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Você não viu nada: memória e testemunho em Hiroshima mon amour, de Marguerite Duras

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Você não viu nada: memória e testemunho em Hiroshima mon amour, de Marguerite Duras

Isabela Magalhães Bosi (PUC-SP)1 (isabelabosi@gmail.com)

Resumo: Hiroshima mon amour (1959) foi escrito por Marguerite Duras como roteiro para o filme homônimo de Alain Resnais, no qual ela constrói um diálogo entre dois amantes sem nome, um japonês ex-combatente de guerra e uma atriz francesa, que se conhecem em Hiroshima, durante a gravação de um filme sobre a paz, no qual ela atua. O diálogo começa com a personagem contando ao amante tudo o que viu na cidade, os museus, as imagens, os corpos deformados dos sobreviventes do bombardeio atômica. Após escutá-la, ele responde, categórico: Tu n'as rien vu à Hiroshima. Ciente da impossibilidade de representação das catástrofes do século XX, dos horrores da Segunda Guerra Mundial, do que não cabe na palavra, nem na imagem, Duras tece a memória debilitada dessa personagem francesa, e seus traumas de guerra, com o inalcançável do bombardeio atômico no Japão. Nosso objetivo, portanto, é analisar como essa impossibilidade se articula, a partir da construção de um testemunho intestemunhável e de elaboração de outras memórias, com e na escrita. Para tanto, dialogamos com o pensamento de Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Márcio Seligmann-Silva, Jeanne Marie Gagnebin, entre outros, que nos ajudam a aprofundar nossa análise da obra de Duras, considerando as categorias memória e testemunho como conceitos centrais desta pesquisa.

Palavras-chave: Marguerite Duras; Memória; Testemunho; Literatura.

Résumé: Hiroshima mon amour (1959) a été écrit par Marguerite Duras comme scénario du film éponyme d'Alain Resnais, dans lequel elle construit un dialogue entre deux amants sans nom, un japonais ancien combattant de guerre et une actrice française, qui se rencontrent à Hiroshima, pendant le tournage d'un film sur la paix, dans lequel elle joue. Le dialogue commence avec la personnage racontant à l'amant tout ce qu'elle a vu dans la ville, les musées, les images, les corps mutilés, les traces de l'explosion atomique. Après l'avoir écouté, il répond catégoriquement: Tu n'as rien vu à Hiroshima. Conscient de l'impossibilité de représenter les catastrophes du 20e siècle, les horreurs de la Seconde Guerre mondiale, de ce que ni le mot ni l'image peut expliquer, Duras aporte le faible souvenir de cette personnage française, et de ses traumatismes de guerre, avec l’inaccessible de les bombardements atomiques au Japon. Notre objectif, il s'agit donc d'analyser comment s'articule cette impossibilité de construire un témoignage intolérable, avec et dans l’écriture. Pour ça, nous dialoguons avec Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Márcio Seligmann-Silva, Jeanne Marie Gagnebin, entre autres, qui nous aident à approfondir l'analyse de l'oeuvre de Marguerite Duras, en considérant les catégories mémoire et témoignage comme des concepts centraux de cette recherche.

Mots-clés: Marguerite Duras; Mémoire; Témoignage; Littérature.

1 Doutoranda em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP), mestra em Memória Social (UNIRIO) e graduada em Jornalismo (UFC). Autora dos livros Bar do Anísio: casa de liberdades (2013), Quase (2019) e Sobre viver (2019).

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I.

A história se passa em agosto de 1957, em Hiroshima. Uma atriz francesa, de uns trinta anos, está na cidade para gravação de um filme sobre a paz. É véspera de seu retorno à França. Ela está com um homem japonês. De início, vemos seus corpos entrelaçados em um abraço – o que nos impede de distinguir quem é quem – que se intercala com imagens de corpos mutilados, de sobreviventes, crianças, idosos, cenas da devastação causada pelo bombardeio atômico.

Eles estão deitados em uma cama de hotel, nus, intactos, enquanto ela conta ao amante tudo o que viu em Hiroshima. Ele, taxativo, lhe responde: Tu n'as rien vu à Hiroshima. Rien. Ao que ela contesta, dizendo: J'ai tout vu. Tout (DURAS, 1960, p. 22)2. O diálogo segue:

Elle: Ainsi l'hôpital, je l'ai vu. J'en suis sûre. L'hôpital existe à Hiroshima. Comment aurais-je pu éviter de le voir?

