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O (não) lugar da tecnologia no ensino de idiomas

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Academic year: 2022

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O (não) lugar da 10

tecnologia no ensino de idiomas

Hugo Albuquerque - CNA Administração Nacional

No ensino de inglês como língua estrangeira (EFL) há uma certa tradição de tomar-se a dianteira na adoção de aplicativos, gamificação e Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), talvez porque os professores sejam, em boa parte, jovens que usam tecnologia em um nível razoável em suas vidas, fora da sala de aula. Para a outra parte de nós que ainda se familiariza com toda a tecnologia à disposição, essa adoção parece revelar nosso “sotaque” em uma linguagem que ainda não dominamos, como afirma Prensky (2011). Por outro lado, algumas dessas tecnologias são tão efêmeras que sequer conseguem ser “transplantadas” para a sala de aula.

Esse transplante, em alguns casos, é feito de maneira pouco planejada, deixando transparecer a falta de reflexão por parte de nós professores, na ânsia de agradar os estudantes. Em geral, a adoção fica na superfície da verdadeira revolução que a tecnologia trouxe para nossas vidas, inclusive para a educação. Mas, afinal, qual o lugar da tecnologia na sala de aula de línguas? Pensamos em argumentos que fazem justamente o caminho contrário: justificam um não lugar dessas tecnologias na sala de aula presencial. Não é o caso de negá-las, mas também de entender que não são a panaceia para questões como motivação, disciplina e, em última análise, até mesmo aprendizagem.

PALAVRAS- CHAVE:

tecnologia, sala de aula

invertida, dogme, flipped

learning, minimally invasive education (MIE)

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“As with all immigrants, some of us have adapted to our new digital environment more quickly than others. But no matter how fluent we may become, all Digital Immigrants retain, to some degree, our ‘accent’, i.e. our foot in the past.”

Marc Prensky

PARA INÍCIO DE CONVERSA, CONHECE-TE A TI MESMO

Tente se imaginar neste cenário: depois de passar horas preparando aquela aula para sua turma de adolescentes, você entra na sala cheio(a) de autoconfiança. Já testou todos os links, inclusive os vídeos do YouTube, e a apresentação do Prezi já está aberta na lousa digital. Serão apresentados diálogos tocados diretamente do seu livro-texto interativo, os alunos farão uma prática usando seus smartphones e vão interagir até mesmo com um game do Kahoot!1 no fim da aula. All set! Go! Mas qual não é sua surpresa, antes de chegar à metade da aula, ao constatar um estudante olhando suas mensagens no celular, outros com os olhos fixos no teto da sala, um procurando não sei o quê dentro do livro. Ih... já viu tudo, não é? E você se pergunta o que mais precisa fazer para esta turma participar, se até tecnologia você já trouxe para a aula. Será que Prensky tinha razão?

Como professores reflexivos, buscamos a resposta primeiramente em nós mesmos ao nos fazer a pergunta “onde foi que eu errei?”. Antes disso, porém, precisamos refletir sobre nosso posicionamento frente à tecnologia.

Como também me incluo no “nosso posicionamento”, escrever este texto foi uma forma de contrapor (ou ratificar?) um outro artigo que já apareceu pelas páginas deste Entornos & Contornos, em que discuto mecanismos de gamificação nas aulas.2

Sem querer usar rótulos definitivos, mas apenas pela ludicidade da experiência, leia as breves descrições sobre cada um dos quatro perfis usados por Lewis (2010) e tente descobrir o que mais se aproxima de você:

1 Acho que você já conhece, mas em todo caso dê uma olhada:

PREZI: <https://prezi.com>

KAHOOT!: <https://kahoot.com/>

2 O artigo “Vai ter game hoje, teacher?” está nas referências deste artigo.

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NOVATO: você não usa tecnologia no dia a dia nem no trabalho, talvez por falta de interesse ou dificuldade de acesso, ou ainda, porque você tenha fobia à tecnologia. Muitas vezes, falta de acesso a treinamento adequado pode nos intimidar.

USUÁRIO CASUAL: você usa tecnologia na sua rotina, escrevendo planos de aula em um processador de texto ou enviando e recebendo e-mails.

