzir o ato mental passado que deu origem ao escrito. O esforço da compreensão deve ser pensado como um retroceder que penetra num acontecimento da tradição, pois na compreensão acontece uma mediação de passado e presente. Ainda devemos considerar que ―uma obra com sentido é aquela que continua ecoando em cada um de nós‖ (ROHDEN, 2008, p. 52). Tal mediação não é exclusiva nem especial do clássico. Nesse caso, simplesmente, sai à luz com especial evidência algo que pertence à essência da tradição.

Na tentativa de compreender a relevância do cânone da literatura brasileira é que fazemos uma abordagem de como a literatura é ensinada no Ensino Médio, tendo presente as palavras de Gadamer de que ―o panteão da arte não é uma atualidade atemporal que se revela à consciência estética pura, mas a obra de um espírito histórico que se reúne e se congrega historicamente‖ (2008, p. 149). O professor, ao ensinar o cânone literário aos estudantes, não impõe um culto do passado, mas oferece-lhes a possibilidade de conhecê-lo, para compreender o presente e preparar o futuro, de forma que aí se dê uma verdadeira fusão de horizontes. Como sugere Chris Lawn, ―a ideia de fusão de horizontes1, de alguma

1

No segundo capítulo desta tese faremos uma abordagem do conceito de fusão de horizontes, segundo Gadamer.

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forma, explica a natureza e justifica a existência do cânon filosófico e literário‖ (2010, p. 94). Os textos são considerados canônicos pela sua atualidade, porque têm ainda algo para dizer àqueles que estão no presente.

Na perspectiva de apresentar um melhor entendimento de como o clássico permanece e se renova, Gadamer (1985) traça uma ponte ontológica entre a tradição artística ou, a grande arte do passado, e a arte moderna dizendo: ―parece-me uma oposição falsa dizer-se que há uma arte do passado que se pode desfrutar e uma arte do presente, na qual, através de meios refinados da configuração artística, deve-se ser obrigado a participar‖ (p. 45). Para demonstrar essa oposição observa que na antiguidade clássica o divino era manifesto nas obras de arte, na forma da expressão plástica e configurativa destas. A partir da Idade Média, ―a obra de arte não é mais o divino propriamente dito a que nós veneramos‖ (p. 16). Já não mais era possível ―uma expressão adequada de sua própria verdade, na linguagem formal artística e na linguagem imagética da fala poética‖ (p. 15). A arte passa a ter como contexto justificativo a tarefa de responder por uma ―evidente integração entre comunidade, sociedade, igreja e a autoconsciência do artista criador‖ (p. 16). No século XIX, não mais existia uma comunicação evidente entre os artistas e os homens, ―entre os quais vive e para os quais cria‖ (p. 16). O artista passa, então, a ser um artista somente para arte. Assim, não sendo mais o mensageiro da integração do mundo social, entende que a imagem não é uma contemplação intuitiva ―assim como a contemplação que nossa experiência cotidiana nos dá da natureza‖ (p. 18); e faz, através do impressionismo e, principalmente, do cubismo, a transição de uma arte feita para olhares meramente assimilativos para uma arte que propõe uma nova visualidade que exige um ―trabalho de elaboração ativa‖ (p. 18); por parte do espectador. A esse trabalho de elaboração ativa, que se estabelece entre a obra e o observador, Gadamer chama de jogo.

O jogo, assim, pode ser pensado como uma atividade sem objetivos, mas desejada como tal. Ou seja, o jogo é a autorrepresentação do movimento do jogo. A arte como jogo encarna o exemplo humano mais puro de autonomia do movimento.

Segundo o autor, seria um erro pensar que a unidade da obra depende de um fechamento ―frente aquele que se volta para a obra ou ao que é por ela alcançado‖ (p. 41), pois ler é um ato inconclusivo. A obra aparece sempre que existe uma experiência estética, ―pois lá estava algo que eu julgo que ―entendi‖. Identifico algo como o que foi ou o que é e só essa identidade dá o sentido de obra‖ (p. 42).

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Há um sentido da obra que compreendemos, porém por nossa historicidade isto ocorre sempre de um modo diferente, pois a mediação com o presente é sua condição de possibilidade. ―É justamente a identidade da obra que convida a essa atividade, que não é arbitrária, mas dirigida e adstrita a um certo esquema‖. Porém, ―cada obra deixa como que, para cada um que a assimila, um espaço de jogo2

que ele tem que preencher‖ (p. 43) por conta própria. Gadamer aproxima essa ação à leitura de um texto propondo, então, que essa operação é uma operação intelectual.

