O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO TÉCNICO DO IFPR: A TÉHKNE FILOSÓFICA COMO QUESTIONAMENTO DE NOSSA EXPERIÊNCIA COM A TÉCNICA, DANIEL SALÉSIO VANDRESEN, RODRIGO PELLOSO GELAMO, UNESP/MARÍLIA. daniel.vandresen@ifpr.edu.br, gelamo@gmail.com.
Filosofia e História da Educação no Brasil
RESUMO
Este projeto de pesquisa de doutorado propõe refletir sobre o ensino de filosofia como formação crítica sobre si mesmo e como condição para uma educação tecnológica emancipadora no Instituto Federal do Paraná (IFPR). O estudo tem como objeto de investigação compreender o papel do ensino de filosofia na formação do Ensino Técnico de nível médio, tendo como problematização: por um lado, analisar o contraste entre uma subjetividade submetida (questão do Capital Humano) e uma subjetividade autônoma (questão da resistência/política e de novas formas de vida/ética-estética), por outro lado, refletir sobre o ensino de filosofia como téhkne filosófica do cuidado de si. Optou-se pela fundamentação teórica em Michel Foucault, pois o mesmo compreende a constituição da subjetividade em diferentes aplicações do conceito de tecnologia (tecnologia de produção, de signos, de dominação e tecnologias do eu). A metodologia se realizará através de coleta de dados sobre o plano de ensino do componente curricular de filosofia nos cursos técnicos de nível médio do IFPR, bem como sua análise crítica através da perspectiva teórica foucaultiana.
Palavras-chave: filosofia; subjetividade; tecnologias do eu.
Introdução
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia têm sua origem com a lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, a qual institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, vinculada ao Ministério da Educação no âmbito do sistema federal de ensino. O Instituto Federal do Paraná (IFPR) começou suas atividades em 2009 e tem em sua especificidade de ensino a formação técnica de nível médio até a pós-graduação, sendo que o que chama atenção é sua expansão do ensino de nível médio. Como a identidade do IFPR é promover a educação profissional e tecnológica, esta pesquisa de doutorado
1visa discutir, a partir do ensino da filosofia, o seu papel na formação de uma subjetividade autônoma. Sendo uma instituição recente torna-se ainda mais indispensável pensar os rumos
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O texto trata-se de uma pesquisa de doutorado em educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da
UNESP de Marília, sob a orientação do prof. Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo.
que suas propostas pedagógicas curriculares traçarão para conquistar uma educação emancipatória.
Vivenciamos um contexto de amplitude do avanço científico e tecnológico, expresso nas diversas conquistas tecnológicas e nos objetos produzidos, mas que também invade a vida (a existência, a subjetividade) e difunde-se também pela educação tecnológica. Diante deste cenário e da proposta de política pública educacional de educação profissional, esta investigação sobre o ensino de filosofia no Ensino Médio Técnico tem por objetivo tematizar duas problematizações: uma diz respeito a subjetividade exigida na formação técnica; e a outra, se refere ao sentido do ensino da filosofia como formação sobre si mesmo.
Sobre a questão da subjetividade deve-se perguntar: a que propósitos respondem a formação de uma subjetividade flexível na educação tecnológica: uma subjetividade submetida (adaptação ao modelo econômico) ou como autonomia (resistência, liberdade de pensamento e constituição de si mesmo)?
A teoria do Capital Humano (FOUCAULT, 2008, p. 315s), desenvolvida por Foucault no livro Nascimento da Biopolítica, torna-se uma ferramenta importante para analisar e desvelar os interesses econômicos que agem sobre a educação com a finalidade de construir uma subjetividade a partir de uma pedagogia das competências, como, por exemplo, o discurso do empreendedorismo (GADELHA, 2009), a formação permanente como sujeição (ARANHA, 1996, p. 244) e a relação entre o capital humano e o neoliberalismo (VEIGA- NETO, 2011).