Também se sente confortável em realizar pesquisas na internet. Apesar de ter acesso a computadores em sala, você os usa ocasionalmente e não de forma planejada.

VELHA GUARDA: você já usa tecnologia em sala de aula, mas de forma similar às ferramentas mais tradicionais. Cria fichas de exercícios para seus alunos ou usa softwares para eles praticarem o que aprendem em sala. A tecnologia coexiste com seu planejamento. Ela apoia e amplia o aprendizado, mas não influencia no processo.

INOVADOR: você abraçou a tecnologia de modo que ela não apenas amplia ou apoia o aprendizado, mas o transforma. Você usa tecnologia para promover a autonomia dos estudantes e apoiar habilidades de pensamento crítico e criativo e de resolução de problemas. Você mescla suas aulas com conteúdo da vida real, promove comunicação autêntica, gera oportunidades para criação de produções com jeito profissional e as compartilha com um público variado, tanto local quanto global.

E aí, se encontrou? O importante aqui não é a identificação perfeita com um dos perfis, mas a chance de se autoavaliar com relação ao uso da tecnologia nas suas aulas. Saber o que somos é apenas o primeiro passo.

A pergunta seguinte que naturalmente devemos nos fazer é...

MAS, AFINAL DE CONTAS, O QUE ESPERAMOS DA TECNOLOGIA?

Foi praticamente essa mesma pergunta que a Fundação Bill e Melinda Gates fez a mais de 3.100 professores de 16 diferentes distritos nos Estados

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Unidos. O resultado da pesquisa, que ainda incluiu a participação de mais de 1.250 estudantes, foi publicado em 2014 no relatório Teachers Know Best - What Educators Want from Digital Instructional Tools3.

Em linhas gerais, o que eles descobriram:

• Tanto professores quanto estudantes veem a tecnologia como útil para o aprendizado;

• O benefício mais citado foi o alinhamento entre parâmetros do ensino superior/carreira e o plano de aula do professor quando professores buscavam ferramentas tecnológicas;

• A maioria não acha que a tecnologia pode ajudá-los a ensinar os novos parâmetros do ensino superior/carreira;

• Professores de matemática e inglês têm visões diferentes sobre a disponibilidade de ferramentas: os primeiros têm dificuldades no Ensino Médio e os últimos nos anos iniciais do Ensino;

• Foram identificados basicamente seis diferentes usos que professores esperam dos recursos tecnológicos. Veja no quadro mais adiante.

Enquanto analisa o quadro, tente se localizar no espectro com relação ao que você espera da tecnologia em sala de aula. Na primeira coluna, estão os seis principais usos identificados na pesquisa e, na terceira coluna, os benefícios buscados pelos professores. O primeiro benefício listado (em negrito) é sempre o primordial, e o que vem abaixo é o secundário para os professores que participaram da pesquisa. Novamente, não busque a precisão absoluta. Afinal de contas, o mundo não é preto e branco, não é mesmo? O grupo pesquisado pode não ser exatamente o perfil do qual você faz parte como professor, mas ainda assim os resultados da pesquisa podem ser extrapolados para outros contextos.

3 Se quiser ler o relatório completo e ter acesso a mais informações, acesse: <http://www.teachersknowbest.

org/reports>. Nota dentro da nota: Se você achar chato ficar digitando a URL de todos os sites que eu mencionar, basta ir até o anexo do artigo, em que apresento tudo em formato de QR codes.

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QUADRO 1: Professores esperam que ferramentas digitais os ajudem com 6 objetivos.4

OBJETIVO

INSTRUCIONAL DESCRIÇÃO

BENEFÍCIOS PROCURADOS NAS FERRAMENTAS DIGITAIS Entregar conteúdo Facilitar a entrega do

