MESTRADO EM AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
HELON BEZERRA MOREIRA
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE FORTALEZA: UMA PROMESSA A SER CUMPRIDA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas
M837o Moreira, Helon Bezerra.
Orçamento participativo de Fortaleza : uma promessa a ser cumprida / Helon Bezerra Moreira. – 2015.
221 f. , enc. ; 30 cm.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas, Fortaleza, 2015.
Área de Concentração: Avaliação em políticas públicas. Orientação: Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho.
1.Orçamento municipal – Fortaleza(CE) – Participação do cidadão – 2005-2014. 2.Administração municipal – Fortaleza(CE) – Participação do cidadão – 2005-2014. 3.Fortaleza(CE) – Política social – 2005-2014. 4.Participação política – Fortaleza(CE) – 2005-2014. 5.Participação social – Fortaleza(CE) –2005-2014. 6.Sociedade civil – Fortaleza(CE) – 2005-2014. I. Título.
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE FORTALEZA: UMA PROMESSA A SER CUMPRIDA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Avaliação de Políticas
Públicas da Universidade Federal do
Ceará, como requisito parcial à obtenção
do título de mestre em Avaliação de
Políticas Públicas. Área de concentração:
Políticas Públicas.
Orientador: Prof. Dra. Alba Maria Pinho de
Carvalho.
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE FORTALEZA: UMA PROMESSA A SER CUMPRIDA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Avaliação de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Avaliação de Políticas Públicas. Área de concentração: Políticas Públicas.
Aprovada em: 27 / 02 / 2015.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Alba Maria Pinho de Carvalho (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dr. Carlos Américo Leite Moreira
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Profa. Dra. Rejane Batista Vasconcelos
Luz Vasconcelos Bezerra.
Aos meus pais, Afonso Romero Pinto
Moreira e Maria Deusimar Bezerra
A coordenação, na pessoa do Alcides Fernando Gussi, do Mestrado em
Avaliação de Políticas Públicas, pelo espaço de refinado saber, comprometido com
seu tempo e sociedade.
Aos professores participantes da banca examinadora:
Prof. Dr. Carlos Américo Leite,
Profa. Dra. Rejane Batista Vasconcelos e a
Profa. Dra. Camila Holanda Marinho, pelo tempo que estes concederam a
este pesquisador, pelas valiosas colaborações e sugestões que enriqueceram ao
mestrando e a essa pesquisa.
Aos entrevistados, pelo tempo e atenção concedidos nas longas
entrevistas.
Aos estimados professores do Curso de Mestrado em Avaliação de
Políticas Públicas pela proficiência e atenção desprendidos em todos os momentos:
Alcides Fernando Gussi,
Carlos Américo Leite,
Eduardo Girão Santiago,
Elza Maria Franco Braga,
Fernando J. Pires de Sousa,
Gema Galgani Esmeraldo,
Joana D´arc,
José Arimatea Bezerra
Léa Carvalho Rodrigues,
Marcelo Natividade e
Rejane Batista Vasconcelos
Aos colegas da turma de mestrado, pelas reflexões, críticas e sugestões
À querida Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho, que para além da
esfera profissional, caracterizada pela exigente e dedicada orientação, me acolheu
em seu seleto círculo de amizades, dispensando uma atenção maternal em toda
minha vida acadêmica: como aluno na graduação, orientando na monografia, aluno
e orientando no mestrado.
Como poderei me esquecer do imenso sentimento de orgulho que a
Professora Alba me proporcionou, há dez anos atrás, quando me “intimou” (e aqui o
sentido mesmo é “me tornou íntimo”) a ser seu orientando na graduação! Uma das
professoras mais afamadas e respeitadas da Universidade Federal me convidando a
ser seu orientando! Orientação essa que culminou em uma monografia avaliada com
nível de excelência.
Para minha felicidade, por força do destino, em 2013, como reza o script
das grandes dramaturgias, nossos caminhos se cruzaram e, mais uma vez, me vejo
sob as asas perfumadas à cânfora da minha querida professora!
Ainda em meio ao processo de mestrado, velando por minha carreira
acadêmica, me faz cobranças cotidianas a dar prosseguimento aos estudos em um
processo de doutorado.
De espírito aguerrido, a Professora Alba Maria Pinho de Carvalho não é
tão somente uma das maiores intelectuais do País, ela é também um dos raros
intelectuais que aliam seu trabalho à sua vida. Como defensora das minorias, é
implacável contra práticas e posturas preconceituosas.
Algumas pessoas são como anjos: despretensiosamente, entram em
nossas vidas exclusivamente para o nosso crescimento – seja ele profissional,
Em Orçamento Participativo de Fortaleza: uma promessa a ser cumprida, é feita
uma reflexão a incidir sobre a natureza e o caráter democrático dessa experiência
na cidade de Fortaleza entre os anos de 2005 e 2014. Política pública de gestão
participativa, marcada pela perspectiva de articulação entre democracias do tipo
participativa e representativa. O acompanhamento sistemático desta política
mediante um esforço investigativo – iniciado na primeira década dos anos 2000, no
âmbito da graduação em ciências sociais – revela traços marcantes da democracia
liberal, a limitar o potencial participativo da experiência, levando a um
questionamento central sobre a efetividade da democracia participativa no contexto
em estudo. O Orçamento Participativo de Fortaleza surge em 2005, no primeiro
mandato petista de Luizianne Lins na cidade. A sua continuidade, até a primeira
metade de 2014, no segundo ano da nova gestão de Fortaleza, sob o governo de
Roberto Cláudio do Partido Republicano da Ordem Social (PROS), ainda é uma
incógnita a ser desvendada. A participação efetiva da população usuária, público
das políticas públicas municipais, o percentual do orçamento municipal realmente
discutido e deliberado pela população, a continuidade dessa experiência com a
mudança da gestão municipal, dentre outros fenômenos, são aqui investigados.
Para tanto, resgata-se concepções e teorias democráticas de analistas
contemporâneos, com destaque para Santos (2001, 2003, 2006, 2007, 2010, 2012 e
2013) Coutinho (1979, 1988, 1989, 1994 e 2008) e Wood (1998, 2007, 2011 e 2014).
A política pública em questão é avaliada sob uma abordagem metodológica
experiencial que articula diversos princípios metodológicos encontrados em
trabalhos de Silva e Silva (2008), Guba & Lincoln (2011), Lejano (2012) e Rodrigues
(2008, 2011). A pesquisa de campo se efetiva por meio de entrevistas com
participantes e coordenadores da política. Também são desenvolvidos estudos com
aportes estatísticos e documentais sobre o Orçamento Participativo de Fortaleza.
This paper brings a reflection on the nature and democratic character of the
Collaborative Budgeting experience in the city of Fortaleza between the years 2005
and 2014. A public policy of collaborative administration, characterized by the
perspective of articulation between democracies of the participative and
representative sorts. A systematic accompaniment of this policy through an
investigative effort – initiated in the first decade of the year 2000, in the social
science scope – unveils defining features of liberal democracy to limit the
collaborative potential of this experience, which raises a central question about the
actual manifestation of collaborative democracy at the context in study. The
Collaborative Budgeting in Fortaleza began in 2005, during the first term of Luizianne
Lins, a mayor affiliated to the PT party. Its continuity until the first half of 2014, during
the second year of the following mayor, Roberto Cláudio, which is affiliated to the
PROS party, continues enigmatic. This work investigates the effective participation of
the specific public – related to local public policies –, the percentage of the municipal
budget that is in fact discussed and deliberated by the population, and the continuity
of this experience with the shift of municipal administration, among other
phenomena. For such task, this paper rescues conceptions and democratic theories
of contemporaneous analysts, such as Santos (2001, 2003, 2006, 2007, 2010, 2012
and 2013) Coutinho (1979, 1988, 1989, 1994 and 2008) and Wood (1998, 2007,
2011 and 2014). The public policy in question is assessed through an experimental
methodological approach that articulates several methodological principles found in
the works of Silva e Silva (2008), Guba & Lincoln (2011), Lejano (2012) and
Rodrigues (2008, 2011). The field research is completed by interviews with
participants and politics coordinators. There are also studies with statistical and
documental outlines on Fortaleza’s Collaborative Budgeting involved in the research.