No texto As Tecnologias do Eu (1993) Foucault apresenta quatro tipos de técnicas/tecnologias que são base para a formação das racionalidades práticas:
[...] estas técnicas podem ser divididas em quatro grupos, cada uma das quais é uma matriz da razão prática: 1) as técnicas de produção pelo qual podemos produzir, transformar e manipular objetos; 2) os sistemas técnicos de signos, que permitem o uso de signos, os significados, os símbolos ou as significações; 3) as técnicas de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, para submetê-los a determinados fins ou dominação, objetivando enquanto sujeito; 4) as técnicas do eu, que permitem aos indivíduos realizar, sozinho ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e almas, pensamentos, conduta, seu modo de ser; para transformar a fim de atingir um estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade (FOUCAULT, 1994, p. 785, tradução nossa).
Foucault admite que em seus estudos privilegiou as duas últimas técnicas
(tecnologias de dominação e técnicas de si). E embora elas não atuem de modo independente
uma em relação as outras, cada uma delas atua modificando a conduta do indivíduo por meio
de práticas educacionais que visam adquirir um conjunto de habilidades e também de
comportamentos. Assim afirma: “Cada tipo implica certos modos de educação e
transformação dos indivíduos, na medida em que não é apenas, evidentemente, para a aquisição de certas habilidades, mas também adquirir certas atitudes” (FOUCAULT, 1994, p.
785, tradução nossa). Esse foi, por exemplo, as análises de Foucault (2008) sobre o conceito de Capital Humano na obra Nascimento da Biopolítica, onde descreve sobre a formação de um sujeito flexível e criativo capaz de múltiplas habilidades, que o permitem alcançar os fins desejados para atender a racionalidade objetivista que impera na economia.
Para Foucault (1994) esses poderes que direcionam a subjetividade na modernidade devem ser pensados a partir das tecnologias de dominação, como o poder disciplinar e o biopoder, e, também, questionadas a partir das tecnologias do eu, da liberdade e da resistência, em busca de novos estilos de existência. Este empreendimento teórico constitui uma ferramenta importante para analisar as formas de liberdade rompendo com um modelo de pensamento que se conduz predominantemente pela racionalidade instrumental. Daí a importância desta reflexão para o Ensino Técnico, o qual predominantemente se conduz por uma racionalidade governada por princípios técnicos e científicos.
Esse diagnóstico do presente permite que o autor francês conceba a técnica moderna, em sua determinação instrumental, como produção de uma subjetividade assujeitada. Seus estudos genealógicos sobre as tecnologias dominação (de poder e de biopoder) permitem compreender que os conceitos de técnica e tecnologia, entendida pelo autor como tática e estratégia, funcionam na mesma lógica objetivante da técnica que está presente nas técnicas de produção e, assim, determinam os propósitos pelos quais os sujeitos são objetivados.
No caso da educação moderna, quando limitada ao uso de técnicas para formação de competências do sujeito econômico, converteu-se em tecnologia de dominação. Isso pode ser percebido nos processos de ensino-aprendizagem, que alicerçados em princípios da objetividade técnica não possibilitando o espaço formativo existencial, ético e político. Deste modo, a educação moderna transforma-se em tecno-saber, ou seja, um saber que é profundamente marcada pela objetividade técnica. Estes procedimentos funcionam como um
“poder biotécnico” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. XXII), um poder que controla a vida por procedimentos técnicos. Dito de outra maneira, a educação transforma-se em um saber biotécnico, pois a objetividade de seu saber técnico tem por finalidade gerir a vida pela lógica da formação do Capital Humano.
Neste sentido, torna-se importante a problematização, a partir da perspectiva
foucaultiana, da articulação das tecnologias de produção e as tecnologias de poder com a
produção dos saberes, as quais transformam os indivíduos em produtores de produtos, um
equipamento do capital. Esta temática deve ser presença imprescindível no currículo do
Ensino Técnico, pois a formação do pensamento crítico depende do constante questionamento sobre o conceito de tecnologia. O profissional formado em cursos de ensino técnico precisa ter consciência de que uma opção tecnológica não pode ser reduzida a sua dimensão estritamente técnica. E que a implantação de sistemas tecnológicos (tecnologias de produção), bem como a opção por certos eixos tecnológicos como objeto de formação escolar, devem ser relacionados com as tecnologias de poder presente na tomada de decisão de determinados atores sociais.
