ALICE WILMERS BEI
O DISPOSITIVO APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL NO
NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA FAMÍLIA: UMA CLÍNICA DA
TRANSICIONALIDADE?
Mestrado em Psicologia Social
ALICE WILMERS BEI
O DISPOSITIVO APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL NO
NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA FAMÍLIA: UMA CLÍNICA DA
TRANSICIONALIDADE?
Dissertação apresentada à banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de mestre em
Psicologia Social, sob orientação da Prof. Dra.
Maria
Cristina Gonçalves Vicentin.
COMISSÃO JULGADORA
_________________________________________
_________________________________________
Ao Daniel,
suficientemente meu companheiro
Ao CNPq, pelo financiamento desta pesquisa.
À Cris Vicentin, por me inserir na leitura de Foucault e pela presença que me permitiu liberdade de criação.
A todos os profissionais que participaram da produção deste estudo, especialmente aos do NASF e da Equipe de Saúde da Família “P”, que
generosamente cederam-‐me espaço no seu cotidiano de trabalho e que considero coautores desta pesquisa.
À Maria e sua família, cujas histórias brevemente acompanhei, mas que intensamente me tocaram e me inspiraram.
Aos colegas do Núcleo, tão presentes neste processo e com quem compartilhei questões.
À Felícia Knobloch e à Rosana Onocko, de boas idéias, e que me ajudaram na reconstrução deste trabalho.
Aos “meus” pacientes, que me dão o privilégio de escuta-‐los.
À Silvana, com quem aprendo sobre a vida e que me desperta para tantas experiências de transicionalidade.
À Luciana Pires, que me acompanha, com toda sua competência, na construção da minha clínica.
À Flávia, que me conhece em cada entranha e olhar, pela sua verdadeira capacidade de ser minha (eterna) amiga.
À Tchela, irmã a quem estou sempre conectada, de uma forma ou outra, em todos os momentos importantes de nossas vidas.
À Ciça, à Olívia e à Pati, que de perto e de longe estão aqui, nas nossas tantas conversas, risadas e dificuldades, com amor.
À Renata Buelau, pessoa bonita e sensível, que me ensinou parte do belo trabalho da Terapia Ocupacional.
À Andréa, cuja força e bom astral me encorajam nas dificuldades da vida.
À Laura e ao Bruno, casal importante na minha história.
A todos os outros amigos que, cada um a seu modo, foram e são presentes na minha vida.
À Bel, pessoa admirável, irmã, amiga e artista, minha mais importante companheira nas brincadeiras e trapaças da vida.
Ao meu pai, pela sensibilidade que me inspira e pela cultura impressionante que me alimenta, e que tanto me alegra pela coragem de voltar a ser aluno.
LISTA DE ABREVIATURAS
-‐ AB: Atenção Básica
-‐ ACS: Agente Comunitário de Saúde
-‐ AM: Apoio Matricial
-‐ ESF: Equipe de Saúde da Família
-‐ MS: Ministério da Saúde
-‐ NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família
-‐ OS: organização social
-‐ PSF: Programa Saúde da Família
-‐ SMS: secretaria municipal da saúde
-‐ SUS: Sistema Único de Saúde
-‐ UBS: Unidade Básica de Saúde
-‐ USF: Unidade Básica de Saúde da Família
-‐ VD: Visita Domiciliar
RESUMO
ABSTRACT
This research concerns the study of mental health wide-‐spectrum clinic in primary care, put in practice by monitoring the Matrix Support activities of a Center for Support to Family Health (NASF) team in São Paulo. The aim was to reflect on the type of clinic interaction produced between the NASF team and a family health team (ESF), focusing on the "imaginary of madness", the medication issue and the possibility of creating new modes of Subjectivation. In order to accomplish this the study used a case under construction by the two teams, analyzing how NASF's support facilitates, or not, the process of producing an extended clinic, transforming the traditional clinic. In this sense, the study used the concept of transitionality presented by Winnicott in order to reflect on the creative experiences and those of singularization, and to discuss the creation of new modes of Subjectivation in the clinic generated between the teams concerned. In this study, NASF has been recognized as important by the ESF, so it was offered help and support when dealing with complex cases, beyond psychiatric intervention and understanding of mental disorders; support was still considered in face of a chaotic reality, which itself generates illnesses. However, in this context, the majority of professionals has demonstrated difficulty in creating new clinical interventions, which might go beyond those already established. In order to better allow for creative processes and experiences of transitionality emerged out of the clinic, the need was recognized for more support to professionals, especially those of NASF, who offer matrix support, but do not receive it.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO _____________________________________________________________p. 1
CAPÍTULO 1: O APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL E O NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA
FAMÍLIA COMO DISPOSITIVOS CLÍNICOS DE INTERVENÇÃO
1.1-‐ Uma transformação na clínica: do paradigma manicomial ao psicossocial __p.6
1.2-‐ A clínica ampliada em saúde mental: uma perspectiva conceitual ________p.12
1.3-‐ Saúde Mental, Atenção Básica e Saúde da Família: intercessões na composição
de um campo ____________________________________________________p.22
1.4-‐ O Apoio Matricial em Saúde Mental à luz do conceito de dispositivo______p.25 1.5– O Apoio Matricial em Saúde Mental no Núcleo de Apoio à Saúde da Família