CEDECA
DEM
DS
COP
CPP
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
Partido Democrata
Organização marxista revolucionária - Democracia Socialista
Conselho do Orçamento Participativo
Conselho do Planejamento Participativo FSM Fórum Mundial Social
LOA LOM MAPP MCP OWS OP PCB
PC do B
PDC PDT PFL PH PHS PL PJMP PMDB PMN PP PPA PPS PR PRB PRC PROS PRP PRTB
Lei Orçamentária Anual
Lei Orgânica Municipal
Mestrado em Avaliação de Políticas Públicas
Movimento dos Conselhos Populares
Occupy Wall Street
Orçamento Participativo
Partido Comunista Brasileiro
Partido Comunista do Brasil
Partido Democrata Cristão
Partido Democrático Trabalhista
Partido da Frente Liberal
Partido Humanista
Partido Humanista da Solidariedade
Partido Liberal
Pastoral da Juventude do Meio Popular do Ceará
Partido do Movimento Democrático Brasileiro
Partido da Mobilização Nacional
Partido Progressista
Plano Plurianual
Partido Popular Socialista
Partido da República
Partido Republicano Brasileiro
Partido Revolucionário Comunista
Partido Republicano da Ordem Social
Partido Republicano Progressista
PSL
PTB
PT do B
PTN
PV
PV
PSOL
PT
Reajan
Sepla
Partido Social Liberal
Partido Trabalhista Brasileiro
Partido Trabalhista do Brasil
Partido Trabalhista Nacional
Estádio Municipal Presidente Vargas
Partido Verde
Partido Socialismo e liberdade
Partido dos Trabalhadores
Rede de Articulação Jangurussu/Ancuri
1 2 3 3.1 3.2 3.3 3.4 4 4.1 4.2 4.3 4.4 5 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5
INTRODUÇÃO: RAZÕES DE UMA ESCOLHA TEMÁTICA...
PERCURSOS METODOLÓGICOS NA PESQUISA AVALIATIVA: OLHAR EPISTEMOLÓGICO DO PESQUISADOR...
POTENCIALIDADES E LIMITES DA DEMOCRACIA NA CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL: EM BUSCA DE TEORIAS PARA ILUMINAR O CAMPO ANALÍTICO...
Estado na civilização do capital ampliação do Estado como via analítica...
Políticas Públicas na civilização do capital: aportes balizadores da discussão...
A democracia no capitalismo: tensões e dilemas...
O Brasil no contexto do capitalismo: uma configuração panorâmica de marcos históricos...
O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO: UMA ALTERNATIVA PARA
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA?...
O orçamento participativo como política pública ...
Orçamento Participativo de Porto Alegre: onde tudo começou.
Orçamento Participativo de Recife: mais uma grande capital na rota da participação ...
Orçamento Participativo de Icapuí: a experiência pioneira do Ceará...
O OP FORTALEZA: PERCURSOS DE UMA EXPERIÊNCIA INTERROMPIDA?...
Configuração sócio-política do Governo Luizianne Lins no contexto das forças sociais...
Marcos legais do OP Fortaleza...
Os atores do OP Fortaleza...
A identidade democrática do OP em xeque: análises sobre a política pública em monografia da graduação de 2008...
Desenho metodológico do OP Fortaleza: mudanças que
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extinção ou redefinição? O fantasma da institucionalização nas experiências de orçamento participativo...
O OP FORTALEZA NO FOCO DA CRÍTICA: DEMOCRACIA EM MOVIMENTO?...
CONSIDERAÇÕES FINAIS...
REFERÊNCIAS...
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1. INTRODUÇÃO: RAZÕES DE UMA ESCOLHA TEMÁTICA
A democracia tem alcançado no globo um status de regime por
excelência – acima de qualquer suspeita. Qualquer outro regime que não proclame
seus ideais é, no mínimo, inseguro para se estabelecer relações
diplomático-financeiras.
Mas a democracia vem sendo posta em xeque. As manifestações
populares na República Federativa do Brasil, em junho de 2014, evidenciam, dentre
outras coisas, uma insatisfação com o regime político ora posto. Não somente aqui
no País, mas em grande parte das nações que proclamam regimes democráticos
assiste-se, na contemporaneidade, a protestos contra tais regimes no âmbito dos
movimentos que eclodiram, a partir de 2011, no mundo árabe, na Europa, nos
Estados Unidos da América (EUA) e, recentemente, na China. A rigor, o Fórum
Social Mundial (FSM), desde o ano de 2001, é uma materialização dessa
insatisfação por parte de diversos movimentos sociais em países democráticos.
Nos Estados Unidos da América (EUA), bem como em alguns países
europeus, a juventude vem tomando as ruas para exigir uma radicalização da
democracia. É o caso do Occupy Wall Street (OWS) que iniciado, como o próprio
nome diz, nos EUA, espalhou-se por vários países do globo. A democracia limitada
ao voto secreto e livre não estaria mais atendendo às demandas populares e à
complexidade das questões que perpassam o mundo contemporâneo.
Santos1(2003), um dos organizadores do FSM, juntamente com seus
colaboradores, faz uma extensa e profunda incursão no imaginário democrático,
advogando uma ruptura com a ordem social-político-econômica vigente, pois
denuncia:
O nosso tempo é um tempo paradoxal. É, por um lado, um tempo de grandes avanços e de transformações dramáticas, dramaticamente designadas por revolução da informação e da comunicação, revolução electrónica, revolução da genética e da biotecnologia. Mas é, por outro lado, um tempo de inquietantes regressões, do regresso de males sociais que
1 Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar
pareciam superados ou em vias de o ser: o regresso da escravatura e do trabalho servil; o regresso da alta vulnerabilidade a doenças antigas que pareciam erradicadas, pelo menos pandémicas, como o HIV/SIDA; o regresso das repugnantes desigualdades sociais que deram o nome à questão social no final do século XIX; enfim, o regresso do espectro da guerra, talvez agora mais mundial que nunca e com uma temperatura (quente? fria?), por agora, ainda indefinível. (SANTOS, 2003, p. 25).
E conclui, mais adiante, desta feita sob uma perspectiva
político-econômica:
De facto, o que chamamos globalização é apenas uma das formas de globalização, a globalização neoliberal, sem dúvida a forma dominante e hegemônica da globalização. A globalização neoliberal corresponde a um novo regime de acumulação do capital, um regime mais intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, dissocializar o capital, libertando-o dos vínculos sociais e políticos que no passado garantiram alguma distribuição social e, por outro lado, submeter a sociedade no seu todo à lei do valor, no pressuposto de que toda a atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma de mercado. A consequência principal desta dupla transformação é a distribuição extremamente desigual dos custos e das oportunidades produzidos pela globalização neoliberal no interior do sistema mundial, residindo aí a razão do aumento exponencial das desigualdades sociais entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país. (SANTOS, 2003, p. 26).