Lui: Tu n'as pas vu l'hôpital à Hiroshima. Tu n'as rien vu à Hiroshima. Elle: Quatre fois au musée...

Lui: Quel musée à Hiroshima?

Elle: Quatre fois au musée à Hiroshima. J'ai vu les gens se promener. Les gens se promènent, pensifs, à travers les photographies, les reconstitutions, faute d'autre chose, à travers les photographies, les photographies, les reconstitutions, faute d'autre chose, les explications, faute d'autre chose. Quatre fois au musée à Hiroshima. J'ai regardé les gens. J'ai regardé moi- même pensivement, le fer. Le fer brûlé. Le fer brisé, le fer devenu vulnérable comme la chair. (...) (DURAS, 1960, p. 23-24)3

Ela continua narrando tudo o que viu, ou acredita ter visto, enquanto o japonês repete, insistentemente, que ela não viu nada. Trata-se do início de Hiroshima mon amour, texto escrito por Marguerite Duras como roteiro para o filme homônimo de Alain Resnais, de 1959, no qual ela constrói um diálogo entre esses dois amantes – de quem jamais saberemos os nomes –, um japonês ex-combatente de guerra e uma atriz francesa, que se conhecem em Hiroshima. O texto começa, como vimos acima, com a personagem contando ao amante tudo o que viu na cidade, os museus, as imagens, os destroços causados pela bomba atômica, em 6 de agosto de 1945. O

2 Tradução nossa: “Você não viu nada em Hiroshima. Nada.” / “Eu vi tudo. Tudo.”

3 Tradução nossa: “Ela: Assim, o hospital, eu o vi. Tenho certeza. O hospital existe em Hiroshima. Como poderia evitar vê-lo? / Ele: Você não viu o hospital em Hiroshima. Você não viu nada em Hiroshima. / Ela: Quatro vezes no museu... / Ele: Qual museu em Hiroshima? / Ela: Quatro vezes no museu em Hiroshima. Eu vi pessoas andando. As pessoas caminham, pensativas, pelas fotografias, pelas reconstruções, por falta de outra coisa, pelas fotografias, as fotografias, as reconstruções, por falta de outra coisa, as explicações, por falta de outra coisa. Quatro vezes no museu de Hiroshima. Eu olhei para as pessoas. Eu me olhei pensativamente, o ferro. O ferro queimado. O ferro quebrado, o ferro se torna vulnerável como a carne. (...)”.

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japonês – que estava lutando na guerra neste dia, mas perdeu todos os familiares na explosão – responde, friamente, que ela não viu nada em Hiroshima.

O roteiro foi publicado, em 1960, como livro. No prefácio da primeira edição francesa, Duras diz: “Impossible de parler de HIROSHIMA. Tout ce qu'on peut faire c'est de parler de l'impossibilité de parler de HIROSHIMA. La connaissance de Hiroshima étant a priori posée comme un leurre exemplaire de l'esprit” (DURAS, 1960, p. 10)4. Ciente da impossibilidade de falar de Hiroshima – palavra que, no livro, aparece quase sempre em maiúsculas, como um grito –, do que não cabe na palavra, nem na imagem, ela escreve justamente sobre o impossível. Compreender Hiroshima seria como uma ilusão da mente, uma fantasia, um devaneio, nunca uma realidade. Assim, a autora nos põe de frente para essa atriz, contando tudo o que (não) viu, que jamais poderia ver. Estamos diante, também, do que jamais veremos, ainda que assistamos infinitas vezes a filmes, que visitemos infinitas vezes museus, vejamos todas as fotografias, tudo isso que resta de e em Hiroshima.