conteúdo e plano de aula

• Alinha com plano de aula e/ou Commom Core State Standards 4

• Possibilita muito controle pelo professor Diagnosticar

aprendizado Avaliar o progresso do aprendizado da turma e adaptar aulas

• Demonstra ou traz à tona dúvidas dos estudantes

• Possibilita muito controle pelo professor Variar método de

instrução

Aumentar engajamento da turma através de instrução multimodal

• Facilita entendimento do conteúdo pelos estudantes

• Aumenta engajamento e atenção dos estudantes Adaptar experiência de

aprendizado Adaptar aulas às necessidades individuais dos estudantes

• Adapta ritmo, conteúdo e/ou estilo às necessidades dos estudantes

• Permite prática independente dos estudantes Apoiar colaboração

e interatividade entre estudantes

Empoderar estudantes para colaborar e assumir protagonismo no seu aprendizado

• Permite colaboração entre estudantes

• Possibilita alto grau de interação

Fomentar prática

independente Possibilitar prática independente e empoderamento dos estudantes

• Permite prática independente dos estudantes

• Possibilita um modo adicional de aprendizado para os estudantes

4 Common Core State Standards são o conjunto de objetivos de aprendizagem em inglês e matemática adotado por mais de 40 estados, distritos e territórios nos Estados Unidos para cada uma das séries do ensino primário e secundário (http://www.corestandards.org).

PROFESSORESTUDANTE

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Você deve ter notado que à medida que descemos nas linhas do quadro anterior, as expectativas dos professores quanto à tecnologia vão revelando um perfil de aula mais centrada no estudante e menos no professor. Isso é extremamente revelador de nossa condição e nossas crenças como educadores. Não que haja necessariamente certo ou errado nesse ou naquele perfil/estilo, mas estar consciente dos porquês de nossas escolhas nos possibilita entender melhor os resultados que obtemos (ou esperamos) de nossas aulas.

Podemos nos surpreender, às vezes, com a diferença entre nosso discurso e nossa prática: pregamos uma autonomia maior dos estudantes ao mesmo tempo em que esperamos que a tecnologia torne a “transmissão”

dos conteúdos mais variada. Na verdade, estamos apenas substituindo o modo de “transmissão” com o surgimento das novas tecnologias.

Acontece quando, com o passar dos anos, saímos do quadro de giz, passando pelas transparências nos retroprojetores e, finalmente, adotamos as lousas digitais e softwares de apresentação. Pouca coisa muda no nosso modo de “ensinar”. Ele basicamente continua tendo como premissa que o professor precisa “transferir” ao estudante algo que este não sabe.

Se você se identificou mais com os perfis da metade inferior do quadro, mas ainda não está muito certo sobre como isso impacta em sua sala de aula, continue lendo e avance para a próxima seção. Sua sala de aula pode estar a ponto de dar uma guinada. Se é que já não deu.

DE PONTA CABEÇA

Tem muita gente ao redor do mundo que já descobriu que a tecnologia pode substituir muito bem os professores. Calma! Não atire este artigo na parede nem xingue quem o escreve. Deixe-me explicar melhor. Se você está entre aqueles que já não acreditam que nosso papel como educadores é repassar algo para os estudantes, provavelmente vai concordar com a primeira frase desta seção assim que você a reler. Pronto?

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Os recursos tecnológicos melhoram a transmissão de informação em progressão geométrica. Eles são cada vez mais rápidos, mais disponíveis, multimodais e multissensoriais. Estão na palma da mão dos nossos estudantes, 24 horas por dia, gamificados, adaptativos..., para ficar só nas qualidades mais visíveis. Não podemos competir com mecanismos de buscas, softwares e aplicativos nestes quesitos. A boa notícia é que ser educador não se resume a “transmitir” informação. Provavelmente, nunca foi só isso. Nem, e muito menos, no tempo de Sócrates. Em desenvolver o senso crítico, por exemplo, ainda somos muito melhores do que as máquinas.

Bom, e o que isso implica para nossa prática? Muita coisa. O tempo em sala, por exemplo. Ou melhor dizendo, o uso que fazemos do tempo que temos com nossas turmas. Há um grupo de pessoas que anda bem preocupado com essa questão. Você já ouviu falar em sala de aula invertida5, certo? É um modo de pensar a aula tradicional ao reverso. Jon Bergmann e Aaron Sams (2014), os pioneiros no assunto, gostam desta definição:

Aprendizagem invertida é uma abordagem pedagógica em que a instrução direta se move do espaço de aprendizagem do coletivo para o espaço de aprendizagem individual e o espaço coletivo resultante é transformado em um ambiente de aprendizagem dinâmico e interativo onde o educador orienta os alunos enquanto aplicam conceitos e se engajam criativamente no assunto. (BERGMANN & SAMS, 2014, Chapter 1, Section Defining Flipped Learning, para. 4)6

Dessa forma, em vez de introduzir o conteúdo durante a aula e passar a prática (tarefa de casa, por exemplo) para o momento depois da aula, os professores desta “modalidade” de ensino invertem essa ordem canônica.