________________________________________________________________p.32
CAPÍTULO 2: A TRANSICIONALIDADE NA CLÍNICA
2.1 – Os conceitos de objetos e fenômenos transicionais e de espaço potencial de Winnicott para pensar a transicionalidade na clínica _______________________p.36
2.2 – Desafios atuais da clínica ampliada em saúde mental: a biomedicalização da vida e a remedicalização da loucura _____________________________________p.45
2.3 – O dispositivo Apoio Matricial em Saúde Mental no cotidiano: experiências de
transicionalidade?____________________________________________________p.49
CAPÍTULO 3: A ANÁLISE INSTITUCIONAL COMO FERRAMENTA METODOLÓGICA PARA A
APROXIMAÇÃO DE UM CAMPO-‐TEMA
3.1 – Sobre um modo de pesquisar: pressupostos teórico-‐metodológicos da Análise
___________________________________________________________________p.67
3.3 – Notas sobre um modo de análise __________________________________p.70
CAPÍTULO 4: O DISPOSITIVO APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL EM UM MICRO
TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO
4.1-‐ Apresentação de um campo-‐tema: a UBS M, a ESF P e o NASF
___________________________________________________________________p.72
4.2-‐ A realidade de um contexto de trabalho: a gestão, o PSF e a saúde mental como
produtores de uma cena clínica ________________________________________p.76
4.3-‐ A relação entre o NASF e as ESF: notas sobre um entre em questão
__________________________________________________________________p.85
CAPÍTULO 5: O CASO MARIA ENTRE NÓS: UMA CLÍNICA DA TRANSICIONALIDADE?
5.1: Apresentação do caso Maria _______________________________________p.95
5.2: Especificidades do campo da saúde mental: imaginários sobre loucura e a
questão medicamentosa ______________________________________________p.97
5.3: Um modo de clinicar: transicionalidades de uma prática ________________p.111
CONSIDERAÇÕES FINAIS ____________________________________________________p.130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________________________p.138
ANEXOS
INTRODUÇÃO
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa / Ricardo Reis
O desejo de produção desta dissertação nasceu das minhas inquietações vividas no campo da saúde mental, inicialmente como aprimoranda de psicologia em uma Unidade Básica de Saúde, e posteriormente como trabalhadora de um CAPS II adulto, onde fazia parte da equipe de Apoio Matricial em saúde mental.
O Apoio Matricial consiste em um arranjo organizacional em saúde que, através da oferta de apoio especializado, visa aumentar a capacidade de responsabilização e assistência de casos heterogêneos e complexos na Atenção Básica. Trata-‐se de uma equipe volante, que pode ser de saúde mental, aqui o nosso foco, que dá suporte aos profissionais da rede Básica para lidarem com casos outrora encaminhados indiscriminadamente a especialistas. Um suporte que propõe como modo de atenção o vínculo terapêutico, a transdisciplinaridade de saberes e práticas e a corresponsabilidade (entre as equipes e entre essas e a população) pelo processo de cuidado (Campos, 1999).
Como uma tentativa de transformação da clínica médica tradicional e de criar novos modos de clinicar, o Apoio valoriza a autonomia e a participação da pessoa (ou família) atendida, bem como novas compreensões e intervenções para o processo de saúde-‐doença. Nesse sentido, caminha em direção à construção da clínica ampliada, que, de acordo com Campos (2007), parte desses pressupostos, de um trabalho coletivo, em equipe, e da singularização dos casos.
Se na clínica tradicional valoriza-‐se a intervenção médica, o saber do técnico em relação ao do paciente e o enfoque na doença, na clínica ampliada a lógica é outra. Expandem-‐ se as intervenções para outros campos de domínio, o paciente é considerado na sua integralidade, não apenas na sua doença, e torna-‐se agente do seu processo de cuidado e protagonista da cena.
Nesse sentido, entendo o arranjo Apoio como um dispositivo de intervenção, de acordo com a conceituação de Foucault (2009), na medida em que é capaz de transformar aspectos da realidade e de produzir novos modos de subjetivação. Um dispositivo que pode ser realizado por diferentes equipes de profissionais, entre elas o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), proposto pelo Ministério da Saúde com a portaria n.154, em 2008. Trata-‐se de uma equipe volante de saúde que se opera segundo os princípios e ações do Apoio Matricial e que se baseia nos pressupostos da clínica ampliada.
É o dispositivo Apoio Matricial em saúde mental, exercido por uma equipe de NASF, que será o tema amplo desta pesquisa. E, como recorte deste tema, serão realizadas uma reflexão e uma problematização acerca da clínica (ampliada) produzida por essa equipe, no seu trabalho com profissionais do Programa de Saúde da Família (PSF).
Além disso, estava inserida em um cotidiano de intenso sofrimento, pois havia resistência de grande parte dos profissionais da rede em querer participar do matriciamento e a realidade territorial era de excesso de demandas da população, carências e violências diversas. Frequentemente me sentia indo na contramão do modo de funcionar de um sistema que pensava e intervia em saúde mental de forma bastante distinta da proposta de uma clínica ampliada, pois se baseava no modo de encaminhamentos (indiscriminados) da lógica de referência e contra referência e em uma visão simplificada, organicista e/ou normativa da saúde.