Não à toa essa personagem está na cidade para gravação de um filme edificante sobre a paz ou, como escreve Duras, “un film DE PLUS, c'est tout”5 (DURAS, 1960, p. 14). Não se trata de um filme totalmente ridículo, mas um filme a mais, apenas – precisamente o que não lhe interessa como autora. Se pensarmos com Georges Didi-Huberman, no texto Cascas (2017), esse “a mais” pode ser entendido também como o que ele chama de “lugar de cultura”. Após visitar Auschwitz, hoje, um museu, e se deparar com galpões transformados em estandes comerciais e espaços de exposição, ele escreve: “Auschwitz como Lager, lugar de barbárie, sem dúvida foi transformado em lugar de cultura, Auschwitz 'museu de Estado', e assim é melhor” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 105). O autor, então, (se) pergunta: “o que dizer quando Auschwitz deve ser esquecido em seu próprio lugar, para constituir-se como um lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz?” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 108).

A personagem francesa, insistente em provar ter visto tudo em Hiroshima, continua contando tudo o que viu, dizendo que

les reconstitutions ont été faites le plus sérieusement possible. Les films ont été faits le plus sérieusement possible. L'illusion, c'est bien simple, est tellement parfaite que les touristes pleurent. On peut toujours se moquer mais que peut faire d'autre un touriste que, justement, pleurer? (DURAS, 1960, p.

4 Tradução nossa: “Impossível falar de HIROSHIMA. Tudo o que podemos fazer é falar sobre a impossibilidade de falar sobre HIROSHIMA. O conhecimento de Hiroshima sendo a priori posto como uma ilusão exemplar da mente”.

5 Tradução nossa: “um filme A MAIS, isso é tudo”.

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Ela narra repetitivas visitas ao museu, à Praça da Paz, atenta às imagens dos corpos feridos, dos ferros queimados, essas reconstituições que fazem com que os turistas chorem – e o que pode um turista, se não chorar? Tudo o que diz ter visto, contraditoriamente, apenas atesta o que não viu em Hiroshima, da mesma forma que já não é possível ver Auschwitz, pois esses lugares de barbárie são, hoje, lugares de cultura, fictícios – ilusões. No entanto, Didi- Huberman – e, certamente, Duras – não defende que nada seja feito, escrito, filmado, dito sobre Auschwitz, mas sim que desconfiemos daquilo que vemos, buscando

saber mais, ver, apesar de tudo. Apesar da destruição, da supressão de todas as coisas. Convém saber olhar como um arqueólogo. E é através de um olhar desse tipo – de uma interrogação desse tipo – que vemos que as coisas começam a nos olhar a partir de seus espaços soterrados e tempos esboroados. (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 127).

Esse olhar arqueológico também é evocado, de outros modos, e anos antes, por Walter Benjamin, em textos como Escavar e recordar, do início dos anos 1930, onde ele escreve que

“quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem que se comportar como um homem que escava” (BENJAMIN, 2018, p. 219). Para Benjamin, esse trabalho de escavação – e recordação –, exige que não haja receio em regressar muitas vezes à matéria, revolver o solo da memória. De modo análogo, para ver Auschwitz, ou Hiroshima, seria preciso ver apesar da supressão de tudo, nos espaços submersos, no que não está (ex)posto, no que escapa ao lugar de cultura e aponta, ainda, para o passado, esse lugar de barbárie – como as bétulas de Birkenau, testemunhas de todo o massacre em Auschwitz.

Além do olhar de escavador, outro elemento se mostra como aliado nessa tarefa de ver apesar de tudo: a imaginação. Para Didi-Huberman, se algo é inimaginável – como Auschwitz, Hiroshima e tantas outras catástrofes – deveríamos, paradoxalmente, “imaginá-lo apenas de tudo”, buscando “representar alguma coisa pelo menos, um mínimo do que é possível saber” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 111). Esse parece ser o gesto, poético e político, de Duras em Hiroshima mon amour: mais do que escavar o solo simbólico-real de Hiroshima, imaginar esse lugar, no impossível dessa memória. Se não se pode ver nada em Hiroshima – Tu n’as rien vu a Hiroshima –, é esse nada o que vemos, a todo momento, em sua obra. Um nada que ocupa o espaço do inimaginável, que devemos imaginar.

6 Tradução nossa: “as reconstituições foram feitas o mais seriamente possível. Os filmes foram feitos o mais seriamente possível. A ilusão, é muito simples, é tão perfeita que os turistas choram. Podemos sempre zombar disso, mas o que mais um turista pode fazer do que, justamente, chorar?”.

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II.