Todo o conteúdo é apresentado aos alunos antes de eles virem à aula através de vídeos, textos ou qualquer outro meio (com mais ou menos tecnologia). A aula fica sendo, desse modo, o lugar para praticar. Se você que está lendo este artigo é professor de língua estrangeira e decidisse

5 Em inglês, “flipped learning”.

6 Tradução do autor. No original: “Flipped learning is a pedagogical approach in which direct instruction moves from the group learning space to the individual learning space, and the resulting group space is transformed into a dynamic, interactive learning environment where the educator guides students as they apply concepts and engage creatively in the subject matter.”.

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inverter ou, para usar um estrangeirismo, “flipar”, sua aula, então indicaria algum material em que os alunos pudessem estudar (antes da aula) sobre, digamos, expressões idiomáticas, e na aula seguinte tudo o que vocês fariam seria praticá-las em conversas, role-plays etc. É ou não é um uso melhor para o tempo que passamos com nossos estudantes durante as aulas?

Tudo indica que essa modalidade (re)nasceu com a iniciativa do educador americano Salman Khan em postar vídeos de matemática na internet para que familiares e amigos pudessem entender melhor os conceitos que estavam estudando. A ideia virou a Khan Academy7 e já tem milhares de vídeos de diversas disciplinas. Ela é um belo exemplo, se não o melhor, de como a tecnologia vai substituir os professores. Pelo menos aqueles que acreditam que ensinar é transmitir informação.

Os professores que adotam a sala de aula invertida são entusiastas da tecnologia, mas não são os únicos que podem contribuir com esse debate.

Outro grupo, mais crítico com o uso de tecnologia, pode nos ajudar a entender mais sobre o (não) lugar dela na sala de aula. Ficou curioso?

Então não pare de ler.

DOGME

Em uma série de artigos e apresentações de Scott Thornbury8, no início dos anos 2000, esse movimento foi tomando corpo, basicamente em oposição ao livro-texto como limitante do papel do professor no ensino de línguas e como uma resposta aos contextos em que o professor não dispunha de tantos recursos para suas aulas.

A inspiração veio do cinema: o Dogma 95. Basicamente, os cineastas que criaram e os que, mais tarde, aderiram ao movimento pregaram um back- to-basics approach9, desde os temas nada superficiais, passando pelos cenários reais e até banindo os próprios gêneros dos filmes. O principal

7 Acesse e conheça mais em: <https://pt.khanacademy.org/>.

8 Disponíveis em: <http://www.scottthornbury.com/articles.html>. Nesse site você também vai encontrar vídeos do autor explicando o DOGME e falando de outros temas.

9 Algo como “abordagem mais básica”, em português (tradução do autor).

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articulador do manifesto-movimento foi o diretor dinamarquês Lars von Trier (Dançando no escuro, Dogville, Anticristo).

Talvez por ter sido inspirado pelo Dogma 9510, o movimento que Thornbury iniciou tenha sido mal interpretado como contrário ao uso de tecnologia em sala de aula ou para aulas em geral. Não é o caso. Veja abaixo a lista de princípios organizada por esse grupo e tire a dúvida:

1. Interatividade: a via mais direta para a aprendizagem deve ser a interatividade entre professores e estudantes e entre os próprios estudantes;

2. Engajamento: os estudantes são mais envolvidos com o conteúdo que eles mesmos criaram;

3. Processos dialógicos: o aprendizado é social e dialógico, onde o conhecimento é construído em conjunto;

4. Conversas colaborativas: o aprendizado ocorre através de conversas, em que o aluno e o professor constroem o conhecimento e as habilidades juntos;

5. Emergência: a linguagem e a gramática emergem do processo de aprendizagem. Isso está em oposição à “aquisição” da linguagem;

6. Possibilidades: o papel do professor é otimizar os recursos de aprendizagem de línguas, direcionando a atenção para a linguagem emergente;

7. Voz: a voz do aluno é reconhecida juntamente com as crenças e os conhecimentos do aprendiz;

8. Empoderamento: os alunos e os professores são empoderados ao libertar a sala de aula de materiais e livros-textos;

9. Relevância: os materiais (por exemplo, textos, áudios e vídeos) devem ter relevância para os estudantes;

10. Uso crítico: professores e estudantes devem usar materiais e livros didáticos publicados de forma crítica, reconhecendo seus pressupostos culturais e ideológicos.

