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O específico e o genérico: um caso de variação lexical na fala cearense

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Academic year: 2018

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Resumo

O trabalho descreve um traço específico de variação lexical no Ceará, sistematizando um dos princípios de organi-zação do vocabulário neste dialeto. Focaliza os mecanismos de restrição e extensão do significado na abordagem variacional, verificando a ocorrência de termos gerais onde, em outros dialetos de referência, seriam esperados termos específicos e vice-versa. Os dados foram coletados em situ-ações naturais de fala e no Dicionário de Expressões Popula-res de Tomé de Cabral, tomando como referência formas dos dialetos do eixo Rio-S.Paulo. O inventário está organizado por significados e/ou por relações semânticas, sendo prece-dido de uma breve análise teórica dos mecanismos de restri-ção e de extensão de significado.

Abstract

This paper describes a specific feature of lexical variation in the state of Ceará, systematizing one of the vocabulary-organizing principles in this dialect. It focuses upon the restriction and extension mechanisms of the signifation under the variational approach, verifying the occurance of general terms where those which are specific would be expected and vice-versa. In otherwords, it deals with the current use of words or expressions with a more concrete and particular character as well as the use of more abstract and general forms than the ones employed in the central and southern regions of the country in order to convey the same concepts. The project consists of a gathering of data from the spoken language collected both freely, in natural speech situations, and in the Dictionary of Popular Expressions by Tomé de Cabral. Correlated forms from the dialects of the Rio-São Paulo area were used as reference. The inventory is organized by means of logical and/or semantic relations, being preceded by a brief

theoretical analysis of the restriction and extension mechanisms of the meaning.

Palavras-Chave: variação lexical, vocabulário, restrição/ extensão do significado, termos específicos/genéricos.

INTRODUÇÃO

Num país com as dimensões geográficas e com as peculiaridades sócio-culturais do Brasil o estudo da varia-ção lingüística assume um significado especial. Considere-mos inicialmente a amplitude do fenômeno variação, pas-sível de se manifestar em qualquer nível do sistema lingüístico (fonológico, sintático, semântico e até no plano discursivo), abrangendo, portanto, uma ampla gama de diferenças diale-tais.

No nível fonológico, por exemplo, temos a variação decorrente da realização sonora das palavras. No nível sin-tático, as construções resultantes da combinatória de pala-vras em frases ou em enunciados maiores. Já no nível semân-tico, os aspectos variacionais referem-se aos relacionamentos de significado estabelecidos entre palavras ou estruturas, incluindo-se as possibilidades de escolhas lexicais represen-tativas da categorização particular da experiência dos falan-tes. No nível discursivo, por sua vez, temos variações decor-rentes especificamente de influências ou efeitos do contexto comunicativo, com todos os aspectos pragmáticos nele en-volvidos.

Essas diferenças são determinadas quer por fatores geográficos (variedades diatópicas, relativas a dialetos re-gionais), quer por fatores sócio-culturais (variedades dias-tráticas, relativas a dialetos sociais, ligados à característi-cas do falante como idade, sexo, classe social, profissão, ou mais especificamente aos registros de fala ou situações de uso da linguagem).

Iúta Lerche Vieira Rocha 1

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Em relação ao campo dos estudos variacionais acima delimitado, pode-se dizer que o presente trabalho constitui uma análise diatópica da fala cearense a nível léxico/semânti-co.2 Constitui um trabalho de variação dialetal, não no

senti-do restrito senti-dos trabalhos correntes de dialetologia lexical, mas numa perspectiva mais abrangente, ou seja, a de tentar sistematizar um dos princípios organizacionais do vocabulá-rio neste dialeto.

Em que pese a necessidade de descrição em todos os níveis de variação dialetal, é no léxico que se manifestam os aspectos mais particulares da cultura regional (MIRA MATEUS, 1983). O vocabulário não só apresenta espe-cificidades diferenciadoras, como também abriga curiosas relações do ponto de vista da variação lingüística regional. Assim, por exemplo, um falante do centro-sul do Brasil que chegue ao Ceará certamente estranhará o uso de certas ex-pressões correlatas para designar coisas semelhantes, ou até mesmo de expressões idênticas para referir-se à coisa diferentes3 ou aparentadas.

Por outro lado, o interesse empírico na área do voca-bulário cresce proporcionalmente à consciência de que, na aquisição, a sintaxe já está inscrita no aparato lingüístico inato, estando prevista no funcionamento modular da mente. Isto significa que as regras de combinação sintáticas de cada língua serão naturalmente ativadas no contato com o

meio-ambiente. O vocabulário, ao contrário, é totalmente aprendi-do, resultando da experiência sócio-cultural que envolve cada

língua ou dialeto, com destaque para a criatividade operando sobre conteúdo verbal. Os mecanismos de aquisição e de variação do léxico, suscitam, pois, uma especulação crescte. No Brasil, contudo, as pesquisas nesta área ainda se en-contram em estágio inicial.4

Quanto à prioridade de análise, vale referir que os dialetos mais distantes do centro-sul do país, aqueles fala-dos exatamente nas regiões menos desenvolvidas do país têm sido também menos estudados e muito deles se conser-vam praticamente intactos à espera que se lhes desvele to-das as nuances significativas.

Esta constatação vem reforçar outro argumento justificador do presente estudo, que é o questionamento das atitudes preconceituosas associadas à línguas ditas “primi-tivas”, a dialetos minoritários ou socialmente estigmatiza-dos.

Um dos axiomas da linguística atual é a igualdade de valor lingüístico atribuída a todos os dialetos, o que implica numa valorização dos diferentes falares. No entanto, não se pode fugir à evidência de que a língua também traz em

seu bojo o germe da desigualdade (HUDSON, 1980). Isto se atesta pelos usos ideológicos que dela se façam, como tam-bém pelos preconceitos lingüísticos tão arraigados aos fa-lantes em geral e já presentes em crianças de idade pré-escolar (ROSENTHAL,1974 e LOCAL,1978 apud HUDSON, Op.cit).

Diante destas colocações, é patente que os estudos variacionais muito podem contribuir para o entendimento das relações entre língua e sociedade, na medida em que, descre-vendo as diferenças, abrem caminho para a compreensão da unidade e o respeito à variedade. É esta a motivação do pre-sente estudo.