Após o diálogo inicial dos amantes, nus em uma cama de hotel7, Hiroshima deixa de ser assunto para ocupar exclusivamente o cenário do filme, como plano de fundo – não esquecemos onde estamos. Eles se despedem de manhã, depois de uma noite juntos, para se reencontrarem horas depois, no set de filmagem, onde a atriz acaba de gravar sua última cena no filme, na praça da Paz, vestida de enfermeira da Cruz Vermelha – “éternelle infirmière d’une guerre éternelle...” (DURAS, 1960, p. 13)8. Ao redor deles, muitos figurantes seguram cartazes e encenam um desfile para esse filme: “Défilés d'enfants, défilés d'étudiants. Chiens. Chats. Badauds. Tout HIROSHIMA sera là comme il l'est toujours lorsqu'il s'agit de servir la Paix dans le monde. Défilé déjà baroque” (DURAS, 1960, p. 14)9.

Os amantes, então, deixam a praça e vão para um café, onde a conversa não é mais sobre Hiroshima, mas se volta para o passado da francesa, para suas memórias de guerra, na pequena cidade de Nevers, na França, onde vivia, até a vitória dos aliados, em 1945. Ela lembra de quando ficou completamente louca, aos vinte anos, após sua primeira história de amor, com um soldado alemão, morto em seus braços durante a liberação da França. Seus pais, envergonhados de a filha ter se envolvido com o inimigo, lhe raspam a cabeça e a trancam no porão de casa. Duras, então, mistura imagens de Nevers com imagens dos amantes, e dos copos de cerveja que a francesa bebe avidamente enquanto conta sua história, esse passado que não passa.

Saímos, assim, da impossibilidade de ver Hiroshima e entramos na impossibilidade de narrar dessa personagem, como os combatentes de Walter Benjamin, mudos no retorno dos campos de batalha (BENJAMIN, 2012, p. 214). A população da qual fala Benjamin, em seu texto O narrador, desabrigada no final da Primeira Guerra, em que nada havia restado, chega ao extremo da pobreza de experiência no final da Segunda Guerra – sobre a qual Benjamin, judeu, morto em 1940, não pôde escrever.Provocada pelo amante japonês, a personagem vai, aos poucos, e sem muita clareza, dando o seu testemunho – o que, antes de dizer uma verdade, diz sempre de uma perda, como escreve Raul Antelo, em Subjetividade, Extimidade:

7 Na sinopse do roteiro, Duras diz que sua escolha, ao colocar dois amantes nus na cama, falando dos horrores de Hiroshima, é voluntária: “On peut parler de HIROSHIMA partout, même dans un lit d'hôtel, au cours d'amours de rencontre, d'amour adultères” / “Pode-se falar de HIROSHIMA em qualquer lugar, mesmo numa de hotel, durante um encontro amoroso, do amor adúltero” (tradução nossa) (DURAS, 1960, p. 10). Ela segue, dizendo que não vale a pena sermos hipócritas, que não há sacrilégio em falar de Hiroshima na cama de um hotel. Se há algum sacrilégio, seria Hiroshima em si mesma.

8 Tradução nossa: “Eterna enfermeira de uma guerra eterna...”.

9 Tradução nossa: “Desfiles de crianças, desfiles de estudantes. Cães. Gatos. Espectadores. Toda HIROSHIMA lá, como sempre quando se trata de servir à Paz no mundo. Desfile já barroco”.

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o horizonte do testemunho nunca é o da completude do uno, senão o da hiância, onde a disparidade de um real está alojada sem estar integrada, transmitindo-se sem ser captada. Assim, não há que se esperar do testemunho uma informação completa, uma vez que aquilo que nele se transmite são sempre modalidades da perda. Porém, não obstante essa perda, às vezes, surge, nesses enunciados, a centelha da satisfação, que ocorre justamente quando, no próprio texto – sempre insuficiente por definição –, o Outro chega a entender o que está mais além, chega a compreender justamente o oco no fracasso do dizer. (ANTELO, 2009, p. 56)

O testemunho, segundo Antelo, e no texto do Duras, se arma precisamente na perda, nas lacunas, no vazio do fracasso do dizer, no intervalo entre o que existe e o que pode ainda existir – a literatura. Indo do rien vu à Hiroshima para a memória debilitada dessa atriz francesa, Duras compõe um roteiro que escapa dos riscos de uma comemoração, propondo, por outro lado, um trabalho de rememoração.