Mas, para superar esse quadro, é preciso enfrentar alguns desafios2 em
busca de uma “emancipação social” ou, ainda, de uma “globalização contra
hegemônica”, afirma Santos (2010). Dentre os desafios está o de questionar
elementos culturais e filosóficos ocidentais tais como: democracia, Estado,
sociedade civil, cidadania, direitos humanos e igualdade perante a lei (SANTOS,
2010).
Santos (2010) ressalta ser a democracia um valor ocidental, propalado
pela colonização europeia. Ele destaca também como este valor, bem como o
modelo ocidental de cultura, política e economia não só não acabaram com a
miséria e desigualdade social mundial, como as levou a um grau exponencialmente
maior. Assim sendo, Santos (2010) proclama o fracasso da sociedade moderna e da
2 Os quatro desafios circunscritos por Boaventura de Sousa Santos, em uma publicação de 2010, seriam os
democracia representativa. Defende, consequentemente, um “pós-colonialismo de
oposição”3, baseado em uma teoria por ele chamada de “teoria da transição
paradigmática”, ou seja, um modelo que pode até ter algumas de suas raízes na
modernidade, porém vai além dela e, como dito, afirma-se contra ela também. Afinal
o colonialismo, fruto do capitalismo e da modernidade, fomentou a dicotomia entre
exploradores e explorados e, agora, sob a crise do modelo dos exploradores, é hora
de ouvir os explorados (SANTOS, 2010).
Logo, Santos (2010) conclama à revisão de conceitos e cânones
democráticos. Sob o princípio da complexidade, Santos (2010) não se limita a
trabalhar conceitos estanques de democracia, por exemplo: democracia
representativa e democracia participativa. De fato, vai além dos cânones instituídos
e defende graus diversos de democracia, nomeando-os de democracia de “alta
intensidade” e democracia de “baixa intensidade” (SANTOS, 2007). Logo, ele poderá
afirmar que regimes democráticos do século XXI, por exemplo, “convivem
confortavelmente” com novas formas de autoritarismo, pois predomina nos referidos
regimes uma democracia de “baixa intensidade” (SANTOS, 2013).
O movimento contraditório entre os projetos da globalização hegemônica
e da globalização contra-hegemônica atualmente reascende um conflito anterior
traduzido pela questão da compatibilidade da democracia com o capitalismo4. Esse
conflito não está superado, como sugere, a um leitor desavisado, a frase
anteriormente dita por Santos (2013) de que a democracia e o capitalismo
conviveriam confortavelmente. Apenas se tornou um conflito mais profundo e
complexo que se reproduz no embate entre as práticas democráticas sob os
cânones liberais e as práticas democráticas de “alta intensidade”:
3 Santos, entende a globalização como “uma zona de confrontação de projetos hegemônicos e projetos
contra-hegemônicos”, o pós-moderno de oposição que ele defende estaria em contraposição às correntes dominantes do pensamento pós-moderno e pós-estruturalista. Assim, Santos concebe a superação da modernidade ocidental a partir de uma perspectiva pós-colonial e pós-imperial (SANTOS, 2010, p. 33).
4 Sobre esse primeiro conflito, Santos pondera: [...] as sociedade capitalistas, sobretudo nos países centrais,
[...] um dos conflitos centrais entre o Norte e o Sul5 resultará do confronto entre a democracia representativa e a democracia participativa. (SANTOS, 2003, p. 27).
Esse é um conflito de soma zero, afirma Santos, pois “a expansão de
qualquer delas só pode ser obtida à custa da restrição da outra” (SANTOS, 2003, p.
456).
Até então, a democracia de “baixa intensidade”, do tipo liberal, tem
dominado o cenário mundial hodierno. Essa democracia é concebida em sociedades
do Norte global a revelia das discussões e experiências advindas dos países do Sul6
(SANTOS, 2003).
Mas, até que ponto pode-se conceber uma possível vitória da democracia
do tipo participativa, de “alta intensidade”, se o “capitalismo é estruturalmente
antitético à democracia”, como afirma a marxista Wood7
(2011)?
Reformulo a questão da seguinte forma: dentro da sociedade do capital,
sob uma globalização hegemônica, há a possibilidade de vitória de uma democracia
de alta intensidade ao final desse embate entre democracia representativa e
democracia participativa?
5 Algo semelhante foi feito antes por Gramsci com os conceitos de “ocidente” e “oriente” que serão descritos
na página 52 dessa dissertação. Santos usará topônimo – Sul global – para caracterizar movimentos político sociais em determinadas regiões do Globo, em países predominantemente localizados no hemisfério Sul do Planeta, contudo contempla todos os países do hemisfério Norte que compartilham características sócio-político-econômicas e sociais semelhantes, bem como exclui as nações do hemisfério Sul que não têm essas características (COUTINHO, 1989). Logo, essa metáfora usa um topônimo para fazer referência a um conjunto de características sócio-político-econômicas e sociais de um países independentemente de sua localização geográfica. (SANTOS, 2007).
6 Santos, então, empreende um projeto de pesquisa que busca dar visibilidade e força as discussões e
experiências inovadoras no campo democrático vindas do Sul. Esse projeto, intitulado “Reinventar a emancipação social: para novos manifestos” se iniciou no primeiro ano do século XXI, e se desdobrou em, pelo menos, um subprojeto, “Vozes do mundo”. O projeto contou, principalmente, com colaboradores oriundos de países periféricos, isto é, do “Sul” global, pois para Santos, parafraseando o pensador cubano Roberto Retamar: “não há ninguém que conheça melhor a literatura dos países centrais que o leitor colonial”. Considerando a hierarquia de dependência entre países expressa na tricotomia periferia, semiperiferia e centro, nesse projeto são procuradas experiências em países do Sul onde “mais intensamente colidem hoje as forças da globalização hegemônica e as forças da globalização contra-hegemônica”. Além do mais, os países do Sul selecionados deveriam contar com numerosas e fortes comunidades científicas que pudessem colaborar com o projeto. Dentre estes Estados, Santos e seus colaboradores selecionaram experiências de cinco nações semiperiféricas: Brasil, Colômbia, Índia, África do Sul e Portugal. Posteriormente foi incluída uma experiência de Moçambique (SANTOS, 2003, p. 16).
Consequentemente, voltando o meu olhar ao objeto dessa dissertação, os
orçamentos participativos ou qualquer outra iniciativa de caráter democrático
participativo estariam, assim, condenados ao fracasso dentro do atual sistema
capitalista? Existe mesmo esse embate entre democracias do tipo participativa e
representativa? As experiências frustrantes dentro dos orçamentos participativos
evidenciariam a impossibilidade de qualquer experiência de democracia de alta
intensidade vingar dentro do sistema capitalista? E a experiência portoalegrense,
não deu certo? A não continuidade de um OP evidencia a derrota da democracia de
alta intensidade ou a inexistência dela? De que democracia estou a falar?
Logo, os estudos de Wood (2011) sobre democracia não só são
indispensáveis nessa dissertação, que toma como foco analítico a questão da
democracia dentro da política pública pesquisada, como é também fundamental para
analisar e retirar qualquer conclusão a respeito do potencial democrático da referida
política.
Adiante dedico um segmento a questão democrática, da possibilidade de
articular o embate entre os dois tipos de democracia, à luz dos trabalhos de Santos
(2013), com a incompatibilidade entre capitalismo e democracia defendida por Wood
(2011). É uma questão fundante, a medida que toda a argumentação que será
construída na análise da política pública estudada se sustentará sobre ela.