Ler, porém, não é soletrar e pronunciar uma palavra após a outra mas, principalmente, realizar o movimento hermenêutico constante que é comandado pela expectativa do sentido do todo e preenche-se, a partir de cada parte individual, finalmente na elaboração significativa do todo (GADAMER, 1985, p. 45-46).

A experiência do literário é, nesta perspectiva, uma experiência hermenêutica que possibilita a leitura do estético além da palavra mesma, ainda que o leitor não seja um experto em literatura.

No encontro com a obra de arte tem lugar uma experiência de verdade e conhecimento com seu próprio modo de legitimidade que não se deixa limitar pelo âmbito de controle da metodologia científica. Através da experiência a obra de arte passará da categoria de objeto a uma categoria experiencial por parte do sujeito. Vista a partir de tal perspectiva, a obra de arte procede de um modo hermenêutico em duplo sentido, já que interpreta o mundo e ao mesmo tempo o expressa de um modo particular que revela seu sentido. No reconhecimento que propicia a obra de arte emerge o que já conhecíamos e que permite apreender sua essência.

A verdade da arte é uma verdade relacional que tem lugar de maneira dialógica, trata-se do acontecimento a que pertencemos, trata-se de um conhecimento que é reconhecimento, que nos confronta com nós mesmos transformando-nos. O conhecimento da verdade da arte implica um autoconhecimento, uma autocompreensão e, com isso, crescimento de nosso ser, pois se a obra nos sai ao encontro, em diálogo renovado com nossa interpretação, será então, portadora de verdade, historicamente distinta de todas as gerações passadas. A atualidade da obra para o presente se dá, pelo fato de que diz algo a cada um, como se o dissera expressamente a ele, como algo presente e simultâneo.

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Minimizada a distinção entre arte do passado e arte contemporânea, pelo fato de toda obra de arte impor a mesma tarefa de leitura ao intérprete, falamos de arte para nos referir tanto à arte antiga como à arte moderna, à arte de todos os tempos.

Apesar de estar na base da formação da maioria dos professores e constituir a maior parte de suas experiências, a questão da tradição literária e da sequência histórica, vista muitas vezes como problemática, é apontada como causa do enrijecimento das práticas de ensino. De outra parte, essa tradição literária também pode ser encarada positivamente, no sentido de valorização das velhas leituras, não simplesmente como uma forma de recuperar a cultura humanística, mas de estabelecer uma relação com o passado, articulando-o com o presente. ―A isso corresponde uma co-pertença da obra ao nosso mundo‖ (GADAMER, 2008, p. 384). Apontamos a possibilidade de percorrer a história da literatura pautada nos princípios da hermenêutica, porque "as hermenêuticas filosóficas têm dimensões práticas, pois podem modificar atitudes e práticas e podem oferecer novas perspectivas sobre atividades e práticas até agora não examinadas e consideradas como líquidas e certas" (LAWN, 2010, p. 147). Além dos valores do passado, estaremos trabalhando com novas possibilidades de interpretação.

Com relação ao cânone em pauta, tecemos considerações pessoais, com base em nossa experiência como professora de Literatura no Ensino Médio, bem como a partir do nosso referencial teórico da hermenêutica filosófica. Apoiamos nosso discurso nas opiniões do crítico literário Antonio Candido e do professor Alfredo Bosi, visto que ambos tiveram uma participação importante na consolidação de um cânone literário brasileiro. Destacamos, assim, as principais influências que teve e exerceu a literatura, constituindo-se para nós uma questão teórica que precisa ser ampliada e, principalmente, compreendida.

Considerando a influência do livro didático nas práticas escolares, podemos dizer que, de uma forma geral os autores desses livros partem do conceito de literatura como a arte da palavra. Os mesmos fazem uma série de relações da literatura com a sociedade, com a imaginação, com o prazer. Também conectam à literatura a história da literatura, tendo como referência o estudo dos chamados clássicos.