Jeanne Marie Gagnebin, no texto Memória, história, testemunho, publicado em seu livro Lembrar escrever esquecer (2009), diz que, diante da dificuldade de narrar e lembrar, evocada por Benjamin, há de se ter cuidado para não cair em “uma boa vontade piegas”, na qual “o dever de memória corre o risco de recair na ineficácia dos bons sentimentos ou, pior ainda, numa espécie de celebração vazia, rapidamente confiscada pela história oficial” (GAGNEBIN, 2009, p. 54-55). Gagnebin, ainda pensando com Benjamin, difere “comemoração” de “recordação”, pois a primeira “desliza perigosamente para o religioso ou, então, para as celebrações de Estado, com paradas e bandeiras”, e a segunda inclui “aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras” (GAGNEBIN, 2009, p. 55).

Duras, não à toa, e de forma bastante sofisticada, traz para seu roteiro essa atriz, que está em Hiroshima para a gravação de um filme edificante sobre a paz, um tipo de celebração com desfiles e bandeiras. E essa atriz, que acredita ter visto tudo em suas visitas a museus, que atua em um filme sobre a paz em Hiroshima, é justamente essa atriz quem tentará, sempre com incompletudes e falhas, recordar o próprio passado – que é, também, o passado dessa guerra infinita.

Gagnebin conclui a reflexão acima dizendo que “não se trata somente de não esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente”, pois somente com a “retomada reflexiva do passado” podemos tentar não “repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2009, p. 55, p. 57). O testemunho que Duras constrói não nos põe simplesmente diante da dificuldade de ver e contar o passado dessa guerra, mas, como sugere Gagnebin, provoca um agir sobre o presente para, quem sabe, inventar outros futuros.

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III.

Em outro texto, intitulado “Após Auschwitz”, Gagnebin, agora pensando com Theodor W. Adorno, aponta para

duas exigências paradoxais dirigidas à arte depois de Auschwitz: lutar contra o esquecimento e o recalque, isto é, lutar igualmente contra a repetição e pela rememoração; mas não transformar a lembrança do horror em mais um produto cultural a ser consumido; evitar, portanto, que 'o princípio de estilização artístico' torne Auschwitz representável, isto é, com sentido, assimilável, digerível, enfim, transforme Auschwitz em mercadoria que faz sucesso (como fazem sucesso, aliás, vários filmes sobre o Holocausto, para citar somente exemplo oriundos do cinema). (GAGNEBIN, 2009, p. 79)

Atenta a esses riscos, e sensível às discussões em torno das (tentativas) de representação das catástrofes do século XX, Duras escreve no e com o oco do fracasso do dizer. Desse modo, ela não se rende facilmente à criação de um produto cultural, da arte como mera mercadoria, mas cria uma narrativa no impossível da linguagem, colocando espectador, e leitor, diante da importância de (re)construção de memórias que não sejam a simples repetição de uma memória oficial.

É Adorno quem formula a célebre frase: “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque hoje se tornou impossível escrever poemas”. (ADORNO, 1998, p. 26). O que ele defende, com essa ideia, não é que deixemos de fazer poesia, mas que tomemos cuidado para não, simplesmente, lembrar de Auschwitz, e sim nos esforçar para que algo parecido não aconteça outra vez. Um esforço, portanto, “muito mais de uma luta contra o esquecimento que de atividades comemorativas, solenes, restauradoras, de 'resgate', como se fala muito hoje” (GAGNEBIN, 2009, p. 101). E essa luta se faz necessária, cada vez mais, porque não há apenas uma tendência ao esquecimento, mas uma vontade de esquecer.

Embora Adorno e Gagnebin estejam falando de Auschwitz, podemos estender o mesmo pensamento para Hiroshima, em que mais de 100 mil pessoas foram mortas só no dia da explosão, sem contar com as milhares que morreram ou ficaram gravemente feridas com a radiação. Cerca de 60 mil edifícios foram, instantaneamente, reduzidos a escombros e o calor exorbitante provocou incêndios que duraram três dias, por sete quilômetros de extensão. A partir daí, a chuva passa a dar medo, a água do Pacífico mata, os peixes morrem, os pescadores morrem, o alimento de toda uma cidade vira lixo (DURAS, 1960, p. 30)10.