10 Acesse <http://www.dogme95.dk/> e saiba mais sobre o movimento.

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O que Thornbury (2005) e seu grupo advogam, no entanto, é um uso crítico de qualquer recurso (inclusive tecnologia) nas salas de aula. A tecnologia em si não é um mal nem um bem, mas o uso que fazemos dela é que pode ajudar ou atrapalhar a aprendizagem. Quer um exemplo prático? No começo desta conversa, citei o Kahoot! como uma ferramenta para gamificar uma aula (ou parte dela). O que a ferramenta faz, para aqueles não iniciados, é possibilitar que o professor organize um questionário com perguntas de múltipla escolha e disponibilize um link para que os estudantes acessem e respondam individualmente ou em grupo, competindo entre si (ou não).

Entendeu? Então, me diz, você acha que fazendo esta atividade assim ou de outra maneira (sem tecnologia, por exemplo) aumenta ou diminui a interação entre professores e estudantes? Se você for pró-tecnologia dirá que aumenta. Por outro lado, se você for mais reticente quanto ao seu uso, pode duvidar e até propor uma alternativa mais eficiente. O modo como o professor conduz a atividade gera mais ou menos interação, mas não é uma premissa da ferramenta e sim das escolhas que ele faz para as atividades da aula.

Não é que não seja possível usar a tecnologia para gerar mais interatividade, mais engajamento e empoderamento. O problema é que, muitas vezes, replicamos com os recursos tecnológicos práticas em nossas aulas que vão justamente na direção oposta. Isso a tecnologia não vai resolver.

Para o Dogme, o ensino de idiomas passa necessariamente pela figura do professor e sua interação com os estudantes. A tecnologia é acessória ou até mesmo dispensável. Tem gente que pensa um pouco diferente o papel do professor. Conheça a história de um experimento improvável para entender isso melhor, na próxima seção.

NO MEIO DA PAREDE TINHA UM BURACO

Para vocês que acharam que eu polemizei na abertura da seção intitulada De Ponta Cabeça, tenho que apresentá-los a um professor que literalmente causou um alvoroço em sua plenária no IATEFL11 2014, em Harrogate (Reino

11 International Association of Teachers of English as a Foreign Language (www.iatefl.org).

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Unido), quando falou sobre a obsolescência dos professores. Sugata Mitra é um professor de Física indiano que há algum tempo desenvolveu um experimento inusitado. A descrição pormenorizada do experimento, suas descobertas e percalços pode ser lida no livro Beyond the Hole in the Wall:

Discover the Power of Self-Organized Learning12. De todo modo, vou tentar resumir. Em cidades pobres da Índia, afastadas dos centros mais urbanos, ele e sua equipe começaram a instalar computadores nas paredes (às vezes, de escolas) e quando perguntados pelas crianças locais do que se tratava aquilo, ele simplesmente respondia que esperava que elas descobrissem.

Dali a algum tempo, ele retornava e, depois de algumas repetições do experimento, não mais surpreendentemente, testemunhava que aquelas crianças que nunca haviam visto um computador antes na vida e sequer falavam inglês tinham não só descoberto o que era a máquina, como já sabiam operá-la, navegar na internet, melhoraram consideravelmente seu nível de inglês e pesquisavam coisas como biotecnologia. Agora, acho que realmente chamei sua atenção, não? Então, que tal parar de ler um pouquinho e ir ver com seus próprios olhos o professor e seu trabalho13? Quando você voltar, a gente continua.