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Antonio Candido, ao analisar as obras e autores, propõe um enfoque dialético, em que elementos da análise formal da obra literária possam se correlacionar com a ambientação histórica e sociológica, destacando que não há um trânsito imediato de uma a outra, pois isso caracterizaria uma relação determinista entre contexto social e obra de arte. Ele, porém, leva em conta a historicidade, ou seja, avalia mais a qualidade do texto literário na história do que a sequência cronológica das obras, característico do tradicional enfoque historicista. Para o autor, a análise da obra não pode desprezar nem o texto nem o contexto. A literariedade dos textos estará não mais no aspecto imanentista de cada obra, mas, sim, em sua relação de existência na sociedade. Seus aspectos de produção, recepção e

tradição3 farão da obra um objeto existente em um sistema, articulado por uma tríade dinâmica e histórica: autor-obra-público.

História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, está entre as

sínteses de história da literatura mais conhecidas dos professores de literatura. Publicada pela primeira vez em 1970, a obra teve, em 2010, a 46ª edição, tendo servido de referência para a formação de algumas gerações de professores de literatura. Bosi também organiza essa obra sob a perspectiva da história.

Tanto os livros didáticos, quanto os teóricos, apresentam certa homogeneidade, o que significa o seguimento de determinados critérios comuns. Nos autores referidos há a preocupação de apresentar as obras fundamentais da literatura nacional, aquelas que representam a identidade literária da nação brasileira, demonstrando o cuidado, o respeito e a acuidade pela tradição literária.

Na perspectiva hermenêutica, a obra literária não é um acontecimento que ficou no passado. Ela dialoga com a cultura que a recepciona. Essa cultura produz novos objetos e estes alteram a tradição, permitindo-lhe outra leitura, assim como a tradição fornece elementos para a compreensão do contemporâneo. Nessa perspectiva a obra literária não é encarada como um objeto que desperta a curiosidade, mas como possibilidade de interlocução.

Uma vez que houver, por parte do professor, o entendimento de que a literatura deve ser percebida como via de acesso à experiência humana, até mesmo as listas de livros sugeridas pelas universidades como leituras obrigatórias para o vestibular, consideradas muitas vezes de caráter autoritário, no sentido de que

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Também a Estética da Recepção pretende abordar a arte enquanto processo dinâmico entre autor, público e obra.

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simplesmente preservam o cânone, passam a ser possibilidade de desacomodação para os professores. Como essas leituras não ocorrem em sala de aula, elas se apresentam como oportunidade, para os alunos, de acesso à experiência estética, já que a experiência da leitura literária é de natureza individual. Nessa situação, a intervenção do professor para provocar a relação entre texto e leitor parte de critérios de mediação que se inferem dessa dupla condição, estética e pedagógica, do ensino da literatura. Cabe à escola e aos educadores propiciar ou criar atividades que permitam ao aluno o desenvolvimento dessa experiência estética. Com isso temos uma proposta de mediação pedagógica para a experiência estético-literária a partir da inferência de conceitos estética e pedagogicamente coerentes.

Para Jauss (1974) ―A obra literária não é um objeto independente que proporciona a mesma experiência aos espectadores de todas as épocas. Nem é um monumento que nos revela o seu ser permanente em forma de monólogo‖ (p. 41). A estética recepcional surge como solução para o problema de como compreender a sequência histórica de obras literárias no conjunto da história da literatura. Para esse autor, a historicidade da literatura não depende da coerência de alguns fatos literários que possa ver-se retrospectivamente, mas do contato vivo da obra com seus leitores. Ele entende que, em momentos de ruptura, determinadas obras, não aceitas quando de sua divulgação imediata, podem aos poucos criar um público próprio e, assim, alterar o modo de ver o cânone literário. Os leitores constroem os sentidos das obras condicionados tanto pelos horizontes internos das obras quanto pelos contextos históricos dos próprios leitores, ou seja, a partir do seu horizonte de expectativas. O horizonte de expectativas é uma característica fundamental de todas as situações interpretativas, pois quando interpretamos, possuímos já um conjunto de crenças, de princípios assimilados e ideias aprendidas que limitam o ato interpretativo; quando lemos um texto literário, o nosso horizonte de expectativas atua como a nossa memória literária feita de todas as leituras e aquisições culturais realizadas desde sempre.