10 Referência a seguinte fala da personagem francesa, quando conta ao amante tudo o que viu: “La pluie fait peur.

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Depois de negar que a amante francesa viu tudo em Hiroshima, o japonês lhe pergunta:

“Et pourquoi voulais-tu voir tout à Hiroshima?” (DURAS, 1960, p. 41)11. Ela responde: “Par example, tu vois, de bien regarder, je crois que ça s’apprend” (DURAS, 1960, p. 41)12. É preciso, pois, olhar para aprender e não esquecer para não repetir o passado. Esse não- esquecimento, porém, não se dá de forma pacífica, mas é antes, e sempre, uma luta, um esforço por escavar, por imaginar, e por resistir à celebração.

A personagem, quando começa a contar próprio passado ao japonês, diz que lutou, por sua conta, e com toda a força, cada dia, contra o horror da possibilidade de, alguma dia, deixar de entender o porquê de se lembrar: “Pourquoi nier l’évidente nécessité de la mémoire?”13. Diante de uma dor insuportável, de um luto proibido, da loucura, lembrar se torna uma luta diária para não deixar que se apague a memória desse amor, da violência dessa guerra. Uma luta contra a vontade de esquecer em contraste com a necessidade evidente da memória, que também persegue os sobreviventes da Shoah, segundo Giorgio Agamben, em O que resta de Auschwitz: “o sobrevivente tem a vocação da memória, não pode deixar de recordar” (AGAMBEN, 2008, p. 36).

Para Agamben, o que resta de Auschwitz é justamente a lacuna, a falta de testemunhas, pois, pensando com Primo Levi, as únicas testemunhas possíveis são as que não resistiram, enquanto “os sobreviventes davam testemunho de algo que não podia ser testemunhado” (AGAMBEN, 2008, p. 21). O testemunho, nesses casos, vale por aquilo que lhe falta, pelo que se constrói entre o possível e o impossível do dizer. Assim, ele diz: “os poetas – as testemunhas – fundam a língua como o que resta, o que sobrevive em ato à possibilidade – ou à impossibilidade – de falar” (AGAMBEN, 2008, p. 160). Agamben põe, lado a lado, testemunha e poeta, ou mesmo poeta como testemunha e testemunha como poeta. Algo como o que Márcio Seligmann-Silva elabora, no artigo Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes (2005), ao dizer que O testemunho revela a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e impossível, entre o “real” e o simbólico, entre o “passado” e o “presente”. Se o “real” pode ser pensado como um “desencontro” (algo que nos escapa como o sobrevivente o demonstra a partir de sua situação radical), não deixa de ser verdade que a linguagem e, sobretudo, a linguagem da

Des pluies de cendres sur les eaux du Pacifique. Les eaux du Pacifique tuent. Des pêcheurs du Pacifique sont morts. La nourriture fait peur. On jette la nourriture d’une ville entière. On enterre la nourriture de villes entièrres” / “A chuva é assustadora. Chuvas de cinzas sobre as águas do Pacífico. As águas do Pacífico matam. Pescadores do Pacífico morreram. A comida é assustadora. Joga-se fora a comida de uma cidade inteira. Enterra-se a comida de cidades inteiras” (tradução nossa) (DURAS, 1960, p. 32).

11 Tradução nossa: “E por que você queria ver tudo em Hiroshima?”.

12 Tradução nossa: “Por exemplo, você vê, se olharmos bem, eu acho que isso pode ser aprendido”.

13 Tradução nossa: “Por que negar a clara necessidade da memória?”.

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poesia e da literatura, busca esse encontro impossível. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 81- 82).

Esse encontro impossível é onde a escrita de Duras se situa. Do rien vu à Hiroshima, das imagens dos museus, do filme sobre a paz, à tentativa dessa personagem de não esquecer, de não perder a memória desse amor, dessa dor, isso que constitui – ou pode constituir – alguma invenção de outros futuros.