Parodiando Fernando Pessoa, quando já não mais conseguia estar inteira nesse trabalho, tendo sido tomada e esvaziada (por um contexto caótico e extremamente desgastante) na possibilidade de pensar, refletir e transformar práticas clínicas já obsoletas, escolhi fazer esta pesquisa, de forma a encontrar novos interlocutores e construir novos saberes e práticas relativos ao campo atual da saúde mental no serviço público.
Para tanto, acompanhei, neste estudo, o trabalho de uma equipe de NASF com uma equipe de saúde da família (ESF), em uma Unidade Básica de Saúde da Família do Município de São Paulo. Conforme conheci esta experiência, deparei-‐me novamente com um campo extremamente complexo, também marcado pelo caos e no qual a clínica também era área de compreensão e intervenção predominante.
Interessei-‐me particularmente pela possibilidade de discussão sobre a clínica construída por esses profissionais e, para viabilizar esta reflexão, adotei como estratégia a participação na construção de um caso de saúde mental em acompanhamento clínico por profissionais dessas duas equipes. Trata-‐se do caso Maria, que se refere à história de uma moça que tentou suicídio repentinamente e cuja família solicitou ajuda à ESF que, por sua vez solicitou apoio ao NASF.
Que clínica foi produzida no caso Maria, considerando-‐se a relação entre todos os atores nele envolvidos? De que forma o dispositivo Apoio do NASF participou deste processo? Nessa prática, como se fez presente, se é que o fez, a clínica ampliada?
primeiro momento a partir da filantropia, e depois pela medicina urbana e higienização das cidades; há uma lógica de observação, organização e normatização do cotidiano e a clínica insere-‐se nesse contexto, valendo-‐se de tais práticas e da medicina moderna.
Associada ao discurso preventivista, que visava a produção de indivíduos saudáveis e a eliminação e correção dos estados de doença, o campo da clínica e da prevenção é fronteiriço, de acordo com Pacheco (2008), pois condensa diversos pares de compreensão social, presentes tanto de forma binária e oposta, quanto de forma dialética. Trata-‐se aqui dos polos cura-‐prevenção, individual-‐social, biológico-‐econômico-‐cultural, natural-‐ político.
Reconhecendo essas heranças clínicas e discordando dos sabres e das práticas que as reproduzem ainda hoje, a minha reflexão sobre a clínica ampliada, a partir do caso Maria, tentará ultrapassar tais oposições, bem como a de clínica-‐saúde coletiva. A partir do problema desta pesquisa, que é a clínica produzida entre o NASF e a ESF no caso Maria, procuro pensar em que medidas o dispositivo Apoio favoreceu, ou não, ensaios e práticas clínicas criativas, de que paradigmas esses se aproximaram e se neste entre em questão produziu-‐se alguma experiência de transicionalidade.
A transicionalidade está sendo compreendida aqui de acordo com Winnicott (1971), que a define como um processo de singularização, que ocorre a partir das relações e tradições presentes, mas que não se resume a elas, sendo único e particular, inusitado até então. Trata-‐ se de um campo de experimentação no mundo, do sujeito com o (seu) ambiente, no qual é possível criar novos modos de ser.
O conceito de transicionalidade será melhor apresentado no segundo Capítulo desta
dissertação, composta por cinco capítulos. Os dois primeiros referem-‐se às construções e aparatos teóricos deste trabalho; o terceiro também, mas com foco no método utilizado; o quarto e o quinto referem-‐se ao campo da empiria desta pesquisa.
No terceiro Capítulo, como estudo metodológico, desenvolvo os pressupostos e ferramentas da Análise Institucional e da proposta de construção de caso clínico como estratégias para a viabilização e compreensão desta pesquisa (de campo). Nessa perspectiva, não se trata de um estudo de caso, mas sim de uma construção coletiva, de acordo com Viganò (2010), em que cada ator é considerado protagonista da cena e em que se colocam em análise os diversos atravessamentos que se fazem presentes nesse processo.
E, por fim, no quarto Capítulo faço uma apresentação do contexto em que foi produzido o caso Maria, o que inclui aspectos do território e das equipes NASF e ESF acompanhadas, para, então, no quinto Capítulo trazer à cena o caso propriamente dito. Para facilitar a reflexão sobre este caso, produzido em uma realidade complexa, densa e multifacetada, que solicita aos profissionais difíceis tarefas, o caso é analisado essencialmente a partir de dois eixos compreensivos: especificidades do campo da saúde mental e um modo de clinicar em questão.
Sendo as experiências de transicionalidade na cultura uma possibilidade de criação e singularização de modos de subjetivação, a proposta é pensarmos em que medidas a clínica
entre o NASF e a ESF, construída no caso Maria, é ou não criativa e possibilita a produção de
vivências inéditas, próprias e menos assujeitadas aos profissionais e/ou à Maria, bem como à realidade em que todos estão inseridos. Conforme se constitui como tal, estamos diante de experiências de transicionalidade, o que nos possibilita refletir ainda como tal prática clínica contribui ou não para o processo de transformação da biomedicalização da loucura, que se
refere à compreensão da loucura essencialmente pela ótica da neurobiologia e do imperativo de uma vida saudável, conforme entende Rose (2010).