I. O FOCO DA ANÁLISE

Este trabalho procura descrever um traço característi-co da variação lexical no Ceará, qual seja a ocaracterísti-corrência de termos genéricos por específicos, e vice-versa. Dentre os mecanismos em jogo na variação lexical do dialeto cearense está o recurso freqüente à criação de formas mais específicas ou mais genéricas que as empregadas em outras regiões para fazer referência aos mesmos conceitos, configurando um fe-nômeno de restrição e de extensão do significado. Trata-se do uso corrente de palavras de caráter mais concreto e parti-cular, ou denotadoras de maior abstração e generalidade que as variantes usadas para cobrir os mesmos significados nas regiões do centro-sul do Brasil, mais especificamente no eixo Rio-São Paulo.

Ilustrativo desta variável linguística são as seguintes variantes regionais:

CE (Específico) RJ/SP (Genérico)

rosa flor

engomar passar roupa tertúlia festa

jogar no mato jogar fora

pastorar tomar conta, vigiar ir à rua ir ao centro da cidade

CE (Genérico) RJ/SP (Específico) mulher moça, senhora, menina homem rapaz, senhor, menino verdura cheiro-verde

papel documento ou qualquer impresso

água chuva

2 O termo semântico será usado exclusivamente com referência ao significado de palavras ou expressões.

3 A propósito da maleabilidade do dialeto cearense, CABRAL (1982) menciona a possibilidade de uso de certas expressões com sentido

contrário ao que expressam. Exs: “já vou chegando” com sentido de retirar-se; “nem lhe conto”, para indicar que há muito para contar e que o falante está ansioso para dizer tudo que sabe.

4 Merece destaque a contribuição que os Atlas Linguísticos têm dado aos estudos dialetológicos, mapeando traços regionais fonéticos e

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agrado presente, gratificação, gorjeta O problema da preferência por termos particulares e gerais nas diferentes línguas é antigo, a ponto de ser apre-sentado por ULLMANN (1977) como um universal na se-mântica descritiva, no que diz respeito à estrutura geral do vocabulário. O que talvez seja novo é a apreensão do mesmo fenômeno de variação interlinguística a nível intralinguístico, isto é, a constatação e posterior sistematização de dados comprovadores de que o mesmo fenômeno que ocorre entre línguas diferentes se dê entre dialetos de uma mesma língua. É possível que a nível semântico possa ocorrer o que TARALLO e KATO (1987) apontaram a nível fonológico e sintático:uma simetria entre princípios de variação inter e intralinguísticos.5

Um ponto instigante deste estudo é justamente a verificação das nuances da variação, e aqui valeria perfeita-mente a idéia de fixação de parâmetros emergente na sintaxe chomskyana. Senão, vejamos: com relação à implementação de termos mais genéricos ou mais específicos entre línguas, já se constatou que algumas preferem os primeiros, como o francês; enquanto que outras, como o alemão, optam por uma maior especificação. Há também a controvertida afirma-ção de que as línguas faladas por raças primitivas seriam mais ricas em termos específicos e mais pobres em termos genéricos que as demais. Este fenômeno, conhecido como “polionomía” (KAINZ apud ULLMANN, 1968) limitaria a capacidade de abstração dos povos dessas raças ditas pri-mitivas. Este argumento tem sido usado pela teoria do relativismo linguístico (SAPIR-WHORF)6 para explicar a

in-fluência da linguagem sobre o pensamento.

Com relação à questão aqui proposta para investiga-ção observa-se um fenômeno curioso - uma grande produti-vidade de palavras concretas, de sentido mais particular, o que poderia sugerir uma interpretação na linha do relativismo linguístico, apontando para uma correspondente dificuldade de abstração, via insuficiência vocabular. Por outro lado, tam-bém se verifica uma grande abundância de termos genéricos, o que desautoriza uma interpretação que considere o dialeto cearense, no caso, mais limitado ou mais pobre que os falares do eixo Rio/São Paulo, aqui tomados como ponto de referên-cia para a análise deste fenômeno. O que é mais curioso ain-da é que não se trata de mera escolha linguística a nível de

sistema ou a nível de realização individual, mas de troca no

duplo sentido - o especifíco usado com sentido genérico e este empregado com significado específico.

Diante disto, objetivamos fazer um levantamento de dados da língua falada representativos do vernáculo da co-munidade em relação à variável especificação/generalização, recorrendo à expressões dicionarizadas e à observação livre. A seguir sistematizaremos algumas relações lógicas e/ou semânticas existentes entre as palavras e expressões do corpus, visando uma descrição mais detalhada do traço de variação lexical em estudo. O inventário de formas será pre-cedido de uma breve análise teórica da questão, enfatizando os aspectos da mudança mais diretamente relacionados à restrição e à extensão do significado.

II. O CORPUS DE ANÁLISE

O corpus de dados analisado é constituído de palavras e expressões coletadas de forma empírica em situação natural de fala e no Dicionário de Termos e Expressões Populares de TOMÉ DE CABRAL, contendo 18.000 verbetes (1982).

As variedades consideradas não são propriamente ex-clusivas do dialeto cearense, no sentido rigoroso de

delimita-ção geográfica e sócio-cultural. Neste terreno é prudente uma certa cautela. Não só porque atualmente tem-se restringido o espaço atribuído aos dialetos e às variedades sócio-culturais mais diferenciados na norma padrão (MIRA MATEUS, 1983), como também porque ainda não se conta com descrições pre-cisas da variação lexical regional no Brasil.

Por outro lado, não se pode ser categórico quanto ao grau de penetração do fenômeno em estudo na fala com um todo. A simples observação nos leva a supor que o fenôme-no não seja de todos os falantes em todas as circunstâncias de uso, e que venha, portanto, a se configurar como uma regra variável. É curioso observar que algumas formas se restringem à fala não-padrão, enquanto que outras (sujeitas à mesma regra ou mecanismo) são de uso comum.

III. A MUDANÇA DE SIGNIFICADO: ASPECTOS TEÓRICOS

1. Mecanismos de restrição e de extensão do significado

A restrição e a extensão do significado constituem

efeitos da mudança semântica quanto ao âmbito do

signifi-cado novo em relação ao antigo. Tais deslocamentos de

sen-5 Conforme TARALLO (1987:53), os parâmetros “poderiam ser definidos como conjuntos de propriedades delineadoras e diferenciadoras

de sistemas linguísticos diversos”. A partir de análises de sistemas fonológicos do francês canadense, do espanhol das Américas e do português brasileiro, o autor postula uma sociolinguística paramétrica que aproxime o saber das teorias da variação e da mudança (Labov), ao modelo paramétrico da sintaxe (Chomsky).