A Estética da Recepção propõe um paradigma da investigação literária e discursiva que considera as obras de arte em seus aspectos produtivos, receptivos e comunicativos. Jauss declara que adota a crítica do objetivismo histórico promovida por Gadamer, que descreveu o princípio da história da recepção, e busca a realidade histórica no próprio ato de entendimento, como uma aplicação da lógica da pergunta e da resposta à tradição histórica. A pergunta histórica não pode existir

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separada, tem que unir-se com a pergunta que a tradição forma para nós. Jauss, seguindo Gadamer, defende a impossibilidade de reconstrução do horizonte histórico original, pois este sempre será abarcado pelo horizonte presente. Sempre haverá, portanto, uma fusão de horizontes, outro conceito de Gadamer, que será recuperado por Jauss, considerado o fundador da Estética da Recepção4.

No momento da leitura de uma obra clássica, o horizonte de expectativas do leitor estará em constante diálogo com o horizonte de expectativa da obra.

Nessa perspectiva hermenêutica a literatura é inconcebível sem o leitor, cuja atividade é imprescindível para a significação das obras, a fim de efetuar, com isso, a referência ao mundo presentificado pelo texto, inclusive do clássico, e apropriar-se do sentido aberto pelo mesmo. Nas palavras de Gadamer (2008, p. 380-81):

[…] o clássico é uma verdadeira categoria histórica por ser mais do que o conceito de uma época ou o conceito histórico de um estilo, sem que por isso pretenda ser uma ideia de valor supra-histórico. Não designa uma qualidade que deva ser atribuída a determinados fenômenos históricos, mas, sim, um modo característico do próprio ser histórico, a realização histórica da conservação que, numa confirmação constantemente renovada torna possível a existência de algo verdadeiro.

A literatura clássica, como existência de algo verdadeiro, não é somente um modelo permanente conservado para a posterioridade, mas possui uma tradição cultural viva que se vai transformando conforme as mudanças do gosto. Se as obras da literatura universal seguem querendo dizer algo, ainda que o mundo seja completamente distinto, isto põe em evidência o vínculo essencial entre a literatura, a escrita e a leitura. Quem sabe ler o transmitido por escrito atesta e realiza a pura atualidade do passado, com isso se está dizendo que a tradição escrita, a partir do momento em que se decifra e se lê, é o espírito puro que nos fala como se fora atual, isto porque na compreensão da escrita acontece ―a transformação de algo

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A aula inaugural proferida por Hans Robert Jauss, em 1967, na Universidade de Constança, por motivo da celebração do sexagésimo aniversário de Gerhad Hess, reitor da Universidade de Constança com o título de Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft (traduzido para o português, em 1974, por Ferreira de Brito como: A História Literária como provocação à Ciência Literária), costuma ser referida como ponto de partida da Estética da Recepção (Rezeptionsästhetik). A partir de então se formou a chamada "Escola de Constança", tendo à frente Hans Robert Jauss e reunindo outros nomes como Wolfgang Iser, Hans Neuschäfer, Hans U. Gumbrecht, Karlheinz Stierle e Manfred Fuhrmann (conforme LIMA, em A Folha de São Paulo, 18 de março de 2007. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/inde18032007.shl).

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estranho e morto em um ser absolutamente familiar e coetâneo‖ (GADAMER, 2008, p. 230).

Portanto, pode-se afirmar que o clássico apresenta em sua essência uma postura que se projeta ―frente à crítica histórica, porque seu domínio histórico, o poder vinculante de sua validez que se transmite e se conserva, precede toda reflexão histórica e se mantém nela‖ (GADAMER, 2008. p. 381), estando, potencialmente, carregado de sentido. Questionar o cânone estabelecido significa questionar a totalidade da cultura que o sustenta e o transmite. Daí que a pergunta sobre a formação do cânone inclua uma questão ética, pois postular a validade de determinados textos sobre outros é postular uma ética dos valores que operam nessa situação.

Destacamos, ainda, que pela lógica da recepção as obras têm um caráter atemporal. Essa atemporalidade tem a ver com o tema abordado pela obra literária, visto que o texto tende a perenizar quando trata profundamente a condição humana. Também para Antonio Candido, uma das forças que atuam na formação do sistema literário é a continuidade literária ou a tradição, padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. ―Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização‖ (CANDIDO, 1975, p. 24). O conceito de literatura pressupõe a existência:

[...] de um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é um produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos interatuantes a que se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura, atuando no tempo (CANDIDO, 1973, p. 74).