A segunda problematização diz respeito ao ensino da filosofia no Ensino Técnico. O ensino da filosofia precisa ir além do tradicional ensino de abordagem estrutural da história da filosofia (conteudista) e propor tematizar filosoficamente nossa experiência presente com a técnica. “Questionemos a técnica”, convida Heidegger (2007, p. 375). O autor alemão revela a filosofia como uma atitude que permite interrogar o presente, para mostrar o modo como nosso ser se constitui nesta experiência com a técnica.
Foucault mesmo admite (2012a, p. 253) que a leitura de Heidegger na década de 50, como a de Nietzsche, foi decisiva em seus trabalhos futuros. O autor francês diz:
Para Heidegger, é a partir da téchne ocidental que o conhecimento do objeto selou o esquecimento do Ser. Retornemos à questão e perguntemo- nos a partir de quais téchnai se formou o sujeito ocidental e foram abertos os jogos de verdade e erro, de liberdade e coerção que os caracterizam (Foucault apud CROS, 2004, p. 634-635, grifo nosso).
Para Heidegger no texto de 1953 A Questão da Técnica (2007) a essência da técnica não é nada técnico, isto porque a técnica não pode determinar, nem ser o fundamento de si mesma. Heidegger questiona a técnica ocidental mostrando que seu conhecimento objetivo determinou o esquecimento do ser e não permite seu desvelamento. Já a leitura de Foucault mostrará que o sujeito ocidental se constitui a partir de certas técnicas que determinam sua relação com a verdade e a liberdade. Sendo que o uso dos conceitos de técnica e tecnologia nos trabalhos de Foucault pode ser atribuído a influência recebida de Heidegger, como defende Cros (2004, p. 595). Nessa perspectiva, torna-se fundamental que o ensino de filosofia problematize nossa experiência com a técnica.
Segundo Foucault (2010, p. 317-318) prevalece com frequência dois esquemas no
estudo a história da filosofia, um que pretende resgatar uma origem radical em que a verdade
consistiria em descobrir algo como um esquecimento e, outro, a história da filosofia como o
desenvolvimento de uma racionalidade. Duas posturas que pretende evitar, propondo pensar a
filosofia como um jogo diverso do dizer-a-verdade sobre si mesmo. Postura, que nos leva a
pensar o ensino da filosofia como uma experiência em que o que está em jogo é a própria problematização de si.
Neste sentido, esta pesquisa tem por objetivo descrever a importância do ensino da filosofia enquanto pensamento crítico sobre a atualidade, proporcionando um processo educacional que seja conduzido pela formação humana de si mesmo. Para isso, pretende-se apresentar, a partir da perspectiva foucaultiana, a filosofia como um instrumento fundamental para o cuidado de si, questão que para o autor está ligado com a questão da tékhne grega e com a Aufklärung. Na sequencia, a relação entre a filosofia e a técnica é realizada em duas etapas: primeiro, apresenta-se a leitura foucaultiana do conceito grego de tékhne, o que leva a conceber a filosofia como uma técnica autêntica do dizer verdadeiro; segundo, a partir de uma interpretação kantiana, Foucault concebe o problema da filosofia e da técnica como uma questão da Aufklärung.
Sobre o primeiro item, a respeito da ligação entre a filosofia com o conceito da tékhne grega, Foucault afirma: “Como o logos filosófico, a tékhne filosófica do logos é uma tékhne que possibilita ao mesmo tempo o conhecimento da verdade e a prática ou a ascese da alma sobre si mesma” (FOUCAULT, 2010, p. 304). E ainda: “[...] o filósofo será verdadeiramente o parresiasta [...]. A filosofia, por sua vez, é étymos tékhne (a técnica autêntica) do discurso verdadeiro” (idem, p. 305). O que leva a concluir, que para o autor, a técnica autêntica do discurso (logos) verdadeiro se realiza pela filosofia. Deste modo, concebe a filosofia como uma técnica que através da experiência do discurso verdadeiro (parresía) possibilita a condução de si mesmo em uma experiência singular de si.