De antemão, adianto parte da conclusão que tirei da questão acima
formulada sobre a compatibilidade entre a afirmativa de Wood (2011), de que o
capitalismo é antitético à democracia, com o pensamento de Santos (2013) que
defende a existência de um embate entre a democracia representativa e a
democracia participativa, e, que aqui eu assumo.
Em linhas gerais, Wood (2011) também fala de que há pluralidade de
democracias, assim como Santos (2013). Dentre elas, Wood (2011) aborda uma
democracia do tipo liberal, semelhante a que trata Santos (2013). E a democracia
que ela toma como incompatível com o capitalismo é uma democracia inspirada na
democracia vivenciada pelos gregos da antiguidade que, após o regime democrático
ocorrido na história helênica, não foi mais experimentada por nenhuma outra
civilização e nem poderia, dentro do contexto do capital hodierno (WOOD, 2011).
Essa democracia, inspirada na democracia clássica, tem seus cânones
reconfigurados e contextualizados historicamente por Wood para que se possa
Assim, os aforismos de Wood (2011) – que democracia é incompatível
com o capitalismo – e o aforismo de Santos (2013) – que a democracia convive
confortavelmente com o capitalismo – tratam de democracias distintas e, portanto,
eles não se excluem. Logo, a compatibilidade entre o pensamento de Santos (2013)
e de Wood (2011) é possível, a que pese as devidas proporções e diferenças.
Como disse, dedicarei parte do próximo segmento para tecer uma relação
entre esses dois estudiosos da democracia, com suas proximidades e diferenças
para que eu possa estabelecer, ao final, as categorias fundantes dessa dissertação.
Feita a ressalva, retomo o pensamento de Santos (2003). Para Santos
(2003), o Brasil, país do Sul global, é palco de uma experiência inovadora, onde
pode-se ver o embate entre as democracias representativa e participativa ocorrendo
de forma prática em uma combinação de complementaridade8:
[...] ela implica uma decisão da comunidade política de ampliar a participação a nível local através da transferência ou devolução para as formas participativas de deliberação de prerrogativas decisórias a princípio detidas pelos governantes. (SANTOS, 2003, p. 65).
Essa experiência inovadora é o Orçamento Participativo de Porto Alegre
que tem sua origem no governo de Olívio Dutra do Partido dos Trabalhadores (PT)
em 1989, fruto de uma reivindicação nascida três anos antes no governo de Alceu
Colares do Partido Democrático Trabalhista (PDT) por parte das associações de
moradores da mesma cidade.
O orçamento participativo, que a partir daqui vou chamar de OP, fermenta
os debates sobre democracia sob um plano privilegiado: o de estar situado fora da
academia e dentro de espaços públicos onde os cânones democráticos são
negados, ou afirmados, testados, questionados, reelaborados, exercitados e
discutidos pelos mais diversos grupos sociais, especialmente, por aqueles grupos
que estão historicamente longe das academias.
As experiências de orçamento participativo se proliferaram pelo Brasil
após os empolgantes resultados colhidos na experiência pioneira de Porto Alegre. A
experiência portoalegrense do orçamento participativo gerou na academia uma
grande expectativa refletida em numerosos textos e estudos a respeito do OP no
8 Ver sobre essa relação de “complementaridade” entre democracia representativa e democracia participativa
início deste século XXI pelo Brasil. Não era por menos, Santos (2003) registra, por
exemplo, um importante dado a respeito da experiência do OP de Porto Alegre:
Ao inverter as prioridades que habitualmente presidiam à distribuição de recursos pelo governo municipal, o OP conseguiu resultados materiais impressionantes. No que respeita ao saneamento básico (água e esgotos), em 1989 apenas 49% da população estava abrangida. No final de 1996, 98% dos lares possuíam água canalizada e 85% eram servidos pelo sistema de esgotos. Segundo um jornal influente, O Estado de São Paulo, enquanto todos os anteriores governos municipais de Porto Alegre tinham construído cerca de 1100 km de rede de esgotos, as duas administrações PT construíram 900 km entre 1989 e 1996. (SANTOS, 2003, p. 428).
Belo Horizonte, São Paulo e Recife são algumas das maiores metrópoles
brasileiras que desenvolveram seu próprio OP a partir do pioneirismo da capital
gaúcha. Tratarei um pouco mais sobre experiências do OP pelo Brasil, suas
semelhanças e singularidades mais adiante. Entretanto é importante salientar que
algumas dessas experiências, e aqui incluo a experiência do OP Fortaleza,
pareceram ter frustrado a muitos, após ter passado esse período de euforia. É o que
tentarei demonstrar também.
Cada OP, de cada uma das cidades que o vivenciou, tem sua
configuração. Portanto, em cada município o embate entre esses dois tipos de
democracia – a de baixa intensidade e a de alta intensidade – que acontece dentro
dos orçamentos participativos se dá em momentos e graus diferenciados no
decorrer do processo orçamentário. Percebi, dentro da dinâmica da política pública
aqui analisada, conhecida por “ciclo” do OP Fortaleza, que o exercício democrático
também oscilava em momentos de participação e representação. Constituindo assim
um fenômeno complexo que exige sensibilidade e “imaginação sociológica” do
pesquisador (MILLS, 1982).
Some-se a esse quadro complexo próprio da política pública estudada, o
que Höfling (2001), em um artigo sobre Estado e políticas públicas, argumentou
sobre a concepção que o pesquisador tem de Estado e políticas públicas. Para
Höfling (2001), essa concepção inicial e subjetiva vai interferir no seu olhar
avaliativo. E sob o mesmo compasso, Rodrigues (2010), alerta acerca da existência
de diversas concepções de políticas públicas, sendo que tais concepções implicam
resultados distintos quando se empreende um processo de avaliação sobre tais
Acrescente-se ainda o fato das políticas públicas, em geral, já sofrerem
alterações até de significado pelos seus atores, desde sua agenda inicial e no
decorrer dos anos, com as mudanças das gestões que assumem o governo. E
políticas públicas que professem ser democráticas são ainda mais volúveis, devido à
própria natureza do fenômeno democrático. Porque, uma vez dito democrático, um
fenômeno não traz garantias que permanecerá democrático.
Sobre democracia, limito-me em dizer que para essa dissertação,
democracia é assumida em uma perspectiva processual e histórica, na condição de
um conceito aberto. Esta plasticidade conceitual dá azo às diversas definições de
democracia, segundo concepções e interesses políticos de quem as teoriza. Assim,
a democracia terá formas diferentes de ser legitimada, concebida e vivida no
decorrer do tempo, em um mesmo lugar e população. É o que retomarei, mais
adiante, ao trabalhar uma reflexão sobre democracia a partir de categorias analíticas
desenvolvidas por Wood (2011).
Então, o Orçamento Participativo de Fortaleza se configura um fenômeno
privilegiado para que se faça uma reflexão sobre o imaginário democrático na
cidade: qual democracia se sobressaiu, apesar dele, pelo menos no nome, ser um
espaço que potencializaria a democracia de participação? Como se deu a relação
dos dois tipos de democracia dentro dele? Ele fomentou ou arrefeceu os cânones
democráticos na esfera política municipal?
Ao ter como estudo de caso a participação efetiva da população no OP, é
necessário avançar em enfoques quantitativos e qualitativos acerca desta política de
gestão, avaliando em que medida apresenta características realmente participativas.