Uma vez que estamos fazendo essa abordagem a partir da hermenêutica podemos dizer que a relação entre literatura e tradição é circular, pois ao mesmo tempo em que a literatura objetiva expandir nosso horizonte de vida, contribui para o esclarecimento da própria história do pensamento. Assim, literatura e tradição interagem, pois, no fundo, compartilham o mesmo material: a experiência humana e a palavra que a expressa.

O pertencimento a uma tradição, no sentido gadameriano, é pertencimento a uma comunidade potencial, onde cada qual se sabe vivendo no horizonte de seus

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congêneres e se referindo às mesmas coisas de experiência, apesar de que os distintos indivíduos tenham aspectos e perspectivas distintas das mesmas coisas.

Por pertencer a uma tradição, a literatura brasileira tem seu início intimamente atrelado à cultura europeia, mais especificamente à portuguesa, mas com um característico sentimento de apego à terra e a tudo de novo que ela tem. ―À curiosidade geográfica e humana e ao desejo de conquista e domínio correspondem, inicialmente, o deslumbramento diante da paisagem exótica e exuberante, testemunhado pelos cronistas portugueses que escreveram sobre o Brasil‖ (CANDIDO, 2003, p. 11). Assim as origens da nossa literatura prendem-se ao quinhentismo português e ao seiscentismo peninsular.

―Existem obras científicas, que através de sua qualidade literária conquistaram a exigência de ser honradas como obras da arte literária, e de ser contadas entre a literatura universal‖ (GADAMER, 2008, p. 228-29). Exemplificamos a afirmação do autor com A Carta de Pero Vaz de Caminha, o mais antigo documento da história brasileira que, apesar de, originariamente, não ter intenções literárias, passou a ser considerada pelos historiadores como o primeiro texto da literatura brasileira. É que a Carta fala a partir do significado do seu conteúdo, confirmando a ideia gadameriana de que a compreensão se volta para o que a obra de arte nos diz.

Considerando que estamos falando da literatura no espaço formal da escola, lembramos que existe uma orientação para que esta seja assim encarada. Nos PCNs consta a seguinte definição:

Desfrute (fruição): trata-se do aproveitamento satisfatório e prazeroso de obras literárias, musicais ou artísticas, de modo geral bens culturais construídos pelas diferentes linguagens, depreendendo delas seu valor estético. Apreender a representação simbólica das experiências humanas resulta da fruição dos bens culturais (PCNs, 2002, p. 67).

Programas governamentais de aquisição e difusão de livros se destacam na história da leitura no Brasil. Foram privilegiados, nas últimas décadas, além do livro didático, obras de poesia e ficção, a produção dirigida à infância e à juventude, gêneros considerados aptos a motivar uma criança ou um adulto a ler mais e melhor. Percebemos que, independentemente do período em que a obra literária está inserida, a literatura vai registrando a visão de mundo que os homens vão deixando, como uma espécie de testemunho de sua passagem pelo mundo, porque

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em todas as épocas ela se ocupa da intimidade, dos sentimentos, dos afetos e da fantasia dos homens. Para isso é imprescindível que o professor entenda as perguntas, os questionamentos, as reclamações dos alunos, dando respostas que provoquem novas perguntas, tendo claro que ―os preconceitos e opiniões prévias que ocupam a consciência do intérprete não se encontram à sua livre disposição‖ (GADAMER 2008, p. 391). A lógica da pergunta e da resposta ajuda a compreender o diálogo entre o texto e sua época e entre o texto do passado e o leitor do presente. Para gerar uma mudança de perspectiva, uma forma de abertura da reflexão consiste em situar a visão hermenêutica além das listas de livros e de autores, pois não se pode pretender ensinar literatura, nem se pode aprendê-la, a partir de listas de nomes e taxonomias periodizantes, de modo que não é possível a recepção literária se não houver processos de interpretação e leitura das obras mesmas.

É possível que algumas obras, não reconhecidas pelo cânone, logrem tocar a experiência do leitor que está em processo de formação. Com isso assinalamos o caráter sempre imprevisível da seleção de textos; pois, depende na maioria dos casos da subjetividade de cada um, razão pela qual não podemos dizer que um livro é melhor que o outro, já que quem decide isso é o leitor. Há livros que lidos em diferentes períodos de nossa vida nos dizem sempre algo diferente sobre o mundo e sobre nós mesmos. Dito de outra forma, um livro só é verdadeiramente acessível através da própria experiência vivida.