CAPÍTULO 1: O APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL E O NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA
FAMÍLIA COMO DISPOSITIVOS CLÍNICOS DE INTERVENÇÃO
1.1 – Uma transformação na clínica: do paradigma manicomial ao psicossocial
Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,
Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há.
Fernando Pessoa
Esta espécie de loucura, muito mais que um talento, é faceta fundamental da condição humana, com a qual entramos em contato de diferentes formas, de acordo com cada época da história, da sociedade e da nossa própria vida. Parodiando Fernando Pessoa, é confusão de pensamento e experiência solitária de não saber (de si) diante da sabedoria essencial da natureza, que se inclina para a luz e se recolhe na sombra espontânea e regularmente. Como nos diz Maria, cujo atendimento acompanhei ao longo desta pesquisa, a loucura é uma experiência de ocorrência misteriosa, não sei o que aconteceu comigo, e cuja vivência é assustadora: Não quero falar disso, não quero que isso volte, diz ela. O que é isso?
Para muitos, isso é sintoma patológico, sinal de anormalidade, sofrimento psíquico e símbolo de doença mental; para outros, é produção heróica, mítica, literária e instigante. Tratam-‐se de duas compreensões distintas e até antagônicas que se referem, respectivamente, ao campo do psíquico e ao da subversão estética, e entre as quais oscilam (dicotomicamente) nossos saberes sobre a loucura (Starobinski, apud Pelbart, 2009).
“A loucura, no sentido mais lato, situa-‐se aí: ao nível da sedimentação nos fenômenos
da cultura onde começa a valorização negativa daquilo que originalmente fora
apreendido como Diferente, Insano, Desrazão” (2008: 91).
Foucault considera que a história da loucura origina-‐se da divisão estabelecida entre razão e não-‐razão, numa relação de superioridade daquela em relação a esta. Na modernidade, a loucura é capturada pelo saber e é transformada em doença mental, estabelecendo-‐se, segundo o autor, “a linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura (...)” (2008: 141).
Louco e não-‐louco, razão e não-‐razão: relações binárias que marcaram a era do alienismo e a clínica da saúde mental na modernidade, ignorando que, como lembra Foucault (1999), mas cada um desses polos existe apenas um relação ao outro, sendo uma falácia tal separação. Pelbart, seguindo essa pista foucaultiana sobre o diálogo, e não uma falsa divisão, entre razão e desrazão, compreende por loucura:
“(...) uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a alteridade
radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como seu limite, o seu contrário, o seu outro, o seu além” (1993: 105).
Mas não foi esse o movimento hegemônico da humanidade, ao contrário, houve uma crescente separação entre loucura e razão. Na era do Alienismo, na Idade Clássica, a loucura é excluída da razão e aprisionada em um universo moral, sendo considerada alienação, erro manifesto e experiência de desrazão; o tratamento consiste então em recuperar a razão que lhe estava oculta. O louco ganha um lugar de tratamento específico, o asilo, onde seria curado através do tratamento moral, baseado nos princípios de isolamento; disciplina; vigilância por parte da equipe; castigo; punição e moralização (em relação ao trabalho, à família e à vida social). Visa-‐se o resgate da razão e da moral, o retorno do inalienável e a volta para o mundo do trabalho (Foucault, 1999).
descoberta da verdade da doença mental e de investimento da figura do médico de poder e autoridade, consolidando a figura do especialista no caso da loucura.
O desenvolvimento da medicina mental e do hospital psiquiátrico é marcado pelos pressupostos da clínica moderna, do século XIX, pautada nas ciências naturais e na proposição de um saber positivo, neutro e autônomo, na busca de expressão da verdade absoluta (Amarante, 2003). A clínica, desde a Idade Clássica, passa para o domínio médico, baseando-‐ se, naquela época, na medicina classificatória e em uma especialização em relação às doenças, a partir do olhar médico, que buscava identificar sintomas; o corpo é considerado apenas substrato para a doença e, o doente, tido como aquele que atrapalha o olhar do médico.
Nesse sentido, Foucault (2006) considera que a clínica surge como possibilidade de afirmação de um discurso médico sobre as doenças, a partir do olhar e da linguagem médicos. Antes de ser o encontro do doente com o médico, é lugar de produção de saberes e verdades, num campo nosológico totalmente estruturado: o hospital. A prática de observação ao leito dos doentes (Klinicós) é parte essencial da nova medicina, e o olhar deveria não apenas constatar a doença, mas também descobrir suas formas de produção e evolução. A medicina, com sua arte de curar, entra na ordem civil: a coerência científica deveria associar-‐se à proteção e controle sociais.
A clínica moderna baseia-‐se nos pressupostos dessa clínica médica, e importa da matemática um saber probatório, que procura certezas, a partir de regularidades. Da medicina classificatória à medicina estatística do século XIX, busca-‐se um olhar puro, que constata, descobre e é analítico. A observação do médico conduz, neste momento, à experiência (da doença) e tem por função fazer falar a verdadeira palavra (que também é a da doença); um olhar clínico que ouve uma linguagem, para classificar e descrever, no momento em que produz um espetáculo (Foucault, 2006).
com um olhar que não só constata, mas descobre. E a grande novidade é que o indivíduo é menos uma pessoa doente do que um fato patológico.