Genial e ao mesmo tempo simples, não? O professor Sugata Mitra continua desenvolvendo suas ideias, e seu trabalho evoluiu para as chamadas Schools in the cloud14, onde ele aplica e estuda ambientes autorregulados de aprendizagem. Você pode conhecer mais sobre os recentes experimentos em vídeos disponíveis na internet (alguns no TED Talks, inclusive). Em um desses vídeos, bem curtinho por sinal, ele faz a pergunta que em certa medida explica a razão da existência deste artigo:

qual é o papel do professor na sala de aula hoje? Espero que você goste da resposta que encontrará aqui15.

Se eu pudesse acrescentar ou sintetizar um pouco mais, diria que o papel do professor é não atrapalhar a aprendizagem. Para Mitra (2012), a

12 Leia uma amostra do livro aqui: <https://www.amazon.com.br/Beyond-Hole-Wall-Discover-Self-Organized- ebook/dp/B0070YZSFQ>.

13 Acesse: <https://web.archive.org/web/20070625132846/http://www.hole-in-the-wall.com:80/>.

14 <https://www.theschoolinthecloud.org/>

15 <https://www.youtube.com/watch?v=vhA0yIgEDVU>

(12)

natureza da aprendizagem tem a ver com autorregulação e emergência (aqui, não exatamente o que Thornbury estabeleceu como um princípio no movimento Dogme). Segundo ele, “emergência é o surgimento de uma propriedade não aparente em um sistema16” (2012, Chapter Learning as emergent phenomena, para. 7). Para tentar explicar melhor o conceito de emergência que Mitra adota, vou usar duas imagens que ele descreve no seu livro:

Uma revoada de pássaros e uma colmeia de abelhas representam bem o conceito de emergência na medida em que são fenômenos que se formam sem uma coordenação aparente, sem uma liderança institucionalizada.

Apenas acontecem pelas conexões de cada uma de suas partes. O mesmo se daria com a aprendizagem. Algo do tipo “nature will find its way”17. Nesse cenário, a tecnologia ou o professor deveriam ser apenas uma camada do processo, talvez mesmo a do fundo e não a mais importante, de maior destaque. Apenas mais uma trama na rede que se tece para que a aprendizagem emerja. Nem um nem outro é mais importante e cada um pode contribuir para esse fenômeno de acordo com suas possibilidades, seu alcance e suas limitações.

OLHANDO MAIS DE PERTO

Demorei um tempo para entender essas coisas e ficava tentando mil e um truques para engajar meus alunos usando tecnologia. O mais interessante

16 Tradução do autor. No original, em inglês: “emergence is the appearance of a property not apparent in a system”.

17 Em português, “a natureza vai achar o caminho” (tradução do autor).

FIGURA 1: Revoada de pássaros. FIGURA 2: Colmeia de abelhas.

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era que as aulas sem tecnologia não eram necessariamente chatas ou pouco interativas. No entanto, na ânsia de agradar os estudantes, ficava tentando incorporar uma novidade atrás da outra. E cá entre nós, não dá para competir com a velocidade com que esses recursos digitais são criados e logo substituídos por outros. Essa corrida insana só gera estresse e uma sensação do tipo “não sou bom o suficiente”, e este não é, obviamente, o caso da maioria dos professores.

Por isso, queria aproveitar que estamos terminando essas reflexões para dividir com você uma ferramenta que pode nos ajudar a olhar a tecnologia (e por que não, qualquer outro recurso empregado em sala de aula) mais criticamente e decidir se esta ou aquela inovação vai realmente otimizar a aula.

Este framework está organizado ao redor de três vértices: o professor, a tecnologia e o estudante. Cada um deles deve ter algo para contribuir com o processo de ensino-aprendizagem e, em última análise, deve levar a mais/melhor aprendizagem. Observe o quadro a seguir:

QUADRO 2: Framework para análise de recursos tecnológicos.

NOME DO RECURSO

DESCRIÇÃO RÁPIDA

• O QUE ELE FAZ?

PAPEL DA TECNOLOGIA

• COMO ELA COMPLEMENTA/MELHORA A ATIVIDADE EM SALA?

• COMO ELA MELHORA A APRENDIZAGEM?

• COMO ELA MELHORA O ENSINO?

PAPEL DO PROFESSOR

• COMO O RECURSO SE ADEQUA AO SEU ESTILO/MÉTODO DE ENSINO?