Baseados ainda em nossa experiência, podemos dizer que os textos em geral e, especialmente, o livro de literatura sempre terão espaço na escola e na vida do estudante, dependendo da relação que o professor estabelece com a literatura. E serão encaminhados de maneira conveniente ao ter presente que um dos conceitos que fundamenta a experiência estética é o de fruição da obra de arte pelo receptor. ―Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade‖ (CÂNDIDO, 2004, p. 186). Ainda podemos dizer que, no fazer diário da escola, o cânone ocupa um lugar de destaque, mas que, paulatinamente, outras obras vão sendo inseridas no contexto escolar, fazendo valer aí as prerrogativas da estética da recepção.

O desenvolvimento da competência literária do estudante como um aspecto de sua competência comunicativa requer do professor uma harmonia dos paradigmas teóricos com os didáticos. Para isso é necessário estabelecer relações coerentes entre os conteúdos e a prática pedagógica com o fim de lograr a experiência estético-literária no ato didático.

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Na sequência desta tese faremos uma abordagem dos elementos da hermenêutica filosófica que consideramos significativos para um questionamento aprofundado sobre a pertinência da obra literária no contexto educativo, na perspectiva de aí encontrar subsídios para compreender como se produz o sentido daquilo que se lê. Essa inserção na filosofia se dá tendo claro que ―nós não filosofamos porque possuímos a verdade absoluta, mas porque ela nos falta‖ (GRONDIN, 1999, p. 202). A verdade que nos falta é que nos leva à investigação.

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2 LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM GADAMER

“Morro cheia de assombro por não sentir em mim nem princípio nem fim” (Cecília Meireles).

Entendemos que o estudo do processo de compreensão a partir da perspectiva da hermenêutica filosófica proporciona uma série de considerações de especial relevância para a prática educativa. Disso decorre que precisamos explicitar algumas categorias fundamentais para o entendimento do pensamento de Gadamer, tais como: linguagem, tradição, história, experiência, preconceito, compreensão, interpretação, destacando que ―a linguagem efetiva-se, como diálogo autêntico, quando deixa e produz, em nós, algo imprevisto que nos transforma e nos torna melhores, mais felizes, mais humanos‖ (ROHDEN, 2008, p. 25), gerando o comprometimento dos que se envolvem no diálogo.

Neste capítulo, primeiramente analisaremos o sentido e as implicações desses conceitos da hermenêutica filosófica para, em seguida, examinarmos algumas orientações sobre a experiência hermenêutica e a obra literária.

Considerando o caráter fundante da linguagem na hermenêutica de Gadamer, lançamo-nos neste estudo com o objetivo de perceber como se dá a compreensão do texto. Para isso iniciamos com uma advertência de Gadamer, que diz que ―quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa‖ (2011, p. 358). Mas para que essa disposição advenha, para mostrar-se receptivo, implica apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. Implica o reconhecimento de que somos parte de uma história e que essa história se apresenta para nós como linguagem.

2.1 LINGUAGEM E HORIZONTE EXISTENCIAL, SEGUNDO GADAMER

Em seu texto ―Homem e linguagem‖, Gadamer (2011, p. 173-182) escreve que ―é de Aristóteles a definição clássica do homem como ser vivo que possui logos‖ (p. 173), porém a tradição ocidental entendeu o logos como razão ou pensar, quando ela também e, sobretudo, significa linguagem. Pela linguagem o homem pode comunicar tudo o que pensa e pode pensar o comum.

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Conforme Oliveira (2006), Platão, preocupado em definir as relações sobre o conceito e a palavra que o designa, tenta responder à pergunta: por meio de que nossa expressão adquire significação? Ou, haverá uma relação necessária entre a palavra e seu significado? Disso decorre sua tese de que ―as palavras não imitam propriamente sons, mas apresentam a essência das coisas‖. Por isso a apreensão das ideias se dá pelo olho do espírito, capaz de captar a verdadeira ordem das coisas.

Já Aristóteles desenvolveu estudos noutra direção, na tentativa de proceder a uma análise precisa da estrutura linguística, levando a sério a tarefa de fundamentação do discurso racional. Para isso acentua o caráter obrigatório da mediação linguística para o acesso ao ser, considerando a linguagem como ferramenta do pensamento.