Portanto, o eixo analítico desse trabalho, ora apresentado, é questionar a
efetividade da democracia do tipo participativa no contexto do Orçamento
Participativo de Fortaleza nos anos de 2005 à 2014. Entendendo que os setores
populares da cidade de Fortaleza são constituídos pelos que vivem uma experiência
de pobreza, precarização do trabalho e da dependência de políticas públicas,
representam muito mais que o 1% da população que efetivamente tomou parte do
OP Fortaleza, nos seus primeiros anos de implementação, cabe perguntar também:
por que o Orçamento Participativo de Fortaleza não efetivou a participação dos
setores populares na construção de uma dimensão pública da gestão? Por que o OP
Foco, assim, a restrição da participação popular no OP Fortaleza refletida
na inexpressiva participação popular, nos embates voltados a questões pontuais,
particulares, na incerteza da continuidade dessa política na cidade, na aprovação de
muitos serviços e poucas obras, na mudança durante o percurso de aprovação e
execução de demandas, na não execução de outras demandas e, especialmente, no
pequeno percentual orçamentário discutido.
Sobre essa restrição da participação popular, posso ainda acrescentar
outro elemento fundamental – o grau de representatividade que aumenta em relação
à participação direta no decorrer dos ciclos:
[...] vem de uma plenária de 200 pessoas, aí passa para 10 pessoas, aí, no final, quem vai dialogar com a Prefeitura são 2, 3 pessoas. Aí está se vendo o funil.
A gente não tem a participação efetiva da população, porque os delegados são mais aquelas pessoas influentes nos bairros, e tudo mais, depois esses delegados vão votar em conselheiros, aí então, a gente sabe que tem jogo político, daí votam nos conselheiros, que no final, são 2 ou 3 pessoas que vão dialogar com Prefeitura. Para a Prefeitura é muito mais fácil dialogar com 2 ou 3 pessoas para aprovar, ou não, a realização de obras do quê com um grupo maior. (Delegado9 em entrevista a mim concedida
durante a produção da monografia em 2008).
Quero, assim, com essa pesquisa lançar um olhar sociológico sobre uma
experiência prática relevante na cidade. Uma experiência em que eu pudesse
também tratar do fenômeno democrático. Por isso, estudar o OP, para mim, é aliar a
reflexão teórica com a prática social. E assim, trazer sentido à produção acadêmica
do intelectual comprometido com seu tempo e seu mundo.
Além do mais, tenho um histórico de aproximação particular com a
principal categoria em estudo: a democracia. Minha identificação com o tema se
inicia antes dos meus estudos acadêmicos. O imaginário democrático já me
intrigava, quando da minha breve passagem pelo movimento estudantil local.10 Na
universidade, escolhi o recém-criado Orçamento Participativo de Fortaleza como
9 Representante da ONG Soceart (Sociedade de Cultura, Esporte e Arte) que tem sede no Conj. Renascer no
Dias Macedo. Ele é também membro do Movimento dos Conselhos Populares (MCP) de Fortaleza idealizado e criado pelo ex-secretário de Cultura do Estado do Ceará, Prof. Auto Filho.
10 Em 1998 houve uma crise político-legal em cima das carteirinhas estudantis que davam direito à meia nas
fenômeno de estudo para minha produção monográfica. Logo, vi nessa dissertação
a oportunidade de concluir à reflexão iniciada em 2005, quando do início da
produção monográfica, sobre o OP Fortaleza. Só que, desta feita, com um enfoque
na democracia.
O período de dez anos do OP Fortaleza estudado nessa dissertação foi
por mim seccionado em três momentos: primeiro momento, gestão Luizianne Lins,
2005-2008; segundo momento, segunda gestão Luizianne Lins, 2009-2012 e o
terceiro momento, os primeiros anos da gestão Roberto Cláudio (2013-2014).
Como retomarei mais a frente, o primeiro momento é caracterizado pela
euforia por parte de alguns movimentos sociais, associações de bairro e intelectuais,
não só com uma nova gestão, mas, em especial, com a experiência participativa
inovadora na cidade. O segundo momento percebe-se, dentre outros sentimentos, o
de decepção, ao não se ver atendidas a maior parte das demandas do primeiro
momento. Há também, o sentimento de frustração em relação à própria gestão, que
com alterações na base aliada – em nome da governabilidade – parece gerir a
cidade de modo semelhante às gestões municipais que a antecederam. Essa
alteração na base aliada, parece provocar mudança radical no desenho
metodológico do OP Fortaleza. O terceiro momento é marcado pela tentativa de
institucionalização da proposta, pela expectativa de continuidade do OP Fortaleza
após a transição entre gestões e pela negação do OP por parte da nova gestão,
criando outras políticas participativas em substituição ao OP Fortaleza. Também
registrasse nesse momento, sua lenta extinção durante o processo de produção do
Plano Plurianual Digital em 2013.
No decorrer desses dez anos, os números mostram que para uma cidade
com mais de 2.447.40911 habitantes em 2010, apenas 25.77012 – maior número de
pessoas participantes em um ciclo do OP Fortaleza, registrada em um mesmo ano –
participaram, ou seja, aproximadamente 1% da população, sem considerar que o
somatório dos participantes de todo um ciclo de encontros do OP Fortaleza, podia,
muito provavelmente, contar a mesma pessoa mais de uma vez, já que uma pessoa
vai a mais de um encontro do ciclo a cada ano13.
11 Números referentes ao censo IBGE, 2010.
12 Comissão de Participação Popular: OP 2011 e 2012 em números. Disponível em:
http://www.fortaleza.ce.gov.br/cpp/. Acesso em: 10 mai. 2013.
Que parte da cidade está representada nesse um por cento? O OP, se
não foi usado por parte significativa da população que mais necessitava dele (que
certamente representa dezenas vezes mais que um por cento), foi, ao menos, usado
pela maioria dos tipos de segmentos sociais da cidade? A pergunta procede na
medida em que, como sendo o OP Fortaleza uma iniciativa do Partido dos
Trabalhadores (PT), se questionava se o PT faria políticas para a cidade como um
todo ou governaria somente para os segmentos populares. Afinal, o perfil dos
participantes do OP Fortaleza tem sido de segmentos sociais historicamente
excluídos das políticas e decisões públicas. Sobre isso, Avritzer (In SANTOS, 2003),
tratando do início do OP portoalegrense, afirma:
Quando, em 1989, o PT assumiu o governo de Porto Alegre, a liderança do partido estava envolvida num intenso debate interno, que se resumia essencialmente à seguinte questão: o governo do PT é um governo para os trabalhadores ou é um governo de esquerda para toda a cidade, embora especialmente comprometido com as classes populares? (Avritzer In
SANTOS, 2003, p. 415).
O OP Fortaleza era para gerir o orçamento da cidade ou cuidar somente
da parte do orçamento destinado às camadas populares e movimentos sociais?
Como isso refletiria nos recursos orçamentários destinados anualmente ao OP
Fortaleza? Isso legitimaria o uso parcial dos recursos orçamentários possíveis, visto
que só “parte” da cidade seria beneficiada? Ou isso comprova, pelo pequeno
percentual reservado para o OP, se comparado com o orçamento total, que a
preocupação real do governo com os segmentos populares era igualmente
pequeno? Afinal, o PT em Fortaleza governou para as classes médias, empresários,
ricos etc., governou para os segmentos populares e movimentos sociais, ou
governou para todos? Ou ainda, o governo do PT priorizou as demandas da elite e
destinou políticas que exigiam menos recursos para os segmentos populares, como
forma de mascarar e legitimar suas reais intenções? Foi realmente pequeno o
percentual orçamentário de investimentos destinado ao OP Fortaleza? Nem todas
essas questões serão respondidas nessa dissertação, porém, essa dissertação
pretende dar pistas elucidativas para parte delas, bem como pretende, ainda mais,
provocar novas questões sobre a cidade, sobre as suas últimas gestões e,
É também minha intenção, com essa investigação, manter viva a memória
dessa experiência inovadora em Fortaleza, bem como, apontar pistas de seu ocaso
para que novas experiências de gestão democrática possam contar com referenciais
teóricos que potencializem seu sucesso.