Seligmann-Silva diz, em outro texto, Narrar o trauma: a questão dos testemunhos em catástrofes históricas (2008), diz que todo testemunho se dá no presente, que “na situação testemunhal o tempo passado é tempo presente. (...) o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 69). Mas esse presente do testemunho aponta também, e incessantemente, para o que Gilles Deluze, em Crítica e Clínica (1997), chama de “um devir sempre contemporâneo”, que se manifesta na narrativa de um “fragmento anônimo infinito” (DELEUZE, 1997, p. 129).

Deleuze se refere à obra de Samuel Beckett, escritor que, como Duras, participou da Resistência Francesa, durante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial. Tanto em Beckett como em Duras – e muitos outros autores do mesmo período –, cada um à sua maneira, podemos notar a presença dessa narrativa fragmentária, de um eu sempre debilitado, partido, mas que indica esse devir, sempre contemporâneo, por ser tecido no presente dessa escrita- testemunho.

Se, em Beckett, nunca estamos seguros da voz que fala, muitas vezes despersonalizada, sem um corpo reconhecível, em Hiroshima mon amour não nos é dado conhecer o nome desses amantes. Ficamos diante de duas pessoas que não dizem como se chamam em momento algum, a não ser no fim da narrativa, quando a francesa, olhando para o japonês, lhe diz “Hiroshima, c’est ton nom” e ele, olhando-a de volta, responde “C’est mon nom. Oui.” (DURAS, 1960, p. 124)14. Sobre essa cena final, Duras escreve:

Simplement, ils s'appelleront encore. Quoi? NEVERS, HIROSHIMA. Ils ne sont en effet encore personne à leurs yeux respectifs. Ils ont des noms de lieu, des noms qui n'en sont pas. C'est, comme si le désastre d'une femme tondue àNEVERS et le désastre de HIROSHIMA se répondaient EXACTEMENT. Elle lui dira: 'Hiroshima, c'est ton nom.' (DURAS, 1960, p. 17)15

14 Tradução nossa: “Hiroshima é o seu nome” / “É o meu nome. Sim.”.

15 Tradução nossa: “Eles simplesmente se chamarão outra vez. O quê? NEVERS, HIROSHIMA. Na verdade, eles ainda não são ninguém aos seus respectivos olhos. Eles têm nomes de lugares, nomes que não são. É como se o desastre de uma mulher de cabeça raspada em NEVERS e o desastre de HIROSHIMA se correspondessem EXATAMENTE. Ela dirá a ele: 'Hiroshima, esse é o seu nome.'”.

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Eles possuem nomes de lugar ou, como ela diz acima, nomes que não são. Talvez essa seja, também, uma forma de dizer que não importa quem são essas pessoas, suas identidades, mas, sim, aquilo que elas dizem, seja com palavras ou com silêncios. E elas contam, justamente, de Nevers e de Hiroshima. Assim, Duras não difere as tragédias dessa mulher e desse homem, da França e do Japão, de um primeiro amor perdido e de uma cidade inteira perdida, porque são, todas elas, resultado de uma mesma barbárie, uma mesma a guerra infinita.

IV.

Quando a personagem francesa é liberta do porão – onde seus pais lhe mantiveram presa por um tempo que ela não saberia contar, um tempo suficiente para enlouquecer –, sua mãe lhe dá uma bicicleta e a manda ir para Paris, como uma fugitiva. Ela chega lá no dia 6 de agosto de 1945, com a notícia da explosão atômica em Hiroshima. A princípio, lhe pareceu ser finalmente o fim da guerra. Logo depois, teve início um novo medo, desconhecido. Era um dia bonito de verão em Paris. Hiroshima devastada e ela também.

Referências

ADORNO, Theodor W. Crítica cultural e sociedade. Tradução de Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. Prismas. São Paulo: Ática, 1998.

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

ANTELO, Raul. Subjetividade, Extimidade. Boletim de Pesquisa NELIC, v. 9, n. 14, Florianópolis, p. 54-65, ago. 2009.

BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento. Tradução de João Barrento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2018.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Tradução de André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017. DURAS, Marguerite. Hiroshima Mon Amour. Paris: Éditions Gallimard, 1960.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto História, v. 30, São Paulo, p.71-98, jun. 2005.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos em catástrofes históricas. Revista Psicanálise Clínica, v. 20, n. 1, Rio de Janeiro, p. 65-82, 2008.

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