Partindo desta consideração, seria de supor que a linguagem tivesse sempre um lugar privilegiado no pensamento sobre o homem, mas como observa Gadamer, ―a essência da linguagem não constitui o ponto central do pensamento filosófico do Ocidente‖ (2011, p. 174). Pois a visão tradicional via as palavras funcionar como rótulos vinculados a conceitos.

Mesmo com ressalva, Gadamer destaca a fundação da filosofia da linguagem e da ciência da linguagem por Humboldt, que já dizia que a linguagem é que define o homem. Esse destaque nos chama atenção, pois foi preciso que um filósofo do século XX fizesse referência aos estudos de um linguista do século anterior, uma vez que tal autor, na área da linguística e dos estudos de linguagem não era muito lembrado, pois existe uma tendência dentro da linguística em dizer que os estudos de linguagem iniciam com Saussure, com a sua ciência dos signos, e que tem no Curso de Linguística Geral um de seus marcos. Este autor, por meio do termo semiologia, procurou designar a ciência geral dos signos, daí a disseminação da ideia de que a língua é fundamentalmente um instrumento de comunicação.

Para Humboldt a linguagem não é um mero sistema de signos, e, sim, constitutiva da atividade de pensar, isto é, a própria condição de possibilidade dessa atividade. Por isso a linguagem se torna garantia de intersubjetividade e proporciona o entendimento entre os falantes. ―O mundo está-aí para o homem, e esse ‗estar-aí‘ é constituído linguisticamente. É nesse sentido que se deve compreender a famosa frase de Humboldt: toda linguagem é uma visão de mundo‖ (OLIVEIRA, 2006, p.

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236). Observamos assim que as contribuições de Humboldt para o estudo da linguagem no século XIX foram primordiais para o desenvolvimento dos estudos linguísticos no século XX. É dele que vem a noção de que a linguagem não é meio para expor a verdade conhecida; antes disso, ela descobre o que era desconhecido. Com base nessa ideia, Gadamer vai dizer que ―a linguagem não é um dos instrumentos, ao lado do signo e da ferramenta – embora esses dois certamente façam parte da caracterização essencial do homem. A linguagem não é nenhum instrumento, nenhuma ferramenta‖ (2011, p. 176). Por isso, é enfático ao afirmar que ―jamais nos encontramos como consciência diante do mundo para num estado desprovido de linguagem lançarmos mão do instrumental do entendimento‖ (p. 176), pelo contrário, pois em todo conhecimento que temos de nós mesmos e do mundo, sempre já nos encontramos pela nossa própria linguagem. Da mesma forma, reitera que ―em todos os nossos pensamentos e conhecimentos já fomos precedidos pela interpretação do mundo feita pela linguagem‖ (p. 178).

Nosso pensamento habita a linguagem, o que para Gadamer constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar. Assim, é inviável pensar a linguagem fora dela mesma, pensá-la como um objeto, pois não há pensamento sem linguagem, na medida em que todo pensar sobre a linguagem, já foi sempre alcançado pela linguagem. Neste contexto, a linguagem não é um mero instrumento ou um dom que possuímos como homens, mas o meio no qual vivemos desde o começo, como seres sociais, e que mantém aberto o todo no qual existimos. Reforçando tal argumento, enfatiza o fato de a linguagem se constituir como um vínculo entre o homem e o seu mundo vital, análoga ao ar que respiramos, já que ela é, em outras palavras, o meio onde desde o início vivemos, ―a linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos‖ (p.182).

Por isso o entendimento de que ―linguagem não é produto (ergo), mas atividade (energia), na qual se efetiva toda compreensão. Compreensão que não é uma faculdade do humano, mas o próprio modo de ser do ser-aí (Dasein)‖ (FENSTERSEIFER, 2009, p. 246).

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A partir da virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem esta passa a ser vista como aquilo que possibilita a compreensão do indivíduo no mundo, de modo que essa mesma linguagem é necessariamente fruto de um processo de comunicação envolvendo uma relação de intersubjetividade. Isto é, onde antes havia uma relação sujeito - objeto, instaura-se uma relação sujeito - sujeito.