(14)

PAPEL DO ESTUDANTE

• HÁ UM AUMENTO DE ENGAJAMENTO POR PARTE DOS ESTUDANTES?

• HÁ ALGUMA DIFERENÇA EM RELAÇÃO AOS PADRÕES DE INTERAÇÃO?

• HÁ ALGUMA DIFERENÇA NA QUALIDADE DA INTERAÇÃO GERADA?

PRODUÇÃO DOS ESTUDANTES

• HÁ ALGUMA DIFERENÇA EM RELAÇÃO À PRODUÇÃO DELES?

• O RECURSO ALTERA DE ALGUMA MANEIRA A QUALIDADE DA PRODUÇÃO?

Até aqui, já discutimos bastante o papel do professor e da tecnologia, mas e os estudantes? Hornik, Jonhson e Wu (2007) concluíram que uma das implicações mais importantes quando pensamos em desenhar AVAs18, por exemplo, é levar em consideração as crenças dos estudantes com relação à contribuição da tecnologia para a aprendizagem. Geralmente, centramos as discussões sobre uso de tecnologias e, muitas vezes, as próprias ferramentas, no professor. Nesse artigo (que tem um título bem sugestivo, por sinal19), os autores defendem que quando há fricção entre como os estudantes entendem a aprendizagem e a percepção deles quanto ao apoio que a tecnologia dá a ela, a satisfação, o desempenho e a comunicação durante cursos em AVAs diminui. Por isso, sempre que pensarmos em implementar qualquer tecnologia em nossas aulas, devemos ter o cuidado de alinhar esse uso com o que os estudantes esperam e/ou acreditam.

Dois indicadores importantes estão contemplados neste framework para nos ajudar a mensurar a qualidade dessa aprendizagem: interação e

18 Ambientes Virtuais de Aprendizagem (“VLEs – virtual learning environments”, em inglês).

19 “When technology does not support learning: conflicts between epistemological beliefs and technology support in virtual learning environments.” Algo como: “Quando a tecnologia não ajuda a aprendizagem:

conflitos entre as crenças epistemológicas e o suporte tecnológico em ambientes virtuais de aprendizagem.”

(tradução do autor).

(15)

produção dos estudantes. Desnecessário justificar a importância desses dois aspectos no processo, mas gostaria de destacar que em uma aula de idiomas eles são ainda mais evidentes. Primeiro porque, com algumas variações de método para método, o objetivo final da aula é sempre se comunicar, ou seja, interagir em outra língua. E segundo, essa interação em outra língua sempre se materializa em alguma forma de produção na língua alvo: escrita/lida ou falada/escutada.

Há, ainda, no framework proposto, uma reflexão que pouco fazemos no momento de empregar ou não qualquer recurso tecnológico: como isso se relaciona com o meu modo de dar aulas (ou o método que uso para tal)? Essa pergunta é particularmente útil para que não tentemos em vão misturar água e óleo e esperar um resultado homogêneo da mistura. Vai ficar visivelmente disforme e artificial se o recurso tecnológico não tiver premissas similares com as nossas próprias. É o tal do sotaque que Prensky fala naquela citação no começo de nossa conversa.

Claro que dá para fazer toda essa análise sem preencher a tabela, não é mesmo? Mesmo assim, porém, convido você a fazer o exercício pelo menos uma vez. A gente se surpreende com as conclusões à medida que vai escrevendo. Se você quiser, pode até dividir comigo reflexões por e-mail20.

CONCLUSÃO (COLOCANDO A TECNOLOGIA NO SEU DEVIDO LUGAR)

Espero que você tenha gostado deste bate-papo. Eu gostei muito de dividir algumas de minhas inquietações com relação ao uso de tecnologia em sala de aula. Torço também para que tenha ficado claro o que para mim sempre foi uma constante nessas idas e vindas de novas tecnologias: elas não são em si más ou boas, o uso que fazemos delas para fins didático- pedagógicos é que pode ser mais ou menos adequado com nossa sala de aula e filiações metodológicas.