A investigação que ora desenvolvo se destaca em meio aos demais
estudos feitos do Orçamento Participativo Fortaleza por três razões: a primeira, por
ter uma abrangência temporal que contempla o funcionamento do OP Fortaleza da
sua criação até seu desfecho, se entendermos como seu desfecho as primeiras
políticas de gestão de cunho participativo que lhe sucederam nos anos 2013-2014. A
segunda razão se deve ao pesquisador ter ocupado lugar privilegiado ao participar
de vários momentos decisórios dos diferentes ciclos do OP Fortaleza ocorridos
durante todo o período observado. A terceira, e mais importante razão, justifica-se
pelo OP Fortaleza ter sido analisado sob um enfoque crítico, que vai além de um
relato dos dados e fatos vividos, para investigar o que lhe é mais caro em sua
natureza – o potencial democrático do tipo participativo.
Mas, para que essa investigação seja levada a cabo, eu tomo como pano
de fundo metodológico, a vigilância sobre o princípio da complexidade14. Lançar um
olhar complexo é levar em conta as dimensões econômicas, materiais, filosóficas,
espirituais, físicas, psicológicas, emocionais, artísticas, contingenciais, dentre
inúmeras outras, que numa avaliação sob o paradigma científico15 positivado não só
são impensáveis como contaminariam a avaliação. E não somente levar em conta
esses diferentes saberes, mas, acima de tudo, perceber que são interconectados,
logo, somente reuni-los em um mesmo plano de racionalidade não é suficiente. É
fundamental encontrar os conectivos lógicos que os unem, porque senão seria como
reunir as diferentes peças de um quebra-cabeças sem montá-lo (MORIN, 2002).
Para tanto, a política pública em questão é avaliada sob uma abordagem
metodológica experiencial que articula diversos princípios metodológicos
encontrados em trabalhos de Silva e Silva (2008), Guba & Lincoln (2011), Lejano
(2012) e Rodrigues (2008, 2011). Durante o processo de campo, o pesquisador
14 Quando questionado pela proximidade de seus conceitos com o conceito de complexidade em Morin (2002),
Santos (2007) admite às contribuições de Morin (2002) para seu trabalho e lembra que está inserido em um outro contexto histórico do de Morin (2002) quando este iniciou sua teorização sobre a complexidade. Santos (2007) alarga o conceito de complexidade de Morin (2002) ao afirmar: “[...] não estou pensando somente em tradução entre diferentes culturas, e sim, por exemplo, entre poesia e ciência (SANTOS, 2007, p. 47).
ocupou lugar social privilegiado na avaliação dessa política de gestão ao
acompanhar o OP Fortaleza como cidadão observador e participante desde seu
primeiro ano. A pesquisa de campo é enriquecida por entrevistas com participantes
e ex-coordenadores da política de 2005 à 2014. Também são desenvolvidos estudos
com aportes estatísticos e documentais sobre o Orçamento Participativo de
Fortaleza.
Essa pesquisa de campo resultou assim no presente texto de dissertação
que está estruturado em sete segmentos. O primeiro segmento é esta introdução.
No segundo segmento, com o título “Percursos metodológicos na pesquisa
avaliativa: olhar epistemológico do pesquisador”, articulo as diversas teorias e
métodos de pesquisa avaliativa que me deram aporte científico em todo processo de
investigação e produção da dissertação. No terceiro segmento, sob o título
“Potencialidades e limites da democracia na civilização do capital: em busca de
teorias para iluminar o campo analítico”, empreendo uma análise das categorias
fundantes dessa investigação, com o intuito de construir um todo coerente entre o
objeto avaliado e as categorias analíticas abordadas, bem como, reúno ferramentas
de análise de avaliação para a compreensão da respectiva política pública. No
quarto segmento, sob o título “O orçamento participativo no Brasil contemporâneo:
uma alternativa para democracia participativa?”, trato da natureza da política pública
em questão. Na ocasião, faço um resgate histórico dos percursos do orçamento
participativo no Brasil, selecionando, para tanto, as experiências de porto Alegre e
Recife16. Por fim, volto o foco para a primeira experiência de orçamento participativo
no Ceará, ocorrida em Icapuí. No quinto segmento, sob o título “O OP Fortaleza:
percursos de uma experiência interrompida?”, explico como se deu o processo de
criação do orçamento participativo em Fortaleza e o seu desenho de funcionamento
inicial. Abordo os bastidores políticos das duas campanhas do PT nos anos 2007 e
2012, respectivamente; as diferenças na base política e no apoio das campanhas
que determinaram a maneira que cada um dos dois governos se portou, nessa
ocasião farei uso exaustivo das entrevistas com ex-gestores do governo Luizianne.
Também faço referência aos marcos legais da experiência local de orçamento
participativo, seus atores e minhas análises registradas em 2008 na monografia
sobre essa política; enfoco ainda seu desenho metodológico, com as mudanças
16 Essas experiências são selecionadas dentre as demais devido ser o OP de Porto Alegre a experiência pioneira
detectadas no decorrer dos anos e sua interrupção no início da gestão municipal em
2013. No sexto segmento, sob o título “O OP Fortaleza no foco da crítica:
democracia em movimento?”, retomo as categorias analíticas tratadas no terceiro
segmento. Desta feita, fazendo uma transposição crítica dessas categorias sobre o
fenômeno ora pesquisado, na perspectiva de desenvolver uma avalição lúcida sobre
os cânones democráticos no OP Fortaleza. Por fim, o sétimo segmento, sob o título
“Considerações finais”, faço as conclusões que são em parte novos
questionamentos sobre o fenômeno democrático em Fortaleza, fomentando a
2. PERCURSOS METODOLÓGICOS NA PESQUISA AVALIATIVA: OLHAR EPISTEMOLÓGICO DO PESQUISADOR
Santos (2001), desde a publicação de “Um discurso sobre as ciências”,
defende um novo paradigma científico, a que chama de “paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2001, p. 60). Nessa
definição estão presentes os dois grandes eixos dessa revolução científica: as
dimensões científica e social. Em que Santos (2001) elenca algumas teses desse
paradigma emergente.
Antes de citar as teses de Santos (2001), é imprescindível definir-se o
conceito de paradigma para esse trabalho. Adoto a concepção de Kuhn (2009) sobre
paradigma. Assim, para minha reflexão paradigma é aqui definido como o trabalho
(reflexão teórica) que sirva para definir os problemas e métodos, por algum tempo,
de um determinado campo científico. Trabalho este investido de realizações sem
precedentes capazes de arregimentar um grupo de partidários que abandonassem
ou rechaçassem concepções diferentes e fosse também investido de teorias abertas
para que sob elas pudessem ser resolvidos toda sorte de problemas científicos
(KUHN, 2009).
Bem, retomando Santos (2001), sua primeira tese é de que todo
conhecimento científico-natural é também científico-social17. A segunda, afirma que
todo conhecimento tem uma dimensão local e total ao mesmo tempo, em oposição
ao paradigma hegemônico que prima pela especialização, fragmentação disciplinar,
no qual quanto menor o campo/objeto a ser estudado maior precisão científica18. A
terceira tese defende que todo conhecimento é autoconhecimento, desmistificando a
neutralidade axiólogica19. E, a quarta tese, decorrente da primeira tese, é a de que
todo conhecimento científico desse novo paradigma objetiva se tornar senso
comum, rompendo radicalmente com a barreira de separação entre saber científico
e senso comum, ciência e sociedade.