Ao falar da linguagem como medium da experiência hermenêutica, Gadamer afirma que quanto mais autêntica uma conversação, menos ela se encontra sob a direção da vontade de um outro dos interlocutores. O que surgirá de uma conversação ninguém pode saber a priori, pois o acordo ou o seu fracasso, como ele mesmo afirma, ―é um acontecimento que se realizou em nós‖ (2008, p. 497). Neste sentido, como a conversa toma seus rumos próprios, ao invés dos interlocutores dirigirem a conversação eles é que são os dirigidos.

Foi a ideia de acordo que permitiu a Gadamer introduzir a linguagem dentro do âmbito de sua concepção hermenêutica, já que o acordo sobre uma questão, ―que deve surgir na conversação, significa necessariamente que os interlocutores começam por elaborar uma linguagem em comum‖ (2008, p. 493). É em função da linguagem que é possível a convivência entre os homens através de uma experiência do que é comum a todos. Diz o autor:

É somente pela capacidade de se comunicar que unicamente os homens podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles conceitos comuns, pelos quais se torna possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição política, de uma convivência social articulada na divisão do trabalho. Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo dotado de linguagem (2011, p. 173-174).

Essa citação é uma defesa da centralidade da linguagem como eixo definidor da própria condição humana.

Todo pensamento sobre a linguagem, toda realização, conhecimento e ato humano só podem ser pensados através da linguagem mesma, neste estar em tudo é onde radica seu caráter universal. Gadamer (2011, p. 176) escreve: ―Em todo conhecimento de nós mesmos e do mundo, sempre já fomos tomados pela nossa própria linguagem. É aprendendo a falar que crescemos, conhecemos o mundo, conhecemos as pessoas e por fim conhecemos a nós próprios‖. Ser homem viria a

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significar, portanto, ter linguagem e ter mundo, onde esse ter significa algo bem diferente de dispor de ou dominar. Essa condição fundamental implica por sua vez que o ter mundo se realiza como pertencimento a uma comunidade vital articulada por uma linguagem comum, pois ―foi exatamente por adotar padrões de interação com o meio e com os demais já não determinados instintivamente que a espécie humana se constituiu em espécie cultural e social, ou seja, passou a ter um mundo‖ (BOUFLEUER, 2013, p. 76). Todas as formas de comunidade humana de vida são formas de comunidade linguística. A palavra nos dá o acesso à verdade e ao conhecimento, pois é a partir dela que criamos o mundo. A linguagem tudo envolve. O diálogo hermenêutico e a compreensão são possíveis porque existe uma comunidade linguística que compartilha uma mesma tradição, tanto atual como histórica.

Ao questionar como se dá a linguagem Gadamer nos aponta três aspectos: - O primeiro é o esquecimento essencial de si mesmo que advém à linguagem. Quando falamos não pensamos na estrutura, na gramática, na sintaxe da linguagem.

- O segundo aspecto do ser da linguagem é a ausência de um eu. Quem fala, fala a alguém. Seguindo as reflexões de Oliveira (2006), podemos dizer que Humboldt coloca a intersubjetividade, que se manifesta nas diferentes perspectivas dos participantes da comunicação, na base do entendimento entre si sobre algo no mundo. Também para Gadamer a realidade do falar consiste no diálogo.

- O terceiro aspecto o autor chama de universalidade da linguagem, e isso está relacionado à universalidade da razão.

Manfredo de Oliveira5 faz uma ampla descrição da pragmática existencial de Martin Heidegger. Desse autor, ressaltamos a importância da hermenêutica como possibilidade de entendimento do nosso cotidiano, como compreensão do ser e das coisas do nosso mundo. Contra o pensamento moderno, Heidegger situa o estar em um mundo, o compreender, antes do pensar, porque o nosso ser no mundo é

5 Manfredo Araújo de Oliveira no seu livro ―Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia

Contemporânea‖ apresenta, sob o ponto de vista da filosofia, um panorama de como foi entendida a linguagem, desde a semântica tradicional, que se inicia com Platão e Aristóteles e vai até a primeira fase de Wittgenstein; considerando a reviravolta pragmática, que se inicia ainda com Wittgenstein, em oposição a ele mesmo com a proposta da pragmática analítica; passa pelas teorias dos atos de fala de John Austin e John Searle, e aborda a pragmática existencial de Heidegger; chegando à reviravolta hermenêutico-transcendental, composta pela hermenêutica de Gadamer, a pragmática transcendental de Karl-Otto Apel e a pragmática universal de Habermas.

Referências

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