É nesse contexto de saberes e práticas clínicos do século XIX, e aproveitando competências médicas em desenvolvimento em outros campos, que a clínica da medicina mental desenvolve-‐se. Foucault (2009) denomina esse processo de desenvolvimento da medicina mental de “medicalização da loucura”, que representa a passagem da mesma à condição de objeto de saber e intervenção médicos. Trata-‐se da busca da verdade da medicina mental, que buscava a sua consolidação. Para Castel (1978) essa medicalização foi a forma pela qual a psiquiatria clássica, empoderada e com uma função politica de controle social, administrou a questão da loucura, reduzindo ativamente um fenômeno social a um problema técnico. Segundo esse autor:
“Medicalizar um problema é mais desloca-‐lo do que resolvê-‐lo, porque é autonomizar uma de suas dimensões, trabalha-‐la tecnicamente e, assim, recobrir sua significação
sócio-‐política global, a fim de torna-‐la uma ‘pura’ questão técnica, adscrita à competência de um especialista ‘neutro’. (...) No plano ‘ideológico’, trata-‐se de
resolver ou articular verbalmente a contradição, numa nova síntese que garante, pelo menos, que a fórmula adotada era a melhor possível (...). / (...) No plano das práticas equivale a reduzi-‐las ao que é imediatamente manipulável num quadro técnico-‐
científico ocultando tudo o que não é do âmbito de um tal ‘tratamento’ técnico (psicológico ou orgânico)” (1978: 189).
O cerne da medicalização da loucura não está na relação médico-‐paciente, mas sim na relação medicina-‐hospitalização, baseada no paradigma manicomial e biomédico, que contribuiu para a confirmação da figura do louco como um tipo social inferior, improdutivo e infantilizado. Uma psiquiatria pedagógica infantilizadora, em que o louco é tido como alienado, menor, perigoso e improdutivo, como bem descreve Pelbart:
“O louco peca então por ser desviante, excessivo e criança. Não é o Outro do homem,
mas é ele mesmo, o homem, na sua fase precoce, na sua espontaneidade primeira, informe e disforme. É o Mesmo involuído, regredido, reduzido à sua impotência. É, no homem, aquilo a ser superado, a fim de que ele atinja a plenitude da mesmice” (2009: 196).
paradigma manicomial e esse imaginário social sobre a loucura, de criar novas formas de compreender e intervir no campo da saúde mental, iniciam-‐se, na Europa nos anos 40, processos de Reforma Psiquiátrica. Foucault (2009) considera o cerne destes processos o questionamento das relações de poder vigentes sobre o louco, retirado da sua condição de sujeito, em liberdade, e submetido ao poder médico e institucional.
Como parte do processo de desmedicalização da loucura, esses processos transformaram o paradigma manicomial e novos dispositivos de saúde mental foram criados, sendo contrapostos aos anteriores, de forma a investir-‐se no desenvolvimento de novos saberes e práticas nesse campo.
A Psicoterapia Institucional na França; as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra; a Psiquiatria Preventiva nos Estados Unidos; a Psiquiatria Democrática na Itália e a Antipsiquiatria na Inglaterra foram os principais movimentos da Reforma. Mas, para Amarante (2010), amparado nas idéias de Rotelli, foram a Psiquiatria Democrática e a Antipsiquiatria que questionaram, de fato, o aparato manicomial.
Na Itália, Basaglia propõe colocar a “doença mental” entre parênteses, de modo que o louco não mais fosse reduzido a esta categoria nem tão pouco à condição de inferior e perigoso, devendo, ao contrário, ser considerado na singularidade e na complexidade de sua doença, o que inclui o contexto social em que está inserido. Na Inglaterra, Cooper, Esterson e Laing procuram combater as estruturas hospitalares e defendem um diálogo sobre razão e loucura, sendo esta tida como um fato social e político, um desequilíbrio familiar ou até mesmo um ato de libertação, não apenas uma doença.
No Brasil, o campo da assistência psiquiátrica, que se desenvolveu apoiado no alienismo, foi fortemente influenciado, nos anos 1970, pela Psiquiatria Democrática Italiana e pela Antipsiquiatria, de modo que também eclodiu aqui o processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Esse é um período de emergência de movimentos sociais, com crítica das ações de caráter individual e curativo, bem como das práticas médicas organicistas, hospitalocêntricas e medicalizantes, propõe-‐se a universalidade do cuidado e luta-‐se por um novo conceito para o processo de saúde-‐doença. Destaca-‐se nesse momento a eclosão do processo de Reforma Sanitária Brasileira, que promove esses questionamentos e uma revisão da clínica (Costa, 1989a).
do bem estar social. Contra organizações ditatoriais e a privatização dos serviços de saúde, defende a existência de um Estado social democrático, o direto à saúde (com controle e participação popular) e a constitucionalização do SUS. Contribuiu (e contribui) para a ampliação da concepção de saúde para o campo das determinações sociais e para o direito à saúde na sua integralidade, com ações de prevenção, promoção e reabilitação (Fleury, 2009).
A Saúde Coletiva1 insere-‐se nesse processo, como parte da consolidação de um campo de luta (política) e revisão do sistema de saúde. Com origens no preventivismo e na medicina social, amplia as concepções de saúde e doença para além da biologia e, portanto, amplia questiona a clínica tradicional, que se apoia na noção de psicopatologia, enfatiza o sujeito na sua singularidade com ênfase na subjetividade e na interioridade dos fenômenos humanos, e busca um sujeito independente e de profundidade psicológica, típico das sociedades neoliberais industrializadas (Ferreira Neto, 2011).