20 Escreva para hugo.albuquerque@cna.com.br.

(16)

Uma outra possível conclusão é a de que usar nosso senso crítico será sempre a melhor forma de decidirmos implementar (ou não e de que maneira) essas novas ferramentas, de modo que estejam a serviço de mais/melhor aprendizagem. Se ainda não estamos muito acostumados a fazer isso, o framework apresentado na seção anterior pode ser um bom início.

Saber que tipo de professor você é vai deixar tudo mais fácil na hora de decidir o que você espera que a tecnologia faça ou lhe ajude a fazer. Essa reflexão deve ser honesta e não um discurso vazio repetido sobre nossas adoções metodológicas. Como vimos na seção deste artigo que citava o relatório da Fundação Bill e Melissa Gates, corremos o risco de uma certa esquizofrenia pedagógica caso não reflitamos sobre nossas filiações:

dizemos ser algo, nossas aulas nos desmentem e o uso que fazemos da tecnologia não representa nem um nem outro.

Se você vai “flipar” sua aula e deixar a tecnologia apresentar os conceitos antes ou depois dela, ou vai adotar os princípios do Dogme e ser mais crítico com relação ao seu uso, ou até centralizar sua aula nela como na proposta das Escolas nas Nuvens de Mitra, o que é certo é que essa iniciativa tem que estar em sintonia com as suas crenças sobre como se ensina e aprende. E saber em que se acredita é fundamental para que nossa prática não fique deslocada desses valores. Afinal de contas, são estas crenças e valores que definirão não só o (não) lugar da tecnologia na sala de aula, mas também os de professores como eu e você.

(17)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, H. 2015. Vai ter game hoje, teacher? In: CARÁ, J. & LOCKS, L. (Orgs.) Entornos & contornos: educação, cultura e comunicação na era da internet. Vol. 7. São Paulo, Editora CNA.

BERGMANN, J. & SAMS, A. 2014. Flipped learning: gateway to student engagement. United States, International Society for Technology in Education.

BILL & MELISSA GATES FOUNDATION. 2014. Teachers know best: what educators want from digital instructional tools. Disponível em: <http://www.

teachersknowbest.org/>. Último acesso: 10/10/2017.

HORNIK, S., JOHNSON, R. D. & WU, Y. 2007. When technology does not support learning: conflicts between epistemological beliefs and technology support in virtual learning environments. In: MAHMOOD, M. A. (Ed.) Journal of Organizational and End User Computing. Vol. 19. Issue 2. Hershey, Idea Group Publishing.

LEWIS, G. 2010. Bringing technology into the classroom. Oxford, Oxford University Press.

MITRA, S. 2012. Beyond the hole in the wall: discover the power of self-organized learning. Edição Kindle, TED Conferences - LLC.

PRENSKY, M. 2011. Don’t bother me mom, I’m learning!: How computer and video games are preparing your kids for 21st century success - and how you can help! Minnesota, Paragon House Publishers.

THORNBURY, S. 2005. Dogme: dancing in the dark? In: Folio. Disponível em:

<http://www.scottthornbury.com/articles.html>. Último acesso: 10/10/2017.

_______________. 2000. A Dogma for EFL. In: IATEFL issues. Disponível em:

<http://www.scottthornbury.com/articles.html>. Último acesso: 10/10/2017.

(18)
(19)

ANEXO

Coleção dos sites citados neste artigo.

QR code 1 PREZI

QR code 2 KAHOOT! QR code 3 TEACHERS KNOW BEST

QR code 4 CORE STANDARDS

QR code 7 DOGME 95

QR code 10 HOLE IN THE WALL

QR code 5 KHAN ACADEMY

QR code 8 IATEFL

QR code 11 SCHOOLS IN THE CLOUD

QR code 6 SCOTT THORNBURY

QR code 9 AMOSTRA LIVRO BEYOND THE HOLE IN THE WALL

QR code 12 SUGATA MITRA

(20)

Hugo de Albuquerque Moreira

Tem Licenciatura em Letras (Português/Inglês) pela UFPE e especialização em Informática Educacional (FAFIRE). Trabalha há quase 20 anos com ensino de idiomas e atualmente é Consultor Pedagógico no CNA Administração Nacional. Ah, ele também é rubro-negro e pai de um treloso Guilherme.

Referências

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