6 A Teoria do Relativismo Linguístico, também conhecida como Hipótese Sapir-Whorf (nome de seu formulador), considera a linguagem

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tido podem ser entendidos como decorrentes de fatores so-ciais (ULLMANN, 1964:415). Assim, quando uma palavra

passa do uso comum para um meio limitado (nomenclatura especializada, terminologia de um ofício arte, profissão etc.) tende a restringir o seu sentido. Inversamente, as palavras

provenientes de um grupo para uso comum tendem a ampli-ar o seu significado. Deste modo, há, na verdade, duas

ten-dências socialmente condicionadas que operam em direções opostas: a especialização e a generalização (Id.Ibid, p. 415).

Ambos processos são muito comuns e constituem uma das principais fontes de polissemia.7 Com efeito,

obser-va-se um grande número de palavras que têm um significado geral na linguagem vulgar e sentidos especializados em gru-pos sociais particulares (esferas mais restritas), dos quais apenas um sentido será aplicável a determinado meio (Id.Ibid, p.335). É o caso da palavra “ação”. Para um advogado a pala-vra significará automaticamente “ação legal”, enquanto que para um soldado terá o sentido de “operação militar”. Já para um cinegrafista remeterá à idéia de “filmagem de uma cena”. E sem necessidade de outros termos qualificativos, pois o que conta é a idéia estar tão presente na mente do falante, a ponto de ser desnecessário declará-la na fala.

O grau máximo de especialização ocorre quando um substantivo comum se torna virtualmente um nome próprio que designa um só objeto num ambiente particular. Alguns exemplos clássicos do inglês britânico são: a City (centro da cidade), a House (casa do Parlamento), a Abbey (Abadia de Westminster), a Tower (torre de Londres) e outros. Na fala cearense, podemos ilustrar o fenômeno da especificação com ocorrências do tipo: “Quiboa” por “água sanitária”; rosa por “flor” em geral; “ir à rua” por “ir ao centro da cidade”.

É evidente que as causas sociais por si só não dão conta de toda gama de alterações das palavras. A mudança semântica pode ter origem em outros fatores, como os

linguísticos, por exemplo. Trata-se de modificações por

“con-tágio”, ou seja, alterações decorrentes de colocações e/ou associações a que as palavras estão sujeitas na fala. Lyons enfatiza a importância das considerações sintagmáticas para a discussão da especialização do sentido e Porzig, já na dé-cada de 30, mostrava que a abstração e a generalização de-pendem do afrouxamento das relações sintagmáticas (PORZIG, apud LYONS,1977:214). Assim é que, se um lexema for usado freqüentemente em relação sintagmática com um conjunto restrito de lexemas ou de expressões que o modifi-cam, pode vir a englobar o sentido destes. Na expressão inglesa “drive a car”, a palavra “car” desaparece, ficando apenas o verbo “drive” (Id.Ibid, p.216). As expressões cearenses “beber um gole de cachaça” e “querer falar em particular” transformam-se em “beber um gole” e “querer um particular”.

Razões históricas também podem conduzir à

mudan-ças de significado. Neste caso a língua mantém distinções

tradicionais, apesar de os objetos, instituições, idéias ou con-ceitos que ela representa se alterarem no curso do tempo.

As alterações semânticas podem igualmente ser re-sultantes de causas psicológicas. Assim, estados de

espíri-to do falante, entre os quais faespíri-tores emotivos e tabus de linguagem, bem como estilos mentais característicos podem ser responsáveis pela implementação de metáforas.

Além disso, a influência estrangeira ou a necessida-de necessida-de um nome novo também podem acarretar mudanças de

sentido. Neste caso, palavras novas podem ser formadas por diferentes princípios: a partir de elementos já existentes (num contexto de campanha eleitoral surgem as palavras “carreata” e “bicicleata”, a partir de “passeata”); por importação de ter-mos estrangeiros (como “Know-how”, “hand-out”, “software”, “toilette” etc.); ou ainda pela criação de novos significados para palavras já existentes (como em “sacar”, “colocar uma idéia”, ou como no verbo “colorir”, cunhado para expressar a adesão ao candidato à presidência Fernando Collor).

Todos estes deslocamentos e alterações semânticas fundamentam-se, em última instância, na própria natureza do vocabulário, na sua estrutura instável que possibilita a ocor-rência de variação e/ou de mudança. O vocabulário é um siste-ma siste-mais frouxo e menos limitado que o sistesiste-ma fonológico e o sistema gramatical de uma língua, admitindo com maior flexibi-lidade a entrada de elementos novos, ao mesmo tempo que os já existentes poderão facilmente cair em desuso. Essa ausên-cia de fronteiras bem definidas no sistema lexical está na base da imprecisão do significado, respondendo pela

nature-za genérica das palavras, pela polissemia, pela ambigüidade, pela perda de motivação8 e, ainda, por outros fatores

propiciadores da mudança semântica.

2. A natureza da mudança semântica:

A condição necessária para a mudança semântica é sempre a associação entre o significado novo e o antigo, independente de se estar considerando o caráter fragmenta-do da mudança (palavras isoladas) ou, numa visão mais atu-al, o caráter sistêmico da mudança (mudanças por blocos de significados interrelacionados ou campos associativos).

Dois pares de critérios têm sido usados para classifi-car a mudança semântica: categorias baseadas na associa-ção entre os sentidos (semelhança de sentido/metáfora e

con-tigüidade de sentido/metonímia) e categorias baseadas na associação entre nomes (semelhança de nomes/etimologia

popular e contigüidade de nomes/elipse).

O alcance desses quatro tipos de mudança semânti-ca, todavia não é o mesmo. As alterações decorrentes da associação de sentidos são muito mais importantes para a língua que as associações envolvendo nomes. Ora, a

metá-7 A possemia surgirá mais facilmente nas palavras genéricas, cujo significado varia segundo o contexto, que nos termos específicos, cujo

sentido está meno sujeito à variação (ULLMANN, 1968:91).

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fora e a metonímia constituem duas forças complementares inerentes à estrutura básica de fala humana (Id.Ibid, p. 465). Há que se considerar ainda que muitas alterações podem incluir-se em mais de uma categoria. Por outro lado, inúmeras formas são fruto de mudanças sucessivas, além da possibilidade de ocorrência de mudanças em blocos de sig-nificados correlacionados. Tais considerações alertam-nos para o risco de generalizações indevidas. Nem sempre os processos de alteração são visíveis. Há casos em que é in-dispensável uma investigação etimológica rigorosa para apre-ender as associações de significado e/ou de forma que se estabelecem entre as palavras no espaço e no tempo.

Embora nosso objetivo seja sincrônico/descritivo é inevitável tocar nesses aspectos, sob pena de termos uma visão muito fragmentada dos mecanismos de restrição e de extensão do significado.