Sendo um campo heterogêneo e composto pelo cruzamento de diversas disciplinas, tenta (ainda no presente, já que é atuante e permanece em construção) integrar as ciências sociais e humanas, e a epidemiologia ao planejamento e à política (Nunes, 2007). Entretanto, Campos (1994) considera que, com relação à clínica, o movimento sanitário contrapôs a assistência individual à epidemiologia social.
O processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira, inserido nesse contexto, luta pela construção de novos saberes e práticas no campo em saúde mental. Entre alguns de seus marcos, destacam-‐se o Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental no fim dos anos 70; o surgimento dos Núcleos de Atenção Psicossocial em Santos e do Centro de Atenção Psicossocial em São Paulo (no fim dos anos 80); as Conferências Nacionais de Saúde Mental e a lei Paulo Delgado2.
Desenvolve-‐se e consolida-‐se um novo paradigma em saúde mental, que Costa-‐Rosa (2006) denomina de psicossocial3, em que a loucura é compreendida como processo produzido
pela interação de fatores políticos, culturais, sociais, biológicos e psíquicos. Propõe-‐se agora
1
Em 1979 foi criada a ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e formalizado o campo da Saúde Coletiva, com a organização de congressos, pesquisas e grupos de trabalho num movimento de militância política pela defesa de uma reforma no sistema de saúde, a partir das contribuições do movimento sanitário (Nunes, 2007).
2
Em 1989, inicia-‐se no Congresso Nacional o projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que propõe a regulamentação dos direitos de pessoas com transtornos mentais, redireciona o modelo assistencial em saúde mental e prevê a desconstrução progressiva dos manicômios. Em 2001, essa lei foi revista, sendo nomeada de lei 10.216, que proíbe internações em locais que não assegurem o direito e a proteção às pessoas atendidas (Brasil, 2001 – Lei disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm).
3
uma clínica em que o paciente4 participa da cena como protagonista, bem como sua família
e/ou comunidade/rede existentes, enfatiza-‐se sua reinserção social, para além da remissão de sintomas e não se trabalha numa ótica medicalizante, pelo contrário. Aposta na auto e cogestão, na interdisciplinaridade, na territorialização, na singularização e na ética como pressupostos organizadores do trabalho.
Mas como o campo da saúde mental insere-‐se hoje na saúde pública? Que paradigmas atravessam-‐no e que modos de clinicar estão presentes? Saberes e práticas que caminham em direção à manutenção e/ou transformação das formas manicomiais de compreensão e intervenção da loucura? Nos próximos itens, conheceremos um pouco dessa realidade e algumas estratégias atuais em saúde mental que pretendem consolidar o paradigma psicossocial. Tratam-‐se da clínica ampliada, do Apoio Matricial em Saúde Mental e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, sobre os quais refletiremos na sequência.
1.2-‐ A clínica ampliada em saúde mental: uma perspectiva conceitual
O termo clínica ampliada é cada vez mais utilizado e difundido, especialmente nos serviços de saúde pública, mas a que práticas ele se refere e a que ele se propõe? Iremos agora esclarecê-‐lo, de modo que a conhecê-‐lo e a tornar evidente o sentido de clínica considerado neste trabalho.
Onocko Campos (2005) aponta a necessidade do Sistema Único de Saúde (SUS) reformular sua compreensão e prática clínicas, de forma a transformar saberes já ultrapassados nesse campo, que em vez de transformar a saúde, reafirmam as práticas tradicionais, insuficientes. Como tentativa de criação de outra clínica na saúde pública, o Ministério da Saúde, auxiliado por trabalhadores, gestores e militantes do campo da saúde,
4 Apesar do termo “usuário” ter sido uma conquista do processo de Reforma Psiquiátrica, sendo proposto pelo SUS
tem desenvolvido diversas estratégias e documentos, entre eles um que se refere à clínica ampliada.
Em cartilha da PNH5, o Ministério da Saúde define clínica ampliada como aquela em que há “compromisso com o sujeito doente”, compreendido de forma singular; ética; responsabilidade pelos usuários dos serviços de saúde; intersetorialidade; reconhecimento dos limites dos profissionais e das tecnologias utilizadas, na busca de novos conhecimentos que possam complementar o trabalho; questionamento das discriminações sociais embutidas em muitos diagnósticos, e desenvolvimento da capacidade de transformar doenças, de forma que estas, apesar de às vezes limitantes, não impeçam a vivência de outras experiências. A doença deixa de ser considerada apenas sob sua ótica negativa, e passa a ser compreendida também como uma nova possibilidade de vida.
A IV Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 2010, também afirma a prática da clínica ampliada ao definir o campo da saúde mental como:
“(...) intrinsecamente multidimensional, interdisciplinar, interprofissional e
intersetorial, e como componente fundamental da integralidade do cuidado social e da saúde em geral. Trata-‐se de um campo que se insere no campo da saúde e ao mesmo
tempo o transcende, com interfaces importantes e necessárias reciprocamente entre ele e os campos dos direitos humanos, assistência social, educação, justiça, trabalho e economia solidária, habitação, cultura, lazer e esportes, etc.” (2010a: 9).