17 “Não há natureza humana porque toda a natureza é humana” (SANTOS, 2001, p. 72).
18 “O conhecimento é tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objeto sobre que incide [...] Sendo um
conhecimento disciplinar, tende a ser um conhecimento disciplinado, isto é, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor” (SANTOS, 2001, pp. 73, 74).
19 “A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controle dos
Hoje, parece ser inevitável a estruturação dos saberes científicos em
disciplinas. A impossibilidade de abarcar o universo total de saberes construídos
historicamente pelas diversas gerações e civilizações pressiona o indivíduo a
restringir seu campo de estudos. A especialização, especialmente técnica, afigura-se
necessária em sociedades cada vez mais complexas. Apesar disso, acredito que
essa fragmentação disciplinar inicial, que, na academia, teria mais um viés
pedagógico a teórico, não pode ser desculpa para um olhar fragmentado ou parcial.
Até porque, como visto em Wood (2011)20, uma das maiores ferramentas ideológicas
do capitalismo é impingir uma lógica fragmentária no indivíduo. Se quero lançar
bases para uma sociedade além da sociedade capitalista, é fundamental ousar além
da fragmentação disciplinar que essa sociedade do trabalho parece exigir. Santos
(2001) diz que não se deve desprezar o conhecimento que produz tecnologia,
contudo esse desenvolvimento deve-se traduzir em sabedoria de vida (SANTOS,
2001).
Nesse sentido, Santos (2001) instigará a uma transgressão metodológica por
meio de uma metodologia a qual chamou de “imetódica”. É, a princípio, se construir
uma pluralidade metodológica. Vive-se em uma fase de transição entre paradigmas,
conclui Santos (2001), que pede muito da imaginação do cientista. E acrescenta que
os paradigmas das ciências sociais tendem a se sobrepor aos paradigmas das
ciências naturais!
Quando Santos (2001) convoca à transgressão metodológica certamente ele
está revelando não somente a insuficiência de um paradigma em atender às novas
questões relevantes da sociedade, mas também alertando para que não se perca
autonomia frente a um mercado sedutor e, principalmente, que não se perca
sensibilidade na escolha e na análise de um fenômeno social.
Quanto ao paradigma científico mais adequado para se avaliar uma política
pública, acredito que a reflexão acima já tenha dado pistas. Realmente, em um
período de transição revolucionária21 de paradigmas, se limitar a um só paradigma e,
respectivos métodos, não me afigura postura coerente. Assim, permiti-me em tomar
diversas perspectivas metodológicas, inclusive as da ciência moderna. O que me
exigirá sensibilidade, lucidez e imaginação sociológica (MILLS, 1982).
20 Ver página 55.
21 Como diria Carvalho (2013): “Nos encontramos no olho do furacão”, ao referir-se ao contexto de crise
Para tanto, me preocupei em manter vigilante ao que Velho (1978)
considerou quanto à postura metodológica e a seleção do objeto de estudo. Quanto
à postura investigativa ele tece uma reflexão sobre distanciamento entre sujeitos.
Além do distanciamento físico, ele convoca o pesquisador a pensar no
distanciamento psicológico entre pessoas. Esse distanciamento é fundamental para
se perceber a complexidade das ações sociais em uma pesquisa feita no habitat
natural do pesquisador. É aqui que ele atenta para uma postura por parte do
pesquisador composta de um duplo movimento: de estranhamento ao que lhe é
familiar e de familiarização com os costumes, hábitos, linguagem e grupos que
fazem parte de sua pesquisa que não o seu. Considerar o que Velho (1978) chamou
de mapa social, que seria um arcabouço de ideias preconceituosas, alicerçado numa
hierarquização social entre os grupos também é válido, não para comprar suas
ideias, antes para perceber as relações de hierarquia e diferença que um grupo faz
de si em relação a outrem.
Com essas observações sobre o processo de construção do objeto de
pesquisa, Velho (1978) remete-se a escolha de um método de estudo. Um método
qualitativo – observação participante, entrevista aberta, contato direto com os
sujeitos que circunscrevem o objeto – permite, segundo Velho (1978), que
escolha-se políticas de pequena escala e produza-escolha-se profundas análiescolha-ses! Bem como permite
selecionar uma política próxima ao pesquisador sem que essa proximidade
comprometa inexoravelmente a avaliação. Essa concepção metodológica se opõe à
concepção da ciência moderna que a neutralidade só seria conquistada pelo
distanciamento entre sujeito observador e objeto de avaliação.
No OP Fortaleza fiz aproximações, ao fazer observações ativas. Participei
com voz e voto em vários momentos dos ciclos do OP Fortaleza nas três gestões.
Tomei, por meio de entrevistas e análises de estudos e reportagens, as opiniões,
não raro, divergentes dos vários atores da política.
Entretanto, ferramentas tradicionais de análise não podem ser
desprezadas: levantamento e estudo de documentos oficiais e legais, bem como dos
dados quantitativos também são relevantes para tecer a relação entre texto – os
números, documentos e dados – e contexto – impactos, ações e atitudes durante o
exercício da política. No OP Fortaleza os dados nem sempre coincidiam, mas foram
disponibilizados via internet ou em mãos quando solicitados, restando ao
nos encontros, facilitando essa análise. Contudo, o foco dessa avaliação não era
uma análise quantitativa do OP Fortaleza. Não era, por exemplo, relacionar
diretamente o quantitativo de demandas feitas com as obras e serviços efetivamente
entregues à população ou quantificar a participação popular no decorrer dos anos. O
foco de minha investigação, desde o começo, era qualitativo. Analisar o potencial
democrático da proposta inscrito oficial e explicitamente nos desenhos
metodológicos e nos discursos dos atores. Relacionar com o potencial democrático
inscrito subjetiva e implicitamente nas atitudes, nos atos falhos e nas decisões
tomadas pelos atores, no modo como realmente foram conduzidos os encontros (o
controle e tempo das falas, por exemplo).
Tentei durante os momentos de pesquisa não me descuidar dessas
orientações de Velho (1978). E para dar início à investigação, após a escolha da
política pública a ser avaliada, fiz perguntas22 motrizes.
Tomei cuidado redobrado na elaboração dessas questões antes de
reproduzi-las aqui, apesar de terem sido formuladas em conjunto com outros
pesquisadores e sob a orientação de perspicazes professores-pesquisadores, afinal:
O que caracteriza o trabalho científico – em contraposição ao conhecimento vulgar – não é tanto a exatidão das respostas como o rigor das perguntas. O obstáculo principal que entorpece o avanço do conhecimento científico não é o erro, mas a confusão: umapergunta confusa é muito mais perniciosa do
que uma resposta equivocada, porque os mecanismos corretivos funcionam
muito melhor no segundo caso do que no primeiro. (Grifo meu). (BORÓN, 1994, p. 222).
Essas perguntas me seriam como ponto de partida para que ficasse mais
claro o paradigma avaliativo que estou assumindo em minha dissertação:
Sabendo que uma avaliação é presa a um tempo e espaço determinados
pela observação e observador, em que medida uma avaliação pode apreender a
realidade?
Como se construir uma plurirreferencialidade23 na avaliação?