Para a compreensão global do fenômeno em estudo é preciso recorrer complementarmente aos processos metafó-ricos e metonímicos. Enquanto a metáfora tende a abstrair os significados a partir do concreto (traduzir experiências abs-tratas em termos concretos), a metonímia tende a concretizar as palavras abstratas, atribuindo-lhes um significado con-creto. Isto significa que, atráves de processos distintos, por uma espécie de “taquigrafia verbal” (Id.Ibid, p.443), os signi-ficados se ampliam ou se restringem.

A metáfora é uma “comparação condensada que afir-ma uafir-ma identidade intuitiva e concreta” (ESNAULT, apud ULLMANN, 1964:443). Quatro grupos principais de metáfo-ras podem ser destacados: as metáfometáfo-ras antropomórficas, as metáforas animais, as metáforas do concreto ao abstrato a as metáforas sinestésicas.

O dialeto cearense é muito rico em expressões meta-fóricas, evidenciando-se uma grande quantidade de termos cunhados a partir de traços da realidade concreta, tal como ela é elaborada nesta região. Exs: bulir com o pensamento (= ficar preocupado); botar a perder (= estragar, inutilizar); bo-tar prá cima de (= culpar, suspeibo-tar); bobo-tar sentido em (= tomar conta de, prestar atenção, vigiar); deixar de mão (= não insistir, abandonar; doente do juízo (= doido).

As metáforas animais e as antropomórficas também têm largo uso e valeria à pena um estudo detalhado sobre o tema. A título de exemplificação do primeiro aspecto temos: bicho por animal ou por negócio e coisa; estar de bucho por estar grávida; lavar a burra por ter vantagem ou lucro nos negócios; espinhaço por coluna etc. Como exemplo de ex-pressões cunhadas a partir de termos referentes à partes do corpo ou órgãos temos: avexado da cabeça por doido ou maluco; enfraquecido do pulmão por tuberculoso; não botar os pés por não ir mais a determinado lugar, descansar os ossos por dormir ou deitar e outros tantos.

A metonímia, ao contrário da metáfora, não estabelece relações novas e surge apenas entre palavras já relacionadas entre si. Este tipo de associação de sentidos permite encurtar distâncias, facilitando a rápida intuição de coisas já conheci-das. (Id.Ibid, p.445). Sua classificação toma como base as as-sociações subjacentes a elas: a parte pelo todo, a causa pelo

efeito, o continente pelo conteúdo, a marca pelo produto, a obra pelo autor, o local pelo acontecido no local etc.

Na discussão dos dados do levantamento feito, as transferências metonímicas serão melhor especificadas, em razão de sua importância para a compreensão do princípio de organização lexical aqui estudado.

3. Algumas relações lógico-semânticas relativas

a níveis de generalidade

A teoria semântica mostra que as palavras se relacio-nam por princípios de organização interna que criam conjun-tos de itens lexicais. Há, assim, entre as palavras relações semânticas básicas ou primitivas: sinonímia, antonímia, hiponímia ou inclusão de classe, incompatibilidade, oposi-ção, escalas, complementaridade, conversão ou transposi-ção, hierarquia etc. (LEHRER, 1974:22). Em alguns casos, no entanto, estes conceitos só se aplicam parcialmente, assim como podem se interpenetrar.

Vejamos as relações semânticas mais diretamente li-gadas ao foco de análise do presente estudo.

3.1. Inclusão de Classe (Lehrer) ou Hiponímia (Lyons)

A inclusão de classe ou hiponímia relaciona termos específicos a termos gerais. Ex: rosa, cravo e papoula são hipônimos de flor e flor é o termo superordenado relativo a estes itens lexicais. Este termo mais alto na taxonomia pode ser designado de várias maneiras: cabeça, palavra-envelope, rótulo ou arquilexema.

Em geral a hiponímia baseia-se numa implicação uni-lateral, definida pela fórmula “Se é X então é um tipo de Y” ou A > B, onde B é mais alto na taxonomia que A, mas não é o caso de B > A. Aplicando a fórmula poderíamos dizer: Se isto é uma rosa, então é uma flor. Mas se é uma flor não necessa-riamente será uma rosa. Caso a implicação seja bilateral (A e B puderem ser trocados um pelo outro), a relação será de sinonímia.

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especí-fico (ex: a palavra “presente”, dependendo do contexto, tanto poderá ser um termo específico como genérico, quando se refere, por exemplo, a relógio, gravata, caneta).

Finalmente, a competência para usar termos super-ordenados depende também do conhecimento de áreas especializadas do vocabulário, ao mesmo tempo que nem sempre há um consenso sobre o alcance de cada super-ordenado. Ex: ao ler a placa “Proibido o estacionamento de veículos”, todos entendem, mas não há a mesma certeza quan-to ao alcance da palavra veículos. O que exatamente ela in-clui: motos, ônibus, bicicletas, carros?

3.2. Complementares

São pares de termos que não figuram numa escala, embora, em certos casos fronteiriços, isto possa ser admitido (LEHRER, 1974:.28). Os critérios que relacionam termos com-plementares são conceptualmente complexos e admite-se variação subjetiva, daí se dizer que são cognitivamente sinô-nimos, mas conotativamente diferentes. Ex: magricela / ma-gro / esbelto // obeso, gordo, forte (ou rechonchudo). No dialeto cearense há uma grande produtividade no uso de complementares (ex: forte por gordo, fino por magro, delica-do por atencioso, colcha por lençol etc). Vale ressaltar que, embora outros termos complementares possam, ser usados, há uma forte tendência para privilegiar certas formas.

3.3. Segmentos sobrepostos

Constituem uma relação especial de “parte de”, em que cada item está incluído no seguinte. Ex: segundo, minu-to, hora, dia, mês, ano, década, século. Estes termos são in-compatíveis num certo sentido, ou seja, segundo é diferente de minuto, embora esta incompatibilidade não seja total. Sig-nifica dizer, que é possível graduar os termos numa escala, em que um está contido no outro.