Mas de que forma é possível transcender uma compreensão organicista e unívoca da doença e como, no cotidiano, trabalha-‐se intersetorial e interprofissionalmente? Em companhia de outros autores, tentarei responder a essas perguntas. Como um aquecimento necessário, sugiro como primeira atitude a quem trabalha sob a perspectiva da clínica ampliada o questionamento dos saberes e das práticas que já estão postos e dos quais lançamos ou não mão, para se refletir sobre a que paradigmas respondem, e a que paradigmas queremos responder, fazendo aí os ajustes necessários.
Partirei da consideração de clínica ampliada mais como um exercício de tomar uma concepção que merece ampliações, do que meramente amplificar aquilo que já está instituído, conforme propõe Paulon (2004). Nesse sentido, não deve ser compreendida apenas como simples ampliação da clínica tradicional, estendida a novos contextos institucionais, nem como
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mera expansão da concepção do processo de saúde-‐doença, tão pouco deve ser reduzida à proposta de multidisciplinaridade. Trata-‐se da produção de novos saberes e práticas, que rompem com aqueles tradicionais, ancorados nos paradigmas manicomial e biomédico, e/ou com um modo de clinicar restrito aos consultórios (privados ou de ambulatórios), que reproduzem modos de subjetivação individualizantes e alienantes. Além disso, parto da proposta de uma clínica que promova experiências de criatividade, em vez de adaptações.
Acompanhemos alguns autores que trabalham nesta direção.
Onocko Campos (2005) sugere que a clínica como disciplina seja problematizada, de forma a não se esgotar na sua dimensão técnica. Embora seja necessária uma ancoragem teórica, há sempre um aspecto intersubjetivo e comunicativo que acontece nos encontros assistenciais, para além da dimensão técnica. Clinicar não se restringe a um aparato teórico-‐ técnico, pois acontece no encontro com o paciente e com os demais atores envolvidos, considerados nas suas características, crenças e recursos próprios.
Campos (2007) problematiza a clínica como disciplina quando sugere que não se restrinja à dimensão médica, pois esta não é a única, mas uma, dentre outros campos em que a clínica é possível; para além do campo da ciência, há o campo da arte, do imprevisível e da singularidade. Nesse sentido, propõe a idéia de semblantes, ou de dobra, para as diversas clínicas que existem, e a partir disto caracteriza três tipos de clínica que reconhece nos serviços de saúde: a oficial (tradicional), a degradada e a do sujeito, que seria para ele a clínica ampliada.
A oficial é limitada; trata-‐se da clínica médica, cujo objeto de estudo e intervenção é reduzido, pois não se considera a integralidade dos sujeitos. Aqui, supervaloriza-‐se o enfoque biológico e a responsabilidade é pela doença, não pelo doente. A abordagem terapêutica é excessivamente voltada para a noção de cura e para isto se utilizam procedimentos técnicos padronizados e já conhecidos, havendo dificuldade do profissional de escutar queixas diversas e de circular por caminhos desconhecidos.
Por fim há a clínica do sujeito, que Campos define como aquela construída em equipe e que valoriza o vínculo entre o profissional/equipe e a clientela. Não nega o avanço dos saberes e das tecnologias, mas questiona a “arrogância pétrea da medicina”, reconhecendo os limites de qualquer saber estruturado. Assim, amplia a compreensão de doença e sai do campo das certezas e regularidades para adentrar o da imprevisibilidade da vida cotidiana. Aposta na escuta, na singularidade e na variação, e trabalha a partir da construção de projetos terapêuticos singulares6.
Trata-‐se de uma construção coletiva, da qual equipe e clientela fazem parte ativamente, expondo-‐se as incertezas presentes nas ações propostas. Uma coletividade que pressupõe transdisciplinaridade, sem que isto não se reduza ao lugar já comum da transdisciplinaridade, sendo preciso combinar especialização com interdisciplinaridade, sem diluição das responsabilidades e ou omissão de saberes específicos.
Essa é a clínica ampliada, no sentido de ser uma ampliação, revisão e transformação da clínica médica oficial, tradicional e/ou degradada. Uma ampliação, e não uma troca, pois a doença está presente, como processo humano, mas sendo agora compreendida como a doença de um sujeito concreto, singular, que vive em um determinado contexto de vida. Assim, a clínica pode considerar as inter-‐relações da vida do sujeito, e os serviços de saúde deveriam operar com plasticidade, não em função dos saberes médicos e especializados, mas utilizando-‐os em função das necessidades e demandas que se lhe impõem.
Para Cunha (2005), a clínica ampliada deve ser antiprotocolar; trabalhar com ofertas, possibilidades e aberturas, não apenas com restrições e crenças definitivas. Deve ainda ser construída a partir de processos dialógicos com o paciente, de forma a criar com ele intervenções específicas, em vez de receitar-‐lhe condutas. Uma clínica que respeita a singularidade e a autonomia dos sujeitos, oferecendo-‐lhes atenção de forma transversal, a partir de práticas em que há divisão de poderes, em vez de centralização destes em figuras privilegiadas hierarquicamente. Valoriza a equipe como sujeito coletivo de produção interventiva, num trabalho em que se reconhecem limites, em vez de mitificar saberes.