Que cuidados são necessários ao avaliador para que estabeleça durante
22 Essas questões sobre a perspectiva de avaliação foram selecionadas dentre as diversas perguntas
norteadoras construídas coletivamente em sala de aula pela 7ª turma do Mestrado em Avaliação de Políticas Públicas (MAPP-UFC) em março de 2013 sob a orientação dos professores coordenadores do Curso Alcides Fernando Gussi e Lea Carvalho Rodrigues. Essa reflexão coletiva fora baseada em uma rica reflexão epistemológica sobre os significados da avaliação extraídos de um texto do Professor José Dias Sobrinho (2004).
todo o processo avaliativo os referenciais de observador24 e de observação25
necessários ao rigor científico e ético?
Como fazer o máximo e melhor uso do lugar avaliativo, já que a avaliação
não terá sido encomendada por nenhuma das partes interessadas na política pública
em questão? Como esse uso será ético e responsável? Como detectar e superar os
limites dados a uma avaliação não encomendada? Até que ponto posso exercer
uma neutralidade axiológica? A avaliação atenderá aos interesses públicos –
cidadania, ampliação do poder de decisão – ou ela será um instrumento de controle,
poder e dominação? Ela legitimará a política por meio da coleta de dados ou ela é
realizada de tal forma que possibilite o controle social da política, disponibilizando
aos sujeitos instrumentais críticos para o questionamento e a ação?
Como potencializar uma qualidade avaliativa na mensuração? Para que
os dados objetivos da avaliação quantitativa não reduzam os resultados aos
produtos da política em detrimento do processo nela vivenciados? Como levar em
conta na avaliação a dimensão social e ética sem desprezar as considerações
objetivas? Como executar uma avaliação de política pública que contemple a
dimensão atitudinal dos envolvidos nela? Como fazer um julgamento de valor sem
determinar valores ou os ditos melhores valores? Isto é, sem fugir à ética e a própria
objetividade investigativa? Portanto, até que ponto é possível integrar nessa
perspectiva valores humanos – democracia, liberdade, solidariedade, respeito a
diversidade, equidade? Que importância darei à participação dos destinatários da
política no processo avaliativo?
Em que medida a avaliação terá um caráter formativo para os atores da
política pesquisada? Durante o processo por meio de reflexões provocadas nas
entrevistas? Ao final, pela confraternização dos dados e revisão dos mesmos como
fez Silva (2008)? Ou durante e no final com o constante confrontamento de ideias,
juízos de valor e encaminhamentos por parte de todos os envolvidos como sugerem
Guba & Lincoln (2011)?
Primeiro, pontuarei dois modelos de análise das políticas públicas que
focariam sua origem, antes mesmo da formulação da agenda governamental que as
programaria, sugeridos por Rodrigues (2010). A autora escreve que o pesquisador
deve ficar atento ao que Lindblon chamou de incrementalismo nas políticas públicas.
24 Suas motivações, formação, contingências etc.
Esse modelo de análise das políticas públicas consiste em considerar a relação das
políticas públicas com a política do cotidiano propriamente dita: burocracia, grupos
de interesses, partidos etc. Para Lindblon, as ações do governo não partem do zero,
esse modelo nasce do pressuposto de que o governo não decide sozinho que
políticas irá adotar – não é uma questão puramente técnica. Antes as políticas são
incrementadas, ou não, ao longo do tempo sob relações de poder entre os diversos
grupos que compõem a sociedade. Assim, para esse modelo, o de incrementação, a
eficácia de uma política está diretamente ligada à forma pela qual são
implementadas as políticas públicas. Essa implementação, para ser bem sucedida
deve ocorrer aos poucos sem provocar grandes rupturas (Rodrigues, 2010). Chamo
atenção para esse modelo, pois seu pressuposto, da correlação de forças ampla que
interferem diretamente na criação e condução das políticas públicas, é por mim
tomado como ponto de partida para análise do caráter democrático do OP Fortaleza.
Outro interessante modelo de análise de políticas públicas, registrado por
Rodrigues (2010), é o de Bachrach e Baratz. Esse modelo trata do que o governo
não faz, ou seja, haveria uma “face oculta” no governo que impede a tomada de
decisões ao não incluir determinadas questões na agenda governamental.
No caso do OP Fortaleza, considerei, a partir desses dois modelos de
análise, o importante papel que alguns atores não-oficiais (militância, movimentos
sociais, correntes partidárias, base aliada etc.) da política em questão tiveram nos
bastidores, ainda no período que antecedeu à primeira campanha de Luizianne
Lins26.
Agora, faz-se necessária uma reflexão sobre o paradigma que foi valorizado
nessa trajetória avaliativa. Dentre diversos autores pesquisadores destaco quatro27
que além de terem sido selecionados por refletirem diretamente sobre avaliação de
políticas públicas apresentam perfis avaliativos complementares visto que usam a
racionalidade sob um prisma crítico ao valorizarem o contexto social, econômico e
político da política pública avaliada. Todos os quatro atentam para a complexidade
dos fenômenos políticos bem como articulam elementos quantitativos e qualitativos
o que os caracteriza como avaliadores da área das humanidades. Todos também
contemplam uma dimensão ética do trabalho avaliativo, se toma-se como referência
26 Ver subtítulo 5.3.
27 Na verdade, compreendem cinco pessoas, mas Guba e Lincoln (2011) são tomados como um, por
sobre essa dimensão as reflexões de José Dias Sobrinho sobre avaliação
(SOBRINHO, 2004). As abordagens desses quatro autores também tiveram
destaque nas reflexões coletivas durante as disciplinas do Mestrado em Avaliação
de Políticas Públicas (MAPP). Os quatro autores escolhidos, dentre vários
estudados nessa disciplina, são: Silva e Silva (2008), Guba & Lincoln (2011), Lejano
(2012) e Rodrigues (2008, 2011).
Sintetizo a participação desses quatro autores em meu percurso
metodológico partindo de uma concepção de políticas públicas semelhante a de
Silva e Silva (2008), traduzida nas cinco etapas processuais de uma política pública,
na organização dos dados de pesquisa e em parte dos respectivos instrumentos
avaliativos (SILVA, 2008). Acrescento nesse processo, ainda nos seus primeiros
momentos, a análise de texto e contexto proposta por Rodrigues (2008). Estou, no
decorrer do processo, atento também às interferências que poderão revolucionar
esse quadro, como as respostas dos atores da política estudada devido às
interações com os mesmos (GUBA & LINCOLN, 2011). Foco os aspectos mais
profundos da política, em uma abordagem preocupada mais com elementos
qualitativos (RODRIGUES, 2008), partindo das concepções de dentro da política
para compreende-la em sua complexidade, permitindo que a própria experiência
com a política norteie todo o processo avaliativo (LEJANO, 2012).
Para justificar esse percurso metodológico, sinto a necessidade de tratar
das quatro gerações das abordagens avaliativas que, por sua vez, estiveram
alicerçadas em paradigmas científicos distintos, como também descrever
brevemente as abordagens metodológicas de cada um dos quatro pesquisadores
escolhidos.
Assim, posso listar três grandes paradigmas da avaliação institucional:
O primeiro seria o paradigma positivista (ou clássico, funcionalista), já
explicitado anteriormente ao refletir-se sobre o texto “Um discurso sobre as ciências”
de Santos, que tem como concepção de ciência o paradigma metafísico-racionalista.
Neste paradigma a avaliação supervaloriza o técnico, o que pode ser medido, logo,
elementos quantitativos. Este paradigma influenciou as três primeiras “gerações” de
avaliação conforme Guba & Lincoln (2011): a da mensuração a da descrição e a do
juízo de valor.
Antes de começar a tratar das abordagens avaliativas de quarta geração