IV. LEVANTAMENTO DO VOCABULÁRIO POR RELAÇÕES LÓGICAS E/OU SEMÂNTICAS

REFERENTES A NÍVEIS DE GENERALIDADE9

(I) O ESPECÍFICO PELO GENÉRICO 1. caçar / procurar

2. canela / perna

3. de cabeça / de boa memória

4. de gravata / de boa família, da elite 5. enfatiotar-se10 / vestir-se bem, com apuro

6. engomadeira / passadeira 7. engomar / passar roupa

8. fazer feira / fazer compras (de supermercado) 9. fazer mercantil / fazer compras (de supermercado) 10. gemer / pagar

11. grade(s) / prisão

12. horário / trem de passageiros (que chega em hora certa todos os dias)

13. ir ao gabinete / ir ao salão de beleza ou ao cabelereiro 14. ir à rua / ir ao centro da cidade

15. jogar, botar ou rebolar no mato / jogar fora 16. Qui-boa 11 / água sanitária

17. aprendido / culto 18. lombo / costas, corpo 19. malota / porta-mala (de carro) 20. mente / opinião

21. pastorar / tomar conta, vigiar

22. rapaz 12 / pessoa em geral (para homens ou mulheres)

23. rosa / flor

24. sustança (substância) / força, coragem, resistência, dis-posição para o trabalho

25. telegrama / telégrafo 26. tertúlia / festa

(II) EXPRESSÕES SEMELHANTES COM VERBOS DE SENTIDO MAIS CONCRETO OU ESPECÍFICO NO DIALETO CEARENSE:

1. agarrar no sono / pegar no sono 2. amarrar a cara / fechar a cara 3. apanhar na cabeça / levar na cabeça 4. atar a rede / armar a rede

5. bater roupa / lavar roupa 6. botar corpo / criar corpo 7. botar força / esforçar-se 8. botar frutos / produzir frutos

9. botar verde (para colher maduro) / jogar verde 10. bulir em casa de maribondo / mexer em casa de

maribondo

11. bulir na ferida / tocar na ferida (fazer referência a assunto delicado ou desagradável)

12. engomar roupa / passar roupa

13. enterrar a unha / meter a unha 13 (explorar nos preços)

14. fazer terço (tirar terço) / rezar terço 15. sair grávida / ficar grávida

9 O primeiro termo listado refere-se à forma em uso no dialeto cearense. Após a barra são elencados os termos e/ou significados

correspondentes nos falares do Rio e São Paulo.

10 Vem de “fatiota”ou “terno”. “Estar de terno”significa estar bem vestido.

11 “Qui-Boa”é uma marca de água sanitária. A fala cearense privilegia a marca (o particular), em oposição aos outros dialetos de referência

do estudo, que implementam o termo mais genérico, referente ao produto.

12 O termo “rapaz”também é usado como expressão enfática, ou forma de tratamento.

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(III) O GENÉRICO PELO ESPECÍFICO

1. acabar-se (estar se acabando) / morrer, ter fim 2. adoecer / ficar menstruada

3. agrado / presente, gratificação, gorjeta 4. água / chuva

5. andar com / ter relações sexuais 6. animal / cavalo, burro, jumento 7. assento / cadeira, banco, tamborete 8. comprometer-se / ficar noivo

9. criatura / homem, mulher 14, pessoa com quem ou de quem

se fala

10. deitar-se com / ter relações sexuais

11. descansar, desocupar-se, despachar / dar à luz, ter um filho

12. despachada / parida, livre da placenta 13. esquentar o juízo / esquentar a cabeça

14. estabelecimento / loja, bar, restaurante, lanchonete, mer-cearia

15. festas / presente de Natal

16. garantir os atos / garantir os direitos, a segurança 17. grude / goma ou cola

18. guardados / jóias ou pequenos objetos de certo valor 19. homem / senhor, rapaz, menino

20. incomodada / menstruada

21. inverno / época ou período de chuvas 22. juízo / cabeça, cérebro, memória, paciência 23. mulher / senhora, moça, menina

24. panos / roupa (em geral): roupa de cama ou lençol, roupa de bebê ou fraldas, fralda de camisa 15

25. papel / documento ou impressos em geral (carta, procu-ração, convite, telegrama)

26. perturbar o juízo / perturbar a cabeça, ou as idéias 27. quartos / bunda, traseiro

28. serrar / lixar (as unhas) 29. situação / sítio, propriedade 30. tempo / céu

31. ter sentimento / ter vergonha, escrúpulo 32. terra / propriedade, sítio, fazenda 33. tomar / pedir emprestado

34. verdura / cheiro-verde ou tempero verde (IV) TERMOS COMPLEMENTARES

Lista A:

1. assar 16 / fritar

2. agravar / falar mal de, fazer mal juízo de, ofender 3. alterar-se / irritar-se

4. apresentado / oferecido, intrometido 5. apresentar-se (uma dor) / aparecer

6. arruinar (um alimento) / estragar, deteriorar 7. buzinar / tocar campainha

8. colcha / lençol

9. comparecer / contribuir com, cooperar com 10. danado / ativo, sabido, hábil, inteligente, corajoso 11. desabar / ir embora para bem longe

12. descansado / vagaroso, preguiçoso

13. destreinado / encabulado, confuso, envergonhado 14. engraçada / bonita, atraente

15. estragado / com a saúde abalada, acabado, gastador 16 fino / magro

17. forte / gordo 18. gorda / grávida

19. grandeza / orgulho, importância 20. grossa / grávida

21. grosso / desajeitado 22. igual / prestativo, leal 23. inchado / maduro

24. infeliz / indesejável, sem vergonha 25. lavadeira / passadeira

26. machucar / amassar, quebrar, estragar, arranhar 27. magoar / machucar (o corpo)

28. mental / doido 29. particular / segredo 30. raça / espécie, qualidade

31. resolvido / corajoso, disposto, resoluto 32. sabedoria / esperteza, sagacidade, trapaçaria 33. sabido / ardiloso, aproveitador

34. sacudir / jogar longe, atirar (sobre) 35. seco / vazio

36. talento / resistência

37. tirano / difícil, embaraçoso, perigoso, cansativo 38. vexame / pressa

Lista B:

1. abusar / enjoar 2. acelerar / apressar 3. acochar / apertar 4. aderente / parente 5. ajeitar / arrumar, preparar 6. ajeitado / bem vestido, enfeitado 7. ajustar (justar) / acertar, combinar 8. alvo / branco

9. anarquisado / batido, velho, fora de moda, surrado 10. apartado / separado, afastado, ausente

14 Os termos “criatura”, “homem” e “mulher” também são usados como forma de tratamento, servindo, ainda, para dar maior ênfase à

conversa, à pergunta, ou para melhor convencer o interlocutor.

15 “Amarrar os panos”ou “amarrar as camisas”é um duelo em que os opositores amarram as fraldas das camisas e lutam de punhal ou faca

(CABRAL, 1982:41/321).