Segundo Foucault (2004, p. 450) a parresía significa a liberdade do dizer verdadeiro, por isso, está ligado a um êthos (“a maneira de ser e a maneira de se conduzir”, FOUCAULT, 2012a, p. 264) e uma tékhne (procedimento técnico), ambas indispensáveis para a constituição de si. A atitude da parresía enquanto busca pelo equilíbrio entre o que se fala e o que se vive, torna-se um elemento indispensável para o cuidado de si (epiméleia heautoû).
Para Foucault, na filosofia grega há uma ligação indispensável entre o cuidado de si e
a verdade/conhecimento de si. Segundo Foucault (2004, p. 66) Platão no texto Alcibíades
afirma que para ocuparmo-nos de nós mesmos é preciso saber o que significa este “nós
mesmos”. “Na fórmula epimeleîsthai heautoû, o que é o heautoû? É preciso gnônai heautoû,
diz o texto” (idem, p. 66). Deste modo, o cuidado de si exige duas posturas: uma, conhecer a
si mesmo (gnônai heautoû) e, a outra, praticar a ascese
2, ou seja, um conjunto de exercícios físicos e intelectuais que tem por finalidade a constituição do sujeito através da relação consigo mesmo.
Sobre o segundo item, Foucault associa a tarefa da filosofia com a questão kantiana sobre a atualidade (questão da Aufklärung
3). Nesse sentido, o empreendimento foucaultiano pode ser visto como uma atitude pós-kantiana, isto porque, no início da década de 80, o autor francês buscará em Kant um fundamento para a filosofia como uma história crítica do pensamento em sua atualidade. Para Foucault, quando Kant em 1784 publica um texto como resposta a questão: “Was ist Aufklärung?” (FOUCAULT: 2005a, 335), surge o primeiro passo para fazer da filosofia uma constante problematização do presente, postura esta que faz parte do mais íntimo que procurou praticar em sua filosofia. “’O que acontece atualmente e o que somos nós, nós que talvez não sejamos nada mais e nada além daquilo que acontece atualmente?’ A questão da filosofia é a questão deste presente que é o que somos”
(FOUCAULT: 2005b, 239).
Para Foucault, a Aufklärung permite tanto diagnosticar o modo como constituímos nossa autonomia, como também, promover uma atitude (ethos).
Gostaria, por um lado, de enfatizar o enraizamento na Aufklärung de um tipo de interrogação filosófica que problematiza simultaneamente a relação com o presente, o modo de ser histórico e a constituição de si próprio como sujeito autônomo; gostaria de enfatizar, por outro lado, que o fio que pode nos atar dessa maneira à Aufklärung não é a fidelidade aos elementos de doutrina, mas, antes, a reativação permanente de uma atitude; ou seja, um êthos filosófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico (FOUCAUT, 2005a, p. 344-45, grifo nosso).
A questão do presente deve ser também a questão de si mesmo. A busca pela emancipação e autonomia do pensamento passa pelo cuidado de si e a crítica constante sobre nós mesmos. Também, defende a ideia de que a problematização do presente deve se constituir em um “[...] princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia” (FOUCAULT, 2005a, p. 346). Atitude que chama de “ontologia do presente” ou “ontologia de nós mesmos” (FOUCAULT, 2010, p. 21). Para o autor, a Aufklärung está ligada com o quadro geral das técnicas de si (FOUCAULT, 2012a, p. 294).
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“É o que se poderia chamar de uma prática ascética, dando ao ascetismo um sentido muito geral, ou seja, não o sentido de uma moral de renúncia, mas o de um exercício de si sobre si mesmo, através do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir um certo modo de ser” (FOUCAULT, 2012a, p. 259).
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