Campos (2011) parte noção da dialética de Hegel para propor a discussão de clínica ampliada, pois neste caso trata-‐se de transformar um processo já em andamento para a sintetização de um novo, que carrega as marcas de todos os momentos anteriores, ao mesmo
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tempo em que os nega. Para o autor, este processo, além de compartilhado, como vimos acima, é transparadigmático, pois visa questionar e ultrapassar tanto o paradigma biomédico, quando o da determinação social. Trata-‐se de um movimento de tensionar e ampliar paradigmas específicos, redefinindo o papel de cada um deles, aproveitando as contribuições possíveis, em vez de elimina-‐los ou de reduzir um problema a apenas um modo de compreensão possível.
Assim, amplia-‐se a noção de diagnóstico e a prática do trabalho específico, sendo fundamental a idéia de núcleos específicos, que trabalham em um campo comum7, que não é reduzido a uma única determinação. Nesse sentido, as compreensões de clínica propostas pela saúde coletiva também são ampliadas, pois não se nega a importância de haver atendimentos individuais e especializados, apenas não se restringem as ações de um campo à exclusividade destes. Este é um aspecto importante para a atualidade, pois é comum, principalmente após a criação do Apoio Matricial e do NASF, profissionais da saúde recusarem-‐se ou se oporem à realização de atendimentos específicos, em prol de uma clínica coletiva. Mas é preciso esclarecer que o coletivo, nesta proposta, não nega a necessidade de ações especificas, apenas não se reduz a estas.
As intervenções clínicas são mais do que o atendimento de um pronto atendimento, a medicalização ou a atenção especializada, embora cada um desses recursos seja bem vindo se for o caso, de modo que Campos defende uma integração entre a prática clínica e o movimento sanitário, o que outrora foi contraposto no movimento de consolidação da Reforma Sanitária e da Saúde Pública. Entende que a clínica não é irredutível a qualquer composição com a epidemiologia, e tão pouco antagônica aos interesses públicos e ao projeto de socialização dos serviços de saúde, e afirma:
“A conclusão desta crítica entre a clínica e a epidemiologia encontram obstáculos
muito maiores de ordem política do que de caráter metodológico, e que a Clínica e a Saúde pública tratam do mesmo problema, ainda que enfatizando diferentes aspectos
da questão saúde/doença e dando origem a modelos de atenção circunstancialmente, mas não necessariamente diferentes” (1994: 68).
7 Para Campos (2000b), há campos comuns de trabalho, que são formados por núcleos de saberes e intervenções
específicos. Define o núcleo como aglutinação de conhecimentos específicos que definem a identidade de uma área profissional, e o campo como um espaço com limites imprecisos, em que diferentes conhecimentos e práticas profissionais fazem-‐se presentes para cumprir com as demandas colocadas. O autor considera que partir desses conceitos, bem como das práticas de Apoio Matricial, é possível não se cair no lugar comum que ele denomina como “pós-‐moderno da transdisciplinaridade”, em que se considera que a simples presença de uma equipe é suficiente para a heterogeneidade ou coletividade.
O autor propõe a ampliação entre esses dois campos, de modo que haja convivência, e não exclusão, entre diferentes metodologias. Nem uma clínica restrita ao modelo individualizante da tradicional, nem outra limitada, submetida ao aspecto socializante da saúde coletiva, mas um dispositivo que possibilite um diálogo entre ambas. Em qualquer proposta pública e de saúde, deve-‐se valorizar a subjetividade das pessoas, o que muda é o foco e a metodologia utilizados na intervenção. As dimensões sociais estão presentes nessa nova clínica, mas não em detrimento aos outros aspectos constituintes da vida do sujeito.
Ferreira Neto (2011)8 caracteriza a clínica ampliada como a articulação entre a clínica tradicional e a que enfatiza o aspecto político-‐social, o que produz um palco de tensões, mas também uma intercessão produtiva, de modo que a subjetividade seja associada à noção de cidadania e aproveitando-‐se várias disciplinas, e não apenas uma, de acordo com as demandas do sujeito.
Onocko Campos et.al. (2008), assim como Campos (2007), consideram que se trata de uma clínica que não nega os avanços tecnológicos e nem desconsidera a importância de uma boa formação técnica, mas sim que é menos prescritiva, cria novos modos de escuta e inclui novas análises de vulnerabilidade (não só biológica, mas também subjetiva e social), e novas formas de avaliação dos riscos presentes (como a dimensão da prevenção e da redução de danos).
Em vez de haver padrões generalizados, trabalha-‐se a partir da singularidade de cada caso, sem cair numa relação de tutela ou enquadramento dos pacientes. Os projetos são criados de forma compartilhada com a população atendida e esta é responsabilizada pelo seu próprio processo de cuidado, apostando-‐se na sua potencialidade de autonomia. Desta forma, crê na presença de recursos dessa população e da comunidade, ainda que em situações de pobreza.
Já no belo ensaio publicado em 1954, Doença Mental e Psicologia, Foucault propõe que a clínica não anule o sujeito da doença em nome do saber médico, nem seja uma consciência lúdica do processo de enlouquecimento, mas sim uma reflexão fenomenológica sobre este:
8 Sugiro a leitura do capítulo “Clínica transversalizada em saúde mental” do livro utilizado nessa referência, pois