16 De acordo com a a análise de campo lexical de “verbos de cozinhar”feita por LEHRER (1974) e, posteriormente, compilada por VILELA

(8)

11. arenga / bate-boca, discussão, briga, teima 12. arriar / baixar, puxar para baixo, fazer descer

13. arrumação / negócio, acordo, artimanha, peraltice, ma-landragem, imprudência, coisa ridícula, esquisita ou complicada, negócio inconveniente ou duvidoso 14. astucioso / levado, ardiloso, danado

15. banda / metade, lado, pedaço 16. bicho / animal

17. bicho / negócio, coisa

18. bulir / mexer, chatear, roubar, ter relações sexuais 19. buxuda / grávida

20. canto / lugar

21. carecer / precisar, necessitar 22. catrevagem / trecos, terens, trastes 23. cavalete / escada

24. consumição / aflição, esgotamento, preocupação, enfra-quecimento

25. copeira / arrumadeira 26. coxia / meio-fio, calçada 27. cruzeta / cabide 28. curado / imune

29. dar assistência / dar atenção 30. delicado / atencioso 31. de revestrés / ao contrário

32. derreado / inclinado, caído, torto, pendido 33. desconforme / muito grande, enorme 34. desconveniente / inconveniente 35. desfeitar / ofender gravemente

36. desonerado / estragado (com aspecto ou cor modificada) 37. desinterar / reduzir

38. empachado, empanzinado / empanturrado (com o estô-mago muito cheio, com dificuldade de digestão) 39. enfezado / aborrecido, zangado

40. enfezar / provocar (a raiva de alguém) 41. enjeitar / não aceitar, recusar

42. esbagaçar 17 / despedaçar, desperdiçar, esbanjar

43. escangalhar 18 / quebrar, rebentar

44. esmorecido / cansado, exausto, desanimado 45. espatifado / bagunçado, quebrado

46. estar danado para / estar louco para, estar ansioso, com pressa de

47. estaqueado / picotado, cabelo mal cortado 48. estranhar-se / brigar

49. estremecido / brigado, com as relações de amizade aba-lada

50. farda / uniforme 51. fastio / falta de apetite

52. fraquejar / desistir, perder a coragem 53. gabinete / escritório

54. goma / polvilho

55. intrigado / brigado, de mal 56. judiar / maltratar

57. largado / separado, abandonado, desprezado 58. lesado / lerdo

59. maldar / fazer mal juízo, suspeitar, caluniar 60. marmota / esquisitice

61. não prestar / não dar certo 62. opinioso / teimoso, caprichoso 63. pano / tecido

64. pescar / colar (em provas)

65. remontar / reformar, consertar (roupa) 66. saído / saliente, intrometido

67. serviço / trabalho, encargo 68. sunga / calcinha

69. torto, zarolho / estrábico 70. vistoso / bonito

71. vontadoso / interessado, cheio de vontades 72. queda / tombo

73. quentura / calor

74. vexado / apressado, impaciente, preocupado, confuso (V) O GENÉRICO PELO GENÉRICO

1. arrumação / negócio, coisa 2. banda / lado, pedaço 3. bicho / animal 4. bicho / negócio, coisa 5. canto / lugar

6. catrevagem / trecos, coisas 7. pano / tecido, roupas em geral 8. raça / espécie, qualidade 9. serviço / trabalho, encargo (VI) SEGMENTOS SOBREPOSTOS

1. arriado / doente, acamado doente / menstruada 2. bicho / negócio, coisa arrumação / negócio, coisa 3. criatura / homem, mulher homem / senhor, rapaz, menino

mulher / senhora, moça, menina 4. engraçada / bonita vistosa / bonita

5. esquentar a paciência / esquentar a cabeça esquentar a cabeça / ficar irritado

6. lido / aprendido aprendido / culto, instruído

7. magoar, judiar / machucar machucar / amassar, quebrar, estragar, arranhar

8. panos / colchas (roupa de cama) colcha / lençol

9. situação / propriedade, terra propriedade / sitio, casa, fa-zenda, terreno

V. DISCUSSÃO DOS DADOS

A partir dos dados do corpus discutiremos aqui a especificação/generalização como um dos princípios em jogo

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na organização do léxico no dialeto cearense. Tentaremos mostrar como tal principio se relaciona com os mecanis-mos de restrição e de extensão do significado, para o qual contribuem ainda princípios metafóricos e metonímicos.

1. O Específico pelo Genérico

No levantamento de palavras específicas por pala-vras de sentido genérico (lista I) podemos observar clara-mente um efeito de ampliação do sentido.

As expressões “fazer feira” (I/8)19 e “fazer mercantil”

(I/9), por exemplo, usadas no Ceará com o mesmo sentido de fazer compras de supermercado, foram cunhadas a partir do hábito antigo de fazer compras em feiras livres e do nome “Mercantil São José” 20, respectivamente.

O verbo “caçar” (I/1), usado amplamente em lugar de “procurar” um objeto perdido (ex: Caçou os papéis por toda parte e não encontrou nada); e o verbo “pastorar” (I/ 21), empregado por tomar conta (Exs: Vou pastorar o carro. Fico pastoreando os meninos.) também são ilustrativos da ocorrência de expansão de sentido. Por este mecanismo au-menta a extensão da palavra, isto é, ela se aplica a uma maior variedade de coisas, mas sua precisão diminui, expressando menos a respeito de seus referentes. Aqui atua o operador semântico de supressão sêmica (DUBOIS et alli, 1970:135),

cujo efeito é ampliar a extensão de um termo, tornando-o mais geral.

Nos quadros seguintes referentes aos traços semân-ticos distintivos de caçar/procurar e de pastorar/tomar conta podemos visualizar melhor a supressão de alguns semas, expandindo e generalizando, no dialeto cearense, o sentido dos termos exemplificados.

Caçar (Quadro I) não compartilha de todos os traços semânticos de procurar, mas ao ser empregada também com este sentido, a palavra perde algumas de suas distinções

originais (semas 7,8 e 9), passando a dizer menos sobre mais coisas.

O mesmo ocorre com o par pastorar/tomar conta, em que a primeira palavra perde as distinções semânticas 2 e 3, ao passar a cobrir o significado de “tomar conta”. Como se vê, neste processo abrem-se as fronteiras de significa-do. Mantém-se os traços semânticos comuns e são supri-midos os que diferenciam a palavra específica, que passa a ser usada com sentido mais genérico.

Um outro exemplo típico não apenas do dialeto cearense, mas de algumas línguas eslavas do sul da Europa é a palavra “rosa”, usada no sentido genérico de “flor”.

Este mesmo mecanismo de extensão de significado pode ser observado igualmente numa dimensão diacrônica. A pala-vra “rival”, por exemplo, alarga o sentido original do latim “rivus” (riacho, os que têm o mesmo riacho, portanto “vizinhos”), am-pliando esta rivalidade para o campo amoroso.

Paralelamente ao mecanismo de extensão do significa-do, vamos encontrar no dialeto cearense freqüentes associa-ções de sentido por transferências metonímicas, cujo efeito também é o de expandir o significado e encurtar distâncias. Tais associações são feitas com base em relações espaciais ou temporais, surgindo entre palavras já relacionadas entre si.

No primeiro caso, o nome de uma coisa pode ser trans-ferido para outra que lhe seja contígua ou próxima, como entre: canela / perna (I/2), de cabeça /de boa memória (I/3), de grava-ta / de boa família (I/4), grade / prisão (I/11), ir ao gabinete / ir ao salão de beleza (I/13), lombo / corpo (I/18), malota / porta-mala de carro (I/19), telegrama / telégrafo (I/25) etc.

No segundo caso, o nome de uma ação, acontecimen-to ou qualidade pode ser transferido para qualquer coisa que o preceda ou siga, como entre: gemer / pagar (I/10), jogar botar ou rebolar no mato / jogar, botar ou rebolar fora (I/15), aprendido / culto (I,17), sustança / força, coragem (I/24) etc. Com relação às transferências metonímicas, convém observar que não se deve inferir do que foi apontado que os dialetos do centro-sul também não façam uso do mesmo pro-cesso, ou que o façam mais ou menos. O que precisa ser percebido é que o processo de transferência se dá entre pa-lavras privilegiadas no dialeto cearense e papa-lavras dos diale-tos de referência deste estudo. O importante é ter em mente que tais transferências são feitas de modo a realçar aquilo que é mais saliente e concreto, mantendo-se, assim, a ten-dência de usar termos específicos como genéricos ou de con-cretizar palavras abstratas.

Também aqui podemos observar, diacronicamente, a ocorrência do mesmo tipo de transferência em palavras cujos significados são ampliados ao passarem de um campo espe-cializado para a linguagem comum. Em francês, assim como no inglês, há vários exemplos de termos relativos à caça: as palavras “lure” (isca, engodo, chamariz) e “allure” (fascinar, atrair, persuadir) vieram do sentido original de “lure” que era um instrumento usado pelos falcoeiros para chamar seus fal-cões. 21

Quadro I Dimen-sões Empe-nho, tentativ a para achar algo Exame atento, observa -ção Solicita -ção Investi ga-ção, Pesquis a Ato de persegu ir Ato de recolhe r Ato de apodera r-se De Animai s Com algo: tiro, laço, rede, etc. Lexem as

(1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) (8) (9)

Caçar + + - - + - + + +

Procura r

+ + + + + + - -

-Quadro II

Dimensões Ato de cuidar,

encarregar-se Ato de guiar ao pasto Ato de guardar ogado no pasto

Lexemas (1) (2) (3)

pastorar + + +

tomar conta + -

-19 Indicamos em algarismos romanos a lista em que a palavra aparece no levantamento e, em algarismos arábicos após a barra, a

numeração da palavra dentro desta lista.

20 O “Mercantil São José” foi o primeiro supermercado de Fortaleza, vindo a se constituir depois numa rede de supermercados.

21 Tal instrumento era constituído de um tufo de penas atadas a uma corda, dentro da qual, durante o adestramento, o falcão encontrava

(10)

2. Expressões semelhantes com verbos de senti-do mais concreto ou específico no dialeto cearense

Neste conjunto foram reunidas expressões equivalen-tes nos dialetos das duas regiões e é curioso notar que até mesmo nelas há nuances de variação introduzidas pelo verbo de sentido mais concreto, reiterando a tendência geral do estu-do.

A título de exemplo, observemos os pares de verbos: agarrar / pegar no sono (II/1), amarrar / fechar a cara (II/2), apanhar / levar na cabeça (II/3), botar força / esforçar-se (II/ 7), botar verde / jogar verde (II/9) entre outros. A propósito das duas últimas expressões, vale observar a grande inci-dência, na fala cearense, de metáforas formadas a partir do verbo botar, traduzindo experiências abstratas em termos

concretos: botar a perder / inutilizar, estragar; botar corpo / criar corpo, desenvolver as formas; botar no mundo / dar à luz; botar nos eixos / endireitar, corrigir; botar pra cima de / suspeitar, culpar; botar sentido em / tomar conta de, prestar atenção etc.

3. O Genérico pelo Específico

No levantamento de palavras genéricas por palavras de sentido específico (Lista III) verificamos um efeito de res-trição de significado.

Exemplificando, temos a palavra “verdura” (III/34), que no dialeto cearense é usada com sentido de cheiro-verde ou tempero-verde (cebolinha, salsa, coentro etc).); e a palavra “agrado” (III/3) que nesta região reduz seu significado para “presente”, “gratificação” ou “gorjeta”. O mesmo acontece com “inverno” (III/21), empregado com o sentido de período ou época das chuvas; “festas” (III/15) por presente de natal (no singular); “grude” (III/17) por goma ou cola, “mulher” (III/23) por senhora, moça ou menina, “serrar” as unhas (III/ 28) por lixar as unhas, “panos” (III/24) por roupa de cama, lençol, roupa de bebê, fraldas ou camisas e outros tantos casos.

Da mesma forma, o termo genérico animal (III/6), é empregado constantemente no sentido particular de cavalo, burro ou jumento; assim como a palavra “estabelecimento” (III/14) por loja, bar, mercearia, lanchonete ou restaurante.

O procedimento é o seguinte: o termo “animal”, ao ser empregado por cavalo, burro ou jumento, vai incorporar os semas destas palavras. Assim, sua extensão restringe-se a

estes sentidos particulares, mas, paralelamente, sua intensi-dade semântica aumenta, na medida em que esta palavra pas-sa a cobrir todos os demais traços de significado das outras. Mecanismo idêntico ocorre com o termo “estabelecimento”, que compartilha apenas alguns semas com os demais desta série e, ao ser usado alternativamente com o sentido especí-fico de loja, bar, mercearia, restaurante e lanchonete, perde

em amplitude terminológica, mas expande seus traços se-mânticos, intensificando o sentido.

Não é preciso ir adiante na enumeração para se per-ceber como este mecanismo é freqüente na fala do Ceará. Por meio dele, as palavras passam a se aplicar a coisas mais particulares, ou seja, restringe-se o seu âmbito, mas o sig-nificado enriquece-se com um traço adicional. Neste caso entra em jogo a adjunção sêmica, operador semântico cujo

efeito é restringir a extensão de um termo, tornando-o mais específico (DUBOIS et alli, 1970:135).

Tal como a extensão, a restrição de significado tam-bém pode ocorrer numa dimensão diacrônica, e, neste caso, faz com que o sentido especializado anule o mais genérico. No francês, por exemplo, alguns verbos tiveram seu sentido restringido quando passaram para a linguagem da vida rural: a palavra “cubare” (reclinar-se) deu no francês “couver” (cho-car), assim como “ponere” (colocar) deu “pondre” (por ovos) e “mutare” (mudar) deu “muer” (mudar o pelo ou as penas). Ainda no francês, a palavra “viande” que até o século XVII significava comida em geral, depois limita seu sentido e pas-sa a significar apenas carne.

No inglês temos a palavra “voyage”, que original-mente significava viagem e depois passa a significar exclusi-vamente viagem por mar ou água.

O princípio generalização/especificação, intimamente relacionado ao mecanismo de restrição do significado, tal como foi exemplificado anteriormente, está igualmente relaci-onado à hiponímia ou inclusão de classe (ver item 3.1). No dialeto cearense o termo genérico empregado com sentido específico freqüentemente é um superordenado. Por exem-plo: Se ela é uma menina (III/23), então é uma mulher. Mas se digo que é uma mulher, não posso dizer que, necessariamen-te, seja uma menina. Se é chuva, é água (III/4), mas nem toda água é chuva. Uma cadeira é um tipo de assento (III/7), mas um assento não é um tipo de cadeira. Em todos estes casos a implicação é unilateral, logo estamos diante de casos de hiponímia.

Na palavra “panos” (III/24) usada por lençóis, col-chas, fraldas, roupas em geral, o primeiro termo é o super-ordenado ou arquilexema em relação aos seguintes, que são seus hipônimos.

No conjunto de dados em que estes exemplos figu-ram podemos observar ainda a mesma ocorrência de transfe-rências metonímicas registradas no item anterior, só que des-ta feides-ta do genérico em direção ao específico.

(11)

Aqui também vale enfatizar que a metonímia, apesar de ser recurso lingüístico geral e, portanto, aplicar-se aos demais dialetos do Brasil, tem no Ceará um uso especial. Na fala cearense fixa-se de tal maneira o primeiro termo do par de palavras associadas, que o segundo termo pratica-mente desaparece do uso. E este mecanismo também con-tribui para a tendência de tomar termos genéricos por es-pecíficos.

4. Termos Complementares

A análise da variação lexical referente a níveis de ge-neralidade desvelou um aspecto correlato que, à primeira vista, pode ser confundido com a questão principal do estudo (o uso de termos específicos por genéricos e vice-versa). Trata-se da grande incidência de termos complementares ou pares de palavras com um mesmo referente, intimamente relaciona-das no uso, mas que expressam nuances significativas diver-sas.

Se observarmos com mais detalhe o levantamento de termos complementares veremos que esta lista apresenta pa-res de palavras que podem ser reunidas por critérios distintos. De um lado temos termos do dialeto cearense também empregados nos dialetos do Rio e São Paulo, mas com senti-dos diferentes. Nomeamos este conjunto de lista A. Ex: grossa

por grávida (Lista A, IV/19), a palavra grossa é usada nas duas regiões, mas não com esta acepção). Do mesmo modo, machu-car por amassar (Lista A, IV/25); engraçada por bonita (Lista A, IV/13), forte por gordo (Lista A, IV/16).

De outro lado estão os termos usados preferencial-mente pelo falante do Ceará em relação a termos mais difun-didos no centro-sul do país. Nomeamos este conjunto de lista B. Ex: banda por pedaço (Lista B, IV/15); canto por lugar (Lista B, IV/20); copeira por arrumadeira (Lista B, IV/25); pes-car (em provas) por colar (Lista B, IV/64); bulir por mexer (Lista B, IV/18).

Registre-se, ainda, como adverte Lehrer, a flutuação subjetiva existente na classificação dos termos complemen-tares, decorrente da complexidade conceptual dos critérios que organizam este conjunto de itens lexicais.

Por outro lado ainda persiste nesses pares de pala-vras um matiz de transferência metonímica, tal como se tem observado ao longo da discussão dos dados. É o caso de buzinar por tocar campainha (lista A, IV/6); mental por doido (lista A, IV/27), cavalete por escada (lista B, IV/23); lavadeira por passadeira (lista A, IV/24), entre outros. A proximidade conceitual entre os termos, (freqüentemente expressa na re-lação “espécie de” ou “tipo de”), faz com que se fixe o uso de um termo por outro.

No caso dos complementares configura-se a mesma tendência de deslocamento semântico verificada ao longo do estudo, ainda que numa escala menor de generalidade. A variação lexical praticamente não afeta o grau de generalida-de das palavras, mas há entre elas uma troca generalida-de secas, o que acarreta a variação de significado aludida a propósito da lista A.

5. O Genérico pelo Genérico

Neste conjunto de dados podemos observar a mes-ma relação de complementaridade discutida cimes-ma, só que aplicada exclusivamente à variação de termos genéricos (superordenados, arquilexemas ou palavras-rótulo), como se pode perceber em: arrumação por negócio ou coisa (V/ 1); em raça por espécie (V/8) ou em bicho por animal (V/ 3).

6. Segmentos sobrepostos

Neste item agrupamos termos da fala do Ceará que se sobre põem numa escala, isto é, o primeiro termo é usado por um segundo que, por sua vez é usado por um terceiro. A maioria dos conjuntos refere-se a uma escala de termos superordenados como nos seguintes exemplos: a palavra criatura (VI/3) usada com sentido de homem, que é usada por senhor, rapaz e menino; ou a palavra panos (VI/8) que é usa-da por colchas, que , por sua vez, é usausa-da por lençóis.

A existência deste tipo de relação semântica explica em parte a circularidade das definições de dicionário, em que as palavras freqüentemente se auto-remetem umas às outras.

Com relação à variação lexical constata-se, assim, a existência de segmentos sobrepostos também entre conjun-tos de palavras típicas do dialeto cearense. (Vale lembrar que não se está comparando aqui a ocorrência de segmentos sobrepostos entre a fala do Ceará e as demais.)

VI. COMENTÁRIO FINAL

Finalizando a discussão dos dados, podemos dizer que a especificação/generalização é, de fato, um dos princí-pios básicos da organização do vocabulário no dialeto cearense, quando confrontado com falares do centro-sul do Brasil. No estudo esta regra foi explicitada a partir dos meca-nismos de restrição e de extensão do significado, sob a ótica da variação e da mudança semânticas.

Elucidando traços da variação lexicológica a nível re-gional, o trabalho abre perspectivas para novos estudos que venham a explorar os fatores sócio-culturais em jogo na ques-tão, mediante um tratamento sociolinguístico dos dados. Aponta ainda, para a necessidade de um estudo variacionista sobre expressões metafóricas.

VